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Estrangeiros são perigosos. Será?

por Thynus, em 29.03.13

Aconteça o que acontecer na história das cidades, um aspecto permanece constante: elas são espaços onde os estrangeiros se hospedam e se movem em estreita proximidade entre si. A ubíqua presença de estrangeiros, sempre à vista e ao alcance de todos, introduz grande dose de incerteza na vida dos moradores das cidades, e sua presença é fonte de uma prolífica e incessante ansiedade, de uma agressividade em geral enrustida, que irrompe de tempos em tempos.
Os estrangeiros também propiciam uma válvula de escape, uma solução conveniente e cômoda para nossos temores inatos do desconhecido, do incerto, do imprevisível. Expulsando os estrangeiros de nossas casas e ruas, fazemos uma espécie de exorcismo dos fantasmas aterradores da insegurança que nasce da incerteza, ao menos por um instante: queimamos no fogo, pelo menos em efígie, o monstro fugidio que nos irrita e horroriza.
No entanto, esses exorcismos não deixam incólume nossa vida líquido-moderna, e com certeza não a reformam: ela continua a exalar insegurança, permanece obstinadamente incerta, errática e caprichosa. Todo alívio tende a ser passageiro, e mesmo as esperanças associadas às medidas mais duras contra os supostos transmissores de incertezas são frustradas assim que surgem.
Mas essa consideração não ajuda em nada a sorte dos estrangeiros. Eles são, por definição, um agente movido por intenções que no máximo podemos imaginar, mas nunca afirmar em definitivo. Em todas as equações que compomos quando deliberamos sobre o que fazer e como pôr em prática nossas decisões, o estrangeiro é sempre uma variável desconhecida. Um estrangeiro é, afinal, um “estranho”, um ser bizarro cujas intenções e reações podem ser completamente diferentes do comportamento das pessoas normais (comuns, familiares). E assim, mesmo quando eles não agem de modo agressivo ou explicitamente ofensivo, os estrangeiros (os estranhos) causam desconforto: sua simples presença torna exorbitante a já intimidadora tarefa de prever os efeitos dos nossos atos e nossas chances de sucesso. No entanto, dividir espaço com os estrangeiros, viver perto deles (em geral não convidados e não desejados), é uma situação difícil para os citadinos, situação da qual chega ser impossível escapar.
Dado que a proximidade com os estrangeiros é uma sina que os urbanos não podem negociar, deve-se pensar, tentar e testar um modus vivendi para tornar palatável a convivência e facilitar a vida. O modo como resolvemos essa necessidade é uma questão de escolha. Fazemos escolhas todos os dias: por obrigação ou omissão, de propósito ou por falta de opção; por uma decisão consciente ou por seguir cega e mecanicamente os costumes; por deliberação e demoradas discussões, ou apenas seguindo padrões confiáveis porque estão na moda. Desistir completamente da busca de um modo melhor de convivência com o estranho e o estrangeiro é uma das escolhas possíveis. A “mixofobia” [palavra derivado do grego mixis (mistura) e phobos (fobia, medo intenso). Refere-se ao medo incondicional da mistura e descreve a forma dominante do racismo associado ao nacionalismo] é uma delas.
A mixofobia manifesta-se no impulso de construir ilhas de similaridade e identidade em meio a um oceano de diversidade e diferença. As razões da mixofobia são banais, fáceis de entender, mas não necessariamente fáceis de esquecer. Como sugeriu Richard Sennet, “o sentimento de ‘nós’, que exprime um desejo de ser semelhante, é uma forma de os homens evitarem a necessidade de olhar fundo dentro de si mesmos”. A mixofobia contém uma promessa de conforto espiritual: a perspectiva do sentimento de grupo que torna redundante todo esforço de compreender, negociar e conciliar.

É inato ao processo de formar uma imagem coerente da comunidade o desejo de evitar a
participação concreta e real. A percepção da existência de laços comuns sem uma experiência
comum ocorre, em primeiro lugar, porque os homens temem a participação, temem os perigos e os desafios, temem a dor (The Uses of Disorder: Personal Identity and City Life)

O impulso em direção a uma “comunidade de similaridade” é um sinal de recuo não só da alteridade externa como também de um compromisso com a interação interna, cheia de vida, mas turbulenta, engajada, embora sem dúvida enfadonha.
Escolher a fuga pela mixofobia envolve uma consequência deletéria e insidiosa: quanto mais a estratégia se autoalimenta e autoperpetua, menos eficiente ela é. Quanto mais tempo as pessoas passam na companhia de “suas iguais” – interagindo de modo superficial e casual para evitar o risco da incompreensão e a necessidade ainda mais onerosa e incômoda de traduzir diferentes universos de significado –, é mais provável que “desaprendam” a arte de negociar significados comuns e modos de convivência satisfatórios para todos. Já que se esqueceram das habilidades necessárias para conviver com a diferença, ou por negligência nunca as aprenderam, elas veem a perspectiva de enfrentar face a face os estrangeiros ou estranhos com crescente apreensão.
Quanto mais alheios, desconhecidos e incompreensíveis são os estrangeiros, mais eles parecem assustadores, pois a comunicação recíproca que eventualmente poderia acomodar e assimilar sua “alteridade” com relação ao nosso mundo-da-vida se esvai e falha. A tendência a escolher um ambiente homogêneo, territorialmente isolado, pode ser incentivada pela mixofobia; e a prática de uma separação territorial é a fonte que alimenta e preserva esse medo.
Tudo começou nos Estados Unidos, mas escapou para a Europa e agora se espalhou pela maioria dos países europeus: a tendência dos moradores urbanos com melhores condições financeiras a pagar para fugir das ruas apinhadas das cidades, onde tudo pode acontecer e muito pouco se pode prever, instalando-se em “comunidades muradas”, conjuntos habitacionais cercados, com a entrada rigorosamente controlada, cheios de guardas, circuitos internos de TV e alarmes contra invasores. Os poucos felizardos que compram moradias nesses condomínios rigorosamente guardados pagam fortunas pelos “serviços de segurança”, isto é, para banir de qualquer mistura. Condomínios fechados são pequenas coleções de casulos privados suspensos num vácuo espacial.
No interior dos condomínios fechados as ruas estão quase sempre vazias. Assim, se alguém que não “pertence” ao lugar, se um estranho for visto na calçada, isso logo será detectado como evento fora do normal antes que ocorra um trote ou um dano. Na verdade, qualquer um que seja visto passando perto de sua janela ou de sua porta pode cair na categoria de estranho, essa gente assustadora, cujas intenções ou cujos próximos passos ninguém sabe prever ao certo. Qualquer um que você desconheça pode ser um ladrão ou um molestador, um intruso cheio de más intenções.
Afinal, vivemos na época dos telefones celulares (para não falar no MySpace, no Facebook e no Twitter): com os amigos a gente troca mensagens eletrônicas em vez de visitas, todas ou quase todas as pessoas que conhecemos podem ser contatadas “on-line” e são capazes de nos informar previamente se estão pensando em nos visitar; dessa forma, se alguém bater na porta de sua casa ou tocar a campainha sem ser anunciado, este é um evento fora do normal, um sinal de perigo em potencial. Dentro do “condomínio fechado”, as ruas são mantidas vazias para que um estranho, ou alguém que se comporte como um estranho, nem sequer se arrisque a entrar.
O efeito secundário ou o corolário de esvaziar as ruas é que a expressão “condomínio fechado” se converte, para todos os fins práticos, num nome equivocado. Uma pesquisa publicada em 2003 pela Universidade de Glasgow afirma que “não há um desejo evidente de fazer contato com ‘a comunidade’ na área cercada e murada. O sentido de ‘comunidade’ é mais baixo nas áreas cercadas”. Por mais que os moradores (e seus agentes imobiliários) justifiquem suas escolhas, eles não pagam alugueis exorbitantes ou preços de compra exagerados para fundar ou viver numa “comunidade” – essa “bisbilhotice coletiva”, notoriamente intrusiva e obstrutiva que só abre os braços para nós a fim de nos manter pressionados como se fosse um fórceps de aço.
Ainda que digam e às vezes pensem de outra maneira, as pessoas pagam toda aquela soma de dinheiro com o intuito de se libertarem de qualquer companhia, salvo a que escolherem na hora que quiserem. No fundo, pagam pelo privilégio de ser deixados em paz. Dentro dos muros e dos portões dos condomínios vivem “lobos solitários”: gente que só tolera o tanto de “comunidade” que querem em determinado momento, e não mais que esse período de tempo que desejam.
A grande maioria dos pesquisadores concorda que o principal motivo de as pessoas se trancarem dentro de muros, sob o controle dos circuitos internos de TV de um condomínio fechado, é, consciente ou inconscientemente, de modo tácito ou explícito, o desejo de evitar a miséria e a fome, o que se traduz em manter afastados os estrangeiros. Os estranhos são perigosos, são portadores e presságios de risco. Pelo menos é nisso que as pessoas creem. E o que mais desejam é se sentirem a salvo do perigo. Mais exatamente, se sentirem a salvo do intimidador, angustiante, paralisante medo da insegurança. Sua esperança é que os muros as protejam desse medo.
O problema é que há mais de um motivo para se sentir inseguro. Verossímeis ou fantasiosos, os rumores sobre o aumento da criminalidade, de multidões de ladrões ou criminosos sexuais à espreita de uma oportunidade para atacar são apenas um deles. Afinal, nos sentimos inseguros porque nossos empregos e nossos salários, nossa posição e dignidade social estão sob risco. Não temos garantias contra a ameaça de demissão, de exclusão e despejo, de perder a posição que amamos e cujo direito acreditávamos ter conquistado para sempre.
Nem as parcerias que amamos são garantidas e à toda prova: sentimos tremores subterrâneos e pressentimos terremotos. Nossa vizinhança conhecida e acolhedora pode estar ameaçada de demolição para dar lugar a um novo empreendimento imobiliário. É tolice esperar que todas essas ansiedades, bem ou mal-fundamentadas, possam ser aplacadas e adormecidas por nos cercamos de muros, guardas armados e câmeras de TV.
Mas o que dizer da razão principal e ostensiva para escolhermos um condomínio fechado – o medo do ataque físico, da violência, do roubo, do furto de carros, de mendigos importunos? Será que ao menos vamos pôr fim a esse tipo de ameaça? Infelizmente, mesmo nessa frente de batalha, os ganhos tampouco justificam as perdas. A maioria dos observadores atentos da vida urbana contemporânea afirma que a probabilidade de ser assaltado ou roubado diminui quando a pessoa recua para dentro de muros – embora uma pesquisa sobre “sentimentos de segurança” realizada na Califórnia, de longe o maior reduto da obsessão pelos condomínios fechados, não tenha detectado diferença entre espaços cercados e não cercados. Mas o medo persiste.
Anna Minton, autora de um estudo de fôlego intitulado Ground Control: Fear and Happiness in the Twenty-First Century City, relata a história de Mônica, “que passou a noite inteira acordada e mais apavorada que nunca durante os vinte anos em que morou numa rua normal”, quando, “certa noite, os portões de controle eletrônico falharam e tiveram de ser deixados abertos”. Atrás dos muros, a ansiedade cresce em vez de se dissipar, e com ela a dependência do estado de espírito dos moradores com relação a “novas e melhores” engenhocas high-tech, vendidas pela propaganda com a promessa de desmoralizar os perigos e o medo do perigo.
Quanto maior o número de equipamentos com que nos cercamos, maior é o receio de que eles “falhem”. Quanto mais tempo gastamos preocupados com a ameaça de todo e qualquer estranho ou estrangeiro, menos tempo passamos na companhia deles, pondo à prova nossa preocupação. Quanto mais se perde a capacidade de “tolerância e valorização do inesperado”, menos é possível enfrentar, lidar com, desfrutar de e apreciar a vitalidade, variedade e pujança da vida urbana. Viver trancados dentro de um condomínio fechado a fim afastar os medos é o mesmo que escoar a piscina para ter certeza de que as crianças vão aprender a nadar em completa segurança.

(Zygmunt Bauman - "44 cartas do mundo líquido moderno")

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publicado às 11:55



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