Nietzsche escreveu sobre arte (literatura e música), moral e ética, religião, antropologia, teoria do conhecimento e também é autor de um romance filosófico, o Assim falou Zaratustra. A diculdade para ler Nietzsche está no fato de, além das traduções do alemão para o português nem sempre serem fiéis, ele não separar tais assuntos em obras sistematizadas (por exemplo, Kant - 1724/1804 - o fez), mas aqueles que querem escutar Nietzsche por meio de suas obras devem executar verdadeiro trabalho de pesquisador atento, pois são muitos os jogos de linguagem que ele usa, os trocadilhos e ironias, interjeições etc.
Mas Nietzsche era um filósofo do porvir, como gostava de salientar, e isso porque talvez, mais do que um Feuerbach (1804-1872) ou um Schopenhauer (1788-1860), tenha vivido na própria carne seu tempo e as mazelas da Europa de um de século com a Guerra Franco-Prussiana, que abalou as bases culturais do continente.
Enquanto Feuerbach desmisticava o cristianismo (em sua A essência do cristianismo) e Schopenhauer filosofava racionalmente (aos moldes ocidentais em O mundo como vontade e como representação) sobre a ideia oriental budista da ascese, e fazia avançar o pensamento humano para considerar a existência da possibilidade de uma "vontade cega" que guia o universo, concluindo, com isso, que não há sentido último no universo, que o mundo não está aí para o homem se deleitar com seus frutos (ao contrário, tudo está aí por mero acidente), não há planejamento, não há deuses por trás das coisas, o homem, grosso modo, para Schopenhauer, também é um acaso da "vontade cega" que comanda o universo.
NIETZSCHE E AS CRÍTICAS AO CRISTIANISMO
Nietzsche não é o primeiro autor moderno a criticar a religião cristã. Feuerbach, Marx (1818-1883) e Engels (1820-1895) já o tinham feito. Feuerbach mostra que foi o homem quem criou "deus" e não o contrário, e isso se deu quando o homem projetou em um ser imaginário tudo aquilo que desejava ter: imortalidade, sabedoria, onipresença, onipotência e onisciência.
Marx mostrou que são as condições econômicas e materiais que condicionam as ideias do ser humano e que eles estão atrelados a seu horizonte histórico. Além disso, a sociedade, para Marx, é constituída pela luta de classes (que é o motor da história), sendo assim há uma luta entre proprietários dos meios de produção (burgueses) e operários (proletários), estes últimos são espoliados pelos patrões, que se beneficiam deles pela mais-valia (o lucro que o trabalhador produz e que vai para o bolso do patrão); logo Marx advoga pelo fim dessa luta, ou seja, a abolição das classes sociais, o socialismo. Isso para que todos tenham acesso às benesses da vida moderna (e não apenas alguns poucos que podem pagar por isso). Consequentemente, Marx afirma que a religião também desapareceria, pois "Deus" não passa de uma criação do homem para justificar a vida de sofrimentos que tem na Terra (com ideias como pecado e redenção ou sofrimento e recompensa no além).
Mas aí surge Nietzsche com outro foco crítico contra a doutrina cristã, a moral e sua gênese. E é para entender isso que não se poderia inescrupulosamente apresentar o autor sem seu contexto histórico e sem aqueles que o antecederam. Da mesma forma como é importante avisar àqueles que tomam primeiro contato com Nietzsche e suas polêmicas declarações de que ele não conflita apenas uma das igrejas cristãs, mas todas.
CONTRAPOSIÇÃO: A ÉTICA CRISTÃ NEGA A VIDA NA TERRA
Para Nietzsche, o Ocidente, adotando a ética cristã, negou a vida real (material). Então, segundo ele, a doutrina judaico-cristã, com o conceito de "Deus castigador", moralista e juiz de homens como no Antigo Testamento, serviu apenas como um "cabresto". Jesus, com ideias como "ressurreição" e "mundo melhor" após a morte, apenas contribuiu para que todos se penitenciassem para escapar do pecado original. Mas esse pecado é impossível para Nietzsche quando ele pressupõe que o homem não tem "alma" (no sentido de algo que sobrevive após a morte) e que "Deus" não existe fora da mente humana.
O homem, então, é concebido apenas pela força da natureza e se perece com a morte. Caso isso seja verdade, infere Nietzsche que o "pecado" não passa de invenção que alimenta o medo (medo de morrer e ir para o "inferno"), medo este que é o fundamento da moral cristã. Em sua Genealogia da Moral, Nietzsche afirma que primeiramente a moral foi criada para impedir o homem de cair no niilismo e para dar explicações para a vida e seus sofrimentos. Entretanto, seu principal fator de fundamentação se constituiu no medo (NIETZSCHE, Genealogia da Moral In: Os Pensadores, p. 333). Quer dizer, o que o autor percebe de nocivo aí é que não há nenhuma relação de amor ou gratuidade com um suposto "Deus", o que há é o culto de "Deus" pelo homem porque o homem é um "covarde da vida". Teme suas mazelas e se esconde atrás de "Deus", que serve como muleta.
Nietzsche diz que é esse medo que gera a angústia diante da vida e acarreta a busca do perdão de "Deus". O problema para Nietzsche está no administrador do perdão, o sacerdote. Para Nietzsche, a lei, falando pela boca do sacerdote, transforma-se na moral vigente. Há uma máscara sobre "Deus", porque o sacerdote ganha para si o poder da lei, personificando "Deus". E, como a lei vem de um "Deus" que precisa de intérpretes (pois os textos bíblicos são a única manifestação que o crente aceita como tal), os homens elegem o sacerdote como o intérprete de "Deus". Mas aí surge outro problema, diz Nietzsche: se "Deus" é juiz dos homens e o sacerdote (padre ou pastor cristão) é seu porta-voz, então, na realidade, é o sacerdote quem julga os homens? Sim, diz ele, porque mesmo que "Deus" exista quem dá a última palavra é o sacerdote.
Assim, o sacerdote, se é quem controla o divino (porque interpreta a lei e "sabe" o que "Deus" quer dos homens), controlando o mundo terreno e controlando as coisas da Terra, controla o comportamento das pessoas por meio da moral. Assim Nietzsche mostra como os homens se deixam aprisionar por uma metafísica, ou seja, moral cristã, que é reproduzida de geração a geração e pela qual são punidos aqueles que desejam apontar suas contradições. É por isso, conclui Nietzsche, que a moral é uma "prisão" para os homens.
Quanto ao crente (cristão), este se deixa guiar passionalmente por acreditar que o sacerdote o levará ao paraíso com a graça de "Deus". Mas, para Nietzsche, esse "Deus" (como já foi dito) é uma muleta que serve para o homem amenizar sua fraqueza carnal diante do mundo real. Logo, Nietzsche rejeita a doutrina cristã, chamando-a de "moral de rebanho". "Moral de fracos" que se unem para louvar "Deus" (o cabresto) e pedir perdão a "ele". A moral cristã que arrebanha crentes para cultuar "Deus" recruta culpados para que "ele" seja reconhecido como tal. O menosprezo pelo homem que eleva "Deus" torna-o algoz do homem. Foi por isso que Nietzsche afirmou no Anticristo: "Deus está morto".
O PROBLEMA DA MORAL CRISTÃ
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Para superar isso é que Nietzsche propõe uma ética a ser praticada por aqueles que têm coragem de enfrentar a vida sem se ajoelhar diante dos cabrestos. Por quem não acredita no reino dos céus nem espera recompensas no além-mundo. Nietzsche queria, sim, a abolição do cristianismo. Pode-se argumentar que a ética nietzschiana é para aqueles que se sentem gratificados com a simples felicidade do próximo. Como exercício de ilação pode-se inferir que aqueles que pensam assim perdoariam ou não de acordo com sua consciência (com o sentimento de bem-estar consigo mesmo) e não a partir dos padrões morais vigentes ou por causa da vontade da igreja ou do sacerdote e muito menos por medo do castigo divino.
Para Nietzsche, foi o ideal ascético (a vontade de se purificar) o principal motivo que levou ao surgimento da moral. Por isso ela é (aparentemente) uma autoridade superior à qual se obedece não porque ordene o que é "melhor", mas simplesmente porque ordena e questioná-la já é por si uma imoralidade. É o medo perante essa "inteligência" superior que ordena, é o medo de um poder incompreensível e impreciso de qualquer coisa que ultrapassa o individual, um medo que está impregnado de superstição, como diz em O crepúsculo dos ídolos (p. 69): "Em todos os tempos quis-se melhorar o homem; a rigor é o que chamamos de moral. Porém sob a palavra moral se ocultam tendências muito diferentes.
A domesticação do animal humano e a criação de uma espécie determinada de homens são um melhoramento e essas noções zoológicas, as únicas que expressam realidades, porém realidades que o melhorador típico, o sacerdote, ignora e não quer saber nada a respeito. Chamar melhoramento à domesticação do animal soa aos nossos ouvidos quase como uma brincadeira. Contudo, duvido muito que o animal acabou melhorando. É debilitado, é efeito menos perigoso; com um sentimento deprimente do medo, com a dor e as feridas faz-se dele um animal enfermo. O mesmo sucede ao homem domesticado, que o sacerdote tornou melhor".
Nietzsche diz que o homem era uma "caricatura", um "aborto" e que assim é que foi feito um pecador. "Estava enjaulado, fora encerrado no meio de ideias espantosas. Doente e miserável se aborrecia a si mesmo, estava repleto de ódio contra os instintos da vida, repleto de desconfiança em relação a tudo que permanecia sendo forte e feliz. Em uma palavra: era cristão" (Idem).
![]() | "Em todos os tempos quis-se melhorar o homem; a rigor é o que chamamos de moral. Porém, sob a palavra moral se ocultam tendências muito diferentes. A domesticação do animal humano e a criação de uma espécie determinada de homens são um melhoramento e essas noções zoológicas as únicas que expressam realidades, porém realidades que o melhorador típico, o sacerdote, ignora e não quer saber nada a respeito." |