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De tudo e de nada, discorrendo com divagações pessoais ou reflexões de autores consagrados. Este deverá ser considerado um ficheiro divagante, sem preconceitos ou falsos pudores, sobre os assuntos mais variados, desmi(s)tificando verdades ou dogmas.
Pierre Bourdieu, o grande sociólogo francês, escreveu trinta anos atrás em seu importante livro intitulado La distinction que a “elite cultural” – pessoas consideradas altas autoridades na diferenciação entre o comme il faut e o comme il faut pas (o certo e o errado) em todos os temas “culturais” – distanciou-se do resto de nós pelo gosto artístico seletivo e por critérios estritamente definidos – em clara oposição ao nosso gosto sem discernimento e caracterizado por flagrante frouxidão de critérios. Foi essa oposição que sustentou a divisão entre “alta cultura” (aprovada e praticada pela elite cultural) e “baixa cultura” (popular ou de massas).
De acordo com um relatório escrito por Andy McSmith e publicado na edição eletrônica do jornal inglês The Independent, professores respeitáveis de uma universidade muito considerada, Oxford, proclamaram que a “elite cultural não existe” no antigo significado adotado por Bourdieu (“Cultural elite does not exist, academics claim”). Tak Wing Chan e John Goldthorpe, sociólogos da Universidade de Oxford, e um grupo de treze pesquisadores concluíram, a partir de dados coletados na Grã-Bretanha, Chile, França, Hungria, Israel, Holanda e Estados Unidos, que não é mais possível encontrar a “elite cultural” do tipo descrito por Bourdieu – isto é, gente de elevada posição social que se diferencia de seus inferiores por ir à opera e apreciar tudo que é visto como “alta arte”, e torcer o nariz e tratar com evidente desprezo “coisas vulgares como a música popular e a televisão comercial”.
Na verdade, o fim da velha guarda da elite (mas não da “elite cultural” como tal) não é novidade. Já em 1992, a fim de expressar a natureza do gosto (ou melhor, da falta de gosto) típico dos “líderes culturais” da época, Richard A. Petersen, da Universidade Vanderbilt, usou a metáfora da “onivoridade” (“How musical tastes mark occupational status groups”): ópera e música popular, “alta arte” e televisão comercial; um pouco daqui, um pouco de lá, ora isso, ora aquilo. Há pouco tempo Petersen reafirmou sua descoberta original: “Constatamos uma reorientação da atitude política da elite como grupo de status, daqueles intelectuais esnobes que desprezam toda cultura popular, vulgar ou de massas, … para os eruditos que consomem com igual onivoridade um amplo espectro de formas de arte popular e erudita” (“Changing arts audiences: Capitalizing on omnivorousness”).
Em outras palavras, Nihil “cultural” a me alienum puto, isto é, não há nada “cultural” que eu rejeite previamente sem fruí-lo, embora também não haja nada “cultural” com que eu me identifique de modo inabalável e definitivo a ponto de excluir outros prazeres. Estou em casa em qualquer lugar, embora (ou porque) o lugar que chamo de minha casa não esteja em lugar algum. Em suma, não se trata mais de um gosto (requintado) que se opõe a um gosto (vulgar), mas de onivoridade contra onivoridade, uma disponibilidade a consumir tudo e desfrutar de tudo sem nada discriminar, sem uma seletividade a priori da apreciação, da aversão ou da incompreensão.
A elite está viva e forte, mais viva e ativa que nunca, embora voltada demais a buscar e consumir cultura para ter tempo de se ocupar da missão de fazer proselitismo e converter as pessoas. Além da atitude de “parem de exigências, sejam menos seletivos” e “consumam mais”, essa mais recente encarnação da elite não tem uma mensagem a comunicar às multidões de onívoros das camadas inferiores da hierarquia cultural. Para todos os fins práticos, a elite abandonou qualquer pretensão a converter e catequizar, esclarecer e enobrecer, “elevar” o “povo” (rebatizado de “massas”, ou, mais objetivamente, de “consumidores culturais”).
De fato, nos lugares onde se elaboram, proclamam e debatem as defesas da cultura, as artes perderam (ou estão perdendo depressa) suas funções de linha auxiliar de uma hierarquia social que luta para se reproduzir, tal como, algum tempo antes, a cultura como um todo perdeu sua função original de linha auxiliar de nações emergentes, Estados e hierarquias de classe. Agora as artes estão livres para servir às preocupações do indivíduo com sua identidade e autoafirmação.
Pode-se dizer que, em sua fase líquido-moderna, a cultura (sobretudo em seus ramos artístico) é feita à medida da liberdade individual de escolha (voluntária ou obrigatória). A intenção é que a cultura esteja a serviço dessa liberdade e assegure que a escolha seja inevitável: uma necessidade de vida e um dever. Essa responsabilidade, companheira inalienável da liberdade de escolha, permanece onde a condição da modernidade líquida a colocou à força: nos ombros do indivíduo, agora indicado como único gestor da “política da vida” conduzida individualmente.
Como convém a uma sociedade de consumidores como a nossa, a cultura hoje é constituída de ofertas, e não de normas. Assim como afirmou Bourdieu, a cultura vive de sedução, não de regulação normativa; de relações públicas, não de policiamento; da criação de novas necessidades, desejos, carências e caprichos, não de coerção. Esta é uma sociedade de consumidores, e, tal como o resto do mundo, vemos e experimentamos o mundo como consumidores.
A cultura se torna um armazém de produtos para consumo – cada um competindo pela variação, mudança e deslocamento da atenção dos potenciais consumidores, na expectativa de atraí-la e mantêla um pouco além de um átimo. Abandonar padrões rígidos, sucumbir à indiscriminação, adequar-se a todos os gostos sem privilegiar nenhum, encorajar a irregularidade e a “flexibilidade” (o termo popular politicamente correto para “fraqueza de caráter”), tudo isso se combina para construir a estratégia adequada a seguir – ou seria melhor dizer a única estratégia razoável, a única factível? Rabugice e expressões de desagrado não são recomendáveis.
Um influente crítico de televisão elogiou o espetáculo do Ano-Novo de 2007-2008 de uma emissora por prometer “um programa musical de entretenimento voltado para satisfazer o apetite de todos”. O “bom” dessa programação, explicou o crítico, “é que seu apelo universal significa que cada espectador pode aceitar ou evitar o programa de acordo com suas preferências” (“Ahootenanny New Year to all”). Qualidade assaz louvável numa sociedade em que as redes substituem as estruturas, enquanto o jogo de adesão/exclusão e um interminável processo de conexões e desconexões substituem o “determinar” e o “fixar”.
Hoje, a cultura está virando uma espécie de seção da loja de departamentos, que tem “tudo que você precisa e deseja”, na qual se transformou o mundo habitado por consumidores. Como em outros departamentos desse tipo de loja, as prateleiras estão abarrotadas de mercadorias sempre repostas, e os balcões são decorados com anúncios das mais recentes ofertas – eles mesmos destinados a desaparecer com as atrações que promovem. Mercadorias e publicidade são calculadas especificamente para despertar desejos e cobiça pelas novas ofertas, e ao mesmo tempo reprimir qualquer resquício de desejo ou cobiça das antigas promoções (George Steiner tem uma frase famosa sobre isso: tudo é calculado para obter “impacto máximo e obsolescência instantânea”). Comerciantes e redatores de publicidade esperam aliar o poder de sedução das ofertas ao desejo imperioso dos seus potenciais consumidores de ser melhor que o vizinho e de “tirar vantagem”; ou, pelo menos, de não ficar para trás no “pacote de estilos”.
A cultura em nosso mundo moderno líquido não tem “povo” para “cultivar”, tem clientes para seduzir. E, ao contrário da cultura sólida moderna que a precedeu, não quer mais se esforçar para cumprir seu papel – quanto mais cedo possível. Sua tarefa agora é cuidar de sobreviver de modo permanente, tornando provisórios todos os aspectos da vida de seus antigos guardiões e potenciais convertidos, que hoje renascem na condição de clientes.
(Zygmunt Bauman - "44 cartas do mundo líquido moderno")