Corre nos meios eclesiásticos a estória que conta que, estando programada uma viagem de Nossa Senhora à terra, ela terá manifestado desejo de descer a Fátima, argumentando que era um lugar onde nunca tinha estado!...
A ironia não estará tanto no pôr em causa as aparições em Fátima como eventualmente na veiculação de uma distância crítica face a um determinado tipo de religiosidade.
Henri Bergson, na obra famosa As Duas Fontes da Moral e da Religião, mostrou a distinção fundamental entre dois tipos de religiosidade. A primeira - a religiosidade estática
- tem a sua base na angústia da morte e no sentimento de abandono perante uma Natureza tantas vezes cruel, e, a partir do instinto de sobrevivência, procura protecção divina para a pequenez humana. A outra - a religiosidade dinâmica
- assenta na intuição do Mistério Último experienciado como amor. Esta exprime a grandeza do ser humano e apoia-se na experiência de homens excepcionais - os místicos. Mas o misticismo autêntico e completo é acção, pois o místico verdadeiro, "através de Deus, por Deus, ama a humanidade inteira com um amor divino".
Não há corte radical entre as duas formas, mas ao mesmo tempo é necessário reconhecer que há vivências mais e menos perfeitas da religião e uma tomada de consciência crescente e de nível mais alto neste domínio. Quando o núcleo da religião é vivido no amor, não só termina a intolerância como se impõe a compreeensão entre os humanos, independentemente da sua confissão religiosa. Foi assim que, também no sufismo, corrente mística do islamismo, houve a visão clara de que, insistindo no aspecto amoroso da religião, se dava a aproximação com Jesus, sem necessidade de abandonar a profissão islâmica. Kamil Hussein escreveu: "Se sentes no profundo de ti mesmo / que isso que te incita ao bem é o teu amor por Deus / e o teu amor pelos homens que Deus ama; / se pensas que o mal consiste em afastar-se dos homens / porque Deus os ama, como te ama a ti, / e que perdes o teu amor a Deus se causas dano àqueles que Ele ama, / isto é, a todos os homens, / tu és discípulo de Jesus, seja qual for a religião que professes".
Há um tremendo equívoco na afirmação corrente "católico não praticante", quando praticante se refere à prática dos rituais religiosos, nomeadamente a missa e a confissão. De facto, como escreveu Nietzsche, "só uma vida como a daquele que morreu na cruz é cristã". Jesus não se interessou com congregar os homens numa determinada confissão religiosa nem os convocou para rituais religiosos. Abriu caminhos para buscar o Mistério Último do mundo e vivê-lo no amor. No Juízo Final não se pergunta se se foi à missa ou a Fátima, mas se se praticou o amor ao irmão mais necessitado: deste-me de comer, de beber, de vestir, foste ver-me ao hospital, na cadeia... Os primeiros cristãos tiveram de defender-se contra a acusação de serem ateus: de facto, não só recusaram o culto oficial romano como não tinham aqueles sinais que aparentemente fazem parte da essência da religião: templos, altares para o sacrifício, imagens de Deus.
Embora ainda hoje os padres católicos tenham a obrigação de rezar o Ofício divino, na perspectiva cristã pode e deve perguntar-se: para quê o culto oficial, em ordem a aplacar a divindade e propiciar a sua benevolência, se Deus se revelou definitivamente como amor? Só quando for vivida adequadamente no templo do mundo a religião verdadeira da justiça e do amor, terá sentido pleno celebrar nos "templos" a alegria gozosa da vida e da fraternidade em Deus. Por isso, enquanto "a prática cristã" a que se referia Nietzsche for anémica, poderá dizer-se com razão que no sentido corrente de ritos e cerimónias até há religião a mais.
(Anselmo Borges - Janela do (In)Visível)