Uma das chaves dessa tendência é o aparelhamento do eu como saída para a vida. Se tudo é incerto (amor, trabalho, família, saúde), que meu eu e meu corpo se tornem meu templo. Daí a pergunta: existe um eu verdadeiro, que devemos buscar como refúgio para uma vida tomada pela contingência de tudo (hoje tenho trabalho, amanhã talvez não; hoje tenho amor, amanhã talvez não; hoje tenho convite para a balada, amanhã talvez não)? Ou seja, existe um eu verdadeiro a salvo de uma vida onde nada seja garantido?
A ideia vem do Romantismo. Werther, personagem do livro de Goethe que leva seu nome, já dizia que em meio ao seu sofrimento pelo menos tinha um eu para se refugiar. Ao final, esse produto romântico se transformou num grande agente de consumo e de alienação, não porque não existamos como indivíduos psicológicos, mas porque esse eu, fruto de processos bioquímicos e elétricos, de laços sociais, históricos e políticos, de uma gama de experiências existenciais, não é um lugar a salvo de nada. A filosofia, desde o estoicismo antigo e do hedonismo grego, como vimos antes, busca tornar a vida menos dependente do meio a sua volta, reduzindo o desejo pelo mundo, o que pode soar, com razão, um tanto deprimente e repressivo do desejo pela vida. Como também já vimos antes, nossa concepção contemporânea de prazer, entendida como realização de um desejo eternamente insatisfeito, é um empecilho enorme à ideia de nos tornarmos independentes das demandas do mundo. Ao contrário, nosso eu verdadeiro se torna cada vez mais dependente do que existe a sua volta.
Por mais que a publicidade mostre homens e mulheres em cenários distantes e isolados em meio a uma natureza belíssima, essas cenas sempre são acompanhadas de produtos que são de alguma forma necessários para vivermos esses cenários, sejam carros, esportes radicais e suas ferramentas indispensáveis, sejam hotéis ou pousadas charmosas, sejam companhias aéreas, agências de turismo, ou bancos e suas linhas de crédito para qualidade de vida ou casa própria. Só um idiota fora do normal acredita que esse eu verdadeiro, produto de uma sopa química e de vínculos sociais materiais, pode se esconder do mundo, quando para estar escondido é preciso tantos objetos caros. No mínimo, o que é ainda mais ridículo, esse eu verdadeiro necessitará de terapias (que são bem caras) ou de uma loja com roupa de um estilo descolado específico que o torne “diferente” do restante dos mortais. Permanecendo o fato de que, se ele compra roupas numa loja de pessoas diferentes, um monte de outros consumidores “diferentes” como ele comprará roupas no mesmo lugar.
Enfim, não existe esse eu verdadeiro a não ser como mais um produto nas prateleiras do mundo contemporâneo, que há muito desistiu de qualquer ideia de personalidade em favor de uma ideia com menos ônus, que é a de estilo e de felicidade a todo custo.
(Pondé, Luiz Felipe - Filosofia para corajosos)