Como suas pernas de pau não o obedeciam salvo em sonhos, jogou o futebol com a palavra. Com ela, como mendigo do bom futebol, suplicava “por uma linda jogadinha, pelo amor de Deus”, o que chegava a neutralizar sua paixão pelo Nacional e pela Celeste. Até deixou de se importar com as cores daqueles jogadores que lhe ofereciam a alegria “do jogo bem jogado” e, toda vez que começava uma Copa do Mundo, ele e sua companheira Helena colavam na porta de casa o seguinte cartaz: “Fechado por motivo de futebol”. Era seu estádio, “porque não há nada menos vazio que um estádio vazio” e ele se submetia à ditadura da “telecracia”. Ali, como nos campos ao vivo, desfrutava do ídolo, fácil de identificar porque “a bola o procura, o reconhece e necessita dele”. Também se compadecia do jogador no ocaso, “a quem a fama, senhora fugaz, não lhe deixava nem uma carinha de consolo” em seu retiro.
Não sofria só pelo jogador, o ídolo caído. Tinha sentimentos conflitantes com a “orgulhosa e vaidosa bola”. A menina, carícia verbal dos brasileiros, tinha motivos para a petulância: “Bem sabe ela que dá alegria a muitas almas quando se eleva com graça, e que são muitas as almas que se encolhem quando ela cai de qualquer jeito”.
Nessa “triste viagem do prazer ao dever” feita pelo futebol, o gol era um pesadelo, sinal dos tempos modernos. “O gol é o orgasmo do futebol e, assim como o orgasmo, é cada vez menos frequente na vida moderna.” Grande culpa tinham os goleiros, “desmancha-prazeres do gol que bem poderiam ser chamados de mártires, paganinis, penitentes ou palhaços das bofetadas”. Como Zamora, “pânico dos zagueiros”, porque se olhavam para ele “o gol se encolhia e as traves se afastavam até perderem-se de vista”. E Yashin, “braços de aranha e mãos de tenaz”.
Para alívio orgásmico aí estavam os grandes zagueiros, os que faziam do gol um dó de peito. O brasileiro Friedenreich, filho de um alemão e uma lavadeira negra, gênio do Sulamericano de 1919, “que fez mais gols que Pelé” e mudou a geometria de todo um país: “Desde Friedenreich, o futebol brasileiro que é deveras brasileiro não tem ângulos retos, como também não têm as montanhas do Rio nem os edifícios de Niemeyer”. Sem esquecer seu compatriota Leônidas, “a quem na Copa de 34 contaram-lhe seis pernas e disseram que era coisa de magia negra”.
Os primeiros totens brasileiros foram sucedidos por um rei, Pelé: “Quando ia correndo passava através dos rivais, como uma faca. Quando parava, os rivais se perdiam nos labirintos que suas pernas desenhavam. Quando pulava, subia no ar como se o ar fosse uma escada. Quando batia um tiro livre, os rivais que formavam a barreira queriam ficar ao contrário, de cara para a meta, para não perder o golaço”. Com Pelé foi convocado para a seleção alguém que driblava como “um Chaplin em câmera lenta que morreu de sua morte: pobre, bêbado e sozinho”. Tinha o apelido de um passarinho feioso e inútil: Garrincha.
Ao entronizado Pelé só Di Stéfano discutia sua majestade, pois “todo o campo de jogo cabia em seus sapatos”. A Flecha jogou no Real Madrid com Kopa, “um francês chamado de Napoleão do futebol, porque era baixinho e conquistador de territórios”. E pela margem esquerda do histórico Madrid voava Gento, “um foragido que tinha sua prisão pedida por todas as equipes rivais, a quem às vezes conseguiam prender em cadeias de segurança máxima, mas sempre se safava”. O Madrid, primeiro colonizador da Copa da Europa, era exigido, e muito, pelo poderoso Benfica, que por esses paradoxos do futebol era liderado por Ninguém. Tinha nascido “destinado a lustrar sapatos, vender amendoim ou roubar os distraídos”. Era Eusébio, “um africano de Moçambique o melhor jogador da história de Portugal”.
Também não há dúvida de quem foi o melhor jogador da Holanda. Cruyff foi “um maestro e músico de fila, provocante, trabalhador e talentoso”. O caminho do gênio cor-de-laranja foi cruzado pelo Torpedo Müller, um depredador “disfarçado de vovozinha” para o qual “a rede era a renda do vestido de noiva de uma garota irresistível”. Nos anos oitenta apareceu Platini, que fazia “gols de ilusionista desses que não podem ser verdade”. O mesmo acontecia com o brasileiro Zico, “que metia gols que os cegos queriam que lhes contassem”.
Romário era um personagem de desenho animado, “que ensaiava na favela de sua infância os muitos autógrafos que ia assinar no futuro”. Um futebolista “que subiu à fama sem pagar os impostos da mentira obrigatória: se deu ao luxo de fazer sempre o que queria”. Um enigma este Romário, de pernas arqueadas e traseiro baixo. E nesse jogo nunca lhe faltaram segredos. Como o de Baggio. “Seu futebol tem mistério: as pernas pensam por conta própria, o pé dispara sozinho, os olhos veem os gols antes de ocorrerem”.
E para gigantes futebolísticos de corpos recortados, Maradona e Messi. O cabeludo, “no frígido futebol do fim do século XX, que exige ganhar e proíbe gozar, é dos poucos que demonstra que a fantasia pode ser eficaz”. Ocorre que o Diego “jogou, venceu, mijou e perdeu”. A história de Messi nos dedos de Galeano teve de esperar. Teria merecido uma edição inteira de Sua Majestade o Futebol (1968), mas o escritor uruguaio encerrou sua segunda grande partida literária em 1995. E o fez assim: “Escrevendo ia fazer com as mãos o que nunca ia ser capaz de fazer com os pés, eu não tinha outro remédio além de pedir para as palavras o que a bola, tão desejada, me tinha negado. Desse desafio, e dessa necessidade de expiação, nasceu este livro (...) Não sei se é o que quis ser, mas chegou a sua última página. E eu fico com essa melancolia irremediável que todos sentimos depois do amor e no fim da partida”. Chamou-se Futebol ao Sol e à Sombra. Um incunábulo, gols em verso.
Um ficou de fora. Messi, o último grande assombro para o maior trovador do futebol. Galeano, em uma entrevista ao jornal La Nación, defendeu sua tese da messiologia: “Inventei uma teoria, que fiz chegar até ele pelo diretor técnico da seleção: assim como Maradona tinha a bola amarrada no pé, Messi tem a bola dentro do pé. O que é um fenômeno físico. Inverossímil. A frase chegou até ele. E pelo jeito gostou, porque me mandou uma camisa de presente. Cientificamente é impossível, mas é verdade!”.
Palavra de quem aprendeu com Juan Carlos Onetti que as “únicas palavras que merecem existir são as que melhoram o silêncio”. Uma pena que o futebol não tenha guardado isso, um minuto de silêncio por seu melhor menestrel, um poeta único da bola impressa.
E, perdão, mestre, ter emprestado suas palavras.
(José Sámano, el País)
o orgasmo, é cada vez menos frequente na vida moderna. Não é difícil imaginar, pois, a surpresa que terá sentido ao ver o prazer com que Aboubakar marcou e celebrou no Bessa. |