Os xitara dividem aos minerais em «machos» e «fêmeas»; os primeiros, duros e negros, acham-se na superfície da terra, enquanto que os minerais «fêmeas», brandos e avermelhados, são extraídos do interior da mina; a mescla de ambos os «sexos» é indispensável para conseguir uma fusão frutífera5. Trata-se, claro está, de uma classificação objetivamente arbitrária, posto que nem as cores nem a dureza dos minerais correspondem sempre a sua classificação «sexual». Mas o que importava era a visão global da realidade, pois era o que justificava o rito, quer dizer, o «matrimônio dos minerais», e que este fizesse factível um «nascimento». Idéias similares se acham na antiga China. Yu, o Grande, o Fundador primitivo, sabia distinguir os metais machos dos metais fêmeas. Por tal razão homologava suas caldeiras com os dois princípios cosmológicos yang e yin6. Teremos que insistir sobre as tradições metalúrgicas chinesas, pois o matrimônio dos metais é uma antiqüíssima intuição prolongada e cumprida no mysterium conjunctionis da alquimia.
Além dos minerais e dos metais estavam «sexuadas» as pedras preciosas. Os mesopotâmicos as dividiam em «macho» e «fêmea», segundo sua cor, forma e brilho. Um texto assírio, traduzido por Boson, fala da pedra musa, masculina (por sua forma), e da pedra de cobre, feminina (por sua forma)». Boson precisa que as pedras masculinas tinham uma cor mais viva; as femininas eram mais pálidas7. (Ainda hoje os joalheiros distinguem o «sexo» dos diamantes segundo seu brilho.) A mesma divisão encontramos para os sais e os minerais da época da literatura ritual babilônica, e assim se conserva nos textos médicos8. A classificação sexual dos minerais e das pedras se manteve nos escritos dos lapidários e alquimistas da Idade Média9; assim, o lapis judaicus, por exemplo, é «macho» ou «fêmea», etc.
O místico e exegeta judeu Bahya Ben Asher (morto em 1340) escrevia: «Não é somente entre as palmeiras onde se dá a divisão em machos e fêmeas, mas sim existe em todas as espécies vegetais, quão mesmo entre os minerais.» Sabattai Donnolo fala deste modo da sexualidade mineral no século X. O sábio e místico árabe Ibn Sina (980-1037) afirmava que o «amor romântico (al'ishaq) não é privativo da espécie humana, mas sim se estende a todo o existente (em nível) celestial, elementar, vegetal e mineral, e que seu sentido não é percebido nem conhecido, mas sim se torna tão mais obscuro quantas mais explicações se dão a respeito dele» 10. A noção de «amor romântico» aplicada aos metais completa de modo magnífico sua «animação», já assegurada pelas idéias de sexualidade e matrimônio.
Também as ferramentas estão sexuadas. «Qual é a melhor arma? Exclama o poeta Ibn Errümi. Tão somente um sabre bem afiado, com seu fio, masculino, e sua folha, feminina» 11. Por outro lado, os árabes chamam o ferro duro «homem» (dzakar) e ao ferro brando «mulher» (ánit)12. Os ferreiros de Tanganika praticam várias clarabóias no lar. A maior parte recebe o nome de «mãe» (nyina); «por ela é por onde ao final da operação do fundido sairá a escória, o mineral forjado, etc.; a da frente recebe a denominação de isi (o pai), e por ela se introduzirá um dos melhores foles; as intermediárias são os aana (filhos)» 13. Na terminologia metalúrgica européia o lar onde se fundia o esmalte recebe o nome de «matriz» ou «seio maternal» (Mutterschoss). Ainda sobrevive obscura a assimilação do trabalho humano no qual se utiliza o fogo (metalurgia, forja, cozinha) ao crescimento do embrião no seio materno nos vocabulários europeus (cf. Mutterkuchen, «placenta»; Kuchen, «bolo»)14. Em tal universo mental foi onde cristalizaram as crenças relativas às pedras fecundantes e ginecológicas e às pedras de chuva 15. E uma crença ainda mais arcaica as precedeu: a da petra genitrix.
Quando a chuva cai com força, os dayaks têm a certeza de que é «masculina» 16. Quanto às águas cósmicas, vemos que o livro de Enoch as divide deste modo: «A água superiora representará o papel do homem; a inferior, o da mulher» (Lili, 9-10). Um poço alimentado por um arroio simboliza a união do homem e da mulher (Zohar, fol. 14 b, 11-152). Na Índia védica, o altar dos sacrifícios (vedi) era considerado como «fêmea», e o fogo ritual (agni), como «macho», e «sua união engendrava a origem». Nos encontramos ante um complicado simbolismo que não se reduz a um só plano de referência. Porque, por uma parte, o vedi era assimilado ao umbigo (náhbi) da terra, símbolo por excelência do «centro». Mas o náhbi era valorado também como a «matriz» da deusa (cf. Zatapatha Bráhmana, 1, 9, 2, 21). Por outro lado, o próprio fogo era considerado como resultado (origem) de uma união sexual. Nascia como resultado de um movimento de vaivém (assimilado à copulação) de um palito (que representa o elemento masculino) sobre um entalhe feito em uma parte de madeira (elemento feminino) (cf. Rig Veda, III, 29, 2 e ss.; V, 11, 6; VI, 48, 5). Este mesmo simbolismo se acha em bom número de sociedades arcaicas 17. Mas todos estes termos sexuais traduzem uma concepção cosmológica apoiada na hierogamia. É partindo de um «centro» (umbigo) como se verifica a criação do mundo, e deste modo, imitando solenemente este modelo exemplar, toda «construção» ou «fabricação» deve operar-se a partir de um «centro». A produção ritual do fogo reproduz a criação do mundo. Por isso é que ao terminar o ano se extinguem todos os fogos (ritualismo da Noite cósmica), que reacendem se o dia do Ano Novo (repetição da Cosmogonia ou renascimento do Mundo). O fogo não perde, portanto, seu caráter ambivalente: é umas vezes de origem divina e outras demoníaca (pois segundo algumas crenças arcaicas se origina magicamente no órgão genital das feiticeiras). E sobre esta ambivalência teremos que insistir antes de apresentar os prestígios do ferreiro.
Como era de esperar, o simbolismo sexual e ginecológico mais transparente se encontra nas imagens da Mãe Terra. Não é este lugar para recordar os mitos e lendas concernentes ao nascimento dos homens no seio terrestre. (Veja-se nosso Traite de l'Histoire des Religions, pp. 216 e ss.) Às vezes a antropogenia está descrita em termos de embriologia e obstetrícia. Segundo os mitos Zuñi, por exemplo, vemos que a humanidade primitiva nasceu depois da hierogamia Céu-Terra na mais profunda das quatro «cavernas-matrizes» ctônicas. Guiados pelos Gêmeos míticos, os humanos passam de uma matriz a outra situada em cima até que chegam à superfície da Terra. Neste tipo de mitos, a imagem da Terra se adapta perfeitamente a da mãe, e da antropogonia está apresentada em termos de ontogenia. A formação do embrião e a gestação repetem o ato exemplar do nascimento da Humanidade, concebido como uma emersão da mais profunda caverna-matriz ctônica 18. Ainda sobrevivem na Europa crenças similares, seja em forma de lenda, de superstição ou, simplesmente, de metáfora. Cada região, quase cada cidade e povo, conhecem uma rocha ou uma fonte que «dão» filhos; assim temos os Kinderbrunnen, Kinderteiche, Bubenquellen, etc.
NOTAS:
5 Cline: Mining and Metallurgy in Negro África, p. 117.
6 Marcel Granet: Danses et légendes de la Chine ancienne (París, 1926), p. 496.
7 G. Boson: Les métaux et les pierres dans les inscriptions assyro-babyloniennes (Munich, 1914), p. 73.
8 R. Eisler: Die chemische Terminologie der Babylonier, página 116. Kunz: The Magic of Jewels and Charms
(Filadelfia-Londres, 1915, p. 188).
9 Os textos alquímicos assim falam, por exemplo, da «magnesia hembra» (Ed. v. Líppmann: Entstehung
und Ausbreitung der Alchemie, I, p. 393). A «sexualidad» das pedras nos lapidários: Julius Ruska: Das
Steinbuch des Aristóteles (Heidelberg, 1912), pp. 18, 185. Sexualidade dos minerais nas concepções da
antigüidade clássica: Nonnos: Dionysiaca (ed. Loeb. Classical Library), I, p. 81. Sobre a pedra viva nos
conceitos da antigüidade e no cristianismo, cf. J. C. Plumpe: «Vivum Saxum, viví Lapides» (Traditio, I,
1943, pp. 1-14).
10 Veja-se Salomón Gandz: Artificial fertilization of date palms in Palestine and Arabia, p. 246.
11 F. W. Schwartzlose: Die Waffen der alten Araber aus Ihren Dichtern dargestellt, p. 142; v. Ed. von
Lippmann, op. cit., p. 403. Sobre as espadas sexuadas da China veja-se a obra citada de Marcel Granet, p.
496. Os tambores, as campanhias, estão igualmente sexuados. Cf. Max Kaltenmark: «Le Dompteur des
flots» (Han Hiue, Bulletin du Centre d'Etudes Sinologiques de Pékin, III, 1948, pp. 1-113), p. 39, h. 141.
12 Leo Wiener: África and the discovery of America (Filadelfia, 1922), vol. III, pp. 11-12.
13 R. P. Wyckaert: «Forgerons pdiens et forgerons chrétiens au Tanganika» (Anthropos, 9, 1914, pp. 371-380), p.
372. Os fornos de Mashona e Alunda são ginecomórficos. Cf. Cline: op. cit., p. 41.
14 Cf. Eisler: Die chemische Terminologie..., p. 115.
15 Veja-se algumas indicações bibliográficas em nosso Traite d'Histoire des Religions, pp. 208-210. Sobre as
pedras ginecológicas, cf. G. Boson: «I metalli e le pietre nelle inscrizioni sumero-assiro-babilonessi»
(Rivísta di Studi Orientali, III, páginas 379-420), pp. 413-414; B. Laufer: The Diamond (Chicago, 1915), pp.
9 e ss.
16 A. Bertholet: Das Geschlecht der Gottheit (Tübingen, 1934). Neste livro encontraram-se múltiplos
documentos referentes à sexualização do meio ambiente.
17 Veja-se algumas indicações na nota E.
18 Sobre o mito zuñi e versões paralelas, cf. Eliade: La Terre-Mere et les hiérogamies costniques, pp. 60 e ss.
(Mircea Eliade - FERREIROS E ALQUIMISTAS)