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TORQUEMADA E A SANTA INQUISIÇÃO

por Thynus, em 29.04.13

 

 


Com o intuito de ser mais justo possível para com a Inquisição, tentei examiná-la através de seus próprios depoimentos. Confiei, exclusivamente, em fontes católicas ao colher o material para este capítulo, e, por conseguinte, considerarei a Inquisição sob o ângulo daqueles que a patrocinaram, que a defenderam no passado e estão prontos, em teoria ao menos, a defendê-la hoje.
Os primeiros cristãos, fiéis aos ensinamentos de Cristo, opunham-se a qualquer espécie de violência. Tertuliano negava o direito a qualquer cristão de servir no exército. “Certamente não faz parte da religião”, dizia ele, “forçar a religião. Ela deve ser abraçada livremente e não por coação.” Era esta também a doutrina de Orígenes e de Lactâncio. “Não há justificação para a violência”, escrevia Lactâncio, “pois a religião não pode ser imposta pela força.”
No século IV, contudo, houve uma mudança nos corações dos cristãos. Agostinho assegurava que em “alguns” casos era permitido matar descrentes. Optato estendia a pena de morte a “todos” os hereges, Agostinho e Optato são, hoje, venerados como santos. Na cidade de Verona queimaram vivos cerca de sessenta homens num mês.
Os bispos tinham ordens de assalariar informantes, cujo dever era denunciar todos os cristãos suspeitos, isto é, todos aqueles cuja maneira de viver divergia da dos católicos. Os bispos, então, examinavam estes cristãos e os puniam como achavam conveniente. Os bispos que deixassem de contribuir com suas quotas de hereges queimados eram, por ordem do Papa, depostos de seus cargos; quando mostravam muita clemência para com suas vítimas, eram ameaçados de prisão, sob a acusação de heresia. Deste modo, assegurava o Papa um constante fornecimento de seres humanos “para a glória do Senhor”, e casualmente também para a sua riqueza pessoal, pois que a Igreja confiscava a propriedade dos condenados. Os bispos, com todo o seu zelo, não eram nem suficientemente sedentos de sangue, nem bastante eficazes para satisfazer ao Papa.
A fim de descobrir todos os pecadores e exterminar todo o pecado da cristandade, eram necessários espiões treinados. De acordo com esse preceito, o Papa aceitou o auxílio de dominicanos. Estes, como estão lembrados, eram os sectários de Domingos, que santamente advogava o batismo pela espada. Agora, o Papa Gregório IX tirava vantagem desse treinamento dos dominicanos na arte da selvageria eclesiástica, e, com a sua ajuda, transformou a Inquisição num negócio poderoso e lucrativo. Numa carta que Gregório dirigiu aos dominicanos, delineava os seus deveres do seguinte modo:

“Logo ao chegar a uma cidade, convoquem os bispos, o clero e o povo, e preguem um solene sermão de fé; depois, façam uma seleção de certos homens de boa reputação para estes os ajudarem no julgamento dos hereges e de suspeitos denunciados nos seus tribunais. Todos os que, em exame, forem achados culpados ou suspeitos de heresia, serão obrigados a prometer obediência absoluta aos comandos da Igreja. Se eles recusarem, devem processá-los.”

Por que estava o Papa tão sedento de hereges? Só por uma razão: os hereges se opunham ao esplendor do Papa. Representavam os socialistas cristãos e os anarquistas filosóficos do mundo medieval. Foram os antepassados espirituais de Emerson e de Tolstoi. Havia vários grupos, tendo todos uma coisa em comum: acreditavam na doçura de Cristo e odiavam a arrogância dos padres. “Cristo”, diziam “não tinha onde descansar a cabeça, ao passo que os Papas vivem num palácio. Cristo rejeitava domínios terrestres, enquanto os Papas os exigem. O que tem o papado romano, com sua sede de riquezas e honrarias, em comum com o evangelho de Cristo?” Como aconteceu mais tarde com a seita dos quacres, os hereges pregavam contra a opressão, o ódio, a pena capital e a guerra. Suas teorias radicais, escreve Vacandard, “não eram só anticatólicas, mas antipatrióticas e anti-sociais”. E, assim, matando todos esses amantes da paz a Igreja agia simplesmente em defesa própria o crescimento de suas idéias devia ser embargado a todo custo. Ainda que fosse à custa da morte!

É interessante notar que esta não é a opinião de um padre medieval, e sim de um historiador católico moderno. O espírito da Inquisição, como parece, ainda está bem vivo em certos lugares, mesmo em nossos dias.

A Inquisição tomou a si o encargo de perseguir não somente os hereges, isto é, os cristãos que se desviassem do caminho ortodoxo, mas também os maometanos e os judeus. Os maometanos e os judeus que viviam na Europa cristã e particularmente na Espanha eram considerados bons combustíveis para a santa fogueira... não tanto porque seus corações se achassem repletos de pecados, mas porque seus cofres se achavam cheios de ouro. Primeiro, eram eles compelidos a aceitar a religião cristã, e depois eram assados vivos, na suposição de que fossem “maus” cristãos.
O homem que mais sobressaiu em zelo nas incinerações de maometanos e judeus foi Tomás de Turrecremata, ou como é mais geralmente conhecido, Tomás de Torquemada. Se Gregório IX foi o pai da Inquisição, Torquemada foi o seu produto mais perfeita. Tinha paixão por três coisas: oração, dinheiro e assassínios. Era um beato convicto — um dos animais humanos mais perigosos. Pensava que satisfazia a vontade de Deus matando seus semelhantes. Era um louco piedoso, investido pelo Papa com poder de dar vazão a toda sua loucura. Durante sua presidência da Inquisição, queimou cerca de dois mil homens e mulheres (alguns calculam o número em oito ou nove mil), e quebrou os ossos de dezenas de milhares de seres, com instrumentos de tortura. Servia igualmente de acusador, testemunha e juiz, e freqüentemente “dava uma ajudazinha” na câmara de tortura. Examinemos, rapidamente, o processo da Inquisição sob a direção de Torquemada.
Para começar, o inquisidor expedia uma intimação geral, ordenando que os hereges aparecessem à sua presença e abjurassem suas heresias dentro do prazo de trinta dias. Bem poucos, naturalmente, denunciavam-se espontaneamente. Ao findar o “período de graça”, todo católico era incitado a denunciar todos os habitantes da cidade que suspeitasse de heresia. Para culpar alguém, bastavam duas testemunhas e essas testemunhas podiam ser ladrões ou assassinos, desde que fossem cristãos confessos. Ao acusado, porém, não era permitido ter nem advogados, nem testemunhas. E, ainda mais, os nomes dos espiões e das testemunhas para a Inquisição não eram revelados ao acusado. Com todas as cartas assim dispostas contra ele, o prisioneiro achava-se virtualmente impossibilitado de provar a falsidade da acusação. Se se confessava cristão, era mandado para a prisão; se, por outro lado, insistisse em sua inocência, era levado à câmara de tortura.
Poder-se-ia escrever um livro interessante, embora bem pouco agradável, sobre os instrumentos de tortura empregados pelos inquisidores a serviço do Senhor. Mencionarei, rapidamente, apenas dois ou três.
Primeiro havia o Strappado. Vacandard, o moderno apologista da Inquisição, descreve-o como segue: “O prisioneiro, com as mãos amarradas para trás, era levantado por uma corda que passava por uma roldana, e guindado até o alto do patíbulo ou do teto da câmara de tortura; em seguida, deixava-se cair o indivíduo e travava-se o aparelho ao chegar o seu corpo a poucas polegadas do solo. Repetia-se isso várias vezes. Os cruéis carrascos, às vezes, amarravam pesos nos pés da vítima, a fim de aumentar o choque da queda.
“Depois havia a tortura pelo fogo. Colocavam-se os pés da vítima sobre carvão em brasa e espalhava-se por cima uma camada de graxa, a fim de que este combustível estalasse ao contato com o fogo. Os inquisidores estavam ali enquanto o fogo martirizava a vítima, e incitavam-na, piedosamente, a aceitar os ensinamentos da Igreja em cujo nome ela estava sendo tratada tão delicadamente e tão misericordiosamente. Para que houvesse um contraste com a tortura pelo fogo, também praticavam a da água.

“Amarrando as mãos e os pés do prisioneiro com uma corda trançada que lhe penetrava nas carnes e nos tendões, abriam a boca da vítima à força, despejando dentro dela água até que chegasse o ponto de sufocação ou confissão.”

Em suma, todas as imaginações bárbaras do espírito de Dante, quando escreveu o Inferno, foram incorporadas em máquinas reais que cauterizavam as carnes, esticavam os corpos e quebravam os ossos de todos aqueles que recusavam crer na branda misericórdia dos Inquisidores.
E agora citemos mais uma vez o Sr. Vacandard:

“De acordo com a lei, tortura só podia ser infligida uma vez, mas essa regulamentação era burlada facilmente ... quando desejavam fazer repetir a tortura, mesmo depois de um intervalo de alguns dias, infringiam a lei, não alegando que fosse uma repetição, mas simplesmente uma continuação da primeira tortura... Esse jogo de palavras dava margem à crueldade e ao zelo desenfreado dos inquisidores.”

Se, por fim, sob a dor que a tortura causava, a vítima prometesse ser um bom católico, era posta, geralmente, em prisão perpétua. Se, porém, recusasse a atirar-se nos braços da Igreja, era entregue às chamas. Teoricamente, como já observei, a Igreja fazia questão de dizer que nada tinha com o assassínio de suas vítimas. Apenas “retirava sua proteção” dessas criaturas e entregava-as à justiça. Tecnicamente falando, suas mãos ficavam limpas. Mesmo os historiadores modernos tentam salvá-la de todas as vergonhas em relação aos assassínios de homens e mulheres que cometeu. José de Maistre, escrevendo no século XIX, foi suficientemente ingênuo para fazer a seguinte observação surpreendente:

“Quando examinarmos a Inquisição, é preciso separar e distinguir muito cuidadosamente o papel da Igreja e o do Estado. Tudo o que há de horrível e cruel neste Tribunal, especialmente sua pena de morte, é devido ao Estado... Toda a clemência, por outro lado, que tem um papel tão preponderante no tribunal da Inquisição deve ser atribuída à Igreja.”

Na realidade, infelizmente, a Igreja não só condenava as suas vítimas, como também insistia sobre suas mortes. De acordo com uma lei estabelecida pelo Papa Inocêncio IV, o Estado era obrigado a queimar, dentro de um período de cinco dias, todos os prisioneiros condenados que a Igreja lhe confiasse. Todos aqueles príncipes que se recusassem a matar os condenados hereges eram prontamente excomungados pela Igreja.
Mas a mancha mais negra da Inquisição era o tratamento bárbaro dos filhos dos condenados. Quando queimava um homem, a Igreja confiscava suas propriedades. Não permitia aos filhos herdar um único vintém. A esta regra, contudo, far-se-ia uma exceção importante. E esta exceção era ainda mais desumana do que a regra. Os filhos de pais hereges podiam herdar uma parte de suas propriedades, desde que espionassem e denunciassem seus progenitores à Inquisição. Esta lei incrível, estabelecida por Frederico II, foi reforçada no texto da carta por muitos inquisidores e particularmente por Torquemada. De fato, os pais da Igreja não só acreditavam nesta lei, como também se orgulhavam dela. O Papa Gregório IX dizia que fazia bem a seu coração ver como as crianças se voltavam contra seus pais, por amor a Deus. “Deixai vir a mim os pequeninos”, dizia Cristo. E a santa irmandade da Inquisição respondia: “Sim, na verdade, Senhor! Nós deixaremos sofrer os pequeninos, de maneira que eles possam ir a Vós!”

Um dos principais atos da Inquisição, e o acontecimento culminante na vida de Torquemada, foi a expulsão dos judeus da Espanha. Em sua juventude, Torquemada foi o confessor da Princesa Isabel, que mais tarde veio a ser esposa do Rei Fernando. Tal como seu confessor fanático, Isabel era vingativa, estúpida, bárbara e devota. Prometera a Torquemada que devotaria sua vida inteira à exterminação da heresia.
Quando se tornou rainha da Espanha, encontrou um aliado entusiástico em seu marido. Fernando foi um dos reis mais cobiçosos. Era ávido em queimar os judeus porque suas propriedades, quando confiscadas pela Igreja, eram divididas entre os padres e ele. Quando Torquemada veio queixar-se a ele de que todos os judeus deviam ser expulsos da Espanha, escutouo avidamente, pois a expulsão dos judeus significaria uma pilhagem, por atacado, aos seus bens e ao seu ouro, uma parte substancial da qual tornar-se-ia ,sua propriedade pessoal. Com um simples golpe de pena poderia tornar-se o homem mais rico da Europa. Isabel, não sendo mais do que uma argila maleável nas mãos de um velho padre confessor,aderiu prontamente a seus planos. O decreto da expulsão dos judeus foi elaborado e apresentado aorei para ser assinado.
Entrementes, os judeus lançavam mão de tudo o que estava ao seu alcance para abrandar o coração do rei. Jogados de um lado para outro pelos ventos da intolerância religiosa, eles eram expulsos de uma região para outra. Tudo o que pediam agora ao Rei Fernando era que os deixasse em paz. Mandaram-lhe os oradores mais eloqüentes. Lembraram-lhe que eles o tinham ajudado a pagar as despesas de suas guerras com os mouros. Ofereceram-lhe um presente de 30.000 ducados — uma soma tentadora aos olhos do cobiçoso príncipe. Fernando, nada inclinado a escutar seus argumentos, estava pronto a considerar o ouro, quando Torquemada, precipitando-se no palácio real, segurando um crucifixo no ar, em suas mãos enrugadas — nesse tempo ele já tinha mais de setenta anos — berrou: “Eis aqui aquele Judas, que vendeu Jesus por 30 moedas de prata! Estais vós porventura pronto a vendê-lo por 30.000 moedas de prata novamente?” Não, trinta mil não era bastante. Torquemada subjugara a vontade do rei e da rainha. O edito contra os judeus foi assinado em 31 de março de 1492. De acordo com este edito, todo judeu residente em território espanhol deveria ser batizado dentro de quatro meses ou deixar o país para sempre. Trezentos mil preferiram o, exílio ao cristianismo. Permitia-se-lhes vender suas propriedades, mas os compradores esperavam astuciosamente até o último momento, quando podiam ditar seus próprios preços. Bernaldes, um autor contemporâneo, afirma ter visto judeus deixarem um palácio por um burro, e um vinhedo por uma peça de linho. Aos exilados era proibido levar qualquer porção de ouro consigo.
Tendo assim roubado os judeus e os lançado para fora do país, os cristãos regozijaram-se com suas barbaridades. “Eis aqui”, gritava o irmão dominicano Bleda, “o acontecimento mais glorioso da Espanha, desde o tempo dos apóstolos; agora a unidade da religião está assegurada; uma era de prosperidade está, realmente, para chegar.” Mas a esperada alvorada de prosperidade jamais chegou. Pelo contrário, a expulsão dos judeus marcou o começo do ocaso da prosperidade espanhola.
Ao serem expulsos da Espanha, os judeus não sabiam então para onde se dirigir, em busca de proteção. Um grande número deles lançou-se sob a misericórdia de Manuel, rei de Portugal. Mas o rei chamava-se a si próprio de cristão piedoso, Pilhou o que os judeus conseguiram salvar e ordenou-lhes então que deixassem o país. Esse “rei misericordioso” fez a sua manobra bem-feita. Roubou não só os bens dos judeus, como também seus filhos, pois expediu uma ordem secreta para seqüestrar todas as crianças judias menores de 14 anos, a fim de que fossem batizadas e educadas como cristãos.

Quanto a Torquemada, alimentava os fogos sagrados lançando nas chamas várias centenas de hereges, “Sua crueldade”, dizem seus admiradores, “explica-se pelo seu sincero desejo de salvar os hereges.” Tal como seu amado Tomás de Aquino, “ele consolava seu coração entristecido, refletindo que agia pelo bem da Igreja”. Pois convém notar que Torquemada ignorava que fosse cruel. Como todos os outros inquisidores, ele mutilava e assassinava suas vítimas misericordia et justitia — com misericórdia e justiça. Essa era a frase dos inquisidores quando sentenciavam suas vítimas a morrer queimadas.
Torquemada retirou-se da Inquisição com setenta e quatro anos e morreu dois anos depois, em 1498.
A Inquisição, porém, continuou até o século, XIX.

(Henry Thomas - "A HISTÓRIA DA RAÇA HUMANA")

 

publicado às 20:51



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