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“Afirmar a bondade do prazer é escandaloso no Ocidente.”110 A espiritualidade ocidental foi construída sobre a negação do prazer. As feridas e lacerações que a espiritualidade católica elegeu como objetos de adoração são expressões plásticas desse fato. E o ascetismo e disciplina de trabalho, virtudes supremas do protestantismo, são a sua manifestação racional e moral.111
Do medo do prazer e da alegria não escapam nem reacionários da direita nem revolucionários da esquerda. É Barthes que afirma:
“Toda uma pequena mitologia tende a nos fazer acreditar que o prazer é uma ideia da direita. À direita, expande- -se para a esquerda, e com um mesmo movimento, tudo o que é abstrato, aborrecido, político, e as pessoas guardam para si o prazer. E à esquerda, por moral (esquecendo-se dos charutos de Marx e Brecht), suspeita-se, desdenha-se qualquer resíduo de ‘hedonismo’. À direita, o prazer é reivindicado contra a intelectualidade, o clericato: é o velho mito reacionário do coração contra a cabeça, da sensação contra o raciocínio, da ‘vida’ (quente) contra a ‘abstração’ (fria): o artista não deve, segundo o sinistro preceito de Debussy, ‘procurar humildemente causar prazer?’. À esquerda, opõem-se o conhecimento, o método, o compromisso, o combate, à ‘simples deleitação’. No entanto, e se o próprio conhecimento fosse por sua vez delicioso?.”112
 
Mas eu acredito que vivemos para ter prazer. Bachelard era mais ousado do que eu e não se envergonhava de afirmar: “O universo tem, para além de todas as misérias, um destino de felicidade. O homem deve reencontrar o Paraíso”.113
 
Minha filosofia da educação decorre desse ato de fé, podendo assim ser resumida: o objetivo da educação é aumentar as possibilidades de prazer e alegria. O destino da razão é servo do prazer e da alegria. Creio na função educativa e intelectual do prazer. Uma inteligência feliz é uma inteligência... mais inteligente... De novo, a sabedoria de Zaratustra:
“Meu irmão, lá, atrás dos seus pensamentos e sentimentos, se encontra um senhor poderoso, um sábio desconhecido, cujo nome é ‘você mesmo’. Ele mora no seu corpo. Ele é o seu corpo. Há mais razão no seu corpo que na sua melhor sabedoria. [...] O seu corpo (Selbst) se ri do seu ego e dos seus saltos ousados. ‘Que é que esses saltos e voos de pensamento significam para mim?’, ele diz para si mesmo. ‘Um desvio do meu fim. Eu sou os fios que movem o ego e o suporte onde se assentam os seus conceitos. O corpo (Selbst) diz para o ego: ‘Sinta dor aqui!’. Então o ego sofre e pensa em como parar de sofrer – e é isso que faz o ego pensar. O corpo (Selbst) diz para o ego: ‘Sinta prazer aqui!’. Então o ego tem prazer e pensa em como repetir esse prazer – e é isso que faz o ego pensar (os destaques em itálico são meus). [...] O corpo criador criou o espírito como uma mão para a sua vontade”114
Descreva o método empregado para compor esse prelúdio para piano que estou ouvindo, senhor Rachmaninov! Descreva o método empregado para escrever seus contos, senhor Jorge Luis Borges! Descreva o método empregado para imaginar seus fantásticos desenhos, senhor Escher! Eles se ririam. Não há métodos para se ter boas ideias. As boas ideias não são produzidas; não são construídas. Elas simplesmente aparecem diante dos nossos olhos, sem que as tivéssemos procurado metodologicamente. Era assim que Picasso descrevia o seu método: “Eu não procuro. Eu encontro”. O corpo não caminha sobre certezas metodológicas.115 Ele simplesmente aposta na verdade de um pensamento que lhe apareceu repentinamente, vindo não sabe donde. E assim ele salta. “Navegar é preciso. Viver não é preciso.” Viver é ter coragem para testar a aposta. Pode ser que a aposta esteja errada: mas não há alternativas. E tolos são aqueles que pensam que as certezas da ciência são uma alternativa à aposta. Porque a ciência também resulta de uma aposta e está construída sobre incertezas. Karl Popper, talvez o mais famoso filósofo da ciência de nossa época, ao final de seu livro A lógica da investigação científica116 diz o seguinte:
 “A ciência não é um sistema de declarações certas ou bem estabelecidas. [...] Nossa ciência não é conhecimento (episteme): ela não pode nunca pretender haver atingido a verdade, ou mesmo um substituto para ela, como a probabilidade. [...] Nós não conhecemos: nós só podemos adivinhar. E nossas adivinhações são guiadas pela fé metafísica (embora biologicamente explicável), não científica, em leis, regularidades que podemos des-cobrir.”117
 
O ego consciente tricota pulôveres de palavras e lhes dá o nome de verdade.
O corpo tece tapetes de palavras e lhes dá o nome de beleza.
Haverá um método, jeito de pensar, não que produza a beleza, mas que nasça dela? Era um sonho de Cecília Meireles:
 
Caminhávamos devaga
ao longo desses dias felizes,
pensando que a Inteligência
era uma sombra de Beleza...118
 
Por muito tempo, influenciado pela psicanálise, usei a palavra “prazer” para me referir ao impulso fundamental que movimenta o corpo. Hoje a palavra prazer já não me satisfaz. O corpo não se contenta com o prazer. Uma das muitas amantes de Tomás dizia: “Eu não quero prazer. Eu quero é alegria!”.119 A experiência do prazer, tão boa, sempre nos coloca diante de um vazio. A teologia de santo Agostinho se constrói sobre esse vazio que se segue ao prazer. Depois de esgotado o prazer, existe, na alma, a nostalgia por algo indefinível. Que indefinível é esse que, se encontrado, nos traria a alegria? Estou pronto a concordar com o santo: um indefinível que, se encontrado, me traria alegria, eu o adoraria como deus, a ele entregaria a minha vida.
  Pus-me então a pensar sobre a diferença entre prazer e alegria – ambos muito bons. E estas foram as conclusões a que cheguei.
 
Sobre o prazer:
(1) O prazer só acontece se o corpo tiver a posse do seu objeto. O prazer do sorvete só existe se houver um sorvete a ser lambido. O prazer do suco de pitanga só existe se houver suco de pitanga para ser bebido. O prazer do beijo só existe se houver a pessoa amada a ser beijada.
(2) O prazer se farta logo. Quantos sorvetes sou capaz de tomar antes que ele se transforme de objeto de prazer em causa de sofrimento? Quantos copos de suco de pitanga sou capaz de tomar antes que o corpo diga: “Não aguento mais!?”. Quantos beijos se pode dar na pessoa amada antes de enjoar? O prazer tem vida curta. O evangelho do prazer reza: “Bem-aventurados os que têm fome, porque serão fartos”.
 
Sobre a alegria:
(1) A alegria não precisa da posse do objeto desejado para existir. Lembro-me do rosto de um amigo – ele já morreu –, mas esta simples memória me traz alegria, junto com uma pitada de tristeza. Sentimos alegria lendo uma obra de ficção, um objeto que nunca existiu pode nos dar alegria, como é o romance entre Fiorentino Ariza e Firmina Daza120 ou o filme A festa de Babette. Paul Valéry: “Que somos nós sem o socorro das coisas que não existem?”. Que seres estranhos nós somos, capazes de nos alegrar comendo frutos inexistentes!
(2)  A alegria nunca se farta. A alegria pede mais alegria. Alegria é fome insaciável. Da alegria nunca se diz: “Estou satisfeito!”, “Chega!”. O evangelho da alegria é diferente do evangelho do prazer: “Bem-aventurados os que têm fome, porque terão mais fome”.
Mas, vez por outra, a alegria e o prazer acontecem juntos. Quando isso acontece, o corpo experimenta uma efêmera epifania do Paraíso: o divino se faz carne...
Meu método se inspira na música e na poesia. As duas, poesia e música, são irmãs. Fernando Pessoa diz que poesia é uma rede de palavras por cujos interstícios se ouve uma melodia que faz chorar.121 Todo dizer poético aspira por um silêncio de palavras – para que a música seja ouvida. O acontecimento poético é assim: o corpo ouve a música, percebe a beleza. Experiência de graça. Deseja comunicá-la. Procura palavras, sons, em cujo côncavo a beleza aconteça. Um outro corpo as ouve. Eventualmente esse ouvir provoca nele, corpo, uma ressonância. Se o corpo ressoar musicalmente, é porque existe uma identidade entre aquele que disse e aquele que ouviu. “A arte é a comunicação aos outros da nossa identidade íntima com eles.”122 Essa ressonância é o corpo dizendo: “É isso mesmo”. Quando isso acontece, tem-se certeza. O corpo está convencido. Na verdade, tentei por muitos anos ser um pianista, sem sucesso. Os dedos eram ótimos, mas faltava-me o essencial: o talento. Abandonei o piano com tristeza, consciente de que ele não me abandonara, pois, na verdade, nunca estivera comigo. Foi como o fim de uma estória de amor. Consolo-me ao saber que Nietzsche teve estória parecida. Tocava piano e até fez algumas composições. Um amigo me deu um disco com a gravação de algumas de suas composições. Recusei-me a tocar o disco. Guardo-o como um inconsciente em que nunca penetrarei. Não quero que a música que ele fez no piano prejudique a música sublime que ele faz com as palavras. Relata-se que Nietzsche, num impulso de loucura, enviou algumas de suas composições ao famosíssimo pianista von Büllow, que imediatamente o aconselhou a dedicar-se a outras coisas que não à composição. Não quero ver os pecados estéticos daqueles que amo. Os pecados estéticos são os que mais me ofendem.
Os músicos se comprazem numa brincadeira chamada “Tema con variazioni”. Lembrei-me de uma dessas peças, de Mozart, variações sobre o tema “Ah, vous dirai-je, Maman”. Fui procurá-la nos meus álbuns de sonatas. Assentei-me ao piano e toquei a primeira. Tão fácil. Tão coisa de criança. Está agora aqui aberta ao lado do teclado do micro, que é o piano onde faço minhas “variações”. Vá ao piano ou tome o instrumento que tiver, e toque, compasso 2/4, todas as notas são semínimas, do mesmo valor: dó, dó, sol, sol, lá, lá, sol, sol, fá, fá, mi, mi, ré, ré, dó. Está dito. Mas não está dito. Esse tema tão simples é apenas o início de uma série de brincadeiras, as variações. Bach compôs as maravilhosas “Variações Goldberg”; Beethoven fez suas famosas “32 variações”, Brahms fez as variações sobre um tema de Paganini, e há as famosas variações de Britten, para crianças.
As variações agradam tanto porque elas são o espelho da alma. Quando a alma gosta de uma coisa, ela quer que ela seja repetida, indefinidamente. Ela quer repetir o poema que a emocionou, o abraço, a comida, o perfume, a ideia, o pôr do sol, a paisagem. A alma deseja sempre retornar. “Ela está sempre em busca do tempo perdido...”
“Con variazioni”, é claro! Lênin confessava ter muito medo da sonata Appassionata, de Beethoven. Felizmente (ou infelizmente, tudo depende do ponto de vista), no tempo dele ainda não havia CDs. Para que a música fosse ouvida era preciso que alguém a tocasse. Eu já ouvi Beethoven muito mais vezes que ele mesmo. Não tenho informações históricas sobre se Lênin tinha uma “victrola” (palavra que, aprendi faz poucos dias, se deriva de RCA Victor...) para ouvir a música. O fato é que ele declarou que poderia ouvir a Appassionata o dia inteiro, ele ficava transtornado, entrava num estado parecido ao frenesi de que falou Zaratustra, e era dominado por um desejo de sair pelas ruas abraçando todo mundo, com o perigo, inclusive, de que abraçasse algum banqueiro ou oficial dos exércitos do tsar.
Os filósofos antigos e Kepler achavam que o universo era uma orquestra tocando música, cada astro era uma esfera sonora. Achavam também que a função da ciência era encontrar meios para escrever a partitura divina de forma que ouvidos mortais a pudessem ouvir, música que Deus estava tocando desde a Criação, como um cânon sem fim, girando sempre, girando sempre. A Igreja acreditava já ter encontrado essa música: era o canto gregoriano. E eu me sinto tentado a acreditar, seduzido que estou pelos maravilhosos hinos pré-gregorianos, do CD Officium, com Jan Garbarek e o Hilliard Ensemble (ECM Records). “Cada organismo é uma música que se toca...”
O corpo é um instrumento, piano, hardware de carne e osso no qual um software musical foi instalado. A alma é um buraco escuro onde moram músicas. Não tem importância que seja escuro. Para se ouvir música bem é bom ter os olhos fechados. Disse “piano”, mas poderia ter dito flauta, violino, viola de dez cordas, rabeca de artesão caipira, ou bateria...
Milan Kundera, especialista em estórias de amor, disse que assim é feita a vida, “composta como uma partitura musical. O ser humano, guiado pelo sentido da beleza, toma o acontecimento fortuito e o transpõe musicalmente, para fazer dele um tema que, em seguida, fará parte de sua própria vida. Voltará ao tema, repetindo-o, modificando-o, desenvolvendo-o e transpondo-o, como faz um compositor com os temas da sua sonata. O homem inconscientemente compõe a sua vida segundo as leis da beleza, mesmo nos instantes do mais profundo desespero”.123
 
O tema, uma vez anunciado, passa a ser tocado por instrumentos diferentes: violinos, violoncelos, flautas, trompas, até que todos os instrumentos da orquestra, em sua fantástica diferença, se unem para dizer a mesma coisa. Cada um diz uma coisa diferente e, no entanto, todos juntos, dizem a mesma coisa. Ouça o “Bolero”, de Ravel, e você entenderá o que estou dizendo.
A música se inicia quando o compositor se encontra com um tema que o fascina. Ele fica “possuído”. E se põe a brincar com o tema, como o amante brinca com a pessoa amada. O pensamento desliza pelo corpo, excursiona, não vai direto ao ponto, rejeita as linhas retas, volta a lugares já visitados, toca-os de uma nova forma, os mesmos lugares, a cada novo toque eles são outros, deleita-se em repetir, o prazer ama a repetição.
Um texto sobre o prazer e a alegria há de ser prazeroso e alegre. Um texto científico sobre o prazer seria o mesmo que tocar uma sonata para piano, de Mozart, numa máquina de escrever. A ciência não é instrumento para se tocar prazer e alegria. O prazer e a alegria não são científicos; não podem ser ditos na linguagem da ciência. “A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá, mas não pode medir seus encantos”... E é por isso que vou escrever no estilo de “variações” musicais: “variações sobre o tema do prazer”.
 

(Rubem Alves - Variações sobre o Prazer)

NOTAS: 
110 Octavio Paz, Los hijos del limo, p. 106.
111 Como é bem sabido, segundo Max Weber, o ascetismo intramundano do protestantismo calvinista e a disciplina de trabalho constituem a essência do espírito do qual o capitalismo nasceu. Me pergunto se essa ideia não lhe veio da leitura dos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, de Marx.
112 Roland Barthes, O prazer do texto, pp. 32-33.
 113 Bachelard, O direito de sonhar, p. 21.
114 FN II (II), p. 575, Assim falou Zaratustra, “Sobre aqueles que desprezam o corpo”. Não sei como traduzir o que se encontra no alemão: “Hinter deinen Gedanken und Gefühlen, mein Bruder, steht ein mächtiger Gebieter, ein unbekanter Weiser – der heisst Selbst. In dienem Leibe wohnt er, dein Leib ist er”. É esse Selbst que não sei traduzir. Mas o próprio Nietzsche afirma a igualdade entre Selbst e corpo. Essa é a razão por que traduzi Selbst por “corpo”. Sei que psicólogos, epistemólogos e metodólogos me perguntarão sobre as provas, as pesquisas, as amostragens, os tratamentos estatísticos sobre os quais baseio tal afirmação. Para eles, um pensamento é digno de ser levado em consideração somente se explicar, com clareza, o caminho que foi seguido para se chegar até ele. A ciência só sabe aquilo cujo método de produção pode ser relatado: o sentido de uma afirmação é o método de sua produção!
115 Lembra-se do andarilho de Nietzsche, que saltava sobre as pedras no riacho?
116 Karl Popper, The Logic of Scientific Discovery.
117 Karl Popper, The Logic of Scientific Discovery, p. 280.
 118 Cecília Meireles, Verdes reinos encantados, p. 26.
119 Milan Kundera, A insustentável leveza do ser
120 Gabriel García Márques, Amor nos tempos do cólera.
121 Fernando Pessoa, Obra poética, p. 179.
 122 Fernando Pessoa [Bernardo Soares], Livro do desassossego, p.39
123 Quem quiser saber um pouco mais sobre o assunto, que leia uma obra de Nietzsche, O nascimento da tragédia a partir do espírito da música [Die Geburt der Tragödie aus dem Geiste der Musik (FN-W I, pp. (I) 7-134].

publicado às 21:37

Quero uma solidão, quero um silêncio,
uma noite de abismo e a alma inconsútil,
para esquecer que vivo — libertar-me
das paredes, de tudo que aprisiona;
atravessar demoras, vencer tempos
pulutantes de enredos e tropeços,
quebrar limites, extinguir murmúrios,
deixar cair as frívolas colunas
de alegorias vagamente erguidas.
Ser tua sombra, tua sombra, apenas,
e estar vendo e sonhando à tua sombra
a existência do amor ressuscitada.
 
Falar contigo pelo deserto.

Cecília Meireles


O corpo não traslada, mas muito sabe, adivinha se não entende.
Riobaldo
 
O que vou saber, sem saber, eu já sabia.
Guimarães Rosa
 
 
Nossa pedagogia se baseia na consciência. A consciência é a sua morada. Meu querido amigo Paulo Freire batizou a palavra “conscientização”. O Paulo, embora fosse criticado como romântico, era, como filósofo da educação, um homem do iluminismo. Acreditava que o ser mora na consciência: essa é a razão por que é preciso conscientizar.103
 
Eu, que ando pela poesia e pela psicanálise, aprendi que não existe comunicação entre “as ideias claras e distintas” que moram no consciente e o corpo. O inconsciente – corpo – não entende a linguagem dos saberes. Por mais verdadeiras que sejam as ideias que moram na cabeça, o corpo não as entende e não lhes obedece.
Os saberes são necessários porque eles nos dão poder. Técnica. Meios para viver. Usando-os como ferramentas, temos a possibilidade de agir sobre o mundo.
Mas o corpo não entende a sua linguagem. Ele pode usá-los como ferramentas, objetos exteriores a ele mesmo. Mas não se transformam em sangue. São incapazes de dar um sentido à vida. Falta-lhes o poder das palavras mágicas. O que move o corpo é o sabor sem palavras da sapientia.
Parte da sabedoria do corpo é a sabedoria de ensinar. O corpo sabe ensinar, naturalmente, da mesma forma que a centopeia sabe andar sem tropeçar.
Barthes, dirigindo-se ao público erudito que assistia a sua aula, e deixando de lado todas as teorias científicas sobre o ensino, diz que o seu projeto era ensinar no Collège de France da mesma forma que uma mãe comum ensina o filhinho.
“Gostaria, pois, que a fala e a escuta que aqui se trançarão fossem semelhantes às idas e vindas de uma criança que brinca em torno da mãe, dela se afasta e depois volta, para trazer-lhe uma pedrinha, um fiozinho de lã, desenhando assim ao redor de um centro calmo toda uma área de jogo, no interior da qual a pedrinha ou a lã importam finalmente menos do que o dom cheio de zelo que delas se faz.”104

Essas idas e vindas da criança ao redor da mãe encontram-se além dos saberes. Nem a mãe nem a criança sabem o que estão fazendo. O que fazem não resulta de uma teoria. Fazem espontaneamente, sem pensar.
Num outro lugar, ele toma como modelo o jogo da mãe que ensina o filho a andar.
“Quando a criança aprende a andar, a mãe não discorre nem demonstra: ela não ensina o andar, ela não o representa (não anda diante da criança): ela sustenta, encoraja, chama (recua e chama): ela incita e cerca: a criança pede a mãe e a mãe deseja o andar da criança.”105
E ele chegou mesmo a batizar o seu método – acho que ele o fez com um sorriso de criança no rosto... – como maternagem.
Onde foi que a mãe aprendeu a ensinar o filho a andar? Em lugar algum. A arte de ensinar a andar, sem saber ela já sabia. O corpo sabe sem precisar pensar. O corpo é sábio. O corpo é educador por graça, de nascimento. Não precisa de aulas de pedagogia.
Veja o caso da linguagem. Procurei muito mas não consegui encontrar coisa que se comparasse à linguagem em dificuldade para ser ensinada e aprendida: a quantidade enorme de palavras que têm de ser memorizada, os gêneros, as concordâncias, a ordem, os tempos verbais, essa teia complexíssima de leis, as sutilezas do humor que vive nas ambiguidades (uma linguagem sem ambiguidades seria uma linguagem só para transmissão de informações, e não para comunicação humana; seria uma linguagem sem risos), a música do falar... No entanto, os que ensinam não se valem de teorias sobre a aquisição de linguagem, nada sabem sobre uma suposta pedagogia do falar, e não sabem que estão ensinando: é o pai, a mãe, o avô, a tia, a empregada, o jardineiro... E os que estão aprendendo, as crianças, não sabem que estão aprendendo, não são colocadas em salas de aulas para ser informadas e para aprender um saber sobre a linguagem. Os professores que ensinam a falar jamais falam de substantivos, subjuntivos, conjunções e preposições. E a aprendizagem é assombrosamente eficiente – sem necessidade de qualquer processo de avaliação. As crianças não aprendem saberes sobre a linguagem. Elas simplesmente aprendem a falar. Já nós, adultos, que vamos às escolas de língua para aprender uma língua estrangeira, e aprendemos a língua através dos saberes, nunca falamos a outra língua direito, temos de pensar, falamos com sotaque, e erramos a todo momento, a despeito de sabermos as regras da gramática: somos a centopeia que não consegue andar...
Recordo lição aprendida com Riobaldo: “O corpo não traslada, mas muito sabe; adivinha se não entende”. “A gente só sabe bem aquilo que não entende.”106 Zaratustra e Riobaldo teriam se entendido, porque eles concordam: “O corpo é uma grande razão... E um instrumento do seu corpo é também a sua pequena razão, meu irmão, a que chamas pelo nome de ‘espírito’ – um pequeno instrumento e um brinquedo da sua grande razão. [...] Há mais razão no seu corpo que na sua melhor sabedoria”.107
 “Espírito”: o conjunto das nossas funções intelectuais, o lugar da filosofia. Aquilo a que damos o nome de Razão, com letra maiúscula, não é aquilo que dela a filosofia diz. A Razão com letra maiúscula, Grande Razão, é o corpo, centro do mundo. Nossa razão pequena: o poder de conhecer, as funções intelectuais, a lógica: essas são ferramentas úteis que o próprio corpo inventou para sobreviver. E não somente ferramentas úteis: são também brinquedos, sem utilidades, que se justificam pelo prazer que dão.108
 
Procuro a filosofia do corpo. Não procuro uma filosofia sobre o corpo. Filosofia sobre o corpo são os pensamentos que os filósofos pensam. Filosofia do corpo são os saberes que o corpo sabe sem saber. É a sapientia. É a voz dos poetas, dos artistas, das crianças...
Meu querido Paulo Freire que me perdoe. Ando na direção contrária. Em vez de conscientizar, proponho inconscientizar. O mesmo caminho sugerido por Barthes. “Desaprender os saberes acumulados a fim de aprender a sabedoria não dita do corpo”. O mesmo caminho sugerido por Zaratustra. Usava palavras-martelo e palavras-riso para ir quebrando e derretendo os saberes-gaiola dentro dos quais o corpo e a sua sabedoria se encontravam presos.109
“Mas então”, me dirão, “fizeram um trabalho inútil: só fizeram dizer o que o corpo já sabia.” As cozinheiras antigas – elas iam fazendo suas coisas sem se valer de livros de receitas –, muitas eram analfabetas. Aí alguém, com medo de que as receitas delas se perdessem com a sua morte, fica observando, anotando, escrevendo num livro aquilo que estava escrito nos gestos da cozinheira. Dessa forma, morta a cozinheira, os pratos que ela fazia podiam continuar a ser feitos. É mais ou menos assim: os adultos, sem saber, vão ensinando, sem receitas. As crianças, sem saber, vão aprendendo. Aí alguém se coloca ao lado desse saber acontecente, vai observando e escrevendo: assim são escritos esses livros de receita chamados ciência.

(Rubem Alves - Variações sobre o Prazer)
103 Assim como Paulo (eu o trato assim, com familiaridade, porque éramos amigos), toda a esquerda é cartesiana, acredita nos poderes da razão, argumenta com ideias claras e distintas. Por oposição, são os nazismos, os fascismos e a propaganda que se movem no mundo subterrâneo dos sentimentos sem nome, do irracional. A esquerda usa, como armas contra o irracionalismo, a transparência ideológica e as ideias claras e distintas, que moram na consciência. A esquerda gosta das luzes. Ela ignora que as ideias que moram nas luzes não conseguem se comunicar com o corpo. Recordo Bachelard: “parece que existem em nós cantos sombrios que toleram apenas uma luz bruxuleante” (A chama de uma vela, p. 14). É preciso entender que a batalha não se trava entre consciência e inconsciência, razão e não razão, entre a cabeça e o corpo. A batalha se trava entre deuses e demônios, ambos habitantes do corpo e, como tais, criaturas do inconsciente. Berdjaev, filósofo existencialista russo, observa que tanto os deuses quanto os demônios amam a poesia e a arte
104 Roland Barthes, Aula, p. 44.
105 Citado por Leyla Perrone-Moisés, Barthes, p. 84.
 106 Guimarães Rosa, Grande Sertão: veredas, p. 29.
107 FN II (II), pp. 574-575.
 108 O corpo carrega sempre duas caixas: a caixa de ferramentas e a caixa de brinquedos...
 109 Tenho o maior respeito pelas extraordinárias contribuições das ciências da aprendizagem, a psicologia em especial, e, na psicologia, honras a Piaget. Tenho a maior admiração por esse saber. Só acho que esses saberes não são descobertas, não são novidades. Eles apenas dizem com palavras o que os homens, por milênios, têm sabido e feito, sem palavras. Eles transformaram em saber consciente aquilo que os seres humanos têm sabido sem precisar de palavras para dizer. Os homens da caverna, que nunca leram Piaget, já construíam o conhecimento, antes do advento da escrita. Novidade como teoria científica, sim. Mas não novidade como prática humana. O corpo sempre soube. Giambattista Vico, filósofo que viveu de 1668 a 1744, tinha clara consciência de que o conhecimento se adquire por um processo de construção. Crítico de Descartes, em sua Scienza nuova, ele afirma que “o verdadeiro (verum) e o feito (factum) podem ser convertidos um no outro” – só podemos conhecer com certeza aquilo que nós mesmos construímos ou criamos. O construtivismo, assim, não é novidade nem mesmo filosoficamente.

publicado às 14:07


As tartarugas tântricas

por Thynus, em 29.03.18
Um dia o cartunista Caco Galhardo leu uma entrevista do roqueiro Sting na qual ele se vangloriava de passar até cinco horas ininterruptas em atividade sexual com sua parceira, graças às técnicas de autocontrole erótico derivadas do tantra ioga que proporcionam ao homem horas a fio de ereção impecável e animus fornicandi de leão em tempo de acasalamento. Baixando o jornal, meu amigo Caco ruminou aquela informação até chegar a uma pergunta que endereçou a si mesmo: “Pra quê?”
Veja, o Caco não duvidava da palavra do Sting, que, bem a propósito, quer dizer zangão ou ainda picão em tradução fuleira. Só que ele não conseguia ver a graça em ficar cinco horas trepando sem parar. E sem tirar, conforme insinuava o Zangão do picão doidão. E ainda por cima com uma senhôra que há vinte anos é sua fiel parceira de folguedos sexuais, uma loiraça enxutérrima em seus sessenta aninhos, chamada Trudie, ela própria mestra de tantra iÔga, como parece ser correto dizer tanto na Inglaterra como em BertiÔga.
Mas, ao contrário dos adeptos dessa antiga modalidade transcendente de fuque-fuque desenvolvida na Índia há uns dois ou três milênios, mais ou menos (em se tratando da Índia, país de castas imutáveis, mulheres de sári e vacas sagradas, um milênio a mais, um a menos, não faz muita diferença), Caco afirma que, fosse ele o fodão tântrico, em algum momento da prolongada fodelança iria fatalmente sentir fome, cansaço, tédio, vontade de mijar, de dar um barrão, de ver futiba na TV, de qualquer outra coisa que não foder, foder e foder a mais não poder — foder.
Ao contrário do Caco, e de outros bichos que se reproduzem sexualmente, como este que vos fala, certos animais podem ficar muitas horas, senão dias cavucando sem parar na fêmea, com o inteiro beneplácito de madame, aliás. Uma vez, anos atrás, junto com amigos e seus filhos, levei minha filha mais velha, então com quatro anos, ao parque da Água Branca, em São Paulo. Logo ao entrar, topamos com o viveiro de umas tartarugas enormes, no qual um dos megacascudos, trepado no casco da sua amada, ocupava-se em meter-lhe uma longa e esquisitíssima trolha em formato de arraia com asas espadanantes, ou assim me pareceu. Nunca tinha visto nada assim e não pretendo ver de novo. O tartarugo imiscuía sua vararraia por trás e por baixo da fêmea, através de alguma fenda oculta na couraça da fofa. Claro que a minha filha, no candor da sua rósea infância, perguntou-me o que tanto as tartarugas estavam fazendo, uma trepada na outra. Fazendo tartaruguinhas, respondi, também com a máxima candura possível.
Deixando para trás as tartarugas em seu idílio cascudo, passamos as três horas seguintes no agradável parcão paulistano com ares rurais, onde se realizam leilões e exibições de cavalos e gado, e que era um dos meus destinos preferidos nos fins de semana ensolarados na época em que eu tinha filhas pequenas. Andamos no trenzinho que fazia o tour do enorme terreno, a gurizada se esbaldou nos brinquedos do parquinho, comemos cachorro-quente, nos lambuzamos de algodão-doce e sorvete, fomos ver uma exposição de filhotes de cachorro, gato, hamster, iguanas e tartaruguinhas aquáticas, na saída da qual, aliás, tivemos alguns previsíveis momentos de choro e malcriações por parte da criançada porque nós, os pais, não queríamos comprar filhotes de nenhum ser vivo que tivesse de ser alimentado com ração especial só pra cagar tudo depois em algum canto da casa.
Daí, andamos mais um pouco pelas intermináveis alamedas do parque, tendo já que carregar uma ou outra criança mais sonolenta e manhosa no colo, distraindo nosso olhar com os macaquinhos à solta nas árvores e, sobretudo, com as jovens e belas mamães que também passeavam seus filhotes. Porém, como nem eu nem meus amigos estávamos em condições de lhes oferecer nossas bananas — refiro-me aos macaquinhos, é claro —, atrelados que estávamos a filhos e patroas, seguimos em frente, já pensando em encerrar o passeio.
No fim da tarde, pois, devidamente passeados e alimentados, tocamos pra saída lateral do parque por onde havíamos entrado, passando de novo pelo viveiro das tartarugas tântricas. Lá estava o mesmo casal encouraçado ainda na função, ele a patinar com as patas da frente na couraça escorregadia de sua amante, com sua arraia peniana trabalhando sem descanso a oculta cloaca da parceira. E a coisa ainda parecia bem longe do fim. Às vezes as tartarugas (ou seriam cágados? — dúvida cruel e proparoxítona que ora me assalta) emitiam uns chiados tétricos que deviam significar:
“Vai fundo, Alfredão! Não para!”, exortava a fêmea.
“Cala a boca, Berenice! Assim você me desconcentra”, resmungava o incansável varão.
 
Me passou agorinha pela cabeça que os antepassados daquelas tartarugas ou cágados da Água Branca talvez tenham inventado o tal do sexo tântrico e, de alguma forma, repassado tal sabedoria aos humanos, que, afinal de contas, também são animais, e do tipo sempre interessado em novidades eróticas. Ou, quem sabe, pelo contrário, foram iniciadas nessas refinadas artes por algum tratador iogue ali do parque, tendo se tornado tartarugas tântricas, bem mais lúbricas que as tartarugas ninjas, que só querem saber de pizza e artes marciais.
Pois façam bom proveito, as tartarugas tântricas, se ainda estiverem lá na Água Branca, mais de duas décadas depois, promovendo o estranho espetáculo da reprodução de sua espécie. O mesmo desejo pro Sting, de quem só invejo o talento e a grana, pois, definitivamente, a exemplo do Caco Galhardo, não aspiro a um fôlego sexual que me faça ficar cinco horas a cavucá a perseguida da minha criolá, como diria Clementina de Jesus, muito embora eu viva pensando em sexo, acordado e dormindo, e tanto que às vezes suspeito que é o sexo quem está a me pensar.
O curioso é que, dias depois dessa minha conversa com o Caco, bati os olhos numa notícia de jornal relatando uma ocorrênca policial em Phoenix, Arizona, EUA. Reagindo a denúncias de vizinhos, a justa baixou num tal de Templo da Deusa (Temple of the Goddess), espécie de seita religiosa cujo objetivo prepúcio, digo, precípuo, é difundir a “sagrada cura sexual”, tendo por base justamente a tantra ioga. Olha aí outra vez o danado do sexo tântrico! — pensei, intrigado com a coincidência e disposto a me inteirar melhor daquela história.
O Templo da Deusa, fundado e liderado por Tracy Elise, ex-dona de casa do Alasca, de seus quarenta e oito anos, era pra ser mesmo uma igreja, mas não chegou a ser reconhecida oficialmente como tal, malgrado os esforços da “deusa” Tracy. O que pegava ali é que uma sessão de “cura do bloqueio sexual” à moda tântrica podia custar ao devoto até seiscentos e cinquenta dólares, detalhe que motivou a intranscendente polícia local a rotular tal prática de putaria pura e simples. E levou todo mundo em cana. Tracy, a “Mãe Mística”, como também se faz chamar, foi taxada de cafetina e suas colaboradoras de charlatãs e prostitutas, apesar de serem conhecidas no Templo da Deusa como “trabalhadoras corporais, assessoras sexuais, curadoras intuitivas e terapeutas tântricas certificadas”, entre outros nobres qualificativos.
 
Why Phoenix Goddess Temple Founder Couldn't Employ a Religious-Defense Argument

Mas, afinal, são ou não são putas as templárias da deusa? Ao meu ver, não são, sem deixar de ser, e vice-avesso do verso reverso, se me faço entender.
Essa Tracy Elise, antes de mais nada, é uma figuraça. Coroa já beirando os cinquenta, de petchones respeitáveis, ancuda, coxuda e bunduda, numa noite vadia, com dois ou três martínis na moringa, você não a jogaria aos tubarões se ela surgisse em sua linha de tiro. E a Tracy tem uma história e tanto pra contar.
Depois de um casamento de doze anos, em Fairbanks, Alasca, que lhe rendeu três filhos e a sensação de que a vida era só frio, cansaço e tédio, Tracy, seguindo um chamado divino, mandou a família plantar batata — ela, que tinha sido a Rainha da Colheita de uma prestigiosa feira agrícola do Alasca — e atravessou o Canadá ao volante de uma Dodge Caravan de segunda mão para iniciar uma vida de aventuras e bicos variados nos Estados Unidos, entre os quais se incluía um pouco de viração clássica pra segurar o básico da existência, até aportar em Phoenix com mil e duzentos dólares na bolsa e a missão de oferecer aos declinantes machos locais a “sagrada cura sexual neotântrica”.
Segundo a Mãe Mística declarou a um jornal de Phoenix, “eu estava na minha casinha, num conjunto habitacional, passando roupa e vendo um documentário no canal A&E sobre a Simone de Beauvoir e todos os amantes que ela teve. Pensei lá comigo que eu nunca ia ter uma vida tão excitante quanto a dela”.
A partir dessa epifania a cabo, Tracy Elise passou a frequentar uma livraria espiritualista de Fairbanks que promovia palestras sobre anjos, auras e habilidades psíquicas em geral. Também ouvia fitas com pregações do líder espiritual indiano Deepak Chopra enquanto preparava o jantar da família. Daí a embarcar na Caravan e se mandar de casa foi um passo — quase ia dizendo um piço, e não estaria muito longe da realidade.
A nova ordem religiosa, fundada em 2005, emplacou total, e tanto que, em 2008, Tracy abriu uma filial do Templo da Deusa em Sedona, também no Arizona, estado que, por ela, poderia se chamar Ali-Zona. Em 2009, porém, um novo empreendimento tântrico sob sua égide, em Seattle, acabaria enquadrado pela polícia. Ao abrigo do manto religioso hinduísta, as meninas sob o comando da Mãe Mística, também conhecidas pelo singelo rótulo de “deusas”, ofereciam aos fiéis pagantes modalidades de cura que incluíam “massagem tântrica”, “mimos eróticos” e “plenitude corporal absoluta”. A mesa de massagem era chamada de “altar da luz” e a velha e boa cama de “altar elevado”. O Templo da Deusa também oferecia seminários tipo “Maestria em Masturbação: como superar o vício em pornografia” e “Liberando a Ambrosia do Orgasmo”. (Hummm!) Orgasmo, aliás, é o conceito-chave da nova religião. “O orgasmo é um momento sagrado e divino”, afirma a deusa Tracy. “Você atinge a paz absoluta, não teme a morte e não vivencia a experiência da falta ou da separação.” Bacana, eu diria. Nada a ver com as entediantes maratonas de cinco horas de ripa na chulipa, ao estilo do Sting e das tartatugas tântricas do parque da Água Branca. O negócio ali era a plenitude do gozo, algo que o comum dos mortais alcança em questão de minutos, ou até de segundos, os mais afoitos, descontado o tempo gasto no ritual da pegação ou do jantar à luz de velas, se o sujeito é um velho e incurável romântico.
Tirando a “contribuição” de três dígitos, em dólar, que é de bom-tom ofertar ao Templo da Deusa por cada sessão neotântrica, admito que fiquei interessado no lance. Até porque as deusas — são sempre duas a atender cada fiel — não têm origem no basfond, sendo, ao contrário, moçoilas de família que exerciam honestas e modestas profissões, como contadora, despachante, enfermeira e bancária, antes de aderirem à igreja da ex-dona de casa do Alasca. Várias dessas deusas, ou terapeutas tântricas, são igualmente ex-mães de família em fuga de seus tediosos lares, como a própria Tracy. Quase todas continuam no xilindró lá em Phoenix, a Mãe Mística à frente, já que a justiça americana não aceitou o argumento de que o Templo da Deusa, por ser uma ordem religiosa, deveria se valer da liberdade de culto garantida pela primeira emenda da constituição do país.
Mas qual era o problema real com a Tracy Elise e suas deusas sexuais tântricas? — me perguntei eu, como também você deve estar a matutar. Afinal, lá nos States, tá cheio de boate com centenas de milhares de quengas se oferecendo aos clientes, do mesmo jeito que no Brasil e em centenas de outros países. E tá tudo mais ou menos certo. Ao mesmo tempo, pululam por lá seitas e igrejas as mais doidas imagináveis, regidas por autoproclamados pastores e bispos que ameaçam a humanidade com o fim do mundo na próxima semana caso um número significativo de fiéis não se disponha a orar e a contribuir com polpudos dízimos pra subornar Deus e convencê-lo a adiar o Juízo Final. E a turma também não se amola muito com isso.
Mas, no que a criativa Tracy teve a ideia de misturar as duas enfermarias, o sacro e o sexo, com a mediação da santa grana, deu merda. Americano é muito careta, mesmo. Pra eles, religião é religião, putaria é putaria. Foi na mistura das duas coisas que a porca torceu o rabo e as deusas entraram em cana. Além do quê, segundo devem ter pensado os puritanos de plantão, se a moda pega, todas as donas de casa entediadas e malcomidas da América vão acabar batendo à porta do Templo da Deusa em busca de emprego, prontas para oferecer aos machos disponíveis e solventes da nação umas colheradas da divina ambrosia do orgasmo. E aí? Quem vai cuidar do júnior, fritar o bife, lavar as cuecas e passar as camisas? É por isso que a justa levou as deusas tântricas em cana, pra garantir que Deus continue abençoando a América, e não as fogosas deusas tântricas.

(Reinaldo Moraes - O cheirinho do amor, crônicas safadas)

publicado às 23:35


A tecnologia do sexo

por Thynus, em 29.03.18
Se você não conseguir fazer com que as palavras trepem, não as masturbe.
 

Mais próximos?

 
 
Durex, no Brasil, foi sinônimo de fita adesiva durante muitos anos, mas, na Inglaterra, é a mais tradicional marca de camisinha, como muita gente sabe. Na verdade, é praticamente sinônimo da galochinha peniana, do mesmo jeito que Modess foi para absorventes e Gilette pra lâminas de barbear no Brasil. O que eu não sabia é que Durex, marca registrada em 1929, é um acrônimo de Durability, Reliability, and Excellence — durabilidade, confiabilidade e excelência, qualidades que todos nós gostaríamos de atribuir, por justo mérito, àquela parte do nosso corpo que recheia a camisinha na hora do vamo-vê.
Gozado que a sigla, em português, daria Ducex, com o cex soando a sex, algo bastante apropriado, no caso, muito embora, em se tratando do próprio pênis, o que a tigrada quer mesmo é que o mardito fique durex o maior tempo possível. E aqui vai um slogan que ofereço de graça ao fabricante da camisinha inglesa: “Dura lex sed lex, na piroca só Durex.” Mas é improvável que eles façam uso dele, até porque são firmas diferentes que fabricam a camisinha (Reckitt Benckiser) e a fita adesiva (3M do Brasil). Alguma possível confusão entre produtos tão diversos com o mesmo nome acabaria levando um consumidor desavisado a fazer embrulhos atados com camisinhas e a impermeabilizar o mandrová com incômodas laçadas de fita adesiva. Não ia dar muito certo.
Não sei quem introduziu a primeira camisinha lubrificada, muito menos onde e em quem foi introduzida, mas acho que essa foi uma das últimas grandes novidades tecnológicas em matéria de preservativos descartáveis, à parte a camisinha feminina, que, no meu entender, não vingou, e os novos materiais, muito mais finos que o látex tradicional, destinados a aumentar a sensibilidade do bilau encapado. De fato, a camisinha lubrificada foi uma grande ideia, que deve ter trazido alívio a não poucas xanas tímidas e rabicós estreantes pelo mundo afora. E adentro, claro. Mas, e agora? Qual o próximo passo tecnológico? A camisinha não vai mais se modernizar?
A resposta, que vai deixar os marmanjos de orelha e cabeças (as duas) em pé, é um sonoro e alvissareiro sim. Pra começar, em 2013, a Bill and Melinda Gates Foundation, instituição beneficente movida pela grana do fundador da Microsoft, lançou um desafio às mentes safadas pero inventivas do mundo todo, ao oferecer cem mil verdinhas a todos que viessem com boas ideias para tornar a camisinha mais prazerosa e fácil de usar. A intenção, claro, é estimular o uso do preservativo, ajudando assim a combater as doenças sexualmente transmissíveis e a gravidez indesejada. Muitos dos projetos apresentados, no entanto, eram total maluquice, o que era previsível.
O mais deliciosamente delirante, por exemplo, se propunha a dotar o pênis de um campo de força, do tipo que protegia a Enterprise do ataque de inimigos interestelares, como os sempre inconfiáveis klingons, no seriado Star Trek. No caso, o campo de força impediria vírus e bactérias de entrarem nos dutos e tecidos do pau, ao mesmo tempo em que barraria a saída de espermatozoides. Só me pergunto se o tal campo de força peniano não acabaria por rejeitar a própria periquita e sua dona. E onde ficariam as baterias para ativar o campo de força? No saco? Ai ai...
Outro Professor Pardal veio como uma pistola-estilingue que dispara uma camisinha contra a cabeça do bilau duro, recobrindo o dito membro com a membrana protetora numa fração de segundo: schlap! A ideia aqui é vestir logo a camisinha antes que a paudurice esmoreça ou que alguém mude de ideia. Até onde entendi, é a pessoa a ser penetrada quem deve disparar o tiro protetor contra a piroca intrusora, a qual deve antes se encaixar num compartimento da tal pistola. Tô fora.
Os projetos de fato aprovados vão quase todos na linha dos novos materiais, a exemplo da ideia apresentada por uma empresa de tecnologia médica que vai desenvolver camisinhas feitas de colágeno extraído dos tendões da vaca. Diz Mark McGlothin, o inventor da camisinha vacarina, que o colágeno se assemelha muito à mucosa da vagina, transmitindo todo o calor da bacurinha ao seu hóspede temporário. Muuuu!
As duas maiores novidades em matéria de sexo seguro, porém, já em fase adiantada de testes, envolvem a velha fábrica inglesa da Durex. Uma delas é ainda uma camisinha, só que dotada de um gel interno na ponta capaz de dilatar as artérias e aumentar o fluxo de sangue para o pênis, resultando em uma ereção a toda prova. A fórmula do gel é da Futura Medical, mas é a fábrica da Durex quem vai lançar o produto. O difícil é bolar uma boa propaganda para o produtor. Que tal: “Pau mole? Sem tesão? Durex é a solução!”

 
E vibra o Porto, carago!

A outra invenção, saída dos laboratórios da Reckitt Benckiser, detentora, como já disse, da marca Durex, é a que vai criar mais polêmica. Trata-se da roupa de baixo vibratória acionada à distância por um aplicativo baixado no smartphone. O negócio se chama “Fundawear” e se trata de um kit integrado por calcinha, sutiã e cueca dotados de sensores vibratórios acionáveis por controle remoto. Pelo que pude ver no vídeo de apresentação da Fodawear — ops! Fundawear —, você vai precisar de dois smartphones, um para ativar os sensores que bolinarão à distância os seios e as pudendas da sua gata, e ela o setor porta-pica da sua cueca, e outro para trocar imagens em tempo real, como no Skype, Facetime, Whatsup, Whadafuck etc.
O bagulho pode ser visto num vídeo demonstrativo que circula na internet protagonizado por uma morena gostosérrima envergando o conjunto calcinha e sutiã vibratórios, e por um carinha com a cueca do kit. Mas acho que logo vão inventar sensores que permitam maior grau de nudez. Em todo caso, o recado tecnológico parece claro: a depender dos cientistas high tech, o sexo presencial está com os dias contados. O coiso na coisa, a pele contra a pele, dedos e línguas em ação, a intensa troca de fluidos eróticos, tudo isso vai ser coisa de bicho do mato ou de gente paupérrima. As pessoas conectadas, num futuro que já bate (e chucha e futuca e bota a cabecinha) à nossa porta, vão se conhecer apenas através das redes sociais e todo fuque-fuque vai rolar por controle remoto, no estilo da “Fodawear”.
Quanto à procriação, ficará a cargo de técnicos de máscara e luvas cirúrgicas em laboratórios assépticos. Eles é que vão apresentar os espermatozoides aos óvulos, em larga escala, e não apenas em circunstâncias clínicas especiais, como hoje. Sem falar na arrepiante perspectiva com que nos acena a tecnologia cada vez mais desenvolvida da autoclonagem, em que as células do corpo são convidadas a reproduzir a si mesmas, descartando espermatozoides e óvulos.
Ou seja, a partir de daqui a pouco, quem corocô, corocô, quem não corocô vai ter que baixar um aplicativo de bolinação à distância — e não vai mais corocá, como diria o japonês da piada. Não no lugar de sempre, pelo menos. E só não me alongo mais nesta excitante disquisição futurista porque a minha cueca começou a vibrar aqui de um jeito muito estr-tr-tr-tr-tranho... ffffffff! .... Eita porra!


( Reinaldo Moraes - O cheirinho do amor, crônicas safadas)

publicado às 13:51


COSMÉTICA

por Thynus, em 27.03.18
Em francês [como em português] o termo cosmos deu, entre outras, a palavra cosmético. Na origem, é a ciência da beleza dos corpos, que deve estar atenta à justeza das proporções, e, posteriormente, à arte da maquilagem que deve pôr em relevo o que é “benfeito” (e dissimular, caso seja necessário, o que é menos...). É essa ordem, esse cosmos como tal, essa estrutura ordenada do universo todo que os gregos chamam de “divino” (theion), e não, como para os judeus ou os cristãos, um Ser exterior ao universo, que existiria antes dele e que o teria criado.
(Luc Ferry - Aprender a Viver
 
“Quanto mais vazia a carroça, maior o barulho que faz”
 
O escritor austríaco do início do século 20, Karl Kraus, escritor de aforismos como eu, conhecido como “língua de fogo”, dizia que a cosmética era a cosmologia da mulher. Claro que os chatinhos e as chatinhas acham que ele está dizendo que as mulheres não são capazes de entender cosmologia. Mas viver no nível banal do óbvio é típico dos corretos. Karl Kraus fala do lugar da beleza no universo feminino e de como isso é profundo na alma da mulher. Uma mulher que se sente feia é como um universo criado por um deus mau. Claro, os feinhos e as feinhas são contra a beleza porque não conseguem atingi-la e, sempre que se deseja muito algo e não se atinge, a alma deforma de inveja.
Dizer em voz alta que a cosmética é a cosmologia da mulher me dá vontade de sair na rua e agarrar a primeira mulher que eu encontrar e beijá-la. E provar seu gosto. Há uma certa leveza na constatação que faz Karl Kraus, leveza essa invisível para uma alma politicamente correta.
 
 
(GUIA POLITICAMENTE INCORRETO DO SEXO, LUIZ FELIPE PONDÉ)
 

publicado às 10:38


Dos saberes aos sabores

por Thynus, em 18.03.18
Alimentar-se está muito além de nutrir-se para sobreviver, pois diz sobre nossa identidade, sobre nossas crenças, sobre nossa história, sobre nosso passado, presente e futuro.


Sapio: eu saboreio.
 
O ato de ver exige distância. O objeto deve estar longe para poder ser visto. Na visão, o objeto é exterior ao corpo. O objeto visto é o objeto que não se tem. Sem essa separação entre o olho que vê e o objeto que é visto não pode existir objetividade.
O objeto de contemplação pode me dar conhecimento. Pode me dar o prazer do belo. Mas ele está distante de mim. Não posso comê-lo. Não mata a minha fome. Não me dá vida. Sinto-me tentado a concordar com um axioma de inspiração psicanalítica que diz que “a grande tristeza na vida humana, que começa na infância e continua até a morte é que ver e comer são duas operações diferentes. A beatitude eterna (o mito de Fedro) é um estado em que ver é comer”.73
 Barthes, ao afirmar que o envelhecimento o levara a cultivar a desaprendizagem dos saberes, confessou que ele aprendera, naquele momento de sua vida, que as dádivas dos olhos não lhe bastavam. Há um verso de T. S. Eliot que, creio, se aplica à experiência de Barthes: “E o fim de todas as nossas explorações será chegar ao lugar de onde partimos e conhecê-lo então pela primeira vez”. Os caminhos da alma são circulares, voltam sempre ao princípio. Ao final de sua longa caminhada de toda a vida pelos caminhos da ciência, ele se descobre chegando ao lugar de onde partira: o lugar da criança. Sapientia é conhecer a vida pela boca. É assim que a criancinha conhece o mundo, misticamente, de olhos fechados, a boca sugando o seio da mãe. Seio: primeira e inesquecível metáfora para o mundo. O mundo tem de ser um objeto de deleite. “Nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de sabedoria, e o máximo de sabor possível”.74 O sabor vive onde a visão morre: o contato. Os olhos são amantes apolíneos: sentem-se felizes em contemplar de longe o objeto amado. Mas a boca é dionisíaca: precisa comer o objeto amado.
Barthes anuncia aos seus ouvintes perplexos que está abandonando os respeitáveis instrumentos da ciência.Deixou a sala de aula, lugar dos saberes. Está se transferindo para a cozinha, lugar dos sabores.
Há textos que se parecem com uma lisa superfície de gelo sobre a qual o leitor desliza. O pensamento se move fácil: tudo lhe é conhecido com familiaridade. Mas, ao final desse exercício de patinação sobre o conhecido, o pensamento continua o mesmo. Quando as palavras deslizam suavemente como um patinador sobre o gelo, é certo que nada de novo irá surgir. Ao final, tudo estará como sempre foi. Bem que Hegel advertiu de que “o que é conhecido com familiaridade não é, de fato, conhecido, pela simples razão de ser familiar”.75
Barthes, mestre nas sutilezas da psicanálise, sabia que a verdade aparece no lapsus, quando o familiar é rachado, quando o pensamento tropeça. O francês tem uma palavra para sabedoria. É sagesse, palavra familiar, conhecida por todos. Barthes poderia tê-la usado. Não o fez. Ao invés de sagesse usou sapientia, latim. Barthes usou o latim para provocar uma queda. Sagesse, sabedoria, todo mundo pensa saber o que é. Mas, na “encruzilhada da etimologia”, ele encontra sapientia, que quer dizer conhecimento saboroso. Sapere, em latim, tem o duplo sentido de “saber” e “ter sabor”. Essa duplicidade de sentidos está preservada e esquecida no português. O Aurélio registra, para o verbo “saber”, ao lado do seu uso comum de “ter conhecimento”, o uso já fora de moda de “ter o sabor de”. Lembro-me do tempo em que se dizia: “Essa comida sabe bem”, isso é, “essa comida é saborosa”.
A “encruzilhada da etimologia” nos remete para o lugar onde os saberes do “eu” e os saberes do “corpo” entram em conflito, colidem, chocam-se.
O eu conhece com os olhos, vai vendo o mundo e dizendo o que sabe com ideias claras e distintas. O corpo, coisa viva, usa os olhos para ver os frutos à beira do caminho – ver para comer. Aí, quando come, lhe faltam palavras para comunicar os sabores dos frutos que come. Como dizer o gosto de um morango? A falta de clareza e distinção das palavras da sapientia não se deve a um defeito de comunicação que pode ser corrigido. Os sabores são, essencialmente, segredos, incomunicáveis. O objeto da sapientia está além das palavras.
Um enunciado científico diz um saber. Tudo o que precisa ser sabido se encontra no dito. A linguagem científica, dos saberes, não contém segredos. Posso confiar nas palavras, ficar com o que elas dizem. Devo tomá-las ao pé da letra, literalmente. Elas são fidedignas. O eu é a casa onde moram as palavras que não têm segredos. É com essas palavras que o eu é feito.
O corpo diz: “Isso é saboroso”. Ouço, entendo as palavras. Sei o que elas significam. A despeito disso, continuo “sem saber”, ou melhor, “sem sabor”. Nada sei sobre o sabor do saboroso. Para o sabor não há palavras. “Isso é saboroso”: essa afirmação não diz o sabor. O sabor não mora nela. Ela é usada como um ponto de exclamação e, ao mesmo tempo, como um dedo que aponta. Ela enuncia uma experiência de prazer e diz onde ele se encontra. As palavras do saber, ao contrário, contêm o seu objeto: o objeto do conhecimento é o seu enunciado. Na ciência, os saberes se fazem com palavras: artigos em periódicos. Assim, nas escolas, as provas se fazem com palavras. Os vestibulares, igualmente, são feitos com palavras. Passa quem sabe as palavras certas. Para os saberes, as palavras bastam. Escola não ensina o sabor. Não há formas de “avaliar” o sabor.
As palavras do sabor são bolsos vazios. Neles não há objetos que possam ser ditos. O sabor sempre fala sobre algo que não se encontra nas palavras. Para se saber o sabor do saboroso é preciso ir além das palavras, ao lugar em que o prazer acontece. Por isso não se pode nunca tomar as palavras do corpo “literalmente”. Com as palavras do corpo há de se trabalhar sempre com aquilo a que Nietzsche deu o nome de “a arte da desconfiança”. Essas palavras-bolso, cujo sentido está sempre fora delas, são o que se chama metáfora. Vale aqui o que disse Wittgenstein sobre sua própria filosofia: andaime. Andaimes cercam a casa, mas não são a casa. Construída a casa, desmontam-se os andaimes. Atingido o sabor, desmontam-se as palavras. O sabor mora no silêncio. As funduras do corpo estão além das palavras. Moram no silêncio. Os sabores são inefáveis, o prazer é inefável, não pode ser dito. “A ciência não pode calcular quantos cavalos de força existem nos encantos de um sabiá”, disse Manoel de Barros.76
Ciência são as palavras que dizem um saber. Sapientia são as palavras que apontam para um sabor. A ciência é escada encostada na jabuticabeira. Sapientia são as palavras que seduzem quem nunca chupou jabuticaba a experimentá-la; elas “tentam” a pessoa a subir na escada e a comer o fruto. A serpente tentadora é o símbolo da sabedoria. Ela seduziu Adão e Eva a um sabor desconhecido.
Quando acabam as jabuticabas, a escada fica encostada na árvore, sem uso, esquecida, à espera. Escadas são construídas com saber. Jabuticabas são gozadas com sabor. Saberes moram nas palavras. Sabores moram além das palavras: na boca. Na boca, o objeto é gozado no presente, sem palavras. Descubro, então, um sentido filosófico enviesado para o maternal conselho de boas maneiras à mesa: “Não se deve falar de boca cheia...”: é impossível dizer o gosto da comida. Gozando-se o sabor, as palavras tornam-se desnecessárias. As palavras, elas mesmas, estão sempre aquém do gozo.
Nietzsche assim resume o que foi dito:
“As nossas experiências verdadeiras não são tagarelas. Elas não poderiam se comunicar mesmo que quisessem. Isto é, falta-lhes a palavra. Tudo aquilo para que temos palavras é porque já fomos além. Em toda fala há uma pitada de desprezo. Parece que a linguagem foi inventada apenas para aquilo que é médio, comunicável.”77
Com o que concorda Adélia Prado: “A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda, foi inventada para ser calada”.78
Barthes confessa: “Até aqui construí escadas, construí saberes. Agora abandonei as escadas, abandonei os saberes. Dedico-me aos sabores das frutas que se encontram além da escada. Desejo agora ensinar os sabores. Mas os sabores não podem ser ditos. Ensinar sem falar: somente os taoístas conhecem essa arte impossível”.
“O sábio vai por aí fazendo o nada, ensinando o não falar...”79
 “Os que têm saber não são sábios; os que são sábios não têm saber”.80
A confissão de Barthes é uma heresia acadêmica. Equivale a um rompimento com a ortodoxia filosófica. Trocou os olhos pela boca, trocou a visão pela degustação, trocou os saberes pelos sabores.
É bem sabido que os saberes derivam-se da visão. Bachelard nota que, desde os antigos gregos, “o pensar é sempre entendido como uma extensão da óptica, a visão exercendo forte hegemonia sobre os demais sentidos”.81 
A ciência é uma criatura dos olhos. Surgiu como uma tecnologia para ver melhor. Esse é o sentido da palavra “teoria”: no grego ela quer dizer “contemplar”. Saber é ver. Nietzsche denunciou esse “vício da ocularidade” falando sobre os “percebedores puros”, que são todos aqueles que pretendem ser “objetivos” na sua forma de conhecer o mundo. É assim que ele os descreve:82
 “‘Isso deveria ser a coisa mais alta para a minha mente’ – assim o seu espírito mentiroso fala para si mesmo – ‘olhar para a vida sem desejo, e não como um cão, com a minha língua pendurada. Ser feliz em olhar, com uma vontade que morreu e sem o agarrar e o desejo do egoísmo, o corpo inteiro frio e reduzido a cinzas, mas com olhos bêbados iguais aos da lua. É disso que eu mais gostaria’ – assim o seduzido se seduz a si mesmo – ‘amar a terra da mesma forma como a lua a ama, tocar sua beleza só com os meus olhos. E isso é que a percepção imaculada de todas as coisas significará para mim: que eu nada desejo delas, exceto a permissão de ficar prostrado diante delas como um espelho com cem olhos.’”83 
Os objetos filosóficos são objetos de “contemplação”. Nunca li, em qualquer filósofo ou teólogo, referência a qualquer coisa que se aproximasse de “degustação”. “Degustar” um objeto filosófico? Essa palavra só pode aparecer num discurso filosófico como um “escorregão” poético...
Barthes fala sobre “o prazer do texto”: “o texto tem de me dar prova de que ele me deseja. A escritura é isso: a ciência das fruições da linguagem, seu kama-sutra”. As palavras não se dirigem apenas ao eu pensante. Elas fazem algo com o corpo: dão-lhe prazer.84 
Essa exigência do sabor do texto é a mesma exigência das cozinheiras ao preparar os seus pratos. A exigência de sabor faz Barthes abandonar os rigores da epistemologia e adotar as sutilezas de Babette... Suspeito que a cozinha seja a morada da sapientia...
Antes de Barthes, Nietzsche, meu filósofo mais querido, já tinha feito confissão semelhante. Zaratustra dizia amar aqueles “cuja cabeça é apenas as entranhas do coração”.85 “Entranhas”, no alemão “geweide”, que quer dizer intestinos, tripas, vísceras. As funções digestivas são metáfora das funções do pensar. Quem entende o comer e o digerir entende o que acontece na cabeça. Há uma pedagogia que se inspira na anatomia e na fisiologia do aparelho digestivo. Os professores deveriam tomar aulas de culinária.
Nietzsche é um bufão. Acredita na função intelectual do riso. Ri-se do “espírito alemão”. Diz que “a origem do espírito alemão se encontra em intestinos perturbados. O espírito alemão é uma indigestão”.86 Nietzsche pensa e escreve gastronomicamente. Seus textos não são idéias oferecidas ao eu. São sangue para o corpo beber. Lê-lo é uma experiência visceral: o corpo inteiro se mexe – mesmo quando não entende.
Escrevendo sobre Tales de Mileto ele disse o seguinte:
“A palavra grega que designa o ‘sábio’ se prende, etimologicamente, a sapio, eu saboreio, sapiens, o degustador, sisyphos, o homem de gosto mais apurado; um apurado degustar e distinguir, um significativo discernimento, constitui, pois, [...] a arte peculiar do filósofo. [...] A ciência, sem essa seleção, sem esse refinamento de gosto, precipita-se sobre tudo o que é possível saber, na cega avidez de querer conhecer a qualquer preço; enquanto o pensar filosófico está sempre no rastro das coisas dignas de serem sabidas...”87 
Zaratustra: “Eu honro as línguas e estômagos recalcitrantes seletivos, que aprenderam a dizer ‘eu’ e ‘sim’ e ‘não’. Mas mastigar e digerir tudo – essa é uma maneira suína”.88 
O refinamento de gosto torna o espírito seletivo: nem tudo é digno de ser comido. Digno de ser comido? Do ponto de vista do corpo, digno = gostoso, que dá prazer. Esse refinamento de gosto é a essência da “consciência crítica”. Consciência crítica é aquela que discrimina, separa o digno do indigno, o gostoso do não gostoso. Consciência crítica é um outro nome para consciência erótica. Erótico é o nome que se dá ao corpo, quando ele sente as coisas em função do prazer que elas lhe causam. O corpo erótico é o juiz que julga as coisas: as gostosas são comidas, vão para dentro do corpo. As não gostosas são rejeitadas, ficam fora do corpo. A criancinha que mama já conhece a essência da sabedoria...
Minha filha estava se iniciando na literatura, na escola. O professor exigiu a leitura do obra de Stendhal, O vermelho e o negro, obra pesada, gosto ruim na boca, indigesta no estômago. Fiquei com medo de que ela identificasse literatura com jiló. Jiló é bom, mas só para os gostos mais desenvolvidos e versáteis. Escrevi ao professor, lembrando-lhe o dito de Borges de que não há razão alguma para se ler um livro que não dá prazer se há tantos que dão prazer. Sugeri-lhe alternativas mais saborosas. Ele se justificou dizendo: “O meu objetivo é criar uma consciência crítica”. Com isso ele revelou sua posição política; a esquerda se parece com o espírito alemão, identifica consciência crítica com intestinos perturbados. A consciência crítica da esquerda é sempre a consciência infeliz: padece de indigestão crônica. Para Nietzsche, ao contrário, a consciência crítica é aquela que busca o prazer. É o prazer que nos ensina a discriminar. O gostoso é engolido; o não gostoso é cuspido para fora.
Ah! Que imagem deliciosa do cientista, essa criatura que come tudo o que vê à sua frente, sem fazer discriminação. É claro que esse filósofo de boca seletiva e estômago recalcitrante que Nietzsche contrapõe ao cientista, em função dos seus hábitos alimentares, não é o filósofo acadêmico, em tudo igual ao cientista, e que era objeto do seu desprezo. “Sou um discípulo do filósofo Dionísio”, ele diz no início de Ecce Homo.89 Dionísio, filósofo? O Sátiro, filósofo? Dionísio é a filosofia do corpo inteiro, por oposição a Apolo, que sente só com os olhos, filosofia ocular. “Qual é o sentido dos opostos conceptuais que introduzi na estética, apolíneo e dionisíaco, ambos concebidos como um tipo de êxtase? O êxtase apolíneo excita o olho, antes de mais nada... No estado dionisíaco, todo o sistema afetivo é excitado e aumentado...”90 
Imagino os dois, o filósofo nietzschiano, discípulo de Dionísio, e o cientista, acompanhado do seu colega filósofo acadêmico, diante de um bufê. Passam o cientista e o filósofo acadêmico. Dizem: “Se é possível de ser transformado em comida, deve ser comido. Se é possível ser pensado, deve ser transformado em tese”. A pergunta: “É digno de ser comido?” – ou “O que é gostoso? O que não é gostoso?” – não é levantada. Basta que a coisa possa ser preparada segundo a culinária ortodoxa, a que se dá o nome de “método”. Assim são as teses. Se foram preparadas com o método certo – não importa que o resultado seja um suflê de losna –, ele é comido por todos os membros da banca examinadora e aprovado. Enquanto o filósofo nietzschiano, antes de escolher qualquer coisa, pergunta ao corpo: “O que é que você deseja comer?”. Somente o corpo pode separar o digno do indigno. “Somente lhe são saborosas as coisas que lhe são boas.”91 Os sábios só aprovam com a cabeça depois de provar com o corpo. Barthes desaprende e esquece a fim de se tornar sábio, aquele que degusta o mundo.
Agora, esquecido e desaprendido, adota a ontologia das cozinheiras. Mas que absurdo é esse, dizer que cozinheiras têm ontologia, como se elas fossem filósofas?! Aí eu invoco o testemunho de Peirce, filósofo de rigor lógico inquestionável, para explicar para os desentendidos o que estou dizendo. No seu ensaio sobre “Como tornar as nossas ideias claras”, ele afirma o seguinte:
“Nossa ideia de qualquer coisa é nossa ideia dos seus efeitos sensíveis. (Assim) considere quais efeitos que possivelmente possam ter consequências práticas, que nós imaginamos que o objeto em questão tenha. Então, nossa concepção desses efeitos é a totalidade da nossa concepção do objeto.”92
As cozinheiras trabalham com efeitos sensíveis: o prato tem de ser gostoso; o prato tem de ser cheiroso; o prato tem de ser bonito (a função do urucum, colorau, é só pintar de vermelho); o prato tem de ser excitante ao tato – por isso a pimenta, por isso o cuidado para que não fique nem duro demais nem mole demais. Quando uma cozinheira pensa-cozinha ela leva em consideração a totalidade dos efeitos práticos que o prato que ela está preparando irá ter sobre aquele que vai degustá-lo. Ela pensa a partir da boca, elabora uma ontologia do gosto.93
Ontologia culinária: o objeto é aquilo que a boca degusta. O objeto é o gosto que ele tem. Para o corpo, o objeto é a excitação que ele provoca sobre ele, sob a forma de gosto. Se Kant tivesse aprendido com as cozinheiras, o texto ocular que escreveu na Crítica da razão pura teria sido escrito de outra forma:
“O que os objetos são, neles mesmos, fora da forma como são degustados pela nossa boca, permanece completamente desconhecido para nós. Nada conhecemos a não ser o seu gosto – um gosto que nos é peculiar e não necessariamente compartilhado por todos os seres.”94 
Mas não só do gosto. Todos os outros sentidos, sob a primazia da boca, se juntam para produzir o prato imaginado.


(Rubem Alves - Variações sobre o Prazer)

NOTAS;
73 Norman O. Brown, Love´s Body, p. 167. O grande desejo dos poetas – seu sonho alquímico – é transformar o visível em comestível.
74 Roland Barthes, Aula, p. 47.
 75 G. W. F. Hegel, The Phenomenology of Mind, p. 92.
 76 Manoel de Barros, Livro sobre nada, p. 53.
 77 FN III (II), p. 451, O crepúsculo dos ídolos.
 78 Adélia Prado, Poesia reunida, p. 22.
 79 Tao-Te-Ching, poema II.
80 Tao-Te-Ching, poema lxxxi.
 81 O direito de sonhar, pp. xiii-xiv. Bachelard se deu conta da ditadura da visão em nossa tradição filosófica e a denunciou como o “vício da ocularidade” da ciência.
82 Numa seção do Assim falou Zaratustra, intitulada “Sobre a imaculada percepção”
 83 FN II (II), p. 652, Assim falou Zaratustra.
84 Fruições da linguagem: “fruição” é derivado de “fruta”. Usufruto, usufruir. Escritura como fruta: algo a ser comido não para alimentar, mas para ter prazer. Releia o poema do Mário Quintana.
 85 FN II (II), p. 557, Assim falou Zaratustra.
86 FN III (II), p. 529, Ecce Homo.
87 Pré-socráticos, p. 18, tradução de Ernildo Stein. FN III (III), p. 1.071, A filosofia na época trágica dos gregos.
 88 FN II (II), p. 716, Assim falou Zaratustra.
 89 FN III (II), p. 511.
 90 FN III (II), p. 442, O crepúsculo dos ídolos.
  91 FN III (II), p. 518, Ecce Homo.
 92 Charles Sanders Peirce, “How to Make our Ideas Clear”, in Buchler, J. (org.), Philosophical Writings of Peirce, p. 31.
93 Lutero, teologando, dizia: “Conhecer a Cristo é conhecer os seus benefícios”. A cozinheira diz: “Conhecer uma comida é conhecer o seu gosto”.
 94 O texto de Kant, na Crítica da razão pura, diz o seguinte: “O que os objetos são, em si mesmos, fora da maneira como a nossa sensibilidade os recebe, permanece totalmente desconhecido para nós. Não conhecemos coisa alguma a não ser o nosso modo de perceber tais objetos – um modo que nos é peculiar e não necessariamente compartilhado por todos os seres...”. Crítica da razão pura, p. 54

publicado às 00:34


Frases de Eckhart Toolle

por Thynus, em 11.03.18
 .
 

"As soluções sempre aparecem quando saímos do pensamento
e ficamos em silêncio, absolutamente presentes, ainda que seja só por um instante"

 ''Onde quer que você esteja, esteja por inteiro.''

 Nós fortalecemos tudo aquilo que combatemos, enquanto todas as coisas a que resistimos persistem.

 ... viver no AGORA é o melhor caminho para a felicidade e a iluminação.

Qualquer coisa da qual nos ressentimos no outro e à qual reagimos com intensidade também existe em nós.

 É necessário que as coisas acabem, para que coisas novas aconteçam…”

''A vida é agora. Nunca houve um momento em que a sua vida não foi agora, nem nunca haverá.''

 Olhe para uma árvore, uma flor, uma planta. Deixe sua atenção repousar nelas. Note como estão calmas, profundamente enraizadas no Ser. Deixe que a natureza lhe ensine o que é a calma.

 Alguns ensinamentos espirituais dizem que todo sofrimento é, em última análise, uma ilusão, e isso é verdade.

 A verdadeira inteligência atua silenciosamente. A calma é o lugar onde a criatividade e a solução dos problemas são encontrados.

 Quando você perde contato com sua calma interior, perde
contato com você mesmo. Quando perde esse contato,
fica perdido no mundo.

 Sua mais íntima noção de si mesmo, de quem você é, não
pode ser separada da calma. Ela é o EU SOU, mais profundo do que seu nome e sua forma externa.

 Quando você olha para uma árvore e percebe a calma da árvore, você também se acalma. Você se conecta a árvore num nível muito profundo. Você sente uma unidade com tudo que percebe na calma e através dela. Sentir a sua unidade com todas as coisas é amor.

 O que significa: "Você olha para a realidade atravês do crivo dos seus pensamentos. Através dos seus julgamentos que são condicionados pelo passado"

O que quer que você lute, você fortalece, e o que você resiste, persiste.

 Quando você percebe o silêncio, instala-se imediatamente uma calma alerta no seu interior. Você está presente. Nesses momentos você se liberta de milhares de anos de condicionamento humano e coletivo.

Seja qual for o conteúdo do momento presente, aceite-o como se você o tivesse escolhido. Sempre trabalhe com ele, não contra ele. Torne-o seu amigo e aliado, não seu inimigo. Isso vai milagrosamente transformar toda a sua vida.

 No momento em que compreendemos que não somos a nossa mente, não existe muito mais a aprender ou a compreender.

 É claro que o que elas estão dizendo, na verdade é: "Vou te dizer QUEM EU SOU"... vocês conhecem o famoso ditado: Nós não vemos as coisas como elas são, nós vemos as Coisas como NÓS somos"

 É como uma persiana, pior que uma persiana! Você olha para realidade através de véus muito pesados...

 "É bom saber que só somos responsáveis por nós mesmos.. =)

"Eu preciso ser a mudança que desejo ver no mundo!"

 "Então você aceita o que aquele momento é e entra plenamente nele."

"Você sente uma vitalidade no que seja que você olhe, que não é diferente da vitalidade que está em você. Todas as coisas tem PRESENÇA EM SI"

"Você sente uma vitalidade no que seja que você olhe, que não é diferente da vitalidade que está em você. Todas as coisas tem PRESENÇA EM SI, SIMPLISMENTE OLHANDO"

Perdoar é abrir mão dos nossos ressentimentos e deixar que se desprendam de nós... é não oferecer resistência à vida, é permitir que a vida aconteça através de você.

Reconhecer tudo que você já tem de bom na
vida é a base de toda abundância.

 A vida vai lhe dar a experiência que for mais útil para a evolução da sua consciência. Como você sabe que esta é a experiência que você precisa? Porque esta é a experiência que você está tendo no momento.

 O eterno presente é o espaço dentro do qual se desenvolve toda a nossa vida, o único fator que permanece constante. A vida é agora. Nunca houve uma época em que a nossa vida não fosse agora, nem haverá.

 Quando criamos um problema criamos um sofrimento, não importa o que aconteca, não vou mais criar problemas nem sofrimento para mim. Se vc alguma vez esteve numa situação emergência sabera que isso não foi um problema. A mente não teve tempo para se distrair e transformar a situação em problema.

 A calma é nossa natureza essencial. O que é a calma? É o espaço interior ou a consciência onde as palavras desta página são assimiladas e se transformam em pensamentos.
Sem essa consciência, não haveria percepção, não haveria pensamentos nem mundo.

Você é essa consciência em forma de pessoa.´

publicado às 18:09


O internato

por Thynus, em 09.03.18
 
 
 
Tanto tempo já passou.
E a dor que machucou não vai embora.
Naquele escuro foi refém
Ameaçada dizendo, não diga a ninguém.


Quanto chorou.
Sua inocência foi roubada
A infância só era medo.
Não tinha a quem correr.
Contar será que alguém iria entender.


Te peço meu Deus.
Vem e escute o choro de cada criança.
Que são ameaçadas e vivem sem esperança.


Me ajude a proteger e não me calar.
Tanta pureza que vejo em cada olhar.
Quando eu vir um covarde querendo violentar, me dê forças pra denunciar.
E usar meus rabiscos pra clamar.
Sempre está acontecendo na família rica ou pobre.
Sempre existe um monstro a acabar com o sonho de uma criança.

 
O crime de pedofilia, que atormenta a igreja católica contemporaneamente, portanto,não se aplica aos deslizes morais do padre Dobo. Seus pecados, aos olhos da moral católica da época, eram outros. 
Esta é uma história da vida no Brasil há muitos anos, longe das cidades, onde ainda prevaleciam os costumes de um catolicismo muito rígido. Os meninos bem-nascidos eram mandados para internatos dirigidos por jesuítas, que persistiam nos severos hábitos da Idade Média. Os meninos dormiam em camas de madeira, levantavam-se de madrugada, iam à missa em jejum, confessavam-se todos os dias e eram observados e espionados constantemente. O ambiente era austero e opressor. Os padres faziam suas refeições à parte e criavam uma aura de santidade em torno de si. Seus gestos e seu modo de falar eram padronizados.
Entre os jesuítas, havia um com um pouco de sangue indígena, muito moreno, o rosto de um sátiro, orelhas enormes grudadas na cabeça, olhos penetrantes, boca de lábios moles sempre babando, cabelos grossos e cheiro de animal. Por baixo de sua batina castanha os meninos observavam com freqüência uma protuberância que os mais moços não sabiam explicar e de que os mais velhos riam às escondidas. Essa protuberância aparecia inesperadamente e a qualquer instante: quando a classe lia o Dom Quixote ou Rabelais, ou às vezes quando ele meramente observava os meninos — e um deles em particular, oúnico louro da escola, com os olhos e a pele de uma garota.
O padre gostava de chamar esse menino e lhe mostrar os livros de sua coleção particular. Eram livros que continham reproduções da cerâmica inca com muitas figuras de homens de pé uns contra os outros. O menino fazia perguntas a que o velho padre tinha que responder ardilosamente. As vezes as figuras eram bem claras; um longo membro saía do meio de um homem e penetrava em outro, por trás.
Na confissão, esse padre atormentava os meninos com perguntas. Quanto mais inocentes parecessem ser, mais perguntas lhes fazia na escuridão do pequeno confessionário. Os meninos,ajoelhados, não podiam vê-lo, pois o padre estava sentado no escuro. Sua voz grave vinha através da tela de uma janelinha: — Você teve fantasias sensuais? Tentou imaginar uma mulher nua? Como se comporta à noite, na cama? Algum dia você já se apalpou? Já se acariciou? O que você faz de manhã, quando se levanta? Tem ereção? Já tentou olhar os outros meninos quando eles estão trocando de roupa? Ou na hora do banho?
O JESUÍTA LASCIVO DE ANAÏS NIN
 
Orientado por essas perguntas, o menino que não sabia nada logo aprendia o que era esperado dele. Os que sabiam sentiam prazer em contar cada detalhe de suas emoções e de seus sonhos. Certo menino sonhava todas as noites. Não sabia como eram as mulheres, como eram feitas. Mas tinha visto os índios fazerem amor com vicunhas, animais que se parecem com um mimoso veado. E sonhava que fazia amor com vicunhas, e acordava todo molhado manhã após manhã. O velho padre encorajava essas confissões. Impunha estranhas penitências. A um garoto que se masturbava continuamente mandou que fosse à capela com ele, quando ninguém mais estava presente, e mergulhasse o pênis na água benta, para assim ser purificado.
Tal cerimônia foi realizada com grande sigilo, a noite.
Um dos meninos parecia um príncipe mouro com seu rosto escuro, feições nobres, porte aristocrático e um belo corpo tão macio que não aparecia um único osso, esbelto e polido como uma estátua. Esse menino se rebelava contra o uso de camisas de dormir. Estava acostumado a dormir nu e o camisolão o afrontava, o abafava. Assim, todas as noites ele se vestia como os companheiros e depois se despia às escondidas, sob as cobertas.
Não se passava uma noite sem que o velho jesuíta fizesse suas rondas, cuidando para que nenhum menino visitasse outro na cama, ou se masturbasse, ou ficasse conversando com o vizinho no escuro. Quando chegava à cama do indisciplinado, erguia sua coberta lenta e cautelosamente para olhar seu corpo nu. Se o garoto acordava, ele o recriminava: — Vim ver se você estava dormindo de novo sem seu camisolão!
Mas se ele não acordava, o velho jesuíta se contentava em dirigir um longo olhar ao jovem e belo corpo.
Um dia, durante uma aula de anatomia, quando ele estava no tablado dos professores e o garoto louro que parecia uma menina se encontrava bem à sua frente, a protuberância que havia por baixo da batina se tornou evidente aos olhos de todos.
Ele perguntou ao menino louro: — Quantos ossos o homem tem no corpo?
O garoto respondeu meigamente: — Duzentos e oito.
Outra voz infantil veio do fundo da sala: — Mas o padre Dobo tem duzentos e nove!
Foi logo após esse incidente que os meninos foram levados a uma excursão botânica. Dez deles se perderam. Entre eles se encontrava o garoto louro. Eles foram parar em uma floresta, bem longe dos professores e do resto dos colegas. Sentaram-se para descansar e decidir que linha de ação deveriam tomar. Começaram a comer amoras. Como iniciou, ninguém soube, mas depois de algum tempo o menino louro foi jogado ao chão, despido, virado de bruços e os outros nove meninos passaram por cima dele, tratando-o como o fariam com uma prostituta, brutalmente. Os garotos experimentados meteram em seu ânus a fim de satisfazer seu desejo, enquanto os menos experientes se esfregaram em suas pernas, cuja pele era tão fina quanto a de uma mulher. Cuspiram nas mãos e esfregaram saliva nos pênis. O menino louro gritou, esperneou e chorou, mas os outros o seguraram e o usaram até que se saciaram.

(Anaïs Nin - DELTA DE VÊNUS)

publicado às 22:08

Os séculos ditos “modernos” do Renascimento não foram tão modernos assim. Um fosso era então cavado: de um lado, os sentimentos, e do outro, a sexualidade. Mulheres jovens da elite eram vendidas, como qualquer animal, nos mercados matrimoniais. Excluía-se o amor dessas transações. Proibiam-se as relações sexuais antes do casamento. Instituíram-se camisolas de dormir para ambos os sexos. O ascetismo tornava-se o valor supremo. Idolatrava-se a pureza feminina na figura da Virgem Maria. Para as igrejas cristãs, toda relação sexual que não tivesse por finalidade a procriação confundia-se com prostituição. Em toda a Europa, as autoridades religiosas tinham sucesso ao transformar o ato sexual e qualquer atrativo feminino em tentação diabólica. Na Itália, condenava-se à morte os homens que se aventurassem a beijar uma mulher casada. Na Inglaterra, decapitavam-se as adúlteras. E em Portugal, sodomitas eram queimados em praça pública.
A concepção do sexo como pecado, característica do cristianismo, implicava a proibição de tudo o que desse prazer. Desde as carícias que faziam parte dos preparativos do encontro sexual até singelos galanteios. Na verdade, os casamentos contratados pelas famílias, em que pouco contava a existência ou não de atração entre os noivos, submetidos a constante vigilância, deixavam pouco espaço para as práticas galantes, que precisaram se adaptar às proibições. Mensagens e gestos amorosos esgueiravam-se pelas frinchas das janelas ou sobrevoavam o abanar dos leques.
Tanto controle transformava as cerimônias religiosas (uma das únicas ocasiões em que os jovens podiam encontrar-se sem despertar suspeitas e repressões dos pais ou confessores) em palco privilegiado para o namoro. Não foram poucos os amores que começaram num dia de festa do padroeiro ou de procissão, havendo até os que esperavam a Quinta-feira Santa e o momento em que se apagavam as velas, dentro da Igreja, em respeito à Paixão de Cristo, para aproximar-se um do outro. E, no escurinho, choviam beliscões, pisadelas e gestos eróticos.
As igrejas paroquiais foram convertidas, nesse tempo, em espaço para namoricos, marcação de encontros proibidos e traições conjugais. Não foram poucas as ordens dadas por bispos setecentistas exigindo a separação de homens e mulheres no interior das capelas. O clero temia os encontros e suas consequências. Compreende-se, assim, o porquê de uma carta pastoral como a de dom Alexandre Marques, de 1732, proibindo a entrada nas igrejas de “pessoas casadas que estiverem ausentes de seus consortes”. Nas igrejas, brotavam romances sem limites. Não por acaso, um manual português de 1681, escrito por dom Cristóvão de Aguirre, continha as seguintes perguntas: “a cópula tida entre os casais na Igreja tem especial malícia de sacrilégio? Ainda que se faça ocultamente?”. Lugar de culto, lugar público, a igreja seria, então, também um lugar de sedução e de prazer. Onde, vez por outra, Deus dava licença ao Diabo...
No Brasil, as missas do século XVIII eram animadas por toda sorte de risos, acenos e olhares furtivos, transformando as igrejas, para desgosto dos bispos, em concorridos templos de perdição. Mal iluminadas, suas arcadas e colunas e os múltiplos altares laterais ofereciam recantos, resguardados da curiosidade alheia, onde se podia até mesmo tentar gestos ousados: do beijo ao intercurso sexual. A costumeira reclusão das donzelas de família e a permanente vigilância a que estavam expostos todos os seus passos tornavam missas, procissões, ladainhas e novenas ocasiões sedutoras, para as quais contribuíam os moleques de recado e as alcoviteiras, ajudando a tramar encontros. Abrigo de amantes, a igreja logrou converter-se, em certas circunstâncias, num dos raros espaços privados de conversações amorosas e jogos eróticos, nos quais se envolviam nada menos do que os próprios confessores. E tais jogos eram perpetrados até mesmo no refúgio dos confessionários.
 
Mocinha no Confessionário...
Tal foi o sucedido com Marciana Evangelha, moça solteira de 29 anos que, no Maranhão, denunciara o jesuíta José Cardoso ao comissário do Santo Ofício em outubro de 1753. Ela o acusara de pedir-lhe “seu sêmen”, de dizer que “a desejava ver nua” e ainda de lhe pegar “nos peitos no confessionário”. Sobre as relações do padre e a moça, sabia-se, por exemplo – e é o comissário quem anota –, que “o trazia doido e fora de si e que por ela perdia muitas vezes o sono da noite, o que nunca lhe sucedera com outra mulher alguma”, e que “por amor dela havia de sair fora da religião”. Seduzida por declarações ardentes e promessas, a moça atrapalhava-se nos depoimentos. Tanto que, passados mais dois dias, voltou novamente à presença do comissário para declarar que o padre lhe garantira que, “se consentisse com ele lhe daria remédio para que ficando corrupta parecesse virgem e que para não conceber lhe daria também remédio”.
Românticos não eram raros. E havia alguns como o padre Francisco Xavier Tavares, capaz de uma súplica cavalheiresca a Maria Joaquina da Assunção, mulher casada: “se queria ter com ele uns amores e se consentia que ele fosse a sua casa”. Outros confessores chegavam a requintes galantes, ofertando flores às suas escolhidas em pleno confessionário ou fazendo como o padre Custódio Bernardo Fernandes, que, no Recolhimento das Macaúbas, em Minas Gerais, dissera a Catarina Vitória de Jesus que lhe queria bem. Mais, perguntando se ela era sua, meteu na boca um raminho, pedindo a ela que o puxasse com seus dentes.
Mas existia, também, o avesso da história. O confessionário era tido como espaço ideal para abordagem de mulheres diabolicamente sedutoras. Na Bahia, ao receber “um escrito” amoroso da parda Violante Maria, o pároco João Ferreira Ribeiro mandou-lhe um recado “por um mulato seu confidente” para que fosse à igreja de Santo Antônio e, acabada a missa, se encontrasse com ele no confessionário. Marcaram então um encontro no caminho que ia para o lago e “lá entraram ambos no mato e teve ele acesso carnal a ela”. Fora dela que partira a iniciativa da conquista.
Essas atitudes parecem surpreendentes, sobretudo por virem de indivíduos que deveriam atuar como agentes da Reforma Católica dos costumes. Chocante? Não. As pesquisas têm demonstrado que as ideias reformadoras de católicos e protestantes só lentamente se traduziram em efetivas mudanças de comportamento por parte da população cristã. O processo variou em seu ritmo conforme as regiões atingidas, mesmo se considerarmos apenas o continente europeu. A exportação da Reforma Católica para o além-mar multiplicou as dificuldades normalmente impostas a uma tarefa dessa natureza. Basta lembrar as grandes distâncias, a falta de clérigos, a precária estrutura paroquial em um imenso território de ocupação populacional dispersa, as peculiaridades culturais de uma sociedade híbrida na qual se despejavam continuamente, através do degredo, elementos desviantes da metrópole, os vícios inerentes à escravidão e ao desmedido poder local concedido aos senhores. Isso tudo atrasou a efetivação da Reforma – entendida como projeto da aculturação – na colônia. Isso tudo retardou a possibilidade de os padres serem homens acima de qualquer suspeita. Como tantos, eram feitos de carne e osso. Mais carne, até.

(MARY DEL PRIORE - Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil)
 

publicado às 19:41


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