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De tudo e de nada, discorrendo com divagações pessoais ou reflexões de autores consagrados. Este deverá ser considerado um ficheiro divagante, sem preconceitos ou falsos pudores, sobre os assuntos mais variados, desmi(s)tificando verdades ou dogmas.
Certa terça-feira, semanas atrás, eu estava de viagem marcada para Roma a fim de dar uma conferência e procurei me informar sobre as condições climáticas de lá, para saber como me vestir na viagem. Consultei a previsão do tempo na sexta-feira anterior: falavam em chuvas fortes para Roma, com temperatura máxima de quinze graus. Por via das dúvidas, chequei de novo a previsão na segunda-feira. O quadro já tinha mudado bastante: céu claro, sem nuvens e temperatura caindo abaixo de doze graus. Qual foi realmente o tempo em Roma naquela terça-feira, não pude verificar pessoalmente, porque meu voo foi cancelado por uma súbita tempestade de neve que pegou o pessoal do aeroporto completamente desprevenido.
No começo da década de 1960, Edward Lorenz trabalhava num programa que devia permitir a previsão de mudanças climáticas com maior grau de certeza. Para a admiração da unanimidade de seus colegas e inveja de poucos, Lorenz estava cada vez mais perto de construir um modelo de previsão do tempo abrangente e quase à prova de erros incluindo todos os fatores.
Um dia, porém, ao retomar o trabalho no laboratório, ele descobriu, para seu espanto, que uma alteração ligeira numa das muitas variáveis iniciais (um arredondamento de milésimo) fizera com que o mesmíssimo programa gerasse previsão muito diferente. Uma diferença mínima, insignificante e negligenciável numa única variável, de um valor que às vezes enganava os instrumentos mais precisos de medição, e por isso costumava ser ignorada, teve importantes efeitos sobre o resultado de todo o sistema. A mais irrisória diferença podia assumir, com o passar do tempo, proporções gigantescas, inclusive catastróficas. O bater das asas de uma borboleta em Pequim, como disse o próprio Lorenz, podia influenciar a formação e a trajetória dos ciclones no golfo do México, muitos meses mais tarde e a milhares de quilômetros de distância.
A capacidade de minúsculas mudanças produzirem efeitos que se avolumam em taxa exponencial é hoje conhecida como “efeito borboleta”. A regra do efeito borboleta diz simplesmente que o comportamento dos sistemas complexos com uma quantidade de variáveis mutuamente independentes, é e continuará a ser, para resumir, imprevisível. Não só imprevisível para nós, pela nossa ignorância, negligência ou estupidez, mas pela própria natureza dos sistemas.
Como o mundo em que vivemos é um sistema de complexidade além da imaginação, seu futuro é um grande desconhecido, e irá continuar fatalmente assim, o que quer que a gente faça. Previsões só podem ser adivinhações, e confiar nelas é assumir um enorme risco. O futuro é imprevisível porque, pura e simplesmente, ele é indeterminado. A qualquer momento, há mais de uma rota possível para o curso futuro dos acontecimentos.
E, no entanto, tentar desafiar esse obstáculo indomável e arrancar do futuro uma cópia antecipada de como será, forçá-lo a revelar-se previamente quando ele ainda é uma mera possibilidade (na verdade, o futuro ainda nem nasceu) – em suma, obter um retrato de algo que ainda está em gestação –, é justamente isso que os homens têm tentado fazer desde o alvor de sua história: séculos antes da meteorologia, seguindo o exemplo da ciência moderna, atacando a séria questão de descobrir as leis que determinam as mudanças da natureza, da história e do destino humano, de modo a predizê-las e nos permitir saber como será o futuro, e sabê-lo agora, antes que ele vire outro presente.
Aeromancia, alectoromancia, aleuromancia, alfitomancia, antropomancia, antroposcopia, aritmancia, astrodiagnóstico, astrognose, astrologia, astromancia, austromacia, axinomancia – são estes os nomes dos antigos métodos de adivinhação do futuro, e somente os que começam com a letra “a” (são muitas as letras do alfabeto). Todas essas práticas eram usadas por sábios respeitados e contavam com a aceitação de muitas pessoas que admiravam a visível autoconfiança e as evidentes habilidades de oráculos e adivinhos. Hoje, todos esses métodos caíram em descrédito e foram rejeitados ou esquecidos. Resta saber se a meteorologia não vai acabar entrando nessa lista em futuro próximo…
A essa altura, já nos acostumamos às incertezas e aos caprichos dos climas; em geral, ninguém faz tragédia dessas inconveniências quase cotidianas. Mas há outras questões bem mais sérias e preocupantes no arriscado negócio de predizer o futuro; os acontecimentos mais importantes do século passado pegaram nossos pais e avós de surpresa e desprevenidos.
Ninguém previu a espetacular ascensão e difusão de regimes autoritários e ditatoriais, muito menos em sua versão “aperfeiçoada”, que é o totalitarismo. Uma dezena de anos depois, a “ciência da sovietologia” – ramo de estudos acadêmicos que hoje está morto e enterrado, mas que na época desfrutava da segurança de financiamentos generosos – desenvolvia-se em muitos institutos de pesquisa e alardeava contar com uma legião de renomados professores. Nas vésperas da queda do Muro de Berlim, ela ainda se dividia entre: os luminares que prediziam uma “convergência” lenta e gradual entre os sistemas capitalista e socialista, sob a forma do chamado “corporativismo” (conceito hoje esquecido e que não integra mais o vocabulário da pesquisa séria); e os “expertos”, prevendo que o conflito entre os dois sistemas iria pegar fogo e provocar uma explosão devastadora (talvez nuclear), no estilo MAD (de mutual assured destruction, ou destruição mútua assegurada).
Nenhum encontro respeitável de sovietologia suscitou a questão da implosão do sistema soviético sob pressão de sua inanidade – assim como o atual terremoto na economia liderada pelo consumo e operada pelo crédito, seu caráter repentino, a profundidade, difusão e resistência às medidas corretivas em geral aplicadas, não foi antecipado por qualquer congresso mundial de economistas. Em ambos os casos, o número de previsões corretas caiu bem abaixo da proporção de respostas certas esperadas à luz das leis de probabilidade, num grande conjunto de adivinhações. Mesmo agora, que estamos mais informados sobre o fato, buscamos avidamente a “borboleta” fatal cujo bater de asas causou aquele efeito devastador com consequências que ainda desafiam todos os prognósticos!
Vaclav Havel, incansável dissidente, guerreiro da liberdade e, muitas batalhas depois, presidente da República Tcheca, homem que passou a vida na linha de frente da história tentando não só antecipar o futuro mas também assegurar que ela tomasse uma direção humanitária e generosa, resumiu sua experiência dizendo que, para saber o rumo que o futuro vai tomar, é preciso saber que músicas as pessoas estão cantando; mas, acrescentou Havel, o problema é que não é possível saber que músicas as pessoas vão cantar no ano seguinte, e no outro, e no outro… No sistema complexo chamado “história”, o comportamento humano é de longe o mais variável entre todas as variáveis, e o menos previsível dos previsíveis.
Nós, homens, temos em nosso vocabulário uma pequena palavra, “não”, que nos permite questionar, negar ou rejeitar “a verdade dos fatos” ou o “estado das coisas” que o mundo em que vivemos apresenta. Em nossa gramática, temos o tempo futuro, que nos permite imaginar e visualizar um estado de coisas diferente do agora existente – uma “verdade” com “fatos” muito diferentes. Equipados dessas armas, somos com certeza subdeterminados, e por isso livres, mas fadados a fazer escolhas, expostos ao perigo constante de escolher errado e condenados à eterna incerteza. Insegurança no presente e incerteza quanto ao futuro são nossos companheiros constantes na jornada de viver.
Não surpreende que sonhemos com uma linha telefônica ou o endereço eletrônico de alguém que antigamente chamavam de profeta, “oráculo” ou “adivinho”, e que hoje preferimos chamar de “especialista” – alguém que paire nas alturas das quais, na ausência de anjos, só os pássaros veem este mundo; e seja capaz de nos dizer de antemão o que ele ou ela vê na próxima virada do futuro inacessível aos nossos olhos sempre fixos no chão.
Mas eu gostaria de repetir: a verdade é que nenhum pássaro pode sondar o futuro porque o futuro, enquanto for o futuro, não existe. Por isso, nada há que os olhos mais penetrantes e mais bem situados possam ver. O “futuro” não passa de uma forma abreviada de dizer “tudo pode acontecer, mas não é possível saber ou fazer nada com certeza”. Ironicamente, porém, somos nós, que temos o hábito arraigado de escolher, que fazemos o futuro acontecer. É da natureza humana perguntar que forma terá o futuro, enquanto formulamos questões (e não apenas críveis, mas incertas, imaginárias) impossíveis de dar conta da civilidade da nossa liberdade de escolha.
O grande italiano Antonio Gramsci afirmou que o único modo de “predizer” o futuro era juntar forças e reunir esforços para fazer com que os acontecimentos futuros se conformem aos nossos desejos e para nos manter longe de cenários indesejáveis. Nada garante que esses esforços irão trazer os resultados que desejamos. A guerra contra a incerteza jamais será completamente vencida. Mas esta é a única estratégia que nos dá alguma chance de ganhar batalhas. Não é a solução perfeita, mas é a única possível. É pegar ou largar.
(Zygmunt Bauman - "44 cartas do mundo líquido moderno")