É um poema comovente. De António Nobre. Ao Papa Leão XIII. Foi seleccionado por Eugênio de Andrade para a sua Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa. Diz assim:
"Ó Padre Santo! Meu Irmão! Ó meu amigo
Do velho mundo antigo
- Dá-me consolação, e prova-me que há Deus;
Resolve-me a equação estrelada dos céus;
Admite-me ao Conselho amigo dos Cardeais:
Deixa-me ler, também, na letra dos missais!
Muito que te contar! Não conheces o mundo?
Nunca desceste, Padre!, a esse poço profundo?
Metido nessa cela ideal do Vaticano,
Há quanto tempo tu não vês o Oceano?
Nunca viste um bordel! Sabes o que é a desgraça?
Ouviste acaso o 'pschut'! delas, a quem passa?
Sabes que existem, dize, as casas de penhores?
No teu palácio, há, porventura, amores?
Viste passar, acaso um bêbado, na rua?
Já viste o efeito que na lama imprime a lua?
Ouve: tiveste já torturas de dinheiro?
Já viste um brigue no mar? Já viste um marinheiro?
Que ideia fazes tu das crenças dos rapazes?
Já viste alguém novo, Padre? Que ideia fazes,
Santo Leão!, do Boulevard dos Italianos?
Recordas com saudade os teus vinte e três anos?
Ó Leão XIII! Ó Poeta, essa é a minha idade!,
Como tu vês, estou na flor da mocidade!,
Ainda não contei metade de cinquenta.
Começa-me a nascer a barba, o mundo tenta
A minha alma: ah, como é lindo esse Demónio!
Nasci em Portugal, chamo-me António; / (...)
Em pequenino, Padre, ajoelhado na cama,
A erguer as mãos a Deus, ensinou-me a minha ama;
Sabia de cor mil e trezentas orações,
Mas tudo esqueci no mundo aos trambolhões...
Nossa Senhora te dirá se isto é assim!
- O que há-de ser de mim?"
É isso. Se os que se dizem amigos e representantes de Cristo na terra soubessem do mundo em toda a sua crueza, não dariam a mão à jovem que, desesperada, abortou? Se fizessem ideia de que o ser humano é um ser histórico e que há amores que morrem e que ninguém pode ser obrigado a viver num inferno, fechariam as portas ao homem ou à mulher que,depois de um divórcio, quiseram retomar na dignidade a vida com outro alguém? Se fosse preciso negar a mesa dos sacramentos de Jesus, então que fosse aos exploradores dos pobres e aos fabricantes de guerras, mas não aos que sufocam na solidão. Se soubessem das pulsões que palpitam num corpo jovem, haveria a compreensão que cura, e o seu discurso não se enrolaria em preservativos, mas dialogaria sobre a dignidade de corpos conscientes e livres e incentivaria a educação aberta para a sexualidade. Se soubessem do deserto que atravessa a existência de tantos, haviam de colocar no centro das preocupações da Igreja as reais aspirações da humanidade pelo sentido da vida e pela procura do Deus vivo e não as fórmulas dogmáticas ou o direito canónico, o anúncio do Deus que liberta e não do Deus que ridiculariza e oprime, a reconsideração do celibato, que, enquanto lei, é contra o Evangelho, bem como da confissão, que, em vez de ser o espaço do perdão misericordioso de Deus, tem sido, tantas vezes, na sua prática concreta, o lugar da violência inquisitorial do mais íntimo das pessoas, com o risco de violação dos direitos humanos... Se soubessem de beleza, as liturgias haviam de explodir em alegria e festa.
Então, até Nietzsche havia de vir, pois foi ele que escreveu que "só acreditaria num deus que soubesse dançar". E António Nobre havia de ver resposta para a sua dor: "O que há-de ser de mim?"
(Anselmo Borges - "Janelas do (In)Visível")