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De tudo e de nada, discorrendo com divagações pessoais ou reflexões de autores consagrados. Este deverá ser considerado um ficheiro divagante, sem preconceitos ou falsos pudores, sobre os assuntos mais variados, desmi(s)tificando verdades ou dogmas.
O conhecimento constitui um elemento essencial da civilização, o grande fator dos seus progressos materiais. A crença orienta os pensamentos, as opiniões e, por conseguinte, a maneira de proceder.
Supostas, outrora, de origem divina, as crenças eram aceitas sem discussão. Sabemos hoje que provem delas mesmas, e isso não obsta que ainda se imponham. O raciocínio influi, em geral, tanto nas crenças como na fome ou na sede. Elaborada nas regiões subconscientes a que a inteligência não poderia chegar, uma crença se implanta no espírito, mas não se discute.
Essa origem inconsciente e, portanto, involuntária das crenças torna-as muito fortes. Religiosas, políticas ou sociais, têm sempre desempenhado na história um papel preponderante.
Quando se generalizam, constituem pólos atrativos, em torno dos quais gravita a existência dos povos de uma civilização. Claramente se qualifica a civilização, dando-lhe o nome da fé que a inspirou. Civilização búdica, civilização muçulmana, civilização cristã são designações muito justas, porquanto, ao tornar-se um centro de atração, a crença se transforma num centro de deformação. Os vários elementos da vida social: filosofia, artes, literatura, modificam-se para que a ela se possam adaptar.
As únicas verdadeiras revoluções são as que despertam as crenças fundamentais de um povo. Têm sido sempre muito raras. Ordinariamente, só o nome da convicção se transforma; a fé muda de objeto, mas nunca morre.
Não poderia morrer, pois a necessidade de crer constitui um elemento psicológico tão irredutível quanto o prazer ou a dor. A alma humana tem aversão à duvida e à incerteza. O homem atravessa, por vezes fases de ceticismo, mas nelas não se detém longamente; sente a ânsia de ser guiado por um credo religioso, político ou moral que o domine e lhe evite o esforço de pensar. Os dogmas, que se dissipam, são sempre substituídos. A razão nada pode contra essas indestrutíveis necessidades.
A idade moderna contém tanta fé quanto tiveram os séculos precedentes. Nos novos templos pregam-se dogmas, tão despóticos quanto os do passado, e eles contam fiéis igualmente numerosos. Os velhos credos religiosos que outrora escravizavam a multidão, são substituídos por credos socialistas ou anarquistas, tão imperiosos e tão pouco racionais como aqueles, mas não dominam menos as almas. A igreja é substituída muitas vezes pela taverna, mas aos sermões dos agitadores místicos que aí são ouvidos, atribui-se a mesma fé.
Se a mentalidade dos fieis não tem evoluído muito desde a época remota em que, às margens do Nilo, Isis e Hathor atraíam aos seus templos milhares de fervorosos peregrinos, é porque, no decurso das idades, os sentimentos, verdadeiros alicerces da alma, mantêm a sua fixidez. A inteligência progride, mas os sentimentos não mudam.
A fé num dogma qualquer é, sem dúvida, de um modo geral, apenas uma ilusão. Cumpre, contudo, não a desdenhar. Graças à sua mágica pujança, o irreal torna-se mais forte do que o real. Uma crença aceita dá a um povo uma comunhão de pensamentos de que se originam a sua unidade e a sua força.
Sendo o domínio do conhecimento muito diverso do terreno da crença, opô-los um ao outro é inútil tarefa, embora diariamente tentada.
Desprendida cada vez mais da crença, a ciência mantém-se, no entanto, ainda impregnada dela. Em todos os assuntos mal conhecidos, como, por exemplo, os mistérios da vida ou da origem das espécies, ela lhe é submissa, as teorias que nesses assuntos se aceitam, são meros artigos de fé, que só têm em seu favor a autoridade dos mestres que as formularam.
As leis que regem a psicologia da crença não se aplicam somente às grandes convicções fundamentais, que deixam uma marca indelével na trama da história. São também aplicáveis à maior parte das nossas opiniões quotidianas relativamente aos seres e às coisas que nos cercam.
A observação mostra que, na sua maioria, essas opiniões não têm por sustentáculos elementos racionais, porém elementos afetivos ou místicos, em geral de origem inconsciente. Se nós as vemos discutidas com tanto ardor, é precisamente porque elas pertencem ao domínio da crença e são formadas do mesmo modo. As opiniões representam geralmente pequenas crenças, mais ou menos transitórias.
Seria, pois, um erro supor que se sai do terreno da crença, quando se renuncia às convicções ancestrais. Teremos ensejo de mostrar que, as mais das vezes, ainda mais se aprofundou nesse domínio.
Sendo as questões suscitadas pela gênese das opiniões da mesma natureza que as relativas à crença, devem ser estudadas de modo análogo. Muitas vezes distintas nos seus esforços, crenças e opiniões pertencem, no entanto à mesma família, ao passo que o conhecimento faz parte de um mundo inteiramente diverso.
Vemos a grandeza e a dificuldade dos problemas tratados nesta obra. Neles pensei, durante anos, em vários pontos da terra, ora contemplando esses milhares de estátuas erigidas, há 80 séculos, à. gloria de todos os deuses que encarnaram os nossos sonhos; ora, perdido entre as gigantescas pilastras dos templos de estranhas arquiteturas, refletidos nas águas majestosas do Nilo ou edificados às margens tortuosas do Ganges. Como se admirariam essas maravilhas, sem pensar nas forças secretas que as fizeram, surgir do nada, donde nenhum pensamento racional as teria podido originar?
Como os acasos da vida me levaram a explorar ramos bastante variados da ciência pura, da psicologia e da história, pude estudar os métodos científicos que determinam o conhecimento e os fatores psicológicos geradores das crenças. O conhecimento e a crença, eis toda a nossa civilização e toda a nossa história.
(Gustave Le Bon - "As opiniões e as crenças)