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De tudo e de nada, discorrendo com divagações pessoais ou reflexões de autores consagrados. Este deverá ser considerado um ficheiro divagante, sem preconceitos ou falsos pudores, sobre os assuntos mais variados, desmi(s)tificando verdades ou dogmas.
É comum louvar ou acusar as inovações tecnológicas por estarem na origem das revoluções culturais; na verdade, as inovações conseguem no máximo desencadeá-las, oferecendo o elo que faltava numa cadeia completa de elementos necessários para deslocar a transformação nos costumes e estilos de vida existentes, da esfera das possibilidades para a esfera da realidade; transformação que já estava pronta há tempos e lutava para acontecer. Uma dessas inovações tecnológicas é o telefone celular.
O advento do celular tornou possível a situação de alguém estar sempre à inteira disposição do outro; na verdade, trata-se de uma expectativa e de um postulado realista, uma demanda difícil de recusar, porque se supôs que sua satisfação, por fortes razões objetivas, era impossível. Pelas mesmas razões, a entrada da telefonia móvel na vida social eliminou, para todos os fins práticos, a linha divisória entre tempo público e tempo privado; entre espaço público e espaço privado; casa e local de trabalho; tempo de trabalho e tempo de lazer; “aqui” e “lá”. O proprietário de um telefone celular está sempre e em toda parte ao alcance dos outros, está sempre “aqui”, sempre ao alcance da mão.
A telefonia móvel no mínimo estraçalhou todas as linhas divisórias da capacidade de parar e deter, tornando fácil e plausível a eliminação ou violação dessas fronteiras – pelo menos do ponto de vista técnico. “Estar ausente” não é, não pode e não deve mais ser equivalente a “estar fora do alcance”. Claro que sempre se pode esquecer o celular em cima da mesa antes de sair, perdê-lo ou não achá-lo a tempo. Mas todas essas explicações para não atender ao chamado do telefone são agora vistas como sinais de negligência, insubordinação, indiferença condenável e ofensiva, afronta e outras falhas subjetivas, ou demonstrações de má vontade.
Os telefones celulares são o fundamento técnico da suposição de constante acessibilidade e disponibilidade. A suposição de que a condição humana em geral da modernidade líquida, a condição de “lobos solitários sempre em contato”, já foi viabilizada e se converteu em “norma”, tanto no segundo quanto no primeiro aspecto.
Aplicada de modo seletivo, “a disponibilidade constante” é amplamente usada hoje para organizar o espaço público: dividi-lo em áreas de “conectividade” e de “não conectividade”. Agora todo mundo pode estar sempre à disposição para qualquer contato telefônico, mas ainda é preciso se tornar disponível – e fazemos isso somente para um grupo selecionado de pessoas. Tornar-se disponível é uma ferramenta da construção de redes: de unificação e separação, de “entrar em contato” e “ficar fora de contato”. Integrar-se à rede pela troca de números telefônicos presume uma promessa recíproca de que alguém “sempre estará lá para você”, uma obrigação de sempre recorrer a essa presença interessada e pronta a atender (embora, como acontece em todos os padrões e estratagemas de reciprocidade, este também possa se opor, e com frequência o faz, a suposições explícitas, exploradas de modo unilateral, para desapontamento e irritação do parceiro suposto ou presumido).
Os telefones móveis são peças básicas da construção de pequenos postos avançados públicos, espaços em que é possível disputar e fazer experiências com uma miniversão do status de celebridade, ser conhecido e visto numa área realmente “pública”.
Os números de telefones celulares (isto é, o endereço do “aqui” mediado pelo aparelho móvel, onde a pessoa pode ser sempre encontrada, está pronta a responder e a interagir) não constam de listas telefônicas, portanto, não são acessíveis a qualquer pessoa. Dar o número do celular é conceder ou solicitar esse privilégio: é um ato de aceitação e ao mesmo tempo de consentimento, e/ou um pedido para ser aceito. Atualmente, essa prática modela nossa imagem da “rede” – o sentimento de “estar junto” que substituiu o conceito de “grupo” e sobretudo o de “comunidade de pertença”. Tornou-se, na prática, o arquétipo da versão atual da eterna questão do público versus privado.
Entre as imagens das formas de união que a prática da telefonia celular substituiu ou eliminou, o conceito de “rede” sobressai principalmente por sua flexibilidade e pela ilusória adaptabilidade ao rígido manejo e monitoramento, bem como pelo rápido e indolor ajuste e pela reformulação. Caracteriza-se ainda pela portabilidade: ao contrário de outros grupos de pessoas, as “redes” registradas nos aparelhos de seus donos os acompanham a todo momento, como a concha de um caracol, onde quer que eles vão ou parem. As redes lhes dão a ilusão de que “estão no controle” de modo permanente e contínuo.
Uma rede de comunicação, ainda que em forma miniaturizada, possui todos os elementos que marcam um espaço público; porém, seu tamanho e conteúdo são construídos de acordo com as preferências e predileções do proprietário individual, são fáceis de “limpar”, bastando para isso pressionar o botão de “deletar”, apagando assim as partes que não correspondem mais aos interesses ou expectativas do dono. Por isso, dão a impressão de ser docilmente submissas e responsivas às mudanças de humor e de desejos do proprietário. A fragilidade das conexões, a existência de meios instantâneos de desconexão, enfim, a combinação de facilidades para “conectar-se” com a possibilidade de interromper de modo indolor e igualmente instantâneo a situação de “estar conectado” no momento em que nos parecer inconveniente – tudo isso parece se adaptar de modo especial à dialética das relações tortuosas entre o público e o privado.
José Saramago escreveu sobre isso, em seu inimitável estilo agudo e ferino, em O homem duplicado:
O que de todo não compreende … é que, ao se desenvolverem as tecnologias decomunicação em autêntica progressão geométrica, de melhoria em melhoria, a outra comunicação, aquela propriamente dita, a verdadeira, de mim para ti, de nós para eles, continue a ser essa confusão cruzada de becos sem saída, tão decepcionante com suas avenidas ilusórias, tão dissimulada no que expressa quanto no que dissimula.
A “perplexidade diante dos autênticos labirintos cretenses que são as relações humanas”, conclui e sugere Saramago, é “incurável”. A perplexidade veio para ficar, mesmo que as tecnologias da comunicação continuem a se desenvolver em progressão geométrica ou exponencial.
A essas observações de Saramago acrescento que, na realidade, a perplexidade tende a aumentar. Afinal, a maior conquista das tecnologias de comunicação não foi simplificar a prática complexa da coabitação humana, mas comprimi-la numa cômoda camada fina e rasa – ao contrário do original, abrigado em múltiplas camadas grossas e densas –, graças à sua capacidade de ser manejada sem esforço e sem problemas. O efeito colateral da eliminação da “comunicação propriamente dita, a verdadeira” (como Saramago preferiu chamar a versão original, não comprimida) da pauta de tarefas urgentes, aquelas que não se deve deixar de lado, é outra das habilidades – que definham, esmaecem e desaparecem – que a “comunicação verdadeira” exige.
O resultado final de tudo isso é que os desafios da comunicação “de mim para ti, de nós para eles” parecem ainda mais desencorajadores e confusos; e a arte de lidar com eles parece ainda mais nebulosa e difícil de dominar do que na fase anterior, antes que começasse essa “grande revolução na conectividade humana” (como foram batizadas a invenção e as trincheiras dos telefones celulares).
(Zygmunt Bauman - "44 cartas do mundo líquido moderno")