Naquelas épocas tardias que podem se orgulhar do seu humanismo há um tal resíduo de temor supersticioso da "besta selvagem e cruel" que se debilita aquela forma até o louvor daquela época humana, que até a verdade palpável, quase por convenção tácita, permanece por séculos e séculos ignorada, porque se teme dar vida à besta felizmente amansada. Talvez seja audácia de minha parte se deixo transpirar uma tal verdade; possam outras contê-la e embebê-la de tanto "leite do pio pensar" (Provérbio alemão extraído do Guilherme Tell de Schiller), que façam com que volte a jazer em seu túmulo muda e esquecida. Preciso começar a pensar diferentemente e abrir bem os olhos acerca da crueldade, é preciso finalmente aprender a impaciência para não tolerar mais que certos erros passageiros empolados e insolentes das virtudes como, por exemplo. cometeram os filósofos antigos e modernos relativamente à tragédia. Quase tudo aquilo que chamamos "cultura superior" baseia-se na espiritualização no aprofundamento da crueldade — esta é minha tese, a besta selvagem não foi morta, vive, prospera, sobretudo se é divinizada.
A volúpia dolorosa que é a essência da tragédia, nada mais é que crueldade, tudo aquilo que na paixão trágica, e no fundo mesmo no sublime, mesmo nos mais supremos e mais delicados arrepios da metafísica, desperta uma complacência, obtém seu dulçor apenas pelo ingrediente de crueldade que lhe é mesclado. Todos os prazeres que se apossavam com secreta volúpia dos romanos na Arena, dos cristãos na lembrança da cruz, dos espanhóis frente aos toureiros ou corridas de touros, que experimentam os japoneses da modernidade quando se reúnem para ouvir a tragédia, os operários dos subúrbios de Paris que têm a nostalgia das revoluções sangrentas, os wagnerianos que imersos em êxtase degustam Tristão e Isolda — são apenas filtros mágicos da grande Circe que tem o nome de Crueldade.
É preciso emancipar-se desta psicologia oca de uma vez por todas, que se saiba ensinar antes de mais nada que a crueldade começa com o aspecto do sofrimento dos outros, que há tanta superabundância de gozo mesmo no próprio sofrimento e em provocá-lo!
Onde quer que o homem esteja próximo da automortificação (no sentido religioso) ou ainda da mutilação de si mesmo como entre os fenícios e os ascetas, ou em geral da renegação dos sentidos, da contrição, das penitências geradoras de cãibras dos puritanas, das vivissecções da consciência, do sacrifício do intelecto em Pascal, aquilo que secretamente o persuade e o estimula é a sua crueldade, é aquele arrepio perigoso da crueldade exercida contra nós mesmos. Finalmente, considere-se que até o próprio vidente quando obriga seu espírito a conhecer contrariamente à própria inclinação e aos desejos de seu coração — a dizer não, deve querer afirmar, amar, adorar — funciona apenas como artista é transfigurador da crueldade, cada aprofundamento das coisas é por si só uma violência, uma dor que se causa à vontade fundamental do espírito, que incessantemente tende a aparência e à superfície — até na vontade de conhecer há uma gota de crueldade.
(FRIEDRICH WILHELM NIETZSCHE - ALÉM DO BEM E DO MAL OU PRELÚDIO DE UMA FILOSOFIA DO FUTURO)