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De tudo e de nada, discorrendo com divagações pessoais ou reflexões de autores consagrados. Este deverá ser considerado um ficheiro divagante, sem preconceitos ou falsos pudores, sobre os assuntos mais variados, desmi(s)tificando verdades ou dogmas.
Tendo o corpo se tornado microscopicamente pecaminoso, tanto como receptáculo da tentação quanto como provocador dela, ocorrerá com ele o mesmo que assinalamos a respeito dos sete pecados capitais, isto é, a sexualização de todos os pecados reaparece agora como sexualização do corpo inteiro.
Nesta perspectiva, o pecado da palavra, que São Paulo colocara como um pecado específico (podendo ser contra Deus ou contra o próximo, como a blasfêmia ou a calúnia), torna-se também pecado sexual.
A sexualização dos pecados e do corpo significa, simplesmente, a preocupação cristã com todas as formas da concupiscência, visto ser esta a manifestação da fraqueza da carne, e, conseqüentemente, a preocupação está voltada para a percepção, captura e controle de tudo quanto desperte prazer. É pela via da caça ao prazer que os pecados e o corpo vão sendo sexualizados. E é pela via do prazer que a palavra passará a ser um pecado sexual. Faladas, escritas ou simplesmente pensadas em silêncio (isto é, sem comunicação), ouvidas ou lidas, estão submetidas a rigoroso exame. A peculiaridade da palavra, sob o regime da confissão, não se acha apenas no fato de haver um vocabulário sexual que precisa ser usado com moderação e através dos eufemismos, e sim no fato de que toda e qualquer palavra, dependendo de quem a usa, como, quando e por que a usa, estar investida de prazer sexual. Donde, em muitas ordens religiosas, a obrigatoriedade do voto de silêncio. Mas o espantoso da palavra, descoberta que o confessor hábil consegue produzir no penitente, é que a pronunciamos sem saber o que dizemos e que ela nos faz dizer o que não suspeitávamos existir em nós (um dia, isso receberá nome: inconsciente e retorno do reprimido).
A confissão é o corpo e o mundo postos sob suspeita; mas a palavra é ainda acrescida de outro atributo: é reveladora e por isso mesmo perigosa.
Uma síntese da suspeição-revelação e de seu perigo, ligado ao conhecimento e à diminuição da censura, aparece admiravelmente no romance de Umberto Eco, O Nome da Rosa, no qual o crime, a suspeita, o pecado, o poder e a queda estão distribuídos à volta de um centro, um local feito apenas de palavras: a biblioteca. E o livro proibido, aquele que entre todos os da biblioteca ninguém poderá ler, os que o fizeram tendo sido assassinados, é um livro de elogio ao riso à alegria, ao humor e à graça. Nesse romance, as meditações de Santo Agostinho sobre o pecado da curiosidade ligado diretamente ao conhecimento intelectual e inconscientemente ao prazer sexual constitui uma das tramas da narrativa: ler e escrever são janelas e portas preferenciais do Diabo, por isso a biblioteca não tem janelas e sua única porta é guardada a chaves, antecedida por um corredor onde jazem ossadas. E o guardião do livro proibido, que para protegê-lo assassina, é cego.
Porém, o quadro confessional ainda não está completo.
Nas Confissões, perplexo e atormentado, Santo Agostinho escrevia que todos os esforços de controle da vontade, realizados durante a vigília, eram inteiramente perdidos durante o sono: sonhava pecados.
Assim, à lista dos pecados e de suas ocasiões, o confessor acrescentará os sonhos. Quando nosso corpo e nossa alma relaxam para o descanso, melhor oportunidade dão ao demônio para infiltrar-se sem que haja como combatê-lo e vencê-lo. Donde as regras que serão estabelecidas para diminuir o risco de sonhar: as preces antes de adormecer (para as crianças, a invocação do Anjo da Guarda), a frugalidade da refeição vespertina (o que mostra a relação entre gula e sexo), o cuidado com os divertimentos noturnos para que não deixem a alma preparada para a infiltração demoníaca (donde a recomendação da leitura de vidas de santos, dos livros de oração, da Bíblia; a reticência religiosa face aos bailes e festas noturnas; aregulamentação das ocasiões em que a relação sexual conjugal pode acontecer), e o elogio, levado ao máximo no protestantismo, do trabalho, pois ”mente desocupada, oficina do diabo” (o que mostra a relação entre preguiça e sexo).
A confissão é, poderíamos dizer, uma técnica da fala. O confessor atua num crescendo: indaga inicialmente se houve ato pecaminoso ou intenção pecaminosa; sendo afirmativa a resposta, indaga: houve deleitação?, pois a falta é maior em caso de prazer. Afirmativa a resposta, indaga quais os órgãos que se deleitaram (a falta variando de gravidade conforme os órgãos de prazer), quanto tempo durou a deleitação (a gravidade da falta sendo proporcional ao tempo de prazer), quantos se envolveram nela e onde aconteceu (havendo uma codificação do pecado conforme o número de participantes e os locais). Por fim, o confessor indaga se o penitente está arrependido, pronto para a contrição verdadeira e para não mais pecar. Exige, portanto, que o pecador diga a verdade sobre a sexualidade e que essa verdade, através do ato de contrição ou do arrependimento, atue sobre o comportamento futuro, modificando o ser do penitente. É na exigência da modificação que o controle melhor manifesta o papel da repressão sexual: não se trata apenas de proibir atos, palavras e pensamentos, mas de conseguir que outros venham colocar-se no lugar dos pecaminosos.
Algo também é exigido do próprio confessor, posto que é um ser humano, apesar da graça santificante recebida pelo sacramento da Ordem: não deve pecar ao ouvir a confissão. Esse risco existe se o confessor sentir prazer no que ouve, fantasiar a partir do que escuta, tornar-se cúmplice involuntário do penitente, fazendo-o alongar a fala e detalhar o próprio prazer. O risco da confissão para o confessor foi admiravelmente descrito pelo romancista Eça de Queiroz num romance intitulado O Crime do Padre Amaro.
(Marilena Chaui – “Repressão Sexual”)