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De tudo e de nada, discorrendo com divagações pessoais ou reflexões de autores consagrados. Este deverá ser considerado um ficheiro divagante, sem preconceitos ou falsos pudores, sobre os assuntos mais variados, desmi(s)tificando verdades ou dogmas.
Tendo eu visto que todas coisas de que me arreceava ou temia não continham em si nada de bom nem de mau senão enquanto o ânimo se deixava abalar por elas, decidi, enfim, indagar se existia algo que fosse um bem verdadeiro, comunicável e pelo qual unicamente, afastado tudo o mais, o ânimo fosse afetado; mais ainda, se existia algo que, uma vez encontrado e adquirido, me desse eternamente a fruição de uma alegria contínua e suprema.
O escopo do tratado é não apenas buscar os meios para adquirir a força de ânimo — pois somente deste depende a qualidade das coisas desejadas —, como ainda esforçar-se “para que muitos também a adquiram”, pois “faz parte de minha felicidade” compartilhar com outros o verdadeiro bem e “formar uma sociedade tal que a maioria possa chegar a ele facilmente”. A afirmação de que a felicidade é compartilhar com outros a fruição do bem é reiterada no Tratado teológico-político, onde lemos:
A verdadeira felicidade e beatitude do indivíduo consiste unicamente na fruição do bem e, não, como é evidente, na glória de ser o único a fruí-lo quando os outros dele são excluídos; quem se julga mais feliz só porque é o único a ser feliz, ou porque é mais afortunado do que os outros, ignora a verdadeira felicidade e a beatitude.
A filosofia espinosana germina nessa busca e a ela se dedica até seu florescimento em sua obra magna, a Ética, em cuja conclusão lemos:
Se o caminho que mostrei conduzir a este estado [de plenitude e contentamento] parece muito árduo, pode, todavia, ser encontrado. E com certeza há de ser árduo aquilo que muito raramente se encontra. Como seria possível, com efeito, se a salvação estivesse à mão e pudesse encontrar-se sem muito trabalho, que fosse negligenciada por quase todos? Mas tudo que é precioso é tão difícil quanto raro.
Essa ética é a verdadeira entrada da filosofia na modernidade, pois se oferece liberada do peso de duas tradições: a da transcendência teológicoreligiosa ameaçadora, fundada na ideia de culpa originária e na imagem de um Deus juiz; e a da normatividade moral, fundada na heteronímia do agente, uma vez que este, para ser moralmente virtuoso, deve submeter-se a fins e valores externos não definidos por ele.
Com efeito, a tradição teológico-religiosa concebe o homem como um ser decaído em decorrência de uma falta originária, quando, usando seu livrearbítrio, transgrediu os mandamentos divinos. Assim, a primeira manifestação de nossa liberdade foi o pecado e, com ele, a culpa. Colocando-se contra a tradição, no Prefácio à Parte III da Ética, Espinosa escreve:
Quase todos que escreveram sobre os afetos e a maneira de viver dos homens parecem tratar não de coisas naturais, que seguem as leis comuns da Natureza, mas de coisas que estão fora da Natureza. Parecem, antes, conceber o homem na Natureza qual um império num império [imperium in imperio]. Pois creem que o homem mais perturba do que segue a ordem da Natureza, que possui potência absoluta sobre suas ações e que não é determinado por nenhum outro que ele próprio. Ademais, atribuem a causa da impotência e inconstância humanas não à potência comum da Natureza, mas a não sei que vício da natureza humana, a qual, por isso, lamentam, ridicularizam, desprezam, ou, o que o mais das vezes acontece, amaldiçoam; e aquele que sabe mais arguta ou eloquentemente escarnecer a impotência da mente humana é tido como divino.
Por seu turno, a tradição normativa submete a ética a imagens de coisas boas ou más em si e apresenta bom e mau como modelos externos da conduta virtuosa (conforme ao bem) e viciosa (conforme ao mal), identificando a liberdade com o poder da vontade para escolher entre valores postos como regras e normas para o agente. Nas duas tradições, o corpo é tido como a causa das paixões da alma e estas são consideradas vícios em que caímos por nossa culpa, desobedecendo à vontade de Deus (na tradição teológicometafísica) ou contrariando as leis da Natureza (na tradição da normatividade moral).
A ética espinosana subverte essa dupla tradição porque sua viga mestra é a ideia de que o homem é efeito imanente da atividade de uma potência absolutamente infinita, Deus, que engendra a Natureza sem separar-se dela. Porque efeitos imanentes à causa infinita, os seres humanos, como todas as coisas singulares finitas, são uma parte da Natureza e uma expressão singular do ser absolutamente infinito. A liberdade não é livre-arbítrio da vontade — seja esta divina ou humana —, mas a ação que segue necessariamente das leis da essência do agente, ou, em outras palavras, a liberdade não é a escolha entre alternativas externas possíveis, mas a autodeterminação do agente em conformidade com sua essência. Eis por que Espinosa introduz a enigmática expressão livre necessidade com que indica que liberdade e necessidade não se opõem e que a primeira pressupõe a segunda.
Afastando imagens antropomórficas e antropocêntricas da divindade, Espinosa demonstra que Deus não é um poder monárquico e legislativo, uma vontade soberana que comanda e julga as ações humanas; que os humanos não são dotados de livre-arbítrio a rivalizar com a vontade divina; e que, por suas paixões e ações, não são perturbadores da ordem natural, mas uma parte dela, uma potência natural capaz de tomar parte na atividade infinita da Natureza.
(Marilena Chaui - Desejo, paixão e ação na ética de Espinosa)