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De tudo e de nada, discorrendo com divagações pessoais ou reflexões de autores consagrados. Este deverá ser considerado um ficheiro divagante, sem preconceitos ou falsos pudores, sobre os assuntos mais variados, desmi(s)tificando verdades ou dogmas.
O idealista, assim como o eclesiástico, carrega todos os grandes conceitos em sua mão (e não apenas em sua mão!); os lança com um benevolente desprezo contra o “entendimento”, os “sentidos”, a “honra”, o “bem viver”, a “ciência”; vê tais coisas abaixo de si, como forças perniciosas e sedutoras, sobre as quais “o espírito” plana como a coisa pura em si – como se a humildade, a castidade, a pobreza, em uma palavra, a santidade, não tivessem causado muito mais dano à vida que quaisquer outros horrores e vícios... O puro espírito é a pura mentira... Enquanto o padre, esse negador, caluniador e envenenador da vida por profissão for aceito como uma variedade de homem superior, não poderá haver resposta à pergunta: Que é a verdade? (1). A verdade já foi posta de cabeça para baixo quando o advogado do nada foi confundido com o representante da verdade.
É contra este instinto teológico que guerreio: encontro vestígios dele por toda parte. Todo aquele que possui sangue teológico em suas veias é cínico e desonrado em todas as coisas. Ao pathos (2) que se desenvolve dessa condição denomina-se fé: em outras palavras, fechar os olhos ante si mesmo de uma vez por todas para evitar o sofrimento causado pela visão de uma falsidade incurável. As pessoas constroem um conceito de moral, de virtude, de santidade a partir dessa falsa perspectiva das coisas; fundamentam a boa consciência sobre uma visão falseada; após terem-na tornado sacrossanta com os nomes “Deus”, “salvação” e “eternidade” não aceitam mais que qualquer outro tipo de visão possa ter valor. Descubro este instinto teológico em todas direções: é a mais disseminada e mais subterrânea forma de falsidade que se pode encontrar na Terra. Tudo que um teólogo considera verdadeiro é necessariamente falso: aqui temos praticamente um critério da verdade. Seu profundo instinto de autopreservação não lhe permite honrar ou sequer mencionar a verdade. Onde quer que a influência dos teólogos seja sentida, há uma transmutação de valores, os conceitos de “verdadeiro” e “falso” são forçados a inverter suas posições: tudo que é mais prejudicial à vida é nomeado “verdadeiro”, tudo que a exalta, a intensifica, a afirma, a justifica e a torna triunfante é nomeado “falso”... Quando teólogos, através “consciência” dos príncipes (ou dos povos), estendem suas mãos ao poder, não há qualquer dúvida quanto a este aspecto fundamental: que o anseio pelo fim, a vontade niilista, aspira ao poder...
(Friedrich Nietzsche - "O AntiCristo")
(1) - Alusão à passagem do evangelho segundo João 18:38 na qual Pilatos pergunta a Jesus: “Que é a verdade?”
(2) - O termo phatos vem do grego, significando “sentimento”, “emoção” “paixão”. Opõe-se a logos, pensamento racional, lógico.