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De tudo e de nada, discorrendo com divagações pessoais ou reflexões de autores consagrados. Este deverá ser considerado um ficheiro divagante, sem preconceitos ou falsos pudores, sobre os assuntos mais variados, desmi(s)tificando verdades ou dogmas.
A depressão econômica já acabou? Se não, em quanto tempo acabará? Perguntas desse tipo são feitas todos os dias por homens e mulheres, idosos e jovens, em países ricos e em países pobres. Eles esperam obter respostas verdadeiras, mas em vão. O que não falta, sem dúvida, são respostas de economistas (se eles não sabem, quem saberá?), de políticos do governo ou da oposição e de toda sorte de outros profetas oficiais ou autonomeados. O problema é que eles dizem qualquer coisa entre jubilosos anúncios do fim da depressão, ou pelo menos de seus últimos sopros, e sombrias advertências de que ninguém ainda enxergou o fim do túnel.
No jornal The Guardian de 9 de setembro de 2009, encontramos a informação de que “economistas declaram o fim da recessão”, matéria ilustrada pela opinião, entre outras, de Karen Ward (economista inglesa do banco HSBC): “As coisas que estavam nos levando à retração vão nos trazer de volta – haverá de novo um gasto positivo por parte dos consumidores.” Devemos nos alegrar ou nos desesperar com a notícia? A “retração” não foi causada justamente pelo “gasto positivo por parte do consumidor” e a consequente mudança de mãos de muito dinheiro (grande parcela do qual ainda não ganho)? “Trazer de volta” não significa pressagiar futuras “retrações”, ou pior, a ameaça de que elas reapareçam? O colapso da economia não ocorreu no auge do “gasto positivo” e de um crescimento sem precedentes do PNB, reconhecido universalmente (ou quase) como a taxa de prosperidade econômica e o atributo de uma “economia saudável”?
Alex Berenson afirmou, num artigo no The New York Times de 12 de setembro de 2009, com o sugestivo título de “A year after a cataclysm, little change on Wall St”: “Wall Street continua a viver. Um ano depois do colapso do Lehman Brothers, a surpresa não é quanto mudou no setor financeiro, mas quão pouco mudou.”
Enquanto a memória do choque (que alguns observadores, com pressa um tanto exagerada, chamaram de “amargo despertar”) permanecer fresca, nós sabemos que a probabilidade de as previsões se realizarem não é maior que a probabilidade de elas serem refutadas; e que a linha que separa confiança e credulidade é tênue; além disso, não há como saber de antemão por onde tal linha deve passar.
Não surpreende que sejamos cautelosos. Temos todo direito de sê-lo. Os jornais continuavam a repetir até pouco tempo atrás, e o New York Times era o mais insistente de todos, que “os consumidores estão relutantes em gastar”. Isso era visto como uma notícia péssima, assustadora – sobretudo para nós que temos o privilégio de viver em países de riqueza abundante, privilégio pelo qual somos agora obrigados a pagar. Quanto mais alto o coqueiro maior é o tombo.
Nos Estados Unidos, por exemplo, antes do colapso do crédito, os gastos em consumo representavam 70% de toda a atividade econômica do país (relembro que a atividade econômica é medida pela quantidade de dinheiro que muda de mãos); como 70% do dinheiro costumava sair das mãos dos consumidores para as mãos dos vendedores de bens de consumo, até uma fração relativamente diminuta e quase desprezível de compradores que resolvam não gastar seu dinheiro (seja o já ganho, seja o que esperavam ganhar) se refletirá de imediato nas estatísticas sobre o “estado da economia”, provocando novo ataque de pânico que certamente fará parecer mais suave o ataque anterior.
O que os vendedores mais lamentam é que a maioria dos consumidores perca o hábito de “comprar por impulso”. Teóricos e praticantes do marketing costumavam confiar nesse hábito arraigado. Um após outro, os shoppings, que antes eram considerados templos do pensamento, do saber e dos potenciais consumidores oniscientes, foram redesenhados para seduzir compradores “acidentais”, “compradores por impulso”: pessoas que iam comprar um bule ou uma lâmpada, por exemplo; mas que – deslumbradas, inebriadas e desarmadas pela enorme quantidade de cores, sons e fragrâncias embriagantes –, propensas à euforia e ao êxtase, passíveis de subitamente entrar em estado de entorpecimento e transe diante da visão de algo que jamais viram e de que nunca precisaram, eram incapazes de resistir à urgência de possuir esses objetos.
Pat Bennett, vendedor da cadeia de lojas Macy’s, há pouco tempo se queixou (como inúmeros outros encarregados da sedução dos consumidores) de que as pessoas hoje tendem “a chegar dizendo, ‘preciso de um par de cuecas’, pegam o que querem e vão embora. Você não os ouve dizer, ‘ah, eu adorei o corte dessa camisa, vou levá-la agora’”.
Substituir o antigo hábito arraigado nos fregueses de comprar a fim de satisfazer uma necessidade ou aplacar um desejo longamente plantado e acarinhado pelo hábito de comprar por impulso, por compulsão, na euforia do momento, foi na verdade o grande feito e o motor da expansão da economia baseada no consumismo. O desaparecimento desse hábito seria um desastre absoluto para tal tipo de economia. Comprar por necessidade tem limites naturais; comprar motivado por desejos requer longo, enfadonho e custoso aprimoramento, treino e prática dos desejos; mas comprar num rompante ou num capricho não exige grande investimento para fomentar o comércio, nem demorados e complicados aperfeiçoamentos nem preparação, porque o céu é o limite – o céu é o limite de uma economia consumista que se baseia nessa tendência dos fregueses.
Ao menos é isso que parecia, pois vivíamos num mundo de faz de conta, onde não havia limite para o crédito pessoal nem para sua renovação, no qual os índices da bolsa de valores eram em geral inflados, e os preços das casas sujeitos a irreversível e incessante inflação. Era o que parecia, pois nos sentíamos mais ricos do que indicavam nossos rendimentos reais, e estávamos crentes de que esse maravilhoso sentimento ia durar para sempre. Desde que pudéssemos continuar a fazer empréstimos hipotecários jogados para um futuro ainda desconhecido – mas que prometia manter “mais da mesma felicidade”; desde que pudéssemos adiar o momento de fazer as contas; desde que pudéssemos sustentar com alegria a estratégia do “aproveite agora, pague depois”, sem muitas preocupações posteriores, e evitar a hora da verdade, a hora de encarar e calcular com seriedade os riscos embutidos nessa estratégia impulsiva. O dia daquele “pague depois” chegou: é agora.
A chegada desse dia foi um choque para todos nós; sabe-se que os choques tendem a provocar traumas, e os traumas tendem a durar muito mais que suas causas imediatas. No entanto, a profundidade e a longevidade dos traumas não são iguais para todo mundo. A maioria de nós hesita em repetir hoje o comportamento impulsivo de ontem: gastar um dinheiro que não ganhamos e ficarmos reféns de um destino que não podemos controlar nem somos capazes de prever. Quanto à resposta sobre quanto tempo ainda vão durar as indesejáveis limitações impostas por um destino adverso à nossa festa (não será melhor chamar de orgia?) consumista, as opiniões se dividem.
Na Inglaterra, por exemplo, os londrinos são três vezes mais propensos que os habitantes da área industrial de Midlands a crer que “a economia está se recuperando” e vai melhorar no ano que vem. A diferença não surpreende se considerarmos que leva tempo para que a recessão transborde dos bancos da City de Londres para o interior das fábricas de Midlands; e deve levar tempo semelhante, senão maior, para expulsá-la da casa dos operários desempregados, mas muito menos para bani-la dos lares dos beneficiários de dividendos pagos pelos bancos, generosamente subsidiados pelo Estado, e dos lucros das empresas que prestam serviços aos ricos. Esta não é uma peculiaridade britânica. O New York Times de 7 de setembro de 2009, por exemplo, informou sobre a existência de milhões de vítimas ocultas da Grande Recessão, não contabilizadas na taxa [oficial de desemprego] porque pararam de procurar trabalho. Mas isso não significa que esses americanos desalentados não queiram trabalhar. Como demonstram entrevistas feitas com vários deles, muitos anseiam desesperadamente por um emprego; mas a dificuldade de encontrá-lo fez com que eles se tornassem a mais completa encarnação do pessimismo.
Outra distância evidente separa as percepções das gerações mais velhas das mais jovens. Entre as pessoas acima de 65 anos, uma em cada quatro confia na melhora da economia no próximo ano; entre as pessoas com pelo menos trinta anos menos que estas, só uma em vinte concorda com os idosos. Novamente o resultado não surpreende. Idosos com mais de 65 anos estão quase fora do mercado de trabalho, enquanto os que estão dentro de um mercado repleto de sombrias premonições ainda esperam que a bomba caia sobre suas cabeças depois da nova onda de falências, tentativas de enxugamento e demissões em massa.
Os que se encontram numa faixa etária ainda mais jovem encaram um futuro marcado por atos de humilhação e situações de privação causadas pela exclusão social e pela vergonhosa falta de trabalho; pelas provações materiais do desemprego a longo prazo, as extensas filas do segurodesemprego e das agências de emprego; pelas esperanças vãs numa virada rápida da sorte que os traga de volta às fileiras dos empregados. Ante a frustração das recentes expectativas, quem pode jurar, após uma virada favorável (por improvável que seja), que a roda da fortuna interrompeu seu girar desenfreado?
Na edição de 5 de setembro de 2009, o New York Times declarou que “a perda de 216 mil empregos em agosto, que elevou a taxa de desemprego nos Estados Unidos para 9,7%, indicou que as empresas não estão contratando vigorosamente, apesar dos sinais de recuperação”. Os dedos chamuscados das empresas pressagiam o destroçar dos meios de vida de seus empregados.
Os mais jovens entre os jovens, além disso, enfrentam pela primeira vez as agruras do mercado de trabalho. Nada em sua juventude relativamente desanuviada, passada num país de crescente (um pouco mais rápida, um pouco mais lenta, mas aparentemente infinita) prosperidade, ensinou-lhes a esperar que os mercados fossem tão hostis e traiçoeiros quanto hoje. Seus amigos com apenas dois ou três anos a mais que eles lembram que o mercado ainda era amistoso, abarrotado de boas oportunidades de trabalho que eles podiam escolher a gosto; não o mercado que têm de encarar hoje, avarento nas ofertas e generoso nas recusas, um mercado que dita seus termos como bem quer, avaro nas bênçãos e pródigo nas crueldades, notório pela equanimidade diante das tragédias humanas e pela destruição perpetrada por seus caprichos sobre as vidas humanas.
Este artigo devia se chamar “Informe sobre a vida ocupacional”, na mesma linha dos balanços de vantagens e desvantagens que a maioria de nós tenta fazer nesses dias. Mas as cartas ainda estão sendo embaralhadas. Só Deus sabe se as cartas que temos nas mãos irão se revelar fortes ou fracas na próxima jogada. Nada sabemos sobre as surpresas que nos esperam, sobre uma virada imprevista da sorte. Bom seria se pudéssemos extrair dessas experiências uma lição que se estenda além da próxima incursão ao shopping. Uma lição que vá mais fundo, que alcance os modos de evitar que esse tipo de experiência volte a assombrar a nós e a nossos filhos.
(Zygmunt Bauman - "44 cartas do mundo líquido moderno")