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De tudo e de nada, discorrendo com divagações pessoais ou reflexões de autores consagrados. Este deverá ser considerado um ficheiro divagante, sem preconceitos ou falsos pudores, sobre os assuntos mais variados, desmi(s)tificando verdades ou dogmas.
Enigma maior é o tempo. Lá está Santo Agostinho: "O que é o tempo? Como são o passado e o futuro, uma vez que o passado já não é e o futuro ainda não é?" E o presente? Mal dizemos "agora" e já caiu no passado. "Se, portanto, o presente, para ser tempo, tem de cair no passado, como podemos dizer que algo é, se só pode ser com a condição de já não ser?"
As culturas experienciam o tempo, cada uma a seu modo: nas tradicionais, o tempo privilegiado é o passado - lá está o mito do paraíso perdido; na modernidade, privilegiou-se o futuro - o passado é simplesmente o ultrapassado, a caminho da realização das utopias.
Por causa das novas tecnologias, sobretudo ao nível dos média - telefona-se, navega-se na Web, lê-se documentos ao mesmo tempo que se envia mensagens -, a vivência do tempo actual é a do tempo concentrado, do "curto prazismo" e até do imediatismo cumulativo. Aí está o tempo chamado digital ou numérico, que nos dá a sensação de quase simultaneidade e ubiquidade: pense-se na comunicação quase simultânea para todo o mundo. Afinal, o que se encurtou mesmo foi o espaço, que não pode ser separado do tempo: no mesmo dia, uma reunião no Porto, outra em Paris, uma terceira em Londres, com regresso ao Porto. Mas é sobretudo a computação que nos dá a possibilidade de contacto quase instantâneo com todo o mundo. Tudo é mais rápido - leio em Philosophie Magazine: num século, a velocidade de comunicação aumentou 107%, a dos transportes pessoais 102%, a do tratamento da informação 1010%.
Fazemos muito mais coisas em muitíssimo menos tempo. Vem então a pergunta da semana passada, aqui: porque é que todos se queixam da falta de tempo, em vez de aumentar o tempo livre? Resposta do sociólogo Hartmut Rosa: com os transportes e a Internet também se acelerou a vida social e entrámos numa lógica infernal de competição, de tal modo que somos devorados pelo produtivismo e consequente consumismo. A aceleração acabou por tornar-se "o equivalente funcional da promessa religiosa de vida eterna". Impôs-se-nos a multiplicação constante e frenética das experiências e das actividades, numa corrida sem fim.
Isto tem consequências também na economia? É evidente que sim. Investir implica uma vivência do tempo longo: quanto tempo leva para se receber os frutos do investimento? Assim, "o marketing substituiu a deliberação política, com a finalidade de lucros especulativos", escreve o filósofo B. Stiegler. A velocidade tecnológica foi posta ao serviço da guerra económica: em vez do investimento, a especulação.
Antepondo o fazer ao ser, somos melhores e mais felizes? Não há, pelo contrário, a sensação generalizada de cansaço e de stress? Precisamente porque "vivemos num tempo completamente descontínuo, disperso. Sem calendário, sem liturgia, sem ritual, já não conhecemos ritmo. Já não há tempo que permita o recolhimento do pensamento. Multiplicou-se a dispersão inerente ao mundo do quotidiano", observa a filósofa Françoise Dastur.
Afinal, mesmo se já há empresas que promovem cursos de meditação ou semanas de retiro num mosteiro, é para que os funcionários se tornem mais competitivos, no regresso ao trabalho. As pessoas vão para a cama - a duração média do sono baixou duas horas desde o século XIX - com o sentimento de culpa, pois não acabaram a lista dos afazeres.
Voltando a Hartmut Rosa, a aceleração tornou-se o novo modo da nossa alienação social: ao contrário das Igrejas, que, se criaram sentimentos de culpa nos fiéis, ofereciam alívio aos pecadores - podiam confessar-se, Jesus morreu para libertar dos pecados -, "a nossa sociedade da aceleração produz culpados sem remissão nem perdão".
Não é, portanto, de uma nova relação mais atenta e serena com o tempo que precisamos? "Deixemos que as nossas vidas sejam guiadas por aquilo que eu chamo momentos de ressonância": o contacto com a natureza, passeando; escutando a grande música, a alma corresponde, o mesmo podendo acontecer com um grupo de amigos; diante do mar, é como se o mundo respondesse e as suas ondas fossem a respiração do mundo.
(Anselmo Borges)