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De tudo e de nada, discorrendo com divagações pessoais ou reflexões de autores consagrados. Este deverá ser considerado um ficheiro divagante, sem preconceitos ou falsos pudores, sobre os assuntos mais variados, desmi(s)tificando verdades ou dogmas.
Nas mais diversas mitologias, o dragão ou serpente tem sido constantemente ligado à cosmogonia, representando o princípio ativo, o poder criador, uma imagem do próprio Verbo divino. Símbolo do indiferenciado, da energia indisciplinada, filho e habitante das águas primordiais, essa serpente mítica representa o Caos que antecede o estabelecimento das fundações do Universo. Ao se observar a serpente comum, não é difícil compreender porque esse animal foi escolhido para representar a energia livre que percorre o Universo: seus movimentos ágeis, sinuosos, e a facilidade com que se desloca lembra a fluidez com que a energia se transmite por toda a matéria. Habitante das montanhas, da terra ou das águas, sugere uma onipresença que impressiona; a rapidez com que desaparece sob o solo e volta à nossa vista reedita a magia da morte e ressurreição, e seu inconfundível sibilar imita o clamor dos elementos em fúria. A cobra devorando a própria cauda, conhecido símbolo do infinito, representa com extrema felicidade a energia que se recicla continuamente no Universo.
Dentro desta forma de se descrever a cosmogonia, a morte da serpente primordial desencadeia o processo criador. O deus guerreiro trespassa a cabeça do dragão, precipitando-o nas profundezas; por vezes, enterra a sua cabeça imortal sob uma pedra ou cravada por uma lança. A simbologia é translúcida: a energia caótica pode ser aprisionada, mas não destruída, nem haveria razão para tal. Dessa energia anteriormente livre e agora disciplinada é que se produz o Universo. A Igreja Cristã resolveu rotular o dragão como princípio do Mal por motivos óbvios: uma doutrina baseada na contenção dos instintos não poderia abonar qualquer símbolo da desordem e do descontrole.
Sobre a cabeça trespassada dessa serpente, que se enrola ao redor de si mesma, o demiurgo assenta as bases da sua obra cósmica. Repetir esse gesto ritualmente equivale a reencenar o ato criador, o que os antigos procediam com freqüência em seus cerimoniais de fundação. Na Índia, por exemplo, "antes de colocar a primeira pedra... o astrólogo indica o ponto dos alicerces que está sobre a serpente que sustenta o mundo. O mestre-de-obras corta uma estaca do tronco de uma árvore khadira e enterra-a no chão com uma noz de coco, precisamente no sítio indicado, para assim fixar a cabeça da serpente". Esse local mágico corresponde ao Centro do Mundo, e a serpente assim fixada torna-se o seu próprio eixo, a Axis Mundi.
Um belo exemplo desse procedimento mágico é o da construção das igrejas góticas. Projetadas por iniciados, elas se elevam em locais predeterminados, na confluência das linhas telúricas, os caminhos magnéticos que percorrem a Terra. Os cruzamentos entre as linhas telúricas são representações geográficas do Centro do Mundo. Todos os templos antigos, como microcosmos, eram construídos nesses pontos mágicos.
Em seus subterrâneos, encontra-se invariavelmente a chamada "fonte do dragão", símbolo do mar primevo onde habita a mítica serpente desde o princípio de todas as coisas. Imagem do próprio Universo, a sagrada edificação repousa sobre o corpo do animal sacrificado. Esse costume, se bem que completamente desprovido de seu significado original, ainda é observado nas cerimônias de colocação da pedra fundamental, antes da construção dos edifícios mais importantes.
Como protagonista do ato criador, o dragão estabelece-se como guardião do Centro, e por isso protege os locais reservados à iniciação, colocando-se como adversário dos candidatos a essa façanha. Daí os mitos comumente colocarem um dragão protegendo os lugares sagrados, opondo-se à aproximação dos heróis. Grande parte das vezes, assim como a serpente do Éden, eles guardam uma árvore mítica, símbolo do eixo do mundo. Uma vez que a iniciação só é possível no Centro, por ser o único lugar "real", quem quiser dele se aproximar deverá repetir o gesto divino, derrotando o dragão; se desejarmos efetuar uma leitura psicológica, tão ao gosto de alguns, diríamos que o homem deverá vencer seus próprios instintos primários, representados por esse animal mítico. Por causa desse caráter de opositor, função, aliás, necessária para se obter a iluminação, o dragão assumiu uma imagem maléfica perante o cristianismo, mas isso já seria de se esperar de qualquer doutrina de cunho dualista, onde a oposição se confunde com o princípio do Mal.
Sua identificação com as águas primordiais é fácil e imediata. Esse "mar" de que falam os mitos cosmogônicos não se refere ao oceano comum, e sim à massa indiferenciada, caótica, que antecede à ordem estabelecida pela criação; o dragão, símbolo do caos, é imanente a esse mar primevo.
A relação entre os dois símbolos pode ser expressa cabalisticamente: Theli, nome do grande dragão dos caldeus que circunda o Universo, em letras hebraicas escreve-se TLI = 400 + 30 + 10 = 440; quando sua crista (a letra inicial) é cortada, restam 40 ou o equivalente de Mem (água).
O guerreiro e o dragão constituem-se, em última análise, no produto de um splitting efetuado em relação à figura do deus descrito anteriormente; em vez de apresentar um ente que se dá em sacrifício, esta classe de mito mostra uma parte da divindade, significando a Ordem, em luta com a outra, que personifica a desordem ou Caos. Que tanto um quanto o outro são produtos dessa cisão, os antigos o sabiam perfeitamente. Tomando como exemplo a mitologia egípcia, temos que a tradição apresenta Tífon como símbolo dos princípios inferiores do corpo de Osíris, ou seja, do aspecto material do Universo, e a díada Osíris-Tífon como uma única divindade; o mesmo se dá com Vishnu e Shiva na mitologia hindu, enquanto que os iniciados sabiam que Ahriman fazia parte de Ahura Mazda, ou que Leviatã representava a sombra de Elohim. Ambos os aspectos são necessários para a formação do Universo observável, tal qual luz e sombra precisam misturar-se para tornar visíveis todas as coisas. A polarização dessas duas formas de Deus entre o Bem e o Mal, de caráter maniqueísta, pertence ao vasto mundo da superstição religiosa moderna.
(António Farjani - A Linguagem dos Deuses)