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De tudo e de nada, discorrendo com divagações pessoais ou reflexões de autores consagrados. Este deverá ser considerado um ficheiro divagante, sem preconceitos ou falsos pudores, sobre os assuntos mais variados, desmi(s)tificando verdades ou dogmas.
Os inquisidores, em toda parte, Brasil ou Europa, usavam um manual denominado Malíeus Maleficarum que fornecia ao interrogador todos os elementos para descobrir os sinais de bruxaria numa mulher, por mais dissimulados ou ínfimos que fossem. A idéia central do manual era a de que o mal está em toda parte, mas que é de dois tipos: natural (pestes, secas, inundações) e maléfico (decisão voluntária de destruir ou sabotar a ordem do mundo, decisão vinda do rival de Deus, o Diabo, o Maléfico ou Maligno).
As mulheres, sem exceção, são colocadas como mal maléfico porque, por natureza, são crédulas, faladoras, coléricas, vingativas, de vontade e memória fracas e insaciáveis, prestando-se a todas torpezas sexuais. Consideradas como desordem (isto é, como Natureza ainda não submetida à regra, à ordem e, portanto, à Cultura), todas as mulheres, sejam elas esposas, parteiras, bruxas, prostitutas ou freiras, são sempre descritas exclusivamente em termos sexuais (a bruxa dorme com o diabo e a freira, com Deus; a puta dorme com todos, a freira, só com Jesus — uma canção de Chico Buarque nos revela como essas imagens exclusivamente sexuadas das mulheres ainda permanecem no imaginário e no cotidiano brasileiro, de tal modo que o encontro matinal da puta, voltando do trabalho, com a freira, indo à missa, é uma espécie da síntese da imagem feminina brasileira para o olhar masculino).
A finalidade da confissão das acusadas, perante o Inquisidor, era a de ser transformada em peça fundamental da própria acusação, sobretudo como auto-acusação e como delação de todas as pessoas próximas envolvidas (muitas vezes, como se sabe, um processo inquisitorial era feito menos para condenar um acusado e mais para que ele, através da delação, apontasse alguém que, de fato, era a pessoa visada pela inquisição). Aceitando confessar-se, a acusada realizava a finalidade principal da Inquisição como instituição: reconhecia o tribunal e, portanto, reforçava o sistema.
Através das confissões, a historiadora nos mostra o quadro da repressão sexual dessas mulheres: a acusação de bigamia decorre da luta entre homens rivais e revela a estrutura do casamento como relação de força; a de sodomia, é meio para eliminar uma mulher indesejável e justificar a separação lícita sem que os espancamentos anteriores recebam punição e sem que o dote da esposa precise ser devolvido, perdendo ela também a dotação do marido (nessa acusação, a prova é obtida pela resposta afirmativa à pergunta: ”houve deleitação?”, isto é, prazer). Mas, de todas as acusações, é a confissão da feiticeira que melhor ilumina a situação sexual dessas mulheres. A acusação de feitiçaria é sempre sexual, pois a feiticeira é aquela que dorme com o diabo. Mas as confissões mostram as dificuldades matrimoniais das mulheres que procuravam solucioná-las pela magia, com poções e filtros, naesperança que os maridos lhes ”dessem a boa vida” e lhes tivessem ”amor e amizade”. A procura da feitiçaria revela a incapacidade da Igreja para ajudá-las.
Todavia, a preocupação da Igreja com as feiticeiras e a sodomia (homossexualidade feminina) se deve ao temor de que criassem um ”mundo feminino”, próprio, desvinculado do controle eclesiástico (mundo feito de solidariedade e sobretudo de profissionalização das mulheres). Reencontramos aqui algo semelhante ao que vimos quando a Igreja decidiu ensinar a ler às mulheres. O mesmo medo de perder o controle sobre elas.
(Marilena Chaui – “Repressão Sexual”)