A violência é um fenômeno social presente no cotidiano de todas as sociedades sob várias formas. Em geral, ao nos referirmos à violência, estamos falando da agressão física. Mas violência é uma categoria com amplos significados. Hoje, esse termo denota, além da agressão física, diversos tipos de imposição sobre a vida civil, como a repressão política, familiar ou de gênero, ou a censura da fala e do pensamento de determinados indivíduos e, ainda, o desgaste causado pelas condições de trabalho e condições econômicas. Dessa forma, podemos definir violência como qualquer relação de força que um indivíduo impõe a outro.
Consideremos o surgimento das desigualdades econômicas na história: a vida em sociedade sempre foi violenta porque, para sobreviver em ambientes hostis, o ser humano precisou produzir violência em escala inédita no reino animal. Por outro lado, nas sociedades complexas, a violência deixou de ser uma ferramenta de sobrevivência e passou a ser um instrumento da organização da vida comunitária. Ou seja, foi usada para criar uma desigualdade social sem a qual, acreditam alguns teóricos, a sociedade não se desenvolveria nem se complexificaria. Essa desigualdade social é o fenômeno em que alguns indivíduos ou grupos desfrutam de bens ou valores exclusivos e negados à maioria da população de sua sociedade. Tal desigualdade aparece em condições históricas específicas, constituindo-se como um tipo de violência fundamental para a constituição de civilizações. Por outro lado, as sociedades tribais ditas “primitivas” não possuem tal tipo de desigualdade, ou seja, nas tribos a violência da apropriação dos bens por uma minoria é desconhecida. Nessas sociedades, todavia, a violência ganha um caráter físico muito mais acentuado, tanto na grande importância cultural que a guerra tem – os tupis são um exemplo clássico – quanto na instituição de rituais de iniciação à vida social, que, segundo o antropólogo Pierre Clastres, são verdadeiros rituais de tortura.
Nesse sentido, podemos observar que a violência é um fenômeno inerente a todas as sociedades humanas, apesar de ganhar contornos próprios em cada uma.
Como temática, a violência sempre esteve presente na reflexão filosófica, assim como na produção histórica. Na Filosofia, Thomas Hobbes, no século xvii, observava a vida em sociedade como uma resposta à natureza violenta do homem. Para ele, o ser humano era uma criatura naturalmente violenta – “O homem é o lobo do homem” – e precisava do controle do Estado na figura de um soberano forte para que a natural violência do individualismo não arruinasse a vida em sociedade. A tese de Hobbes serviu para justificar o Absolutismo, mas teve também grande influência sobre a Filosofia ocidental posterior a ele. O pensamento de Karl Marx no século xix, por exemplo, tem algumas similitudes com o de Hobbes nessa questão. Só que para Marx, a violência do ser humano não é uma característica natural, mas social, ditada pela desigualdade no acesso aos meios de produção.
De qualquer forma, visto que a sociedade tem como base a cooperação entre os indivíduos, a violência, o conflito, que é o contrário da cooperação, torna-se o limite da vida em sociedade. Limite após o qual a comunidade deixa de existir. Na sociedade a violência tanto pode ser resultado do descontrole individual, em que o indivíduo foge às regras sociais, como pode ser um instrumento de poder para submeter os mais fracos. Para os sociólogos, uma forma característica de violência social é a chamada violência-anomia, sendo anomia a situação em que o sistema de valores de uma sociedade perde sua força, e esse sistema passa a ser desrespeitado por seus membros. Assim, o que caracteriza a violência-anomia são as atitudes agressivas de determinados grupos em uma sociedade em que as normas e a lei não estão em vigência. Isso pode levar à dissolução da sociedade. Tal situação pode ser amplamente vista na América Latina, onde, na Colômbia, por exemplo, a concorrência de Estado, traficantes e guerrilhas cria em algumas regiões uma situação de caos social, em que a lei e as regras sociais não têm valor.
Já na historiografia, a violência é um dos temas mais antigos, abordada desde a Antiguidade, tanto nas descrições de guerras quanto na História do poder. Além disso, toda a História Política é um manancial de representações de violência, ainda que seus historiadores não reconhecessem isso. Atualmente, a violência é tema de estudos os mais diversos, desde a criminalidade até o cotidiano, passando pelas abordagens das relações de gênero. A presença da violência ao longo da história humana é bastante visível na enorme quantidade de conflitos que geram rupturas na vida social. Conflitos esses, revoluções, revoltas, guerras, que sempre foram temática privilegiada pelos historiadores.
A partir do final do século xx, a violência começou a ganhar novos contornos na historiografia. Na obra de Michel Foucault Vigiar e punir, por exemplo, a violência é vista em sua forma de punição legal à criminalidade na Europa Moderna. Observando os sistemas punitivos dessa região, Foucault percebe que o que de início era violência física passou ao longo do tempo a se constituir em um disciplinamento do comportamento e dos corpos sem recorrer à agressão física. Assim, se na Idade Média a punição normal para os crimes mais variados era o suplício público, a tortura pública que fazia dos criminosos um aviso, no final da Idade Moderna os suplícios – considerados então contraproducentes – foram substituídos pelas prisões, onde os criminosos eram controlados tanto no corpo quanto no comportamento. Foucault fez, assim, da violência uma fonte para a compreensão das mudanças nas estratégias de controle social de determinadas sociedades, vendo a função política dos castigos e sua mudança ao longo da história.
Na historiografia brasileira, por sua vez, um dos campos que mais têm privilegiado a violência como tema são os estudos da História da escravidão. E não poderia ser diferente, uma vez que a escravidão tem sempre a possibilidade do castigo, do conflito entre senhor e escravo, do uso da força por ambas as partes. O trabalho de Silvia Hunold Lara, Campos da violência, é exemplo de obra que se propõe a estudar o castigo corporal no contexto da sociedade escravista, assim como as relações sociais entre escravos e senhores daí resultantes. Para a autora, o castigo tinha função privilegiada na manutenção da submissão dos escravos. Ou seja, o castigo corporal era um poderoso instrumento de controle social gerenciado pelos senhores. A violência física, assim, era uma forma de disciplinar o trabalhador a partir do controle de seu corpo. Tal violência andava lado a lado com uma violência cultural na doutrinação religiosa, que servia, por sua vez, para o controle do espírito.
Para o professor de História, hoje, a violência é tema inevitável, tanto por sua ocorrência em todos os períodos históricos quanto pela presença muito comentada em nossa sociedade. Mas muitas vezes é difícil identificarmos a violência na História. Se os castigos corporais da escravidão e o holocausto judeu na Segunda Guerra Mundial são temas em que a violência é facilmente percebida, a imposição de valores de um povo sobre outro nos processos de colonização, o patriarcalismo da maioria das sociedades e a própria desigualdade econômica são fenômenos violentos que passam muitas vezes despercebidos. Precisamos enfatizar o caráter violento do processo histórico, levando os estudantes a perceber a violência no cotidiano para além da criminalidade, que em si é apenas um aspecto da violência econômica de nossa sociedade. O professor de História deve criticar a banalização da violência, o sensacionalismo da mídia e o próprio discurso, ingênuo, da classe média. Trata-se de um discurso que, no geral, não aprofunda os componentes sociais e econômicos da violência. O professor pode ainda trabalhar a violência em sua relação com os regimes ditatoriais, que usam da tortura física e psicológica, entre outras diversas formas de repressão, e com o etnocentrismo, que pode ser causador de numerosas formas de violência.
(Kalina Vanderlei Silva, Maciel Henrique Silva - "Dicionário de conceitos históricos")
