A todo o homem e mulher já alguma vez, por exemplo, perante um pôr do Sol à beira-mar, na dilatação do horizonte no cume da montanha, no acto amoroso, no abismo encantante, sereno e misterioso do olhar de uma criança, aconteceu, de repente, uma experiência de um instante pleno. Trata-se de algo que o ser humano não pode provocar, mas de uma visita daquilo que o preenche. Aí, no êxtase, faz a experiência da totalidade. É uma presença imediata do que chega e se revela de repente. É apenas um instante no tempo, e, no entanto, só através desse instante é que o tempo tem sentido. Mostra-se o que nos realiza plenamente e que vale por si mesmo. Aí quereríamos ficar para sempre. A própria angústia da morte fica suprimida, e até se poderia morrer, pois essa é a experiência da não-morte.
Tornou-se um lugar comum: o reconhecimento de que nas nossas sociedades científicas e técnicas, urbanas e consumistas, hedonistas e invadidas pelo niilismo a morte se tornou tabu. Disso, pura e simplesmente não se fala. É uma realidade quase obscena, embora se admita que o mundo dos mortos invada o mundo dos vivos um ou dois dias por ano - um e dois de Novembro, os dias dos Finados, dos Defuntos. As nossas sociedades são as primeiras na história a colocar o seu fundamento sobre a negação da morte.
Uma sociedade sem Eternidade, enredada no círculo infernal da produção-consumo, tem de ignorar a morte. Neste tipo de mundo, a morte é o não integrável, e o nosso dever é não pensar nela.
É certo que talvez nunca como hoje a morte tenha sido objecto de estudos científicos, desde a medicina à sociologia, à psicologia e à história, que nos permitem compreender, por exemplo, que as atitudes face à morte variam segundo os tempos e as sociedades. Proliferam os colóquios e as conferências e os especialistas da morte. Mas não se aninha aí precisamente o perigo de uma estratégia para evitar o pensamento da minha morte? Quer dizer, essa é ainda uma forma paradoxal de confirmar o tabu: falar da morte em abstracto e academicamente pode ser um meio de iludir a minha própria morte.
Ora, é evidente que é necessário excluir todas as atitudes mórbidas face à morte. Até porque o medo da morte foi utilizado também pela Igreja como verdadeiro exercício de terrorismo sobre as consciências, para uso do poder. Mas é igualmente verdade que, quando uma sociedade nada tem a dizer sobre a morte, é porque, em última análise, nada tem a dizer sobre a existência autenticamente humana. Quando uma sociedade precisa de afastar a morte do seu horizonte, temos aí um sinal decisivo de desumanização e alienação. A ocultação da morte anda vinculada ao profundo mal-estar provocado pelo vazio existencial e pela falta de sentido. Sem o horizonte da morte e o seu apelo à Transcendência, o projecto antropológico fica reduzido a instantes que se devoram.
O animal é que vive exclusivamente da imediatidade do presente. O ser humano, esse, conjuga os verbos no passado, no presente e no futuro. Pela memória, sabemos que vimos de um passado, pela atenção, damos por nós no presente, pela expectativa, pela esperança, projectamo-nos no futuro. E é integrando o passado, o presente e o futuro, que nos vamos erguendo, na procura de uma identidade sempre a caminho.
* Há quem julgue que a salvação está no passado. Há sempre os saudosistas do passado: antigamente é que era bom. É a saudade do Paraíso perdido...
* Também há aqueles que não querem preocupar-se nem com o passado nem com o futuro. O que há é o aqui e agora, o presente a que se segue outro presente. A salvação consiste no amor e fruição do presente...
* Depois, há os sonhadores e os ascetas. Fogem do agora, para refugiar-se no amanhã. Nunca estão no presente, pois a sua morada é só o futuro...
Querer viver exclusivamente do presente e para o presente não é humano, pois isso significaria viver na ime-diatidade animal, sem horizonte de futuro e transcendência. Mas, por outro lado, quem quisesse viver exclusivamente do futuro e para o futuro nunca poderia afastar a dúvida de estar apenas a lidar com as suas ilusões.
Assim, a arte de viver humanamente consiste em, a partir do passado, viver com tal intensidade e dignidade o presente que se torna legítimo esperar a vida plena futura...
(Anselmo Borges, in “Janela do (In)Visível”)