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De tudo e de nada, discorrendo com divagações pessoais ou reflexões de autores consagrados. Este deverá ser considerado um ficheiro divagante, sem preconceitos ou falsos pudores, sobre os assuntos mais variados, desmi(s)tificando verdades ou dogmas.
Nosso eterno estado de incerteza instila um anseio profundo e generalizado por uma força, qualquer tipo de força em que possamos confiar e que seja capaz de nos tranquilizar sobre as causas dessa profunda, vaga e difusa consciência ou suspeita de insegurança que atormenta as pessoas comuns, dia e noite, neste mundo líquido moderno. O desejo é que, conhecendo essas causas, a força possa nos ensinar a combatê-las, reduzir-lhes o poder e neutralizá-las de maneira eficaz; ou, melhor ainda, que essa força seja por si mesma poderosa para realizar as tarefas que as pessoas normais, penalizadas com a inadequação de seus conhecimentos, habilidades e recursos, só podem sonhar em fazer por conta própria.
Em suma, há um anseio intenso por uma força confiável e segura à qual se possa recorrer para investigar o invisível e confrontar diretamente o que é obscuro e se oculta de forma traiçoeira – uma força capaz de chamar a si o difícil desafio e derrotar um adversário quase invencível; e que faça tudo isso imediata e integralmente. Para estar à altura dessas expectativas, a força tão sonhada e desejada, em certo sentido, deve ser “sobre-humana”, isto é, deve estar livre das fraquezas humanas comuns e irrecuperáveis, ser engenhosa o suficiente para combater, punir severamente e sufocar toda resistência às suas próprias decisões e projetos.
Essa força poderia ser, como tantas vezes na história antiga, um “deus vivo”. Em nossa época, é mais provável que se trate de alguém que, sem apelar para o status divino, declare lhe ter sido revelados uma conspiração clandestina e um ataque iminente de forças do mal que estão muito além do alcance e da compreensão dos simples mortais; alguém que se diga ungido ou predestinado para a missão de governar e guiar as futuras vítimas no caminho da salvação.
Ela pode ser uma pessoa que proclame merecer a confiança de todos, em virtude de algo semelhante a uma missão dos céus, dona de uma linha direta com o Todo-Poderoso (como, por exemplo, ter acesso a documentos sigilosos fora do alcance dos demais), e se diga possuidora de um caráter à prova de máculas e de uma inata aversão a mentir. Mas também pode se tratar de um organismo coletivo, uma igreja ou um partido que acene com uma procuração universal assinada por Deus e pela história. Seja qual for o tipo de força dotada de poderes sobre-humanos, ela deve se dizer capaz de salvar os perplexos da perplexidade e os impotentes da impotência; de anular as fraquezas humanas sofridas individual ou separadamente por graça da onipotência do eleito de Deus ou da história, e coletivamente, pela nação, classe ou raça de tementes a Deus e de obedientes à história.
Deus ou a história… Duas forças consideradas e assumidas como sobre-humanas associadas numa tarefa sobre-humana. Quer estejam aliadas ou em posições opostas, organizações políticas e religiosas aspiram ao controle da capitalização dos mesmos recursos (a saber, o medo humano da ignorância e da impotência). Como acontece no mercado de produtos com marcas alternativas, as duas forças cooperam para aumentar a demanda de suas mercadorias ou competem entre si pelas boas graças da mesma faixa de consumidores, alegando satisfazer-lhes as necessidades, mas oferecer serviços melhores que os concorrentes.
Agitar abertamente a bandeira da natureza coercitiva da pretensa subjugação (como fizeram os governantes ou conquistadores de épocas passadas) não é uma opção razoável nem plausível na luta pela conquista dos espíritos entre a multiplicidade de ideias vendidas no mercado. Por isso, o apoio que os conquistadores contemporâneos buscam na submissão, credulidade, timidez ou covardia dos consumidores que desejam conquistar e “converter” para seus produtos ou marcas tende a ser laboriosamente encoberto.
Além da reduzida viabilidade e da crescente complexidade pragmática do exercício puro e simples da força coercitiva, há outra razão para desistir de usar a coerção e recorrer a argumentos e justificações: a capacidade que as ameaças explícitas têm de amedrontar tende a se cansar e a esgotar-se muita depressa. Populações largadas em condições de servidão e humilhante inferioridade (por obra de invasores estrangeiros, governantes autoritários locais ou interesses comerciais) cedo ou tarde recuperam seus brios e decidem opor resistência aos usurpadores, por mais opressivos que sejam o poder e a superioridade destes, passando a declarar abertamente sua discordância e recusando-se a colaborar. Essas populações sempre encontram meios de infernizar de tal forma a vida dos conquistadores que um recuo imediato lhes parece incomparavelmente mais interessante que continuar se agarrando ao território invadido, mas não ocupado.
Conquistadores e tiranos nativos preferem se apresentar como benfeitores a confessar suas reais intenções; propagar que trazem presentes (a liberdade, a perspectiva de abundância, os tesouros da vida civilizada) em vez de dizer que estão atrás dos despojos de guerra e de tributos extorsivos. Em geral, as organizações políticas e religiosas buscam implantar e cultivar o que Roberto Toscano e Ramin Jahanbegloo – inspirando-se num ensaio escrito por Étienne de la Boétie cerca de meio milênio atrás – chamaram de “servidão voluntária” (Beyond Violence: Principles for an Open Century). La Boétie desconfiava que, além do medo do castigo, o fenômeno da rendição em massa de parcela substancial de sua liberdade por parte das populações escravizadas devia ser explicado por uma compulsão inata a preferir a ordem, qualquer ordem (até uma ordem que limite severamente a liberdade), a uma liberdade fadada a substituir a contingência e a incerteza, essas gêmeas malditas do mundo moderno, pelo tipo de conforto e paz espiritual que somente a rotina assistida pela força pode oferecer (ainda que seja uma rotina opressiva e limitadora).
Como as organizações que buscam poder político ou religioso atuam no mesmo território, têm em vista a mesma clientela e prometem atender a necessidades semelhantes, não surpreende que tendam a intercambiar técnicas e estratégias, e a adotar, com pequenos ajustes, métodos e argumentos uns dos outros. Os fundamentalismos religiosos recorrem pesadamente ao inventário de problemas sociais que se julga pertencer ao domínio e à propriedade da política; os fundamentalismos políticos (ostensivamente seculares) em geral se valem da linguagem religiosa sobre o combate decisivo do bem contra o mal e usam a tendência monoteísta para detectar, anatematizar e exterminar qualquer sintoma, por minúsculo, inócuo e marginal que seja, de heresia ou heterodoxia, inclusive a atitude morna ou indiferente em relação à (una e única) doutrina verdadeira.
Hoje fala-se muito de “politização da religião”, mas pouca atenção se dá à tendência paralela de “religionarização da política”, demonstrada amplamente e sem pejo pelo último governo dos Estados Unidos, comuníssima no vocabulário político do nosso tempo sob forma um pouco mais atenuada, embora menos explicativa e sincera. Conflitos de interesses que recorrem à negociação e à conciliação (o pão de cada dia da política) são apresentados como um confronto decisivo entre o bem e o mal, uma ação que inviabiliza qualquer acordo negociado. As duas tendências parecem irmãs siamesas inseparáveis; além disso, cada uma tende a projetar na outra seus antigos demônios internos.
O saudoso filósofo Leszek Kolakowski interpretava o fenômeno religioso como manifestação e demonstração da insuficiência do ser humano. O sentimento de grupo cria problemas que não se pode compreender, não se pode enfrentar ou as duas coisas. Diante desses problemas, a lógica humana fica ameaçada de patinar ou soçobrar. Sem conseguir distorcer as irracionalidades que localizou no mundo para adequá-las ao rigoroso marco da razão humana, a lógica as elimina da esfera dos assuntos humanos e as transfere para regiões reconhecidamente inacessíveis do pensamento e da ação (sabendo-se que a definição de Deus é incomparável à capacidade de pensar e à inteligência do homem, e que o conceito de divino compõe-se de atributos que os próprios homens anseiam possuir, mas não têm esperança alguma de alcançar).
Aliás, é por esse motivo que Kolakowski está no caminho certo quando frisa que os teólogos eruditos causaram mais mal do que bem à religião, e continuam a fazê-lo toda vez que se voltam para trás em busca da “prova lógica” da existência de Deus. Os homens contam com estudiosos e conselheiros autorizados para servir à lógica e louvá-la. Precisam de Deus para seus milagres, não para seguir as leis da lógica; para exercer sua capacidade de realizar o anormal, o fora do comum, o inconcebível, não para lançar mão de sua habilidade de preservar e reforçar a rotina, o inevitável, o predeterminado (para Ele, é romper com essas coisas ou ignorá-las, façanha com que os homens sonham, mas acham impossível realizar); apela-se para sua inescrutabilidade e incompreensibilidade, não para sua transparência ou previsibilidade; para sua capacidade de virar do avesso o rumo dos acontecimentos; para sua capacidade de desdenhar a ordem ostensivamente refratária e indomável das coisas, em vez de submeter-se com servilismo a ela, como os homens são pressionados a fazer e como a maioria deles, na maior parte do tempo, faz com resignação. Em suma: os seres humanos precisam de um deus onisciente e onipotente (ou seus autoproclamados representantes terrenos) a quem prestar contas para domar e domesticar todas essas forças terríveis, aparentemente cegas, surdas e mudas que não podem ser alcançadas pela compreensão e pela capacidade de agir dos homens.
O futuro dos dois pretendentes contemporâneos à condição de forças sobre-humanas – a religião politizada e a política religionarizada – é entrelaçado ao futuro da incerteza humana, com o futuro de um estado continuamente exacerbado pela realidade da modernidade líquida em suas duas representações: de incerteza coletiva (relativa à segurança e à capacidade das espécies humanas como um todo, lançadas em e dependentes de um mundo natural que elas são incapazes de domesticar); e de incerteza individual (relativa à segurança das pessoas, sua posição social, sua identidade, num hábitat que, isolada, separada e coletivamente, elas são incapazes de domesticar). Nosso desamparo e a consequente solidão no Universo, a ausência de um tribunal de apelação dotado de poderes aos quais recorrer em caso de calamidades difíceis de lidar, são assustadores demais para a maioria dos homens. Nessa perspectiva, parece que Deus morrerá com a humanidade – e não um segundo antes dela.
(Zygmunt Bauman - "44 cartas do mundo líquido moderno")