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O DRAGÃO PRIMORDIAL

por Thynus, em 30.08.13

 

 

Naquele dia, punirá Javé, com a sua espada irada,
grande e forte, a Leviatã, a serpente escorregadia, a
Leviatã, a serpente tortuosa, e matará o monstro que
habita o mar

Isaías, 27:1


Nas mais diversas mitologias, o dragão ou serpente tem sido constantemente ligado à cosmogonia, representando o princípio ativo, o poder criador, uma imagem do próprio Verbo divino. Símbolo do indiferenciado, da energia indisciplinada, filho e habitante das águas primordiais, essa serpente mítica representa o Caos que antecede o estabelecimento das fundações do Universo. Ao se observar a serpente comum, não é difícil compreender porque esse animal foi escolhido para representar a energia livre que percorre o Universo: seus movimentos ágeis, sinuosos, e a facilidade com que se desloca lembra a fluidez com que a energia se transmite por toda a matéria. Habitante das montanhas, da terra ou das águas, sugere uma onipresença que impressiona; a rapidez com que desaparece sob o solo e volta à nossa vista reedita a magia da morte e ressurreição, e seu inconfundível sibilar imita o clamor dos elementos em fúria. A cobra devorando a própria cauda, conhecido símbolo do infinito, representa com extrema felicidade a energia que se recicla continuamente no Universo.

 

Dentro desta forma de se descrever a cosmogonia, a morte da serpente primordial desencadeia o processo criador. O deus guerreiro trespassa a cabeça do dragão, precipitando-o nas profundezas; por vezes, enterra a sua cabeça imortal sob uma pedra ou cravada por uma lança. A simbologia é translúcida: a energia caótica pode ser aprisionada, mas não destruída, nem haveria razão para tal. Dessa energia anteriormente livre e agora disciplinada é que se produz o Universo. A Igreja Cristã resolveu rotular o dragão como princípio do Mal por motivos óbvios: uma doutrina baseada na contenção dos instintos não poderia abonar qualquer símbolo da desordem e do descontrole.
Sobre a cabeça trespassada dessa serpente, que se enrola ao redor de si mesma, o demiurgo assenta as bases da sua obra cósmica. Repetir esse gesto ritualmente equivale a reencenar o ato criador, o que os antigos procediam com freqüência em seus cerimoniais de fundação. Na Índia, por exemplo, "antes de colocar a primeira pedra... o astrólogo indica o ponto dos alicerces que está sobre a serpente que sustenta o mundo. O mestre-de-obras corta uma estaca do tronco de uma árvore khadira e enterra-a no chão com uma noz de coco, precisamente no sítio indicado, para assim fixar a cabeça da serpente". Esse local mágico corresponde ao Centro do Mundo, e a serpente assim fixada torna-se o seu próprio eixo, a Axis Mundi.
Um belo exemplo desse procedimento mágico é o da construção das igrejas góticas. Projetadas por iniciados, elas se elevam em locais predeterminados, na confluência das linhas telúricas, os caminhos magnéticos que percorrem a Terra. Os cruzamentos entre as linhas telúricas são representações geográficas do Centro do Mundo. Todos os templos antigos, como microcosmos, eram construídos nesses pontos mágicos.
Em seus subterrâneos, encontra-se invariavelmente a chamada "fonte do dragão", símbolo do mar primevo onde habita a mítica serpente desde o princípio de todas as coisas. Imagem do próprio Universo, a sagrada edificação repousa sobre o corpo do animal sacrificado. Esse costume, se bem que completamente desprovido de seu significado original, ainda é observado nas cerimônias de colocação da pedra fundamental, antes da construção dos edifícios mais importantes.
Como protagonista do ato criador, o dragão estabelece-se como guardião do Centro, e por isso protege os locais reservados à iniciação, colocando-se como adversário dos candidatos a essa façanha. Daí os mitos comumente colocarem um dragão protegendo os lugares sagrados, opondo-se à aproximação dos heróis. Grande parte das vezes, assim como a serpente do Éden, eles guardam uma árvore mítica, símbolo do eixo do mundo. Uma vez que a iniciação só é possível no Centro, por ser o único lugar "real", quem quiser dele se aproximar deverá repetir o gesto divino, derrotando o dragão; se desejarmos efetuar uma leitura psicológica, tão ao gosto de alguns, diríamos que o homem deverá vencer seus próprios instintos primários, representados por esse animal mítico. Por causa desse caráter de opositor, função, aliás, necessária para se obter a iluminação, o dragão assumiu uma imagem maléfica perante o cristianismo, mas isso já seria de se esperar de qualquer doutrina de cunho dualista, onde a oposição se confunde com o princípio do Mal.
Sua identificação com as águas primordiais é fácil e imediata. Esse "mar" de que falam os mitos cosmogônicos não se refere ao oceano comum, e sim à massa indiferenciada, caótica, que antecede à ordem estabelecida pela criação; o dragão, símbolo do caos, é imanente a esse mar primevo.
A relação entre os dois símbolos pode ser expressa cabalisticamente: Theli, nome do grande dragão dos caldeus que circunda o Universo, em letras hebraicas escreve-se TLI = 400 + 30 + 10 = 440; quando sua crista (a letra inicial) é cortada, restam 40 ou o equivalente de Mem (água).
O guerreiro e o dragão constituem-se, em última análise, no produto de um splitting efetuado em relação à figura do deus descrito anteriormente; em vez de apresentar um ente que se dá em sacrifício, esta classe de mito mostra uma parte da divindade, significando a Ordem, em luta com a outra, que personifica a desordem ou Caos. Que tanto um quanto o outro são produtos dessa cisão, os antigos o sabiam perfeitamente. Tomando como exemplo a mitologia egípcia, temos que a tradição apresenta Tífon como símbolo dos princípios inferiores do corpo de Osíris, ou seja, do aspecto material do Universo, e a díada Osíris-Tífon como uma única divindade; o mesmo se dá com Vishnu e Shiva na mitologia hindu, enquanto que os iniciados sabiam que Ahriman fazia parte de Ahura Mazda, ou que Leviatã representava a sombra de Elohim. Ambos os aspectos são necessários para a formação do Universo observável, tal qual luz e sombra precisam misturar-se para tornar visíveis todas as coisas. A polarização dessas duas formas de Deus entre o Bem e o Mal, de caráter maniqueísta, pertence ao vasto mundo da superstição religiosa moderna.

(António Farjani - A Linguagem dos Deuses)

publicado às 20:42



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