(...) O cristianismo, que valorizou o trabalho em detrimento do gozo, é uma inversão dos valores da religiosidade primitiva por se opor à transgressão, ter repugnância pela transgressão, desconhecer a santidade da transgressão, e absolutizar o interdito, ao rejeitar a impureza, ao cassar o diabo — que tinha origem divina nas religiões anteriores — do mundo divino tal como ele o concebe. A astúcia do cristianismo foi prometer a possibilidade de o homem escapar do limite da descontinuidade individual, que é a morte, por uma descontinuidade que a morte não atinge, pela imortalidade de seres descontínuos, transformando, portanto, a continuidade do sagrado, do divino, na descontinuidade de um Deus criador. Perdendo seu caráter sagrado, com o cristianismo, o erotismo tornou-se imundo, a imundície que era preciso condenar e da qual era preciso libertar o mundo. “Relativamente, a transgressão, na orgia religiosa anterior ao cristianismo, era lícita: a piedade (piété) a exigia. À transgressão opunha-se o interdito, mas sua suspensão permanecia possível, à condição de observar os limites. O interdito, no mundo cristão, foi absoluto. A transgressão teria revelado o que o cristianismo velou: que o sagrado e o interdito se confundem, que o acesso ao sagrado é dado na violência de uma infração.” No cristianismo, o sagrado é identificado ao Bem, o interdito é afirmado, o mal torna-se falta, pecado, transgressão condenada, e o erotismo, perdendo seu caráter sagrado, é considerado profano, diabólico, imundo, impuro.
(Roberto Machado - FOUCAULT, a filosofia e a literatura)