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A Aventura Humana

por Thynus, em 13.12.14
Tendo seguido o desdobramento da vida na Terra desde suas origens mais recuadas, não podemos deixar de sentir uma excitação especial quando chegamos no estágio em que os primeiros símios antropóides se ergueram e caminharam sobre as duas pernas, mesmo que essa excitação possa não se justificar cientificamente. À medida que aprendemos como os répteis evoluíram em vertebrados de sangue quente, que cuidavam de seus filhos, como os primeiros primatas desenvolveram unhas achatadas, polegares opostos aos outros dedos e o começo de uma comunicação vocal, e como os símios antropóides desenvolveram caixas torácicas e braços semelhantes aos humanos, cérebros complexos e capacidade de fazer ferramentas, podemos rastrear a emergência gradual de nossas características humanas. E quando atingimos o estágio dos símios antropóides de caminhar ereto com as mãos livres, sentimos que agora a aventura da evolução humana começa efetivamente. Para segui-la de perto, temos de mudar mais uma vez nossa escala de tempo, dessa vez de milhões para milhares de anos.
Os símios antropóides de caminhar ereto, que se extinguiram por volta de 1,4 milhão de anos atrás, pertencem todos ao gênero Australopithecus. Este nome, derivado do latim australis ("meridional") e do grego pithekos ("símio antropóide"), significa "símio antropóide do sul" e é um tributo às primeiras descobertas de fósseis pertencentes a esse gênero na África do Sul. A mais antiga espécie desses símios meridionais é conhecida como Australopithecus afarensis, nome dado em homenagem às descobertas de fósseis na região de Afar, na Etiópia, que incluíam o famoso esqueleto denominado "Lucy". Eram primatas de constituição leve, talvez com cerca de 137 cm de altura e, provavelmente, tão inteligentes quanto os atuais chimpanzés.
Depois de quase l milhão de anos de estabilidade genética, de cerca de 4 para cerca de 3 milhões de anos atrás, a primeira espécie de símios antropóides do sul evoluiu em várias espécies mais solidamente constituídas. Estas incluíam duas das primeiras espécies humanas que coexistiram com os símios antropóides do sul na África por várias centenas de milhares de anos, até que estes últimos se extinguiram.
Uma importante diferença entre os seres humanos e os outros primatas está no fato que as crianças humanas precisam de muito mais tempo para passar na infância; elas imoram mais tempo para atingir a puberdade e a vida adulta do que qualquer um dos Símios antropóides. Enquanto os filhos de outros mamíferos se desenvolvem plenamente no útero, de onde já saem prontos para o mundo exterior, nossos filhos ainda não estão completamente formados por ocasião do nascimento e se encontram totalmente desamparados. Em comparação com outros animais, as crianças humanas pequenas parecem ter nascido prematuramente.
Essa observação é a base da hipótese amplamente aceita segundo a qual os nascimentos prematuros de alguns símios antropóides podem ter sido decisivos para desencadear a evolução humana. Devido a mudanças genéticas no timing do desenvolvimento, ps símios antropóides nascidos prematuramente podem ter retido seus traços juvenis por mais tempo que os outros. Casais de símios antropóides com essas características, conhecidas como neotenia ("extensão do novo"), teriam dado nascimento a mais crianças nascidas prematuramente, que reteriam um número ainda maior de traços juvenis. Desse modo, pode ter-se iniciado uma tendência evolutiva que finalmente resultou numa espécie relativamente desprovida de pêlo, cujos adultos, de muitas maneiras, assemelham-se a embriões de macacos.
De acordo com essa hipótese, o desamparo dos filhotes nascidos prematuramente desempenhou um papel de importância crucial na transição dos símios antropóides para os seres humanos. Esses recém-nascidos exigiam famílias capazes de lhes dar sustentação, as quais podem ter formado as comunidades, as tribos nômades e as aldeias que se tornaram os fundamentos da civilização humana. As fêmeas selecionavam machos que tomariam conta delas enquanto estivessem cuidando de seus filhos e que lhes dariam proteção. Finalmente, as fêmeas não entrariam no cio em épocas específicas, e, uma vez que então podiam ser sexualmente receptivas em qualquer época, os machos que cuidavam de suas famílias também podem ter mudado seus hábitos sexuais, reduzindo sua promiscuidade em favor de novos arranjos sociais.
Ao mesmo tempo, a liberdade das mãos para fazer ferramentas, manejar armas e atirar pedras estimulou o contínuo crescimento do cérebro, o que é uma característica da evolução humana e pode mesmo ter contribuído para o desenvolvimento da linguagem. Como descrevem Margulis e Sagan:
Atirando pedras e espantando ou matando pequenos animais de presa, os primeiros seres humanos foram projetados num novo nicho evolutivo. As habilidades necessárias para planejar as trajetórias de projéteis, para matar a uma certa distância, dependiam de um aumento de tamanho do hemisfério esquerdo do cérebro. As habilidades de linguagem (que têm sido associadas com o lado esquerdo do cérebro...) podem ter acompanhado fortuitamente esse aumento de tamanho do cérebro.
Os primeiros descendentes humanos dos símios antropóides do sul emergiram na África Oriental por volta de 2 milhões de anos atrás. Eles constituíam uma espécie de indivíduos pequenos e magros, com cérebros acentuadamente desenvolvidos, o que lhes permitia desenvolver habilidades de construção de ferramentas muito superiores às de qualquer um de seus ancestrais símios antropóides. Por isso, foi dado à primeira espécie humana o nome Homo habilis ("ser humano habilidoso"). Por volta de 1,6 milhão de anos atrás, o Homo habilis evoluiu numa espécie de indivíduos maiores e mais robustos, cujo cérebro expandiu-se ainda mais. Conhecida como Homo erectus ("ser humano ereto"), essa espécie persistiu por mais de um milhão de anos e se tornou muito mais versátil que suas predecessoras, adaptando suas tecnologias e modos de vida a uma ampla faixa de condições ambientais. Há indicações de que esses primeiros seres humanos podem ter conquistado o controle do fogo por volta de 1,4 milhão de anos atrás.
O Homo erectus foi a primeira espécie a deixar o confortável trópico africano e a migrar para a Ásia, a Indonésia e a Europa, estabelecendo-se na Ásia há cerca de l milhão de anos, e na Europa, por volta de 400.000 anos atrás. Muito longe de sua terra natal africana, os primeiros seres humanos tiveram de sofrer condições climáticas extremamente severas, que exerceram um forte impacto sobre sua evolução posterior.
Toda a história evolutiva da espécie humana, desde a emergência do Homo habilis até a revolução agrícola, quase 2 milhões de anos mais tarde, coincidiu com as famosas eras glaciais.
Durante os períodos mais frios, lençóis de gelo cobriam grande parte da Europa e das Américas, bem como pequenas áreas da Ásia. Essas glaciações extremas eram repetidamente interrompidas por períodos durante os quais o gelo se retirava e abria espaço a climas relativamente amenos. No entanto, inundações em grande escala, causadas pelo derretimento das calotas de gelo durante os períodos interglaciários, constituíram ameaças suplementares tanto para os animais como para os seres humanos.
Muitas espécies animais de origem tropical se extinguiram, e foram substituídas por espécies mais robustas e mais peludas — bois, mamutes, bisões e animais semelhantes — que podiam suportar as severas condições das eras glaciais.
Os primeiros seres humanos caçavam esses animais com machados de pedra e lanças pontudas, banqueteavam-se com eles junto às fogueiras em suas cavernas, e usavam as Peles dos animais para se proteger do frio penetrante. Caçando juntos, também partilhavam Seus alimentos, e essa partilha dos alimentos tornou-se outro catalisador para a civilização e a cultura humanas, originando finalmente as dimensões míticas, espirituais e artísticas da consciência humana.
Entre 400.000 e 250.000 anos atrás, o Homo erectus começou a evoluir no Homo sapiens ("ser humano sábio"), a espécie a que nós, seres humanos modernos, pertencemos. Essa evolução ocorreu gradualmente e incluiu várias espécies transitórias, às quais nos referimos como o Homo sapiens arcaico. Há cerca de 250.000 anos, o Homo erectus se extinguiu; a transição para o Homo sapiens completou-se por volta de 100.000 anos atrás, na África e na Ásia, e por volta de 35.000 anos atrás, na Europa. A partir dessa época, seres humanos plenamente modernos permaneceram como a única espécie humana sobrevivente.
Embora o Homo erectus evoluísse gradualmente para o Homo sapiens, uma linhagem diferente ramificou-se na Europa e evoluiu para a forma Neandertal clássica por volta de 125.000 anos atrás. Batizado em homenagem ao Vale de Neander, na Alemanha, onde foi encontrado o primeiro espécime, essa espécie distinta permaneceu até 35.000 anos atrás. As características anatômicas singulares dos Neandertais — eles tinham constituição sólida e robusta, com ossos maciços, testas de baixa declividade, maxilares espessos e dentes frontais longos e ressaltados — deviam-se provavelmente ao fato de terem sido os primeiros seres humanos a passar longos períodos em ambientes extremamente frios, tendo emergido no início da era glacial mais recente. Os Neandertais estabeleceram-se no sul da Europa e na Ásia, onde deixaram para trás marcas de funerais ritualizados em cavernas decoradas com toda uma variedade de símbolos e de cultos envolvendo os animais que caçavam. Por volta de 35.000 anos atrás, eles se extinguiram ou se misturaram com a espécie em evolução dos seres humanos modernos.
A aventura da evolução humana é a fase mais recente do desdobramento da vida na Terra, e para nós, naturalmente, tem um fascínio especial. No entanto, da perspectiva de Gaia, o planeta vivo como um todo, a evolução dos seres humanos tem sido, até agora, um episódio muito breve, e pode mesmo chegar a um fim abrupto em futuro próximo. Para demonstrar quão tardiamente a espécie humana chegou ao planeta, o ambientalista californiano David Brower concebeu uma narrativa engenhosa, comprimindo a idade da Terra nos seis dias da história bíblica da criação.
No cenário de Brower, a Terra é criada no domingo à zero hora. A vida, na forma das primeiras células bacterianas, aparece na terça-feira de manhã, por volta das 8 horas. Durante os dois dias e meio seguintes, o microcosmo evolui, e por volta da quinta-feira à meia-noite, está plenamente estabelecido, regulando todo o sistema planetário. Na sexta-feira, por volta das dezesseis horas, os microorganismos inventam a reprodução sexual, e no sábado, o último dia da criação, todas as formas de vida visíveis se desenvolvem.
Por volta de 1:30 da madrugada do sábado, os primeiros animais marinhos são formados, e, por volta das 9:30 da manhã, as primeiras plantas chegam às praias, seguidas, duas horas mais tarde, por anfíbios e por insetos. Dez minutos antes das dezessete horas, surgem os grandes répteis, perambulam pela Terra em luxuriantes florestas tropicais durante cinco horas, e então, subitamente, morrem por volta das 21:45. Enquanto isso, os mamíferos chegam à Terra no final da tarde, por volta das 17:30, e os pássaros já à noitinha, cerca das 19:15 horas.
Pouco antes das 22 horas, alguns mamíferos tropicais que habitavam árvores evoluem nos primeiros primatas; uma hora depois, alguns destes evoluem em macacos; e por volta das 23:40 aparecem os grandes símios antropóides. Oito minutos antes da meia-noite, os primeiros símios antropóides do sul se erguem e caminham sobre duas pernas. Cinco minutos mais tarde, desaparecem novamente. A primeira espécie humana, o Homo habilis, surge quatro minutos antes da meia-noite, evolui no Homo erectus meio minuto mais tarde e, nas formas arcaicas do Homo sapiens, trinta segundos antes da meia-noite. Os Neandertais comandam a Europa e a Ásia de quinze a quatro segundos antes da meia-noite. Finalmente, a espécie humana moderna aparece na África e na Ásia onze segundos antes da meia-noite, e na Europa, cinco segundos antes da meia-noite. A história humana escrita começa por volta de dois terços de segundo antes da meia-noite.
Por volta de 35.000 anos atrás, a espécie moderna de Homo sapiens substituiu os Neandertais na Europa e evoluiu numa subespécie conhecida como Cro-Magnon — batizada em homenagem a uma caverna do sul da França —, à qual pertencem todos os modernos seres humanos. Os Cro-Magnons eram anatomicamente idênticos a nós, tinham uma linguagem plenamente desenvolvida e criaram uma verdadeira explosão de inovações tecnológicas e de atividades artísticas. Ferramentas de pedra e de ossos primorosamente trabalhadas, jóias de conchas e de marfim, e magníficas pinturas nas paredes de cavernas úmidas e inacessíveis são testemunhos vividos da sofisticação cultural desses membros primitivos da raça humana moderna.
Até recentemente, os arqueologistas acreditavam que os Cro-Magnons desenvolveram gradualmente suas pinturas rupestres, começando com desenhos desajeitados e grosseiros e atingindo seu apogeu com as famosas pinturas em Lascaux, há cerca de 16.000 anos. No entanto, a sensacional descoberta da caverna Chauvet, em dezembro de 1994, forçou os cientistas a revisar radicalmente suas idéias. Essa ampla caverna da região de Ardèche, no sul da França, consiste num labirinto de câmaras subterrâneas repletas com mais de trezentas pinturas extramamente bem-acabadas. O estilo é semelhante à arte de Lascaux, mas cuidadosas datações com carbono adioativo mostraram que as pinturas de Chauvet têm, pelo menos, 30.000 anos. As figuras, pintadas em ocre, em matizes de carvão vegetal e em hematita vermelha, são imagens simbólicas de leões, de mamutes e de outros animais perigosos, muitos deles saltando ou correndo ao longo de largos painéis. Especialistas nas velhas pinturas em rocha ficaram perplexos pelas técnicas sofisticadas — sombreamento, ângulos especiais, cambaleio das figuras em movimento, e assim por diante — utilizadas pelos artistas rupestres para representar movimento e perspectiva. Além das pinturas, a caverna Chauvet também contém uma profusão de ferramentas de pedra e de objetos rituais, inclusive uma laje de pedra semelhante a um altar com um crânio de urso colocado sobre ela. Talvez a descoberta mais intrigante seja um desenho em preto de uma criatura xamânica, metade ser humano e metade bisão, encontrado na parte mais profunda e mais escura da caverna.
A data inesperadamente antiga dessas pinturas magníficas significa que a grande arte fazia parte integral da evolução dos modernos seres humanos desde o princípio. Como assinalam Margulis e Sagan:
Essas pinturas, por si sós, marcam claramente a presença do moderno Homo sapiens sobre a Terra. Somente as pessoas pintam, somente as pessoas planejam expedições até as extremidades mais fundas de cavernas úmidas e escuras em cerimônias. Somente as pessoas enterram os seus mortos com pompa. A procura pelo ancestral histórico do homem é a procura pelo contador de histórias e pelo artista.
Isto significa que um entendimento adequado da evolução humana é impossível sem um entendimento da evolução da linguagem, da arte e da cultura. Em outras palavras, agora devemos voltar nossa atenção para a mente e para a consciência, a terceira dimensão conceituai da visão sistêmica da vida.

(Fritjof Capra - A TEIA DA VIDA)

publicado às 19:56



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