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Destino e caráter

por Thynus, em 26.03.13

“Como podemos agir sem medo de cometer um erro e sem o inevitável risco de inconsequência presente em todo protesto?” Foi essa a pergunta que me fez Martina, uma de minhas leitoras do La Reppublica delle Donne. Minha resposta, a única resposta que pude lhe dar é que, infelizmente, não podemos.
Antes de agir, não há como ter certeza de que os erros não serão cometidos, assim como é impossível saber de antemão se, no fim do dia, teremos provado estar à altura das circunstâncias. O protesto não é a única atividade a que esta regra se aplica. Não há receitas para uma ação à prova de erros, totalmente confiável, “sucesso garantido ou seu dinheiro de volta”; quanto mais importantes forem as ações para nós e para os outros, mais incertos ou mais impossíveis de prever serão seus resultados. Ao contrário do que acontece quando você tenta abrir a embalagem da nova engenhoca da moda que acabou de comprar, as escolhas de vida não vêm com manual de instrução a seguir ponto a ponto. Viver é assumir riscos. Ou, para usar o   memorável veredicto do poeta romano Lucano sobre o amor: viver, como amar, é ser refém do destino.
A vida será difícil, inquietante, assustadora? Sim, pode ser – é provável que seja. O problema é que não temos outra vida. Como afirmou Michel Foucault, temos de criar nosso itinerário de vida e, nesse percurso, também criamos a nós mesmos, tal como as obras de arte são criadas pelos artistas. O curso da vida, sua “finalidade geral”, seu “destino supremo”, só pode ser, é e continuará sendo para sempre um trabalho do tipo “faça você mesmo”. Em nossos dias, cada homem e cada mulher é um artista da vida, não tanto por escolha como por um decreto de destino universal. Isso quer dizer que a “não ação” é tão importante quanto a ação.
Aceitar placidamente o mundo e colaborar com a acumulação de injustiças que contestamos com palavras também é uma escolha, tal qual o protesto e a resistência ativa que dirigimos contra as iniquidades endêmicas que o mundo nos força a seguir de modo obediente. A vida só pode ser uma obra de arte se for uma vida humana, a vida de um ser humano, isto é, de um ser dotado de vontade e liberdade de escolha.
As mais poderosas inteligências da Idade Moderna e suas legiões de seguidores concordaram em apontar Sócrates, o antigo sábio de espírito inquieto, que jamais cedeu em sua busca da verdade, da nobreza e da beleza, como modelo para uma vida bem escolhida, uma vida significativa, nobre, meritória e digna de ser vivida. Além disso, todos o escolheram pela mesma razão: porque Sócrates, esse sábio antepassado do pensamento moderno, foi integral e verdadeiramente (e acima de tudo conscientemente) um self-made man, um mestre da invenção e da afirmação de si mesmo. No entanto, jamais apresentou o modo de ser que escolheu para si e que seguiu bravamente como o modelo universal do único modo de viver válido, isto é, como um modelo que todos deveriam imitar.
Para os grandes filósofos modernos que recomendaram a vida de Sócrates como padrão para a própria vida, “imitar Sócrates” significava construir e harmonizar conscientemente seu próprio self, seu próprio eu, sua personalidade e identidade; e fazer isso com liberdade e autonomia, em vez de copiar a personalidade que Sócrates criou para si – de resto, sem copiar qualquer outra personalidade, seja quem for seu criador. O que importava era a autodefinição e a autoafirmação, a disposição de aceitar que a vida é e deve ser uma obra de arte por cujos méritos e falhas seu “autorator”  é plenamente responsável.
Em outras palavras, “imitar Sócrates” significava recusar-se a imitar a pessoa “Sócrates” ou qualquer outra pessoa – rejeitar a heteronomia, a imitação, a duplicação, a cópia por si só. O modelo de vida que Sócrates escolheu para si, que construiu com esmero e cultivou, apesar de todas as dificuldades (chegando a pôr a morte por envenenamento acima da perspectiva de render-se), era perfeito para o tipo de pessoa que ele era, mas não servirá necessariamente para todos os que insistem em “ser como Sócrates”. A emulação incondicional do modo de viver construído por Sócrates, ao qual ele permaneceu tenazmente fiel, seria uma traição de seu legado e um ato de rejeição a sua mensagem, que pregava antes de mais nada a autonomia e a responsabilidade do indivíduo. Imitação é boa para uma máquina de copiar, mas o resultado jamais corresponderá à criação artística original que (conforme sugeriu Sócrates) a vida humana deve lutar para ser.
Todos os artistas lutam contra a resistência do material no qual desejam imprimir suas visões. Todas as obras de arte trazem em si os rastros dessa luta, de suas vitórias e derrotas, das conciliações que se impuseram, embora isso não as torne menos vergonhosas. Os artistas da vida e suas obras não são exceções a essa regra. Os cinzéis que eles usam (consciente ou inconscientemente, com maior ou menor perícia) para fazer suas gravuras são seus caracteres. Thomas Hardy falou nisso quando declarou que “o destino do homem é seu caráter”. Destino e acasos, seus guerrilheiros, decidem o alcance das escolhas que os artistas da vida irão fazer.
Em seu importante estudo When Light Pierced the Darkness, a socióloga Nechama Tec expôs os resultados de sua investigação sobre os fatores que levaram algumas testemunhas do Holocausto a salvar a vida de vítimas mesmo arriscando a própria vida. Tec calculou com acurácia as correlações estatísticas entre a disposição para ajudar, a presteza para o sacrifício de si mesmo e todos os fatores em geral relacionados à determinação do comportamento humano: meio social, classe, nível de instrução, riqueza, credo religioso e partido político. Mas não encontrou correlação.
Aparentemente, não havia nenhum fator “estatisticamente significativo” que determinasse as escolhas morais. Do ponto de vista estatístico, as pessoas que ajudaram não eram diferentes do resto da população, ainda que o valor moral de seus comportamentos e a relevância humana de suas consequências diferissem muitíssimo das respostas mais comuns entre a maioria.
Por que as pessoas que ajudaram arriscaram-se a engrossar as fileiras das vítimas em vez de fechar as portas e baixar as cortinas para evitar a contemplação do sofrimento? A única resposta possível é que essas pessoas, ao contrário da maioria das outras de sua mesma classe social, instrução, religião e lealdade política, não puderam se comportar de maneira diferente. Simplesmente não puderam agir de outra forma. Preservar o conforto e a segurança física não compensa a aflição espiritual de ver pessoas sofrendo nem as dores da consciência ferida. Provavelmente elas nunca se perdoariam por terem posto seu bem-estar pessoal acima do daqueles que poderiam ter salvado, mas se recusaram a fazê-lo.
Destino e acasos além do controle do ator social tornam algumas escolhas mais prováveis que outras. O caráter, no entanto, desafia as probabilidades estatísticas, despe o destino e os acidentes da vida da onipotência que lhes é atribuída ou que proclamam ter. Entre a aceitação resignada e a decisão arrojada de desafiar a força das circunstâncias está o caráter. É o caráter de um ator que submete as escolhas, aprovadas em testes de probabilidade ou plausibilidade, a outro teste, muito mais exigente e menos apto a transigir ou menos paciente com as escusas: o teste da aceitabilidade moral.
Foi o caráter de Martinho Lutero que o impeliu a declarar, em 31 de outubro de 1517, véspera do Dia de Todos os Santos: “Ich kann nicht anders”, não posso fazer de outra maneira, quando ousou afixar suas 95 teses heréticas na porta da igreja do castelo em Wittenberg.

(Zygmunt Bauman - "44 cartas do mundo líquido moderno")

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publicado às 12:35



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