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A lógica do tubarão

por Thynus, em 27.02.13

Todas as vezes em que se fala sobre a incrível capacidade humana de dominar a natureza — com os elogios de praxe à nossa inventividade e poderio e, mais ainda, o orgulho de uma racionalidade que se aproxima da petulância — Benauro Roberto de Oliveira, um paulista estudioso da história natural e social, conta e reconta em suas competentes e concorridas aulas uma das lendárias manifestações que cercam a personalidade de Jacques-Yves Cousteau, o francês que se tornou o maior dos oceanógrafos do século 20.
Dizem que um jovem jornalista entrevistava Cousteau sobre o nosso temor aos tubarões e desejava saber quais as chances de um de nós escapar no enfrentamento direto com um desses estupendos animais. O cientista respondeu que as probabilidades de sair ileso eram nulas. O jornalista não se satisfez e perguntou, em seqüência, se o tubarão atacaria se já estivesse alimentado, se fosse de noite, se estivéssemos numa jaula, se fôssemos muitos, se carregássemos um arpão, se entregássemos alguma isca etc.; a cada pergunta, a resposta de Cousteau era a mesma: o bicho atacará de qualquer modo. Irritado, o jovem bradou: mas isso não tem lógica! Com paciência, o genial pesquisador dos mares retrucou: Tem sim, mas é a lógica do tubarão...
É preciso lembrar insistentemente a sabedoria emanada dos muitos modos como a vida se expressa no planeta no qual habitamos (e que muitos preferem chamar de "nosso" planeta, com uma dissimulada satisfação de dono): não somos proprietários, e sim usuários compartilhantes. Podemos, em alguns momentos da nossa história, imaginar que controlamos, dominamos e possuímos sem restrições tudo que nesta terra está, com uma ilusão fugaz de invulnerável soberania.
Basta indagar: quais foram, na percepção humana, os animais mais espetaculares e poderosos deste planeta antes de nós? Os dinossauros! Tiveram hegemonia e vigor exuberante por mais de 110 milhões de anos e desapareceram há mais de 60 milhões de anos antes de aparecer qualquer dos ancestrais mais próximos dos hominídeos. Cento e dez milhões de anos de poderio! No entanto, onde estão hoje esses possantes seres? No tanque do teu carro; no material que faz o carpete sob a tua cadeira; na tinta que imprime o jornal que lês, na tampa da garrafa d'água que seguras; na frágil e banal bolinha de pingue-pongue. Viraram combustível fóssil e matéria-prima! E nós, dominando há apenas 40.000 anos, achamos poder fazer qualquer coisa... Degradar o ambiente, esgotar os recursos, conspurcar a atmosfera, corromper a vitalidade, depravar a convivência biológica, aviltar o equilíbrio natural.
Alexander Pope, o mais importante poeta inglês do século 18 (e autor de tradução em verso da Ilíada e da Odisséia), escreveu em 1734 o Ensaio sobre o homem e nele nos adverte contra a arrogância antropocêntrica: Tudo que é natureza, é arte que desconheces; Tudo que é acaso é direcionamento que não podes ver; / Tudo que é discordância é harmonia não compreendida; / Tudo que é mal parcial, é bem universal.
E se, em um pesadelo (infantil?) inspirado no romance A Metamorfose, de Franz Kafka — no qual um homem acorda um dia transformado em um descomunal inseto —, invertermos a lógica do escritor, e um de nós for visitado pelos insetos que proporcionalmente cabem a cada uma das pessoas no planeta? A ciência calcula que, para cada ser humano na Terra, existem 7 bilhões de insetos! Imaginemos, mesmo em delírio reflexivo, se só os que te "pertencem" viessem te procurar dizendo: Qual é? O que estão fazendo com o lugar que partilhamos? Basta de insultar o nosso abrigo comum e arriscar a proteção da simbiose!
Não tem lógica?

(Mario Sergio Cortella - "Não espere pelo epitáfio")

1:18
A primeira grande ideia também é a última porque o que diziam os estoicos e Aristóteles sobre a vida é em grande medida o que recuperam e ressuscitam os ecologistas do mundo contemporâneo: o valor da vida, o sentido da vida não está na sua individualidade isolada, mas está no seu engajamento, no seu pertencimento, na sua participação...
Eu tinha 5 anos, a televisão de casa pifou, o meu pai abriu e deu um pedaço da televisão para eu brincar. Fiquei feliz por 3 segundos e perguntei pra ele pra quê isso serve? Pra nada, por isso é que eu te dei. Mas, se você pegar esse pedaço da televisão e colocar dentro da televisão, quem sabe a televisão não funcione. E você não entende pra que é que esse pedaço serve. Eu rapidamente percebi que aquele pedaço de televisão só tinha vida dentro da televisão e que a televisão, por sua vez, só funcionaria com todos os seus pedaços dentro.
Didaticamente, as ideias estão colocadas: nós somos o pedaço de uma televisão, a nossa vida só tem sentido dentro dela e a televisão, por sua vez, só funciona conosco dentro. Os gregos deram a essa televisão o nome de Cosmos. Somos partes do Cosmos. Isso quer dizer que o vento venta, a maré mareia, o sapo sapeia e tudo está mais ou menos de boa. Quando o vento venta, ele venta em harmonia com o Cosmos. Da mesma maneira a maré, o sapo, o tsunami, qualquer outra coisa. Quem é que pode comprometer? Quem é que pode comprometer o todo? O gato que vive de acordo com a sua natureza de gato? Certamente não. Como diz Hans Jonas, filósofo, verdadeiro patrono do pensamento ecologista do século vinte e vinte um, “uma ostra não coloca em risco universo!” O que ele quis dizer com isso? Que a ostra ostreia, o gato gateia, o vento venta... Então quem é que compromete, quem é que pode comprometer, quem é que pode viver em desarmonia com o todo? Quem é que pode viver errado? Só pode viver errado quem decide, quem delibera, quem escolhe: nós! Existe para nós um lugar, uma atividade, uma função, uma finalidade, um papel. O que Aristóteles chamava de “lugar natural”. Nesse lugar natural, a especificidade da nossa natureza entra em harmonia com o todo, contribuindo da melhor forma possível para o todo. A vida será boa, quando estivermos no lugar certo fazendo a coisa certa. A vida será catastrófica, quando estivermos no lugar errado fazendo a coisa errada. Podemos lembrar de Romário, centro-avante:
Ah, se Romário fosse goleiro?! Não alcançaria o travessão.
Se Romário fosse lateral direito no lugar de Cafu... Não corre, é preguiçoso.
Se Romário tivesse que marcar... Não marca.
Se Romário tivesse que ser meia e distribuir o jogo... Não distribui, é egoísta.
Romário só é Romário ali, onde Romário foi Romário, parado na banheira, esperando a bola chegar. Ali, Romário é vento que venta, gato que gateia. Ali, a natureza de Romário entra em harmonia com o Cosmos. Romário é genial com a camisa 9.
Todos nós somos dotados de especificidades, talentos, habilidades, gostos, desejos de tudo o que sentimos e que, de certa maneira, nos patrocina o encaixe no todo que, em alguns lugares será fácil e, em outros lugares, será muito difícil ou mesmo impossível. É por isso que os gregos estavam convencidos e o pensamento do século vinte e um agradece e aplaude a convicção grega de que a felicidade é o sintoma de uma vida em harmonia com o todo. É como se a energia do universo passasse por nós, quando estamos no lugar certo e fazendo a coisa certa.
1:25:30 
Gostar das coisas não é uma bobagem. Gostar das coisas é super-importante. Na medida em que você percebe aquilo de que você gosta você conhece mais sobre você. A filosofia começou com essa frase de Sócrates, do oráculo de Delfos: “conhece-te a ti mesmo!” Você tem que se conhecer para saber onde é o melhor lugar de se encaixar no todo e viver bem. Conhece-te a ti mesmo! Conhecer-se a si mesmo é conhecer as próprias idiossincrasias, é conhecer as próprias habilidades, talentos, inclinações, apetites, desejos, etc. Quando você gosta de alguma coisa, você está sendo informado sobre você. Quando você gosta de alguma coisa, é como se o mundo fosse um espelho para você, contando para você aquilo que você não saberia para você, se não fosse o mundo, mundo de que você gosta. Quando você detesta,  preste atenção também porque detestar também é importante: é para você entender qual não é a tua praia. Essas ideias tão antigas, no século XX, foram rebatizadas  pelos americanos com a alcunha de “inteligência emocional”: traga para a consciência os seus afetos; traga para a consciência as suas inclinações e os seus apetites porque você vai-se conhecer melhor e, com isso, tenderá a viver melhor em harmonia com o resto. O que acontece, quando a gente não pode fazer o que mais gosta? Se você nunca mais pudesse fazer o que você mais gosta, iria-se sentir triste. A ética dos gregos é a ética da felicidade (eudaimonia) porque a felicidade é o sintoma do encaixe no todo.
(Clóvis Barros Filho)

publicado às 23:30



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