“Quando o celibato é imposto,
os padres cometem pecados muito piores do que a fornicação”.
(SHUSTER, John. A lei do celibato clerical)
os padres cometem pecados muito piores do que a fornicação”.
(SHUSTER, John. A lei do celibato clerical)
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De tudo e de nada, discorrendo com divagações pessoais ou reflexões de autores consagrados. Este deverá ser considerado um ficheiro divagante, sem preconceitos ou falsos pudores, sobre os assuntos mais variados, desmi(s)tificando verdades ou dogmas.
O órfico torna-se iniciado no caminho, uma senda da verdade, justiça e salvação, pelo qual o sectário podia determinar seu destino depois da morte, e por fim, escapar da roda da vida. A elite convertida a esse modo de vida atingirá a divindade, enquanto as massas de pessoas ignorantes irão apodrecer na lama do Hades (...) Além do mais, dado que a misoginia é explícita no orfismo pela sua exclusão de mulheres, padrão que irá se repetir na tradição filosófica e no clero cristão... essa hostilidade para com as mulheres, evidente no ascetismo pode ser a prática oculta de nosso compromisso religioso e filosófico com a pureza. (SCHOTT, Robin. Eros e os processos cognitivos. Rio de Janeiro: Rosa dos tempos, 1988, p. 55)
A misoginia órfica não é a questão fundamental na tônica da moral sexual grega ou do cuidado de si. Acreditava-se que o sexo enfraquecia (LAÉRCIO, Diógenes. Vida dos Filósofos, VIII) e, por isso, deveria ser praticado nas estações menos quentes, como afirmava Pitágoras (Séc. VI a.C.). O sexo, por vezes, era considerado prejudicial à saúde e extenuante. Hipócrates relata uma enfermidade que teria ocorrido depois do jovem ter se excedido nos prazeres sexuais (HIPÓCRATES. Epidemia III, 18). Para ele reter o sêmen era conservar a energia. A moral sexual regulava a vida dos indivíduos para fins universais e comunitários. Para Epíteto, filósofo grego estóico que viveu a maior parte de sua vida em Roma, o casamento era um modo de todo ser humano viver em conformidade com a natureza e colaborar com a humanidade em geral.(ÉPICTÈTE. Entretiens, III, 7, 19-20) O estoicismo (300 a.C. a 250 d.C) foi a escola de filosofia antiga que perpetuou esta visão reducionista do ato sexual. Afirma que todo o universo é corpóreo e governado por um logos divino (ou razão universal, noção que os estóicos tomam de Heráclito e desenvolvem). Este lógos ordena todas as coisas e, por meio dele, o mundo é um cosmos, que em grego significa "harmonia". O estoicismo propõe viver de acordo com a lei racional da natureza e aconselha a indiferença (apathea) em relação a tudo que é externo ao ser. Durante os dois primeiros séculos da era cristã radicalizaram seu discurso e rejeitaram a procura do prazer. Neste sentido, o ato sexual se concentrou no casamento. A obrigação de casar-se estava, pois, em conformidade com o viver natural e sua necessidade objetivava a descendência.
Esse fim procriador figurava dentre as razões de casar-se; era ele que tornava necessárias as relações sexuais no casamento; sua ausência, aliás, podia dissolver a união conjugal (...) Nos textos clássicos a síntese do vínculo matrimonial com a relação sexual era admitida pela razão maior da procriação. (FOUCAULT. Michel. A Mulher/Os Rapazes: História da sexualidade v. 3. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p. 34-35)
Não existe, portanto, uma preocupação com o prazer, mas com o fim procriativo. O próprio Platão encontra nos prazeres sexuais do matrimônio um ardil da natureza para a procriação. Para ele o mais importante era fornecer filhos à cidade a fim de conservar sua força.(Ibidem, p. 63) Essa des-hedonização, radicalizada pelo estoicismo será encontrada mais tarde na exigência cristã de um bom casal. Quem não fosse casado deveria abster-se de sexo. A renúncia absoluta à paixão foi tomando lugar da opção pelo casamento, uma vez que quem optava por ele assumia sua incapacidade de controlar-se.
Para eles o princípio natural e racional do casamento o destina a ligar duas existências, a produzir uma descendência, a ser útil para a cidade e a beneficiar o gênero humano na sua totalidade; buscar no casamento, prioritariamente, sensações de prazer seria infringir a lei, reverter a ordem dos fins e transgredir o princípio que deve unir, num casal, um homem e uma mulher. (1 Ibidem, p. 53-54)
Assim, não faz sentido nenhuma relação sexual por prazer. Busca-lo fora do casamento para alguns autores era impensável. Musonius estimava por vergonhosa e um desregramento que fere os fins do casamento, pois, “como os porcos, obtém prazer com a própria sujeira”.(MUSONIUS RUFUS. Reliquiae, XII, pp. 63-64) Evidencia-se seu desprezo ao corpo. “Pecariamos, continua Musonius, contra nossos deuses ancestrais e contra Jupter protetor da família”.(Ibidem, XV, p. 78) Este moralista grego foi de tal forma assumido pela moral cristã que o vemos citado por Clemente de Alexandria (150 - 215), teólogo cristão ateniense e fundador da escola filosófica de Alexandria, em seu segundo livro do Pedagogo. (CLÉMENT D’ALEXANDRIE, Lê Pedagogue, II, 10) O cerne da questão não está propriamente na fidelidade, mas, tão somente, na racionalidade, no autodomínio e nos fins do casamento que tendem à descendência e ao bem da comunidade. As relações extraconjugais demonstram a falta de domínio sobre os próprios impulsos, que deveriam ser comedidos dentro das próprias relações matrimoniais.
Todo o amor pela esposa de alguma outra pessoa é vergonhoso. Mas também é vergonhoso amar a própria esposa desmesuradamente. Ao amar a esposa, o homem sábio toma a razão como guia, não a emoção. Resiste ao assalto das paixões, e não se permite ser levado impetuosamente ao ato sexual. Não há gesto mais depravado do que o de amar a própria esposa como se ela fosse uma adúltera. (SÊNECA. Sobre o casamento)
Esta passagem agradou tanto a Jerônimo, um dos padres da Igreja, que a citou contra Joviniano, o amante do prazer.(JERÔNIMO DE STRIDON. Contra Joviniano I, 49) O desejo tem por fim a descendência e não o prazer. Ele deve ser comedido e a austeridade deve fazer parte da vida matrimonial. Também a pederastia foi combatida por muitos moralistas. Nos primeiros séculos da era cristã, o amor pelos rapazes sofre um combate pela desnaturalização da prática corriqueira na época clássica, ligada ao companheirismo guerreiro, aos ritos de passagem, à prática pedagógica ou mesmo à perversão admitida. (SARTREC, Maurice. A homossexualidade na Grécia antiga. In: Amor e sexualidade no Ocidente: edição especial da Revista L’Histoire/Seuil. Porto Alegre: L&PM, 1992) Protógenes e Písias acentuam que a relação com as mulheres foi ordenada pela natureza para a conservação da espécie e, neste sentido, não nos diferenciamos dos demais animais. O amor pelos rapazes, assim, retiraria o ser humano da pura animalidade. Contra as mulheres acentua Calicrátidas: “basta olhar de perto, as mulheres são feias (...) Para mascarar essa realidade, é-lhes necessário um grande esforço: maquiagem, vestes, penteado, jóias, enfeites; elas se dão uma beleza de aparência”.(CALICRÁTIDAS in FOUCAULT, Michel. Op. Cit., pp. 116-117) A artificialidade das mulheres é, então, comparada à verdade do corpo masculino. Sua beleza é real, pois se apresentaria sem afetação e disfarces. Cáricles, por sua vez, assume o combate ao amor pelos rapazes reforçando a transgressão à natureza. Ele perturba o ordenamento do mundo, ocasiona condutas de violência e de embuste e, finalmente, ele é nefasto para os objetivos do ser humano.
Por fim, esta moral des-hedonista tendeu à conservação da virgindade como virtude, uma vez que o prazer é tido como um desregramento da razão humana. O ideal da virgindade não começou com o cristianismo. A escolha pela existência filosófica promoveu, desde a época clássica, uma discussão quanto às vantagens e aos aborrecimentos do viver matrimonial para aquele destinado a velar pela humanidade. Os cuidados com a própria alma, o domínio das paixões – da qual o filósofo deve dar exemplo – e a procura da tranquilidade de espírito são contrapostas às agitações do casamento. Tais inconvenientes aparecem em Epiteto. Para ele o filósofo como arauto da verdade e mensageiro de Zeus junto aos homens não deveria ter lar, nem escravos, nem recursos, nem mulher e filhos, pois tais coisas deviam-no de sua reflexão. Para ocupar-se de si mesmo ele deve renunciar ao casamento para despertar os outros à verdade.(ÉPICTÈTE, Entretiens, III, 22, 47)
A virgindade foi concebida como estilo de vida. O taumaturgo Apolônio de Tiana (séc. I d.C.), informa seu biógrafo Filóstrato, que fez voto de castidade e que o manteve por toda a vida. Também o naturalista Plínio, o Velho, que morreu na erupção de Vesúvio em 79 d.C., elogia o elefante como exemplar, porque só se acasala de dois em dois anos. (RANKE-HEINEMANN, Uta. Eunucos pelo Reino de Deus: mulheres, sexualidade e a Igreja Católica. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1996, p. 25) Sorano de Éfeso (Séc. II d.C.), médico pessoal do imperador Adriano, considerava saudável a virgindade contínua. A única justificativa para seu ato era a procriação, sem a qual se comprometia a continuidade da comunidade.
2. A Gnoses e a demonização do mundo
A visão negativa do prazer sexual, como um cuidado de si próprio, que prevaleceu no estoicismo viu-se ainda fortalecida pela invasão de um “movimento” surgido provavelmente na Pérsia, um pouco antes do nascimento de Jesus, e veio a se revelar no competidor mais perigoso do cristianismo: a gnoses (conhecimento). Tem como base as filosofias que floresciam na Babilônia, Egito, Síria e Grécia. O gnosticismo combinava alguns elementos da astrologia e mistérios das religiões gregas, mistérios de Elêusis, bem como os do Hermetismo (estudo da filosofia e da magia associados a escritos atribuídos a Hermes Trismegisto, uma deidade sincrética que combina aspectos do deus grego Hermes e do deus egípcio Thoth), com as doutrinas do Cristianismo.
O gnosticismo negava radicalmente a realidade imanente. Pregava a abstinência do casamento, e dos demais prazeres, como da comida e bebida. A mesma atitude entra-se em Santo Agostinho de Hipona.(Cf. SANTO AGOSTINHO. As Confissões. São Paulo: Quadrante, 1989, p. 195) O corpo, na gnoses, assim como tudo o que existe no mundo não vem das mãos de um Deus bom, mas de demônios. Só a alma humana, ou seja, seu verdadeiro eu, seu verdadeiro ego, surge como uma centelha de luz deste outro mundo, um mundo de luz. A alma do homem, assim, se encontra numa terra estranha, tendo o corpo por seu cárcere e o mundo como num ambiente hostil. Os prazeres desviam a alma que anseia por libertar-se da matéria e retornar à luz espiritual. O cristianismo primitivo tentou resistir ao gnosticismo. No Novo Testamento encontra-se passagens contra a gnoses e seu desprezo pela existência: “Nisto se reconhece o Espírito de Deus: todo espírito que proclama que Jesus Cristo se encarnou é de Deus” (1 João 4,2). Para o cristianismo, Jesus assumiu verdadeiramente a natureza humana, se fazendo um com os homens, se tornou verdadeiramente homem. Seu corpo era verdadeiro corpo. Essa afirmação combate o gnosticismo que dizia que Jesus teve apenas a aparência de homem. Ou ainda: “Ó Timóteo, guarda o bem que te foi confiado! Evita as conversas frívolas e mundanas, assim como as contradições de pretensa ciência” (1 Timóteo 6,20). O conhecimento da Gnoses era considerado inferior e enganador. Contudo, parece que alguns trechos do Novo Testamento, especialmente as cartas do apóstolo Paulo, apresentam certa influência deste desprezo ao corpo e as coisas do mundo.
Porque os que são segundo a carne inclinam-se para as coisas da carne; mas os que são segundo o Espírito para as coisas do Espírito (Romanos 8,5)
Porque o desejo da carne é hostil a Deus, pois a carne não se submete à lei de Deus, e nem o pode (Romanos 8,7)
De fato, se viverdes segundo a carne, haveis de morrer; mas, se pelo Espírito mortificardes as obras da carne, vivereis (Romanos 8,13)
Quem semeia na carne, da carne colherá a corrupção; quem semeia no Espírito, do Espírito colherá a vida eterna (Gálatas 6,8)
Também todos nós éramos deste número quando outrora vivíamos nos desejos carnais, fazendo a vontade da carne e da concupiscência. Éramos como os outros, por natureza, verdadeiros objetos da ira {divina} (Efésios 2,3)
Nestas passagens percebe-se clara a dualidade ou a dicotomia entre carne e espírito, entre as coisas do mundo e as coisas de Deus. De certo, o cristianismo apresenta uma concepção pessimista do corpo, que se encontra submetido à vontade de Deus e a uma dada concepção do uso da corporeidade muito semelhante ao pessimismo gnóstico e helenístico.
O gnosticismo é governado por um pessimismo profundo, que se contrapõe à cosmovisão da antiguidade. É verdade que os gregos tinham familiaridade com a depreciação da matéria – falar do corpo como prisão da alma é remontar a Platão (Górgias 493 A) – mas o cosmo (= beleza e ordem, cf. “cosméticos”) era uma estrutura unificada, graduada de baixo para cima sem rompimento entre matéria e espírito. A demonização de toda corporeidade e de toda a matéria era desconhecida antes da invasão do gnosticismo. (Ibidem, p. 27)
Plotino, principal representante do neo-platonismo, escreveu contra os gnósticos. Contudo, deixou-se influenciar por aqueles que combatia. Ao que parece a recusa ao prazer denotava uma espécie de sedução distintiva.
Ele parecia ter vergonha de possuir um corpo”, escreve seu biógrafo Porfírio (Ca. 305; A vida de Plotino, § 1). O neoplatonismo exigia de seus seguidores uma vida abstinente, uma verdadeira ascese. E teve um destino semelhante ao do cristianismo: por mais que tenha lutado contra o gnosticismo desde o princípio, viu-se contaminado pela hostilidade gnóstica ao corpo.(Ibidem, p. 28)
A filosofia neoplatônica (de extrema importância para Agostinho), que se desenvolveu na primeira metade do século III, foi influenciada pela compreensão gnóstica da vida. No entanto, o gnosticismo fez outra vítima: o judaísmo.
3. O Judaísmo e a sedução gnóstica
Não há, de modo geral, uma postura pessimista com relação ao sexo no Antigo Testamento. O livro do Cântico dos Cânticos, por exemplo, celebra o amor mútuo entre os amantes, que se unem, se perdem, se buscam e se encontram. Este livro não fala de Deus e emprega uma linguagem típica dos apaixonados, numa coleção de poemas unidos pelo seu tema: o amor. Sua autoria é atribuída a Salomão. Vale a pena citar alguns trechos:
A amada:
Que me beije com beijos de sua boca!
Teus amores são melhores do que o vinho, (cap. 1, v.2)
Arrasta-me contigo, corramos!
Leva-me, ó rei, aos teus aposentos
E exultemos! Alegremo-nos em ti!’ (v.4)
O amado:
Como és bela,
Quão formosa.
Que amor delicioso!
Tens o talhe da palmeira,
E teus seios são os cachos.
Pensei: “vou subir à palmeira
Para colher dos teus frutos!
Sim, teus seios são cachos de uva,
E o sopro das tuas narinas perfuma
Como o aroma das maçãs.
Tua boca é um vinho delicioso
Que se derrama na minha
Molhando-me lábios e dentes.
A amada:
Eu sou do meu amado
Seu desejo o traz a mim.’ (Cap. 7,vv.7-11)
A lei judaica não proibia a poligamia e até a considerava normal, como se pode ver nos exemplos que se seguem: “Ora, Labão tinha duas filhas: a mais velha se chamava Lia e a mais nova Raquel (...) Tomou sua filha Lia e conduziu a Jacó (...) Jacó uniu-se também a Raquel e amou Raquel mais do a Lia” (Gênesis 29, 16. 22. 30). Também “Elcana possuía duas mulheres: Ana era o nome de uma, e a outra chamava-se Fenema” (Samuel 1, 2). “E tomou Lameque para si duas mulheres; o nome de uma era Ada, e o nome da outra, Zilá” (Gênesis 4, 19). O livro do Deuteronômia supõe como natural a poligamia (cf. Deuteronômio 21,15). O homem poderia ter quantas mulheres pudesse sustentar. Mas isso não significa que não havia uma normalização da sexualidade. O adultério era punido com severidade, geralmente implicando no apedrejamento:
Quando um homem for achado deitado com mulher que tenha marido, então ambos morrerão, o homem que se deitou com a mulher, e a mulher; assim tirarás o mal de Israel. Quando houver moça virgem, desposada, e um homem a achar na cidade, e se deitar com ela, então trareis ambos à porta daquela cidade, e os apedrejareis, até que morram (Deuteronômia, 22, 22-24).
A finalidade procriadora também existia e a esterilidade era vista como uma maldição (cf. Isaías 63, 9 e Oséias 9, 14; Lucas 1,25), pois não cumpria a finalidade última da união marital. Assim, a moral judaica permitia, nestes casos, que o marido da esposa estéril gerasse um filho com outra mulher livre ou com a escrava da sua esposa; e os filhos da escrava eram pertencentes à sua esposa. Isto era visto com naturalidade pelos antigos judeus. No livro de Tobias lê-se: “Ora, vós sabeis, ó Senhor, que não é para satisfazer a minha paixão que recebo minha prima como esposa, mas unicamente com o desejo de suscitar uma posteridade” (Tobias 8,9). Esta afirmação foi citada por muitos teólogos cristãos rigoristas justificando a finalidade procriadora. Com o passar do tempo e a monogamia foi se impondo como regra. No tempo de Jesus a poligamia já havia desaparecido quase por completo entre os judeus. Mas o pessimismo para com o corpo e a sexualidade adveio da influência gnóstica.
A influência do gnosticismo e do ascetismo sexual, que era em si alheia ao judaísmo, é observada claramente na seita dos habitantes do deserto do tempo de Jesus, conhecidos como essênios. O conhecemos mediante as descobertas em Qumrãn (1947).
Sobre eles Josefo, historiador judeu (m. Ca. 100 d.C.) escreve: ‘Judeus por nascimento (...) afastam-se das alegrias da vida como se afastassem de um grande mal e abraçam a continência como virtude. Olham de modo desfavorável para o casamento (...) Por causa da inconstância das mulheres são cautelosos com elas, convencidos de que nenhuma mulher é fiel ao marido (...) São enfaticamente convencidos de que o corpo morre e a matéria não dura, mas que as almas são imortais e eternas, duram para sempre (...) Sobre as almas crêem que vêm do éter mais rarefeito (...) Se forem libertados dos grilhões da carne, se consideram libertos de uma longa prisão e planam nas alturas em bendito júbilo. (A Guerra judaica II, 8,2-13). (RANKE-HEINEMANN, Uta. Op.cit., p. 30.)
Também Fílon da Alexandria (20 a.C. e 50 d.C.), filósofo grego-judeu sintetiza o pensamento judeu e grego: “Nós, descendentes dos hebreus, temos práticas e costumes bastante peculiares. Ao contrairmos matrimônio, procuramos virgens puras; e firmamos por meta não o prazer, mas a geração de filhos legítimos”. (Sobre José 9,43) Neste sentido era contrário à contracepção, pois, “os que durante o coito causam a destruição do sêmen são sem dúvida inimigos da natureza”. (Sobre as leis individuais 3). Ao explicar as leis de Moisés critica o prazer com a própria esposa (“homens lúbricos que em sua frenética paixão praticam toda a sorte de coito lascivo, não com a esposa alheia, mas com a própria”(bidem, 3, 2, 9) e condena o homossexualismo:Como o mau agricultor, o homossexual deixa desaproveitada a terra fértil e moureja dia e noite com o tipo de solo do qual nenhum fruto se pode esperar (...) o homem efeminado, que falsifica o selo da natureza deve ser morto sem hesitação (...) porque está em busca de um prazer antinatural e trabalha, por sua vez, em prol da desolação e do despovoamento das cidades (...) ao destruir sua semente. (Ibidem, 3, 37-42)
O gnosticismo em contato com o judaísmo promoverá uma série de posturas austeras com relação à sexualidade e o pessimismo com relação ao corpo torna-se parte integrante da moral judaica, chegando a formar vida celibatária como se vê em Qumrãn com os essênios. A influência do gnosticismo e do ascetismo sexual, alheia ao judaísmo pode ser observada entre eles. O mundo, na concepção judaíza, expressão da bondade criadora de Deus, como relata o livro do gênesis, torna-se sombrio sob a influência de satã e o corpo é alvo de todas as maledicências. Tendo o cristianismo nascido entre os judeus e se desenvolvido de fato no mundo greco-romano, a influência destas idéias na cosmovisão cristã se torna visível no pessimismo com relação ao corpo, ao mundo e à sexualidade, que ganha novos contornos com o advento de uma novidade: a crença no advento iminente do fim do mundo e a ligação entre carne e pecado.
4. O poder pastoral e a radicalização do pessimismo sexual
As razões que teriam podido levar o mundo greco-romano à castidade, à limitação da vida sexual ao quadro conjugal e ao descrédito da bissexualidade estão em um novo motivo tratado como urgente: a aproximação do fim do mundo que exigia pureza. Na fé cristã Jesus inaugura o fim dos tempos. A pregação cristã anunciava sua morte e ressurreição, sua ascensão aos céus e seu retorno para julgar toda a humanidade segundo seu proceder (Cf. Mateus 25, 31-46). Justos e injustos teriam destinos diversos, onde uns gozarão das bem-aventuranças e outros da condenação eterna. Os prazeres sexuais não ficaram de fora de uma moral austera. Paulo adverte: “Eu vos digo, irmãos: o tempo torna-se curto. Que doravante aqueles que têm mulher vivam como se não a tivessem mais” (1 Coríntios 7, 29). Alguns extremistas da pureza chegaram a se castrar, como Orígenes, pois segundo o Evangelho de Mateus: “há eunucos que se castraram a si próprios pelo Reino dos Céus” (Mateus 19,12), ou ainda, “se o teu olho te escandalizar, arranca-o, e atira-o para longe de ti; melhor te é entrar na vida com um só olho, do que, tendo dois olhos, seres lançado no fogo do inferno” (Mateus 18,9).
Além do proximidade do fim do mundo como exigência de pureza, um novo motivo vai colaborar com o pessimismo sexual cristão: a ligação entre a carne e o pecado. A natureza humana é fraca e instrumento da maledicência:
Sinto, porém, nos meus membros outra lei, que luta contra a lei do meu espírito e me prende à lei do pecado, que está nos meus membros. Homem infeliz que sou! Quem me livrará deste corpo que me acarreta a morte?... (Romanos 7,23-24) Ora, as obras da carne são estas: fornicação, impureza, libertinagem, idolatria, superstição, inimizades, brigas, ciúmes, ódio, ambição, discórdias, partidos, invejas, bebedeiras, orgias e outras coisas semelhantes. Dessas coisas vos previno, como já vos preveni: os que as praticarem não herdarão o Reino de Deus! (...) Pois os que são de Jesus Cristo crucificaram a carne, com as paixões e concupiscências. (Gálatas 5,19-21.24) Com o triunfo do cristianismo no século IV, dois acontecimentos garantem o sucesso da nova ética sexual: a difusão dos conceitos de carne (oposta à espírito), e a sexualização do pecado original.Clemente de Alexandria (ca. 150-215) é o primeiro a relacionar o pecado original ao ato sexual. (...) Mas foi Agostinho que ligou definitivamente pecado original e sexualidade por intermédio da concupiscência. Por três vezes, entre 395 e 430, ele afirma que a concupiscência transmite o pecado original. Desde os filhos de Adão e Eva, o pecado original é levado ao homem pelo ato sexual. (...) A humanidade foi engendrada no erro que acompanha todo acasalamento por causa da concupiscência que nele se manifesta forçosamente. (LE GOFF, Jacques. A recusa do prazer. In: Amor e sexualidade no Ocidente: edição especial da Revista L’Histoire/Seuil. Op.cit., p. 154-155)
O teólogo parisiense Hugo de São Victor (1096-1141) dirá: “O acasalamento dos pais não ocorrendo sem o desejo carnal (libido), a concepção dos filhos não se dá sem pecado”. (Ibidem, p. 157) O pecado original é, então, passado por meio do ato sexual. A recusa do prazer é a nova ética sexual herdada do estoicismo. Nas Confissões Agostinho revela a superioridade do estado de vida celibatário e seu desprezo pelo prazer:Deus manda-me que me abstenha da concupiscência da carne, da concupiscência dos olhos e da ambição do mundo. Mandou-me que me abstivesse do coito, e com relação ao matrimônio aconselhou-me algo melhor; e porque Ele me concedeu a sua graça, pude escolher este estado superior ao matrimônio. (SANTO AGOSTINHO. Op.cit., p. 193)O Senhor me aumentará cada vez mais a sua graça, para que minha alma continue em direção a Deus, livre da pegajosa concupiscência (...) e nem mesmo em sonhos realize, devido às imagens carnais, essas vis torpezas que chegam à polução da carne, e deixe de consentir nelas. (Ibidem, p. 194)
O Novo Testamento já mostra traços desta postura pessimista com relação ao ato sexual. No livro do Apocalipse, João fala de 144 mil pessoas que diante de Deus, em seu Reino, cantavam suas glórias: “Estes são os que não se contaminaram com mulheres, pois são virgens” (Ap 14,4). Não ter relações sexuais e conservar a virgindade era sinal de pureza. A influência gnóstica é notória também nos livros considerados apócrifos. O termo ‘monakos’, monge ou solitário, que expressaria uma forma religiosa ascética e celibatária dos cristãos a partir do século IV, é usado no Evangelho de Tomé para descrever os gnósticos.(LIMA, Luciano José de. Entre a ortodoxia e a heterodoxia: conflitos simbólicos e relações de poder entre cristianismos na antiguidade e o caso da Biblioteca de Nag Hammadi. Rio de Janeiro, Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio do Janeiro - UFRJ, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais – IFCS, 2006, p. 80) Contraditoriamente, algumas passagens bíblicas, mais conformes a moral hebraica, embora rígida, não proibia o casamento dos líderes espirituais. Os sacerdotes do Antigo Testamento se casavam, Jesus escolheu homens casados para Apóstolos, com exceção de João, e Paulo aconselha que quem deseja o episcopado , ou seja, o cargo de bispo, “tem o dever de ser irrepreensível, casado uma só vez” (1 Timóteo 3,2), assim como os diáconos (1 Timóteo 3,12). A proibição do casamento para o apóstolo está na ordem das doutrinas demoníacas: “O Espírito diz expressamente que, nos tempos vindouros, alguns hão de apostatar da fé, dando ouvidos a espíritos embusteiros e a doutrinas diabólicas, proíbem o casamento” (1 Timóteo 4,3).
A condenação ao casamento é uma característica do gnosticismo que foi assumida pela Igreja. Mas a questão está na própria corporeidade, pois até o prazer em comer e beber era repudiado, como lembra Agostinho: “a necessidade de ter de comer e de beber me é agradável, e devo lutar contra esse prazer para não ser escravo dele, e o combato todos os dias com muitas mortificações, reduzindo o meu corpo à servidão. (SANTO AGOSTINHO. Op.cit., p. 195) A virtude estava em dominar os prazeres temporais: “Não sigas os teus apetites e domina o teu prazer”. (Ibidem, p. 196) Como em uma tragédia grega, a construção histórica do celibato clerical fala de temas humanos fundamentais (como o prazer sexual, o conforto, a liberdade) que devem ser negligenciados para que expressem uma vida elevada, quase “divina”. Isidoro de Sevilha (c.560 - 636) escreveu sobre os responsáveis da Igreja: “O responsável de uma igreja por uma parte tem de deixar-se crucificar ao mundo com a mortificação da carne, e por outra, tem de aceitar a decisão da ordem eclesiástica de dedicar-se ao governo com humildade, ainda que não queira fazê-lo”. (Livro das Sentenças III, 33, I: PL 83, col. 705 B)
O termo para o qual tende a prática da obediência é a humildade, cuja expressão máxima é a renúncia à própria vontade. Tal obediência objetiva a mortificação da vontade e do desejo. Neste sentido, ser humilde é ser obediente a alguém que comande. Um dirige e o outro é dirigido. O que é dirigido deve aceitar e obedecer. O cristão se põe nas mãos de seu pastor não somente para as coisas espirituais, mas, também para as materiais e para a vida cotidiana. Não se trata simplesmente de obedecer a uma lei, mas estar inteiramente na dependência de alguém. O melhor exemplo é a prova de irreflexão na qual o monge obedece no mesmo instante que ordenado. É uma relação de submissão. O pastorado faz surgir toda uma prática de submissão dos indivíduos (de indivíduo a indivíduo). É um campo de obediência generalizada, fortemente individualizado em cada uma de suas manifestações, de forma que até os que comandam o fazem, pois, receberam ordem de comandar. A ovelha vive uma relação de servidão integral, mas ao mesmo tempo, o pastor deve ver seu encargo como um serviço. É uma individualização que implica na destruição do “eu”.
Obedecer é renunciar a si mesmo, a suas vontades, inclusive aos prazeres do corpo para garantir a “apátheia” (controle de si). A palavra apatia provém do grego clássico apatheia. Páthos em grego significa “tudo aquilo que afeta o corpo ou a alma” e tanto quer dizer dor, sofrimento, doença, como o estado da alma diante de circunstâncias exteriores capazes de produzir emoções agradáveis ou desagradáveis, paixões. Assim, apatheia tanto pode significar ausência de doença, de lesão orgânica, como ausência de paixão, de emoções. O termo apatheia foi usado por Aristóteles (384-322 a.C.) no sentido de impassibilidade, insensibilidade, e, a seguir, incorporado pela escola filosófica fundada por Zenon (335-263 a.C.), o estoicismo, para expressar um estado de espírito ideal a ser alcançado pelo homem durante a sua existência. Segundo o estoicismo, o sofrimento decorre das reações despertadas no ser humano por quatro classes de emoções: a dor, o medo, o desejo e o prazer. O ideal do estóico é alcançar a apatheia, ou seja, a natural aceitação dos acontecimentos, uma atitude passiva diante da dor e do prazer, a abolição das reações emotivas, a ausência de paixões de qualquer natureza. A Igreja vai beber desta fonte e desejar a apátheia como objetivo final deste modo de ser obediente. A renúncia de si e o domínio das paixões prevê a hierarquização deste indivíduo sobre os menos capazes e sua capacidade de conduzir. Espera-se que o padre seja perfeitamente obediente e humilde e exija o mesmo. Há, portanto uma construção de individualidades dependentes e recíprocas, uma espécie de economia da dependência.
Com o poder pastoral, a Igreja configurou os papeis de pastor e ovelha por meio de um processo de individualização exacerbada na qual a “perfeição” é atingida com a supressão da própria vontade e do próprio “eu”. O homem ocidental aprendeu a si considerar ovelha e a pedir condução, direção e/ou salvação a um pastor. Alguém diferente, escolhido para conduzir às fontes de água e alimento, que o proteja e cure as feridas. Os sacramentos estão na ordem da condução das consciências. O batismo é entrada das ovelhas no rebanho; a comunhão é seu alimento; a penitência reintegra as ovelhas desgarradas ao rebanho; e o próprio poder jurisdicional do bispo em sua diocese, ou mesmo, do padre em sua paróquia traduz-se como a vigilância do pastor sobre o rebanho. Acautelar-se das condutas é importante para garantir que as “ovelhas doentes”, cujo comportamento contradiga ao esperado, não possam contaminar o rebanho com sua moléstia. Vigiar é um dever. Um cuidado que se impõe sobre o rebanho e cada ovelha individualmente. Ele deve prestar contas no fim do dia de cada uma de suas ovelhas e de todo o rebanho. Deve estar disposto a dar a vida por elas. Deve defendê-las e morrer por elas se for preciso. Deve até expulsar as inconvenientes e prejudiciais ao rebanho para que este não se perca. Este alguém separado será o intermediador entre a escassez e a bonança, entre esta terra de lágrimas e o paraíso.
O Secretariado Nacional das Vocações Sacerdotais da CNBB publicou um documento em 1960 que demonstra bem esta construção do sacerdote como mediador entre os homens e Deus. A exaltação da figura do pastor tende a promover nas consciências a necessidade da condução e o desejo da salvação para aqueles cuja vida “dissoluta” e “mundana” não pode produzir a certeza da bem-aventurança eterna. Nesta construção discursiva, a verdade sobre o pastor aparece como uma “necessidade de salvação”. Depois de Deus, o padre é tudo...
O pastorado no cristianismo deu lugar a toda uma arte de conduzir, de dirigir, de levar, de guiar, de controlar, de manipular os homens, uma arte de segui-los e de empurra-los passo a passo, uma arte que tem a função de encarregar-se dos homens coletiva e individualmente ao longo de toda a vida deles e a cada passo de sua existência.(FOUCAULT. Michel. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008, pp. 218-219)Assim, um sujeito é sujeitado em redes contínuas de obediência e servidão. O pastorado cristão é, na verdade, uma forma de poder temporal, que sob o argumento de conduzir os indivíduos à felicidade eterna assume o governo dos homens. O viver celibatário faz parte desta estratégia de poder. É um mecanismo de dominação das individualidades. O Papa João Paulo II, em 1993, declarou publicamente que o celibato não é essencial ao sacerdócio. Então, qual a razão para sua manutenção? Disciplina e controle parecem apropriados. O sacerdote católico ao mesmo tempo em que exerce o poder pastoral também sofre seus efeitos, pois o que lhe é exigido para o exercício da função é sua doação em tempo integral e a negação de si mesmo. E, ao contrário do que se pensa, nunca houve consenso quanto à necessidade do celibato para o exercício das funções sacerdotais na Igreja Católica. Sua adoção está na ordem das relações de dominação. A história do celibato revela muito mais o conflito e a resistência/desobediência à norma do que o estilo de vida proto-angelical que se quer demonstrar.
Presume-se que o Bispo espanhol Hósio de Córdova, que já assumira a liderança em Elvira, foi um dos que propuseram a proibição das relações conjugais para os padres em Nicéia também. Segundo um relato do historiador Sócrates (ca. 450), o bispo Panúcio, homem de grande prestígio, que perdera um olho e um tendão do joelho na perseguição imposta por Diocleciano, ergueu-se e disse que nenhum jugo pesado desse tipo deveria ser colocado sobre o clero, pois o casamento era algo de honrável. Bastava aos que entrassem para o clero solteiros não se casarem depois, mas nenhum padre deveria ser separado da mulher com quem se casara enquanto ainda era leigo. (RANKE-HEINEMANN, Uta. Op.cit., p. 114)O contra-senso entra em cena nos Sínodos que se seguiram. O de Gangra (340-341) defende o casamento dos padres e a compatibilidade entre seu ofício religioso e vida matrimonial. Pretensas Constituições Apostólicas na década de 380 excomungavam qualquer padre ou bispo que por motivo devocional repudiasse sua esposa. Porém, no ano de 385, o Papa Sirício abandonou a própria esposa e os filhos, a fim de ascender à posição papal. Ele decretou imediatamente que nenhum dos padres poderia mais continuar casado. Tal exigência permaneceu sem efeito. Cinco anos depois o Concílio de Cartago estabelece as mesmas obrigações de Elvira, sendo ratificadas no Sínodo de Cartago em 401. Contudo, ainda não bastava que os padres casados se abstivessem da vida sexual. O Papa Inocêncio I no Sínodo de Roma (402) estabeleceu: “Bispos, padres e diáconos precisam ser solteiros” (Cân.3). (Ibidem, p. 115.) Na prática, contudo, nada mudou. Uma declaração sinodal não tem força política para se impor a toda instituição. Ademais, nos séculos iniciais do cristianismo o Papa não possuía a representação política de hoje.
Que seu espírito fraternal cuide da diligência dos que acabam de ser elevados a essa ordem, para que não tomem a liberdade de manterem relações com as esposas, caso as tenham. Mas faça-os saber com toda a severidade que tudo será observado como se ocorresse debaixo dos olhos da Sé Apostólica. [Exigindo-se que a partir da ordenação sacerdotal em diante] amassem as esposas como se fossem irmãs e se acautelassem em elas como se fossem inimigas. (Diálogos IV, 11)Assim, homens casados continuavam sendo ordenados padres e pouco consenso existia em torno da questão. O sínodo de Arles em 443, o de Clermont em 535 e o Terceiro Sínodo de Orleans em 538, defendem a continência conjugal dos clérigos. O Sínodo de Tours (567), foi mais longe, regulamentando a vida conjugal dos bispos. Além de propor a ausência de intimidade ao casal surge, agora, uma novidade: a separação de domicílio. A esposa do bispo ficaria em uma casa sendo servida apenas por mulheres e o bispo em outra, cercado por seus clérigos. E chega a afirmar o seguinte:
O bispo só pode procurar sua esposa como irmã. Onde quer que esteja, deverá ficar rodeado de clérigos, e sua residência deverá ficar separada de sua esposa (...) O arcipreste deve sempre ter um clérigo com ele, que o acompanhará aonde for e que deve ter a cama no mesmo quarto com ele. (Cân. 19)(Ibidem)A disciplina assume dimensões austeras e passa a vigiar exaustivamente o cotidiano. A conseqüência imediata é seu afastamento do simples fiel. O sacerdócio começa a assumir uma característica distintiva que o hierarquiza e o separa dos “leigos”, termo que indica aquele indivíduo inexperiente, não conhecedor, que precisa ser orientado. O leigo é visto como inferior e incapaz. O casado vai aos poucos perdendo seu espaço na hierarquia católica e o termo que lhe posiciona no campo religioso designa sua ignorância e a necessidade de ser conduzido pelos “separados”, “puros” e “sapientes”. Os Sínodos de Lião (583) e de Toledo (589) repetem a orientação de que os clérigos casados não podem viver juntos com as esposas.
Na Igreja romana, os que recebem o diaconato ou o sacerdócio tem de prometer suspender as relações com as esposas. Mas permitimos que continuem casados, de acordo com os Cânones Apostólicos. Quem tentar romper com o casamento será destituído, e o clérigo que se separar da esposa sob o pretexto de piedade será excomungado. (RANKE-HEINEMANN, Uta. Op.cit., p. 118)Evidente que esta decisão não é aceita com facilidade. A igreja romana nem reconhece Trulano como o Sétimo Concílio Ecumênico, que para ela é Nicéia (2º), em 787. Curiosamente, o último concílio universal. A unidade da Igreja começa a desfazer-se devido as diferenças entre o Oriente e o centralismo do patriarca do Ocidente. As determinações de Trulano II foram aceitas quase duzentos anos depois pelo Papa João VIII (872-882), que declara que os sacerdotes casados antes da ordenação, deveriam assim permanecer. Contraditoriamente, este momento do papado é marcado pela imoralidade e corrupção. A pressão sobre os padres casados diminui. Parte desse período é tradicionalmente conhecido como pornocracia ou época das rameiras, numa referência a certas práticas que predominavam na corte papal. Os padres, até então, sempre se casaram e há indícios de que até o século IX não houvesse nenhum impedimento legal ao casamento do pontífice. Contudo este período, que se estende até a morte do Papa João XII em 963, se caracteriza pelo comportamento promiscuo. Acredita-se que a princesa toscana Marozia,(NARLOCH, Leandro. Marozia: a chefe dos papas. In “Aventuras na História” edição 072, julho 2009) concumbina do papa Sérgio III (904-911) – que chega ao papado depois de assassinar seu antecessor Leão V, em 903 – foi mãe do futuro Papa João XI (935). Ela também foi acusada de comandar o assassinato do Papa João X (914-928), para favorecer seu favorito a tornar-se Papa Leão VI (928), que também morre violentamente no mesmo ano de consagração.
Os jovens maridos, exaustos por acabarem de praticar os desejos carnais, servem ao altar. E, imediatamente após, tornam a abraçar suas esposas com as mãos que foram santificadas pelo corpo imaculado de Cristo. Essa não é a marca da fé verdadeira, mas uma invenção de satanás. (C. Will, Acta et escripta quae de controversiis ecclesiae graecae et latinae 1861, p. 126)Com ironia o Patriarca Petros de Antioquia diz que devido à invasão de Roma pelos vândalos, a igreja perdeu os documentos do Concílio de Nicéia e defendeu o clero casado de seu patriarcado. Contudo, sem a interferência do oriente o casamento dos padres recebe novos golpes. Em 1073, Gregório VII impõe o celibato. Defini-se que o matrimônio dos sacerdotes é herético e exigi-se que qualquer homem que fosse ordenado deveria, antes, declarar o celibato. “Em 1130, o Papa Inocêncio declarou no sínodo de Clermont que como o pressuposto era de que os padres eram templos de Deus, vasos do Senhor e santuários do Espírito Santo, seria ofensivo deitar-se no leito conjugal e viver nessa impureza.” (KIYAN, Ana Maria Mezzarana. Op.cit., p. 63) As esposas passam a ser consideradas concubinas e, portanto, sem direito algum sobre os bens de seus maridos. Mas essas considerações ainda não possuem força de lei. Inocêncio II, no ano de 1139, por ocasião do II concílio de Latrão, torna o casamento do clero não apenas proibido, mas ilegal e inválido. O argumento da pureza se levanta em nome de um corpo clerical santo(A palavra Santo origina-se do latim “sanctus”, que significa separado, inviolável, virtuoso.) e as separações de padres casados depois da ordenação são providenciadas. Mas isso não impede as uniões dos sacerdotes. Isso por que...
a partir de 1139, homens casados não mais eram ordenados padres; porém, como não havia uma cerimônia específica para a união conjugal, muitos padres casados em segredo, ainda ordenavam-se. Esta dificuldade de controle foi sanada a partir de 1563, quando a cerimônia formal de casamento se tornou obrigatória. (Ibidem, p. 64)Suas esposas, neste ínterim, passaram a ser rotuladas de concubinas, prostitutas, adulteras e em certos lugares de barregãs, como em Castela, por exemplo, no...
final do século XI. No plano legislativo, a barreguice garantia todos os direitos para a mulher e para os filhos nascidos da união (...) Em Portugal, nos séculos XII e XIII, as imagens das barregãs não estavam associadas às representações aviltantes das concubinas, que foram construídas pela Igreja durante a Reforma Gregoriana (...) Anteriormente ao século XIV, a barreguice, na sociedade portuguesa, era uma relação não muito distinta do casamento e a condição de barregã não era considerada torpe e desprezível.(SILVA, Edlene. As Barregãs de Clérigos: mulheres pecadoras e malditas. In www.espam.edu.br. (acesso em 26/5/2009))