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O CORPO DE DOR

por Thynus, em 27.08.17
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A libertação do corpo de dor
 
No caso da maioria das pessoas, quase todos os pensamentos costumam ser involuntários, automáticos e repetitivos. Não são mais do que uma espécie de estática mental e não satisfazem nenhum propósito verdadeiro. Num sentido estrito, não pensamos – o pensamento acontece em nós. A afirmação “Eu penso” implica volição. Ou seja, podemos nos pronunciar sobre o assunto, podemos fazer uma escolha. Mas isso ainda não é percebido pela maior parte das pessoas. “Eu penso” é uma afirmação simplesmente tão falsa quanto “eu faço a digestão” ou “eu faço meu sangue circular”. A digestão acontece, a circulação acontece, o pensamento acontece.
A voz na nossa cabeça tem vida própria. A maioria de nós está à mercê dela; as pessoas vivem possuídas pelo pensamento, pela mente. E, uma vez que a mente é condicionada pelo passado, então somos forçados a reinterpretá-lo sem parar. O termo oriental para isso é carma. Quando nos identificamos com essa voz, ignoramos isso. Se soubéssemos, não seríamos mais possuídos por ela, porque a possessão só acontece de verdade quando confundimos a entidade que nos domina com quem nós somos, isto é, quando nos tornamos essa entidade.
Ao longo de milhares de anos, a mente vem intensificando seu domínio sobre a humanidade, que deixou de ser capaz de reconhecer a entidade que se apossa de nós como o “não-eu”. Por causa dessa completa identificação com a mente, uma falsa percepção do eu passa a existir – o ego. A densidade dele depende do grau em que nós – a consciência – nos identificamos com a mente, com o pensamento. Pensar não é mais do que um minúsculo aspecto da totalidade da consciência, de quem somos.
O grau de identificação com a mente difere de indivíduo para indivíduo. Algumas pessoas desfrutam de períodos em que se encontram libertas do domínio da mente, ainda que brevemente. A paz, a alegria e o ânimo que elas experimentam nesses momentos fazem a vida valer a pena. Essas também são as ocasiões em que a criatividade, o amor e a compaixão se manifestam. Outras pessoas se mantêm presas ao estado egóico de modo contínuo. Permanecem alienadas de si mesmas, assim como dos demais e do mundo ao redor. Quando as observamos, conseguimos ver a tensão na sua face, talvez a testa franzida ou um olhar vago e distante. A maior parte da sua atenção está sendo absorvida pelo pensamento, por isso não nos vêem nem nos escutam. Elas não estão presentes em nenhuma situação – sua atenção está ou no passado ou no futuro, que, é claro, são formas de pensamento que existem apenas na mente. Ou, se estabelecem um relacionamento conosco, fazem isso por meio de algum tipo de papel que interpretam e, assim, não são elas mesmas. As pessoas, em sua maioria, vivem alienadas de quem elas são. Às vezes esse estado chega a tal ponto que a maneira como se comportam e se relacionam é reconhecida como “falsa” por quase todo mundo, a não ser por aqueles que também são falsos e igualmente alienados de quem são.
Alienação quer dizer que não nos sentimos à vontade em nenhuma situação, em nenhum lugar nem com ninguém, nem mesmo conosco. Estamos sempre tentando nos sentir “em casa”, mas isso nunca acontece. Alguns dos maiores escritores do século XX, como Franz Kafka, Albert Camus, T. S. Eliot e James Joyce, não só reconheceram a alienação como o dilema universal da existência humana como é provável que a tenham sentido em si mesmos de modo profundo e, assim, foram capazes de expressá-la excepcionalmente em suas obras. Eles não ofereceram uma solução. Sua contribuição foi nos proporcionar uma reflexão sobre essa dificuldade humana, para que pudéssemos vê-la com mais clareza. Ter uma visão mais nítida de uma situação complicada em que nos encontramos é o primeiro passo no sentido de superá-la.
 
O NASCIMENTO DA EMOÇÃO
Além da agitação do pensamento, embora não inteiramente separada dele, existe outra dimensão do ego: a emoção. Isso não quer dizer que todo pensamento e toda emoção pertençam ao ego. Esses elementos se convertem no ego apenas quando nos identificamos com eles ou quando eles assumem o controle sobre nós, isto é, quando se tornam o eu.
O organismo físico, nosso corpo, tem inteligência própria, assim como os organismos de todas as formas de vida. E essa inteligência reage ao que a mente diz, aos pensamentos. Portanto, a emoção é a resposta do corpo à mente. A inteligência do corpo, evidentemente, é uma parte inseparável da inteligência universal, uma das suas incontáveis manifestações. Ela dá coesão temporária aos átomos e às moléculas que constituem o organismo físico. É o princípio organizador por trás do funcionamento de todos os órgãos; da conversão de oxigênio e alimento em energia; dos batimentos cardíacos e da circulação do sangue; do sistema imunológico, que protege o corpo dos invasores; e da conversão das informações sensoriais em impulsos nervosos que são enviados ao cérebro, decodificados e reagrupados num quadro interior coerente com a realidade exterior. Tudo isso, assim como milhares de outras funções que ocorrem ao mesmo tempo, é coordenado com perfeição pela inteligência. Não somos nós que conduzimos o corpo. A inteligência faz isso. Ela também é responsável pelas respostas do organismo ao ambiente.
Isso se aplica a todas as formas de vida. É a mesma inteligência que dá forma física à planta e depois se manifesta como a flor que dela surge, aquela que, de manhã, abre as pétalas para receber os raios de sol e, à noite, as fecha. É a mesma inteligência que se revela como Gaia, o ser vivo complexo que é o planeta Terra.
Essa inteligência faz surgir as reações instintivas do organismo a tudo o que representa uma ameaça ou um desafio. No caso dos animais, ela produz respostas que parecem ter afinidade com as emoções humanas, como raiva, medo e prazer. Essas reações instintivas poderiam ser consideradas formas primordiais de emoção. Em determinadas situações, os seres humanos as manifestam da mesma maneira que os animais. Diante do perigo, quando a sobrevivência do organismo é ameaçada, o coração bate mais rápido, os músculos se contraem, a respiração se acelera numa preparação para a luta ou a fuga. O medo primordial. Quando o corpo se vê sem possibilidade de fuga, uma descarga súbita de energia intensa lhe dá uma força que ele não tinha antes. A raiva primordial. Essas reações instintivas se assemelham às emoções, mas não são emoções no verdadeiro sentido da palavra. A diferença fundamental entre elas é: enquanto a reação instintiva é a resposta direta do corpo a uma situação externa, a emoção é a reação do corpo a um pensamento.
Indiretamente, uma emoção também pode ser uma reação a uma situação ou a um acontecimento real, porém ela será uma reação ao acontecimento que terá passado pelo filtro da interpretação mental, do pensamento, ou seja, dos conceitos de bom e mau, semelhante e diferente, eu e meu. Por exemplo, pode ser que você não sinta nenhuma emoção ao ser informado de que o carro de alguém foi roubado. No entanto, caso se trate do seu carro, é provável que fique perturbado. É impressionante a quantidade de emoção que um pequeno conceito mental como “meu” pode gerar.
Embora o corpo seja muito inteligente, ele não consegue diferenciar uma situação real de um pensamento. Por isso reage a todo pensamento como se fosse a realidade. Para o corpo, um pensamento preocupante, assustador, corresponde a “Estou em perigo”, e ele responde à altura, embora a pessoa que esteja pensando isso possa estar deitada numa cama quente e confortável. O coração bate mais forte, os músculos se contraem, a respiração se acelera. Forma-se um acúmulo de energia, mas, uma vez que o perigo é apenas uma ficção mental, a energia não flui. Parte dela retorna à mente e dá origem a outros pensamentos ainda mais ansiosos. O resto da energia se converte em toxinas e interfere no funcionamento harmonioso do corpo.
 
AS EMOÇÕES E O EGO
O ego não é apenas a mente não observada, a voz na cabeça que finge ser nós, mas também as emoções não observadas que constituem as reações do corpo ao que essa voz diz.
Já vimos que espécie de pensamento a voz egóica atrai na maior parte do tempo e a disfunção inerente à estrutura dos seus processos de pensamento, independentemente do conteúdo. Esse pensamento desajustado é aquilo a que o corpo reage com emoções negativas.
A voz na cabeça conta ao corpo uma história em que ele acredita e à qual reage. Essas reações são as emoções. Estas últimas, por sua vez, devolvem energia para os pensamentos que as criaram originalmente. Esse é o círculo vicioso entre emoções e pensamentos não questionados que suscita o pensamento emocional e a invenção de histórias emocionais.
O componente emocional do ego difere de pessoa para pessoa. Em alguns casos, é maior do que em outros. Os pensamentos que fazem o corpo disparar reações emocionais algumas vezes aparecem tão rápido que, antes de a mente ter tempo de expressá-los, o corpo reage com uma emoção, e esta é convertida numa reação. Esses pensamentos existem num estágio pré-verbal e podem ser chamados pressupostos não expressos, inconscientes. Eles se originam num condicionamento pessoal do passado, normalmente ocorrido na tenra infância. “Não se pode confiar nas pessoas” seria um exemplo desse pressuposto inconsciente numa pessoa cujos relacionamentos primordiais, isto é, com os pais ou irmãos, não foram de solidariedade e não inspiraram confiança. Mais alguns deles: “Ninguém me respeita nem me valoriza. Preciso lutar para sobreviver. O dinheiro nunca é suficiente. A vida sempre nos decepciona. Não mereço a prosperidade. Não sou digno do amor.” Essas suposições inconscientes criam emoções no corpo que, por sua vez, geram atividade mental e/ou reações instantâneas. Dessa maneira, elas criam sua realidade pessoal.
A voz do ego perturba continuamente o estado natural de bem-estar do ser. Quase todo corpo humano se encontra sob grande tensão e estresse, mas não porque esteja sendo ameaçado por algum fator externo – a ameaça vem da mente. Há um ego vinculado ao corpo, que não pode fazer nada a não ser reagir a todos os padrões desajustados de pensamento que constituem o ego. Assim, um fluxo de emoções negativas acompanha o fluxo de pensamento incessante e compulsivo.
O que é uma emoção negativa? É aquela que é tóxica para o corpo e interfere no seu equilíbrio e funcionamento harmonioso. Medo, ansiedade, raiva, ressentimento, tristeza, rancor ou desgosto intenso, ciúme, inveja – tudo isso perturba o fluxo da energia pelo corpo, afeta o coração, o sistema imunológico, a digestão, a produção de hormônios, e assim por diante. Até mesmo a medicina tradicional, que ainda sabe muito pouco sobre como o ego funciona, está começando a reconhecer a ligação entre os estados emocionais negativos e as doenças físicas. Uma emoção que prejudica nosso corpo também contamina as pessoas com quem temos contato e, indiretamente, por um processo de reação em cadeia, um incontável número de indivíduos com quem nunca nos encontramos. Existe um termo genérico para todas as emoções negativas: infelicidade.
Será que as emoções positivas têm o efeito oposto sobre o corpo físico? Será que fortalecem o sistema imunológico, revigoram e curam o corpo? Sim, com certeza, mas precisamos diferenciar as emoções positivas que são produzidas pelo ego das emoções mais profundas que emanam do nosso estado natural de ligação com o Ser.
As emoções positivas geradas pelo ego já contêm seu próprio oposto no qual podem rapidamente se converter. Alguns exemplos: o que o ego chama de amor é possessividade e apego dependente, que podem se transformar em ódio em questão de segundos. A expectativa em relação a um acontecimento, que é a supervalorização do futuro por parte do ego, transforma-se no oposto – abatimento ou decepção – quando aquilo termina ou não satisfaz as expectativas do ego. Sermos elogiados e reconhecidos nos faz sentir vivos e felizes num dia, enquanto sermos criticados ou ignorados nos faz sentir rejeitados e infelizes no dia seguinte. O prazer de uma festa animada transforma-se em ressaca e em algo desinteressante na manhã seguinte. Não existe bom sem mau nem alto sem baixo.
As emoções produzidas pelo ego decorrem da identificação da mente com fatores externos que são, é claro, instáveis e sujeitos a mudanças a qualquer momento. As emoções mais profundas não são emoções de maneira nenhuma, e sim estados do Ser. Elas existem dentro do âmbito dos opostos. Os estados do Ser podem ser obscurecidos, porém não têm opostos. Eles emanam de dentro de nós, como o amor, a alegria e a paz, que são aspectos da nossa verdadeira natureza.
 
O PATO COM MENTE HUMANA
Em O Poder do Agora, citei minha observação de que dois patos, depois de um confronto, que nunca demora muito, separam-se e afastam-se em direções opostas. Em seguida, cada um deles bate as asas vigorosamente algumas vezes, liberando assim o excesso de energia acumulada durante a luta. Depois disso, eles nadam em paz, como se nada tivesse acontecido.
Se o pato tivesse a mente de um ser humano, ele conservaria a luta viva no pensamento por meio de uma história. Provavelmente, ela seria assim: “Não acredito no que ele acabou de fazer. Ele chegou a poucos centímetros de mim. Pensa que é o dono do lago. Não tem consideração pelo meu espaço privado. Nunca mais vou confiar nele. Da próxima vez, ele vai fazer a mesma coisa só para me aborrecer. Tenho certeza de que já está tramando alguma coisa. Mas não vou suportar isso de novo. Vou ensinar a ele uma lição de que não vai se esquecer.” Dessa forma, a mente cria suas histórias, uma atrás da outra, e continua pensando e falando sobre elas durante dias, meses ou anos. No que diz respeito ao corpo, a luta continua. E a energia que ela produz em resposta a todos esses pensamentos são as emoções, que, por sua vez, suscitam mais pensamentos. Isso se torna o pensamento emocional do ego. Podemos imaginar quanto a vida do pato se tornaria problemática se a mente dele fosse humana. Todavia, é assim que a maioria das pessoas vive na maior parte do tempo. Nenhuma situação, nenhum acontecimento, jamais termina de verdade. A mente e o “eu e minha história”, criado pela própria mente, se encarregam de dar continuidade ao processo.
Nós somos uma espécie que tomou o caminho errado. Tudo o que é natural, todas as flores e árvores, assim como todos os animais, teriam importantes lições a nos dar se parássemos, olhássemos e escutássemos. A lição do pato é a seguinte: bata suas asas – isto é, “deixe a história pra lá” – e retorne para o único lugar importante: o momento presente.
 
CARREGANDO O PASSADO
A incapacidade, ou melhor, a relutância da mente humana em deixar de lado o passado é primorosamente ilustrada na história dos dois monges zen, Tanzan e Ekido, que caminhavam numa estrada enlameada depois de uma forte chuva. Próximo a uma aldeia, eles encontraram uma moça que estava tendo dificuldade em atravessar a estrada por causa da lama. Se ela continuasse a caminhar, estragaria seu quimono de seda. Sem titubear, Tanzan a pegou no colo e a carregou para o outro lado da estrada.
Os monges prosseguiram na sua caminhada em silêncio. Cinco horas depois, quando já estavam perto do templo onde passariam a noite, Ekido não conseguiu mais se conter.
– Por que você carregou a moça para o outro lado da estrada? – perguntou. – Nós, monges, não devemos fazer essas coisas.
– Faz horas que coloquei aquela jovem no chão – respondeu Tanzan. – Você ainda a está carregando?
Agora, imagine como seria a vida de alguém que viva como Ekido o tempo todo, incapaz de parar de pensar nas situações ou não querendo fazer isso e acumulando cada vez mais “material” dentro de si. Isso nos dá uma idéia de como é a vida da maioria das pessoas. Que pesado fardo do passado elas carregam na mente.
O passado vive em nós na forma de lembranças, no entanto elas em si mesmas não são um problema. Na verdade, é por meio delas que aprendemos com nossas experiências e com os erros que cometemos. Somente quando as recordações, isto é, os pensamentos sobre o passado, nos dominam completamente é que elas se transformam num fardo, começam a ser problemáticas e a fazer parte do que entendemos como o eu. Nossa personalidade, que é condicionada pelo passado, se torna nossa prisão. Essas memórias são investidas de uma percepção do eu, e nossa história passa a ser a percepção que temos de nós mesmos. Esse “pequeno eu” é uma ilusão que obscurece nossa verdadeira identidade como a presença eterna e sem forma.
Nossa história, porém, é formada por lembranças mentais e emocionais – emoções antigas que são revividas continuamente. Assim como o monge que carregou o fardo do ressentimento por cinco horas, alimentando-o com pensamentos, a maioria das pessoas leva consigo uma grande quantidade de bagagem desnecessária, tanto mental quanto emocional, ao longo de toda a vida. Esses indivíduos se limitam com ressentimentos, arrependimentos, hostilidade e culpa. Seu pensamento emocional se torna seu eu e, assim, eles se apegam a velhas emoções porque estas fortalecem sua identidade.
Por causa da tendência humana de perpetuar emoções antigas, quase todo mundo carrega no seu campo energético um acúmulo de antigas dores emocionais, que eu chamo de “corpo de dor”.
Podemos, no entanto, parar de acrescentar ao corpo de dor aquilo que já temos. Somos capazes de aprender a refrear o hábito de acumular e perpetuar antigas emoções batendo nossas asas, metaforicamente falando, e nos abstendo de viver com a mente no passado, não importa se um incidente aconteceu ontem ou 30 anos atrás. Temos como aprender a não manter vivos acontecimentos e situações e, em vez disso, sempre dirigir a atenção para o momento presente – puro, atemporal –, em vez de nos deixarmos atrair por histórias mentais produzidas pela mente. Assim, nossa própria presença se torna nossa identidade, e não nossos pensamentos e nossas emoções.
Absolutamente nada que tenha acontecido no passado pode nos impedir de estar presentes agora. E, se o passado não tem como evitar nosso estado de presença, que poder ele tem?
 
O INDIVIDUAL E O COLETIVO
Toda emoção negativa que não é plenamente enfrentada nem considerada pelo que ela é no momento em que se manifesta não se dissipa por inteiro. Deixa atrás de si um traço remanescente de dor.
Para as crianças, em especial, as emoções negativas muito fortes são tão insuportáveis que elas não conseguem enfrentá-las, por isso tendem a evitá-las. Na ausência de um adulto consciente que as oriente com amor e sensibilidade a lidar de forma direta com esse tipo de emoção, a decisão de não sentir é, na verdade, a única opção da criança naquele momento. Infelizmente, em geral, esse mecanismo básico de defesa continua a vigorar até à vida adulta. A emoção sobrevive sem que a pessoa perceba e manifesta-se de maneira indireta – por exemplo, como ansiedade, raiva, explosões violentas, mau humor ou até mesmo como uma doença. Em alguns casos, ela interfere em todos os relacionamentos íntimos, podendo até mesmo sabotá-los. A maioria dos psicoterapeutas tem pacientes que, no início, afirmam ter vivido uma infância feliz, mas, com o tempo, o oposto acaba se revelando. Embora esses exemplos possam ser extremos, ninguém passa pela infância sem experimentar algum tipo de sofrimento emocional. Mesmo que nossos pais vivessem de modo consciente, teríamos sido criados num mundo que, em grande parte, permanece inconsciente.
As sobras de dor deixadas para trás a cada forte emoção negativa que não é enfrentada, aceita e depois abandonada de forma plena juntam-se formando um campo energético que vive em cada uma das células do corpo. Elas incluem não só os sofrimentos da infância como as emoções dolorosas que se agregam a eles depois, na adolescência e durante a vida adulta – e essas dores, em grande parte, são criadas pela voz do ego. É o sofrimento emocional que passa a ser nosso companheiro inevitável quando uma falsa sensação do eu é a base da nossa vida.
Esse campo energético de emoções muito antigas, mas ainda vivas, que subsiste em quase todos os seres humanos é o corpo de dor.
O corpo de dor, porém, não tem uma natureza apenas individual. Ele também engloba o sofrimento experimentado por um número incontável de pessoas ao longo da história da humanidade. Essa dor se caracteriza por um conflito tribal ininterrupto, escravidão, pilhagem, seqüestros, torturas e outras formas de violência. Tal sofrimento ainda vive na psique coletiva e é aumentado todos os dias, como podemos constatar quando assistimos aos noticiários ou presenciamos os conflitos nos relacionamentos entre as pessoas. O corpo de dor coletivo é provavelmente codificado dentro do DNA de cada ser humano, embora não o tenhamos descoberto ainda.
Todo recém-nascido traz um corpo de dor emocional. No caso de alguns bebês, ele é mais pesado e mais denso do que em outros. Algumas dessas crianças são muito felizes na maior parte do tempo, enquanto outras parecem carregar uma imensa quantidade de infelicidade dentro de si. É verdade que há bebês que choram demais porque não recebem amor e atenção suficientes, porém outros choram sem nenhuma razão aparente, quase como se estivessem tentando tornar todos ao redor tão infelizes quanto eles próprios – e geralmente conseguem. Eles chegam a este mundo com uma porção significativa do sofrimento humano. Existem ainda os recém-nascidos que choram com freqüência porque sentem a emanação das emoções negativas do pai ou da mãe, e isso lhes causa sofrimento e também faz seu corpo de dor aumentar pela absorção da energia dos corpos de dor dos pais. Seja qual for o caso, à medida que o corpo físico do bebê cresce, o mesmo acontece com o corpo de dor.
Uma criança pequena que tem um corpo de dor leve não será necessariamente um adulto “mais avançado” em termos espirituais do que alguém com um corpo de dor denso. Na verdade, em geral acontece o contrário. Quem tem um corpo de dor pesado costuma ter mais chance de despertar espiritualmente do que quem possui um corpo de dor leve. Embora algumas dessas pessoas permaneçam presas ao seu corpo de dor pesado, muitas chegam a um ponto em que não conseguem mais viver com a infelicidade, e assim sua motivação para despertar se fortalece.
Por que o corpo de Cristo em sofrimento, sua face distorcida em agonia e seu corpo sangrando com numerosos ferimentos, é uma imagem tão significativa na consciência coletiva da humanidade? Milhões de pessoas, sobretudo na época medieval, não teriam tido uma afinidade tão profunda com ele, caso alguma coisa dentro delas mesmas não estivesse em consonância com essa imagem, se elas não a tivessem inconscientemente reconhecido como uma representação exterior da sua própria realidade interior – o corpo de dor. As pessoas ainda não estavam conscientes o bastante para reconhecê-lo dentro de si mesmas, porém era o começo da sua tomada de consciência em relação a ele. Cristo pode ser considerado o arquétipo humano, incorporando tanto o sofrimento quanto a possibilidade de transcendência.
 
COMO O CORPO DE DOR SE RENOVA
O corpo de dor é uma forma de energia semi-autônoma que vive dentro da maioria dos seres humanos, uma entidade constituída de emoção. Ele tem sua própria inteligência primitiva, como um animal astuto, e ela é dirigida basicamente para a sobrevivência. Assim como todas as formas de vida, o corpo de dor precisa se alimentar com regularidade, e o alimento de que ele necessita consiste numa energia que é compatível com sua natureza, isto é, que vibra numa freqüência semelhante à sua. Qualquer sensação dolorosa em termos emocionais pode ser usada como alimento. É por isso que ele prospera com o pensamento negativo e também com o conflito nos relacionamentos. O corpo de dor é viciado em infelicidade.
Podemos ficar chocados quando alcançamos a compreensão de que existe alguma coisa dentro de nós que busca regularmente o negativismo emocional, a infelicidade. Precisamos até mesmo de mais consciência para detectar esse processo dentro de nós do que para reconhecê-lo em alguém. Depois que a infelicidade assume o controle, não só não queremos que ela termine como também desejamos fazer com que os outros sejam tão infelizes quanto nós para que possamos nos alimentar das suas reações emocionais negativas.
No caso da maioria das pessoas, o corpo de dor apresenta um estágio latente e um estágio ativo. Quando ele está latente, nos esquecemos com a maior facilidade de que carregamos uma pesada nuvem escura ou um vulcão adormecido dentro de nós, dependendo do campo energético do nosso corpo de dor em especial. O tempo que ele permanece nessa condição varia de pessoa para pessoa: o mais comum é que se mantenha assim por poucas semanas, no entanto isso pode durar de dias a meses. Em casos raros, o corpo de dor pode ficar em estado de hibernação durante anos antes de ser despertado por um acontecimento.
 
COMO O CORPO DE DOR SE ALIMENTA DOS PENSAMENTOS
O corpo de dor desperta da sua dormência quando sente fome, na hora de se realimentar. Mas isso também pode ser provocado por um acontecimento a qualquer momento. Às vezes, o corpo de dor que está pronto para se nutrir usa o fato mais insignificante como um estímulo – de algo que alguém diz ou faz a um pensamento. Se vivemos sozinhos ou caso não haja ninguém próximo a nós no momento, ele irá se alimentar dos nossos pensamentos, que, de repente, se tornarão profundamente negativos. Em geral, não temos consciência de que, pouco antes do surgimento desse fluxo de pensamentos ruins, uma onda de emoções invade nossa mente na forma de um humor sombrio e pesado, de ansiedade ou de raiva extrema. Todo pensamento é energia, e nesse instante o corpo de dor está se abastecendo com essa energia. Contudo, ele não pode se alimentar de qualquer pensamento. Não precisamos ser especialmente sensíveis para observar que os pensamentos positivos têm um tom de sentimento diferente daqueles que são negativos. É a mesma energia, porém ela vibra em outra freqüência. O corpo de dor não consegue digerir um pensamento feliz. Ele só tem capacidade para consumir os pensamentos negativos porque apenas esses são compatíveis com seu próprio campo de energia.
Todas as coisas são campos de energia vibratória num movimento incessante. A cadeira em que estamos sentados ou o livro que seguramos nas mãos parecem sólidos e imóveis somente porque é assim que nossos sentidos percebem sua freqüência vibratória, isto é, o movimento contínuo das moléculas, dos átomos, dos elétrons e das partículas subatômicas – elementos que, juntos, criam aquilo que percebemos como uma cadeira, um livro, uma árvore, um corpo, etc. O que consideramos matéria física é energia vibratória (em movimento) numa determinada extensão de freqüências. Os pensamentos são constituídos dessa mesma energia, que vibra numa freqüência superior à da matéria, e é por isso que não podem ser vistos nem tocados. Eles têm sua própria extensão de freqüências, com os pensamentos negativos na extremidade inferior da escala e os pensamentos positivos na extremidade superior. A freqüência vibratória do corpo de dor encontra eco na dos pensamentos negativos, assim apenas estes últimos podem alimentá-lo.
O padrão usual de pensamento para criar emoções é revertido no caso do corpo de dor, pelo menos no início. A emoção que parte dele adquire rapidamente o controle do pensamento. E, uma vez que a mente é dominada pelo corpo de dor, o pensamento se torna negativo. A voz na nossa cabeça começa a contar histórias tristes, cheias de ansiedade e rancor que podem falar sobre nós, nossa vida, outras pessoas, o passado, o futuro ou acontecimentos imaginários. Essa voz será de censura, acusação, queixa, fantasia. E estabeleceremos uma total identificação com qualquer coisa que ela diga, acreditando em todos os seus pensamentos distorcidos. A essa altura, o vício da infelicidade terá se instalado em nós.
Não é que sejamos incapazes de deter o trem dos pensamentos negativos – o mais provável é que nos falte vontade de interromper seu curso. Isso acontece porque, nesse ponto, o corpo de dor está vivendo por nosso intermédio, fingindo ser nós. E, para ele, a dor é prazer. Ele devora ansiosamente todos os pensamentos negativos. Na verdade, a voz corrente na nossa cabeça torna-se a voz dele. E ela assume o diálogo interior. Um círculo vicioso se estabelece: todo pensamento nutre o corpo de dor, que, por sua vez, produz mais pensamentos. Em algum momento, após algumas horas ou até mesmo depois de poucos dias, ele estará realimentado e retornará ao seu estágio latente, deixando para trás um organismo exaurido e um corpo físico muito mais suscetível à doença. Se ele lhe parece um parasita psíquico, você está certo. É exatamente o que ele é.
 
COMO O CORPO DE DOR SE ALIMENTA DO CONFLITO
Se houver outras pessoas por perto, em geral nosso parceiro ou nossa parceira ou um parente próximo, o corpo de dor tentará provocá-los – levá-los ao limite, como se diz – para que possa se nutrir do conflito que resultará disso. Os corpos de dor adoram relacionamentos íntimos e famílias porque é deles que retiram a maior parte do seu alimento. É difícil resistirmos ao corpo de dor de alguém que esteja determinado a suscitar uma reação da nossa parte. Instintivamente, ele conhece nossos pontos mais fracos, mais vulneráveis. Se não for bem-sucedido da primeira vez, tentará de novo seguidas vezes. É emoção pura procurando mais emoção. O corpo de dor da outra pessoa quer despertar o nosso para que os dois corpos de dor se energizem mutuamente.
Muitos relacionamentos são marcados por episódios violentos e destrutivos envolvendo o corpo de dor. Esses enfrentamentos costumam ocorrer em intervalos regulares. Para uma criança pequena, é uma dor quase insuportável ter que testemunhar a agressividade emocional dos corpos de dor dos pais, embora essa seja a sina de milhões de crianças em todo o mundo, o pesadelo da sua existência cotidiana. Essa é também uma das principais maneiras de se transmitir o corpo de dor humano de uma geração à outra. Depois de cada incidente desse tipo, os parceiros se reconciliam e se estabelece uma fase de paz relativa que terá a duração que o ego permitir.
O consumo excessivo de álcool costuma fortalecer o corpo de dor, sobretudo no caso dos homens, mas isso também ocorre com algumas mulheres. Quando uma pessoa se embriaga, ela passa por uma completa mudança de personalidade enquanto o corpo de dor assume o controle. Em geral, um indivíduo profundamente inconsciente cujo corpo de dor está habituado a se realimentar por meio da violência física a direciona para o cônjuge ou para os filhos. Depois que o efeito do álcool passa, ele se arrepende de verdade e às vezes até diz que nunca mais repetirá a cena e acredita nisso. Porém, a pessoa que está falando e fazendo promessas não é a entidade que cometeu a violência. Assim, podemos ter certeza de que aquilo acontecerá de novo por vezes seguidas, a não ser que essa pessoa se torne presente, reconheça o corpo de dor em si mesma e abandone sua identificação com ele. Em alguns casos, o aconselhamento consegue ajudá-la a fazer isso.
A maioria dos corpos de dor quer tanto infligir quanto sentir dor, contudo alguns deles são predominantemente agressores ou vítimas. Em ambos os casos, eles se alimentam da violência, tanto emocional quanto física. Algumas pessoas que pensam estar “apaixonadas” estão na verdade se sentindo atraídas uma pela outra porque seus respectivos corpos de dor se complementam. Às vezes, os papéis de agressor e de vítima se definem já no seu primeiro contato. Embora muita gente acredite que certos casamentos foram feitos no céu, na realidade eles se realizaram no inferno.
Se você já conviveu com um gato, deve ter percebido que, até mesmo quando esse animal aparenta estar dormindo, ele sabe o que está se passando ao redor, pois, ao menor ruído inesperado, suas orelhas se direcionam para a fonte do barulho e seus olhos podem até se entreabrir ligeiramente. Com os corpos de dor latentes acontece a mesma coisa. Em algum nível, eles ainda estão despertos, prontos para entrar em ação quando um estímulo adequado se apresenta.
Nos relacionamentos íntimos, os corpos de dor costumam ser espertos o bastante para permanecer discretos até que as duas pessoas comecem a viver juntas e, de preferência, assinem um contrato comprometendo-se a ficar unidas pelo resto da vida. Nós não nos casamos apenas com uma mulher ou com um homem, também nos casamos com o corpo de dor dessa pessoa. Pode ser um verdadeiro choque quando – talvez não muito tempo depois de começarmos a viver sob o mesmo teto ou após a lua-de-mel – vemos que nosso parceiro ou nossa parceira está exibindo uma personalidade totalmente diferente. Sua voz se torna mais áspera ou aguda quando nos acusa, nos culpa ou grita conosco, em geral por uma questão de menor importância. Há casos também em que essa pessoa passa a ficar retraída.
– O que há de errado? – perguntamos.
– Não há nada de errado – ela responde.
Mas a energia intensamente hostil que ela transmite está dizendo:
– Está tudo errado.
Quando olhamos para ela, vemos que já não há luz nos seus olhos – é como se um pesado véu tivesse descido, e o ser que conhecemos e amamos e que antes era capaz de brilhar sobrepondo-se ao ego agora está inteiramente obscurecido. Parece que estamos diante de um verdadeiro estranho cujos olhos mostram apenas rancor, hostilidade, amargura ou raiva. Quando ele nos dirige suas palavras, não é nosso cônjuge que está falando, mas o corpo de dor se expressando por meio dele. Qualquer coisa que esteja dizendo é a versão da realidade do corpo de dor, algo distorcido pelo medo, pela hostilidade, pela ira e pelo desejo de infligir e receber mais sofrimento.
A essa altura, podemos nos perguntar se essa é a verdadeira face daquela pessoa – a que nunca tínhamos visto antes – e se cometemos um grande erro quando a escolhemos como companheira. Na realidade, essa não é sua face genuína, apenas o corpo de dor que assumiu temporariamente o controle. Seria difícil encontrar um parceiro ou uma parceira que não carregasse um corpo de dor, no entanto seria sensato escolher alguém que não tivesse um corpo de dor tão denso.
 
CORPOS DE DOR DENSOS
Algumas pessoas carregam corpos de dor tão densos que nunca se encontram completamente adormecidos. Elas podem estar sorrindo e mantendo uma conversa educada, mas não é preciso ser paranormal para sentir o caldeirão fervente de emoções infelizes que elas mantêm em segundo plano, esperando pelo próximo acontecimento para reagir, pela próxima pessoa para culpar ou confrontar, pela próxima coisa que as deixará tristes. Seu corpo de dor nunca se satisfaz, está sempre faminto. Ele aumenta a necessidade de inimigos que é cultivada pelo ego.
Com sua atitude reativa, elas lidam com questões quase insignificantes de modo explosivo, numa tentativa de atrair outras pessoas para seu próprio conflito fazendo-as reagir. Algumas delas se envolvem em batalhas longas e sem sentido ou em casos judiciais com organizações ou indivíduos. Outras são consumidas por um rancor obsessivo em relação ao ex-cônjuge ou parceiro(a). Inconscientes da dor que carregam dentro de si, elas a projetam, com sua reação, nos acontecimentos e nas situações. Dada sua completa falta de autoconsciência, essas pessoas não conseguem perceber a diferença entre um fato e sua reação a ele. Para elas, a infelicidade e até mesmo a própria dor estão no acontecimento ou na situação. Como não estão conscientes do seu estado interior, nem sequer sabem que estão profundamente infelizes, que estão sofrendo.
Às vezes, pessoas com corpos de dor desse tipo se tornam ativistas que lutam por uma causa. O lema que defendem pode ter de fato seu valor – e elas a princípio podem até ser bem-sucedidas na execução das coisas. No entanto, a energia negativa que flui do que elas dizem e fazem, bem como sua inconsciente necessidade de criar inimigos e conflitos, tende a produzir uma oposição crescente à sua causa. Essas pessoas também costumam fazer desafetos dentro da própria organização, porque, não importa onde estejam, descobrem motivos para se sentir mal. Assim, seu corpo de dor continua a encontrar exatamente o que está procurando.
 
O ENTRETENIMENTO, A MÍDIA E O CORPO DE DOR
Se você não tivesse familiaridade com nossa civilização contemporânea, caso tivesse acabado de chegar de outra época ou de outro planeta, uma das coisas que mais o impressionariam seria constatar que milhões de pessoas adoram ver seres humanos matar e infligir dor uns aos outros e chamam isso de “entretenimento”. E que pagam para ter essa diversão.
Por que os filmes violentos atraem um público tão grande? Existe toda uma indústria envolvida nessa questão, e uma boa parte dela alimenta o vício humano da infelicidade. Obviamente, as pessoas assistem a essas produções porque querem se sentir mal. O que há nos indivíduos que adoram se sentir mal e dizer que isso é bom? O corpo de dor, é claro. Há uma participação considerável da indústria do entretenimento nesse processo. Portanto, além da atitude reativa, do pensamento negativo e do conflito pessoal, o corpo de dor também usa a tela do cinema e da televisão para se renovar por meio deles. Corpos de dor escrevem e produzem esses filmes e corpos de dor pagam para vê-los.
Será sempre “errado” mostrar a violência e vê-la na televisão e no cinema? Toda essa violência alimenta o corpo de dor? No atual estágio evolucionário da humanidade, ela não só permeia tudo como se encontra em ascensão enquanto a antiga consciência egóica, ampliada pelo corpo de dor coletivo, se intensifica antes da sua inevitável extinção. Se os filmes apresentam a violência no seu contexto mais amplo, se exibem sua origem e suas conseqüências, se revelam o que ela causa às vítimas assim como aos agressores, se mostram a inconsciência coletiva que está por trás dela e como é passada adiante de geração para geração (a raiva e o ódio que vivem nos seres humanos na forma do corpo de dor), então eles desempenham uma função vital no despertar da humanidade. Essas produções podem funcionar como um espelho em que nossa espécie vê sua própria insanidade. Aquilo em nós que reconhece a loucura como loucura (até mesmo se é nossa própria loucura) é sanidade, é a consciência emergente, é o fim da insanidade.
Esses filmes de fato existem e não nutrem o corpo de dor. Alguns dos melhores filmes contra a guerra são os que mostram a realidade, e não uma versão glamourosa dos conflitos. O corpo de dor só consegue se alimentar daquelas produções em que a violência é retratada como um comportamento humano normal ou até mesmo desejável e daquelas que a glorificam com o único propósito de gerar emoção negativa no espectador e, assim, se tornar um “remédio” para o corpo de dor viciado em sofrimento.
Basicamente, os jornais populares não vendem notícias, mas emoções negativas – alimentos para o corpo de dor. “Atrocidade” ou “Carnificina”, destaca o título em letras garrafais. Essas publicações se superam nesse terreno. Sabem que as emoções negativas vendem muito mais exemplares do que as notícias.
Existe uma tendência nos veículos de informação em geral, incluindo a televisão, de exacerbar os fatos negativos. Quanto mais as coisas pioram, mais exaltados se mostram os apresentadores – e a agitação negativa costuma ser produzida pela própria mídia. Os corpos de dor simplesmente a adoram.
 
O CORPO DE DOR FEMININO COLETIVO
A dimensão coletiva do corpo de dor apresenta componentes diferentes. Tribos, nações, raças, todos têm seu corpo de dor coletivo, e alguns são mais pesados do que os outros. A maioria dos integrantes de cada um desses grupos participa dele em maior ou menor grau.
Quase toda mulher tem sua parcela no corpo de dor feminino coletivo, que tende a se tornar ativado especialmente no período que precede a menstruação. Nessa fase, muitas mulheres são dominadas por uma intensa emoção negativa.
A supressão do princípio feminino, sobretudo ao longo dos últimos 2 mil anos, permitiu que o ego ganhasse absoluta supremacia na psique humana coletiva. Embora as mulheres tenham ego, é claro, ele pode enraizar-se e prosperar com mais facilidade na forma masculina do que na feminina. Isso acontece porque as mulheres se identificam menos com a mente do que os homens. Elas estão mais em contato com o corpo interior e a inteligência do organismo, que dão origem às faculdades intuitivas. A forma feminina não se encontra tão rigidamente encapsulada quanto a masculina, tem maior abertura e sensibilidade em relação às outras formas de vida e está mais sintonizada com o mundo natural.
Se o equilíbrio entre as energias masculina e feminina não tivesse acabado no nosso planeta, o crescimento do ego teria sido limitado de modo significativo. Não teríamos declarado guerra à natureza e não seríamos tão completamente alienados do nosso Ser.
Ninguém tem o número exato porque não foram mantidos registros, mas acredita-se que ao longo de 300 anos entre 3 e 5 milhões de mulheres foram torturadas e mortas pela “Santa Inquisição”, uma instituição fundada pela Igreja Católica Romana para reprimir a heresia. Esse acontecimento se equipara ao Holocausto como um dos capítulos mais sombrios da história da humanidade. Bastava uma mulher mostrar amor pelos animais, caminhar sozinha nos campos ou nas florestas ou colher plantas medicinais para ser considerada bruxa, torturada e condenada a morrer na fogueira. O sagrado feminino foi declarado demoníaco e toda uma dimensão desapareceu significativamente da experiência humana. Outras culturas e religiões, como o judaísmo, o islamismo e até mesmo o budismo, também reprimiram a dimensão feminina, embora de uma maneira menos violenta. O papel das mulheres foi reduzido a cuidar dos filhos e da propriedade masculina. Os homens, que negavam o feminino até dentro de si mesmos, agora comandavam o mundo, um mundo que estava em total desequilíbrio. O resto é história, ou melhor, o histórico de um caso de insanidade.
Quem foi responsável por esse medo do feminino que só pode ser descrito como uma paranóia coletiva aguda? Poderíamos dizer: evidentemente, os homens foram os responsáveis. Mas então por que em muitas civilizações antigas pré-cristãs, como a suméria, a egípcia e a celta, as mulheres eram respeitadas e o princípio feminino não era temido, e sim reverenciado? O que foi que de repente levou os homens a se sentir ameaçados pelo feminino? O ego que se desenvolvia neles. Ele sabia que só conseguiria obter o pleno controle do planeta por meio da forma masculina e, para fazer isso, tinha que tornar o feminino menos poderoso.
Além disso, o ego também dominou a maioria das mulheres, embora jamais fosse capaz de se enraizar tão profundamente nelas quanto fez com os homens.
Hoje em dia, a supressão do feminino está interiorizada, até mesmo pela maior parte das mulheres. O sagrado feminino, por ser reprimido, é sentido por elas como uma dor emocional. Na verdade, ele se tornou parte do seu corpo de dor juntamente com o sofrimento que elas acumularam ao longo de milênios por meio do parto, do estupro, da escravidão, da tortura e da morte violenta.
No entanto, agora as coisas estão mudando num ritmo muito veloz. Como muitas pessoas estão se tornando mais conscientes, o ego vem perdendo influência sobre a mente humana. Uma vez que ele nunca se enraizou profundamente nas mulheres, seu domínio sobre elas está se reduzindo mais rápido do que sobre os homens.
 
CORPOS DE DOR DE PAÍSES E RAÇAS
Determinados países que cometeram ou sofreram muitos atos de violência coletiva possuem um corpo de dor coletivo mais pesado do que outros. É por isso que as nações mais antigas tendem a ter corpos de dor mais fortes. Também é por esse motivo que os países mais jovens, como o Canadá e a Austrália – bem como aqueles que permaneceram mais protegidos da loucura circundante, como a Suíça –, costumam apresentar um corpo de dor coletivo mais leve. É claro que nesses lugares as pessoas ainda precisam lidar com seu corpo de dor individual. Quem é sensível o bastante consegue sentir um peso opressivo no campo energético de determinados países no instante em que desce do avião. Em outras nações, é possível detectar um campo energético de violência latente sob a superfície da vida cotidiana.
Nos países em que o corpo de dor é pesado, porém não mais agudo, a tendência das pessoas tem sido a de tentar se dissociar da dor emocional coletiva: na Alemanha e no Japão por meio do trabalho, em outros lugares pela tolerância generalizada ao consumo do álcool (que também pode ter o efeito contrário de estimular o corpo de dor, sobretudo quanto ingerido em excesso). O corpo de dor pesado da China é até certo ponto abrandado pela prática amplamente disseminada do tai chi chuan. Todos os dias, nas ruas e nos parques da cidade, milhões de pessoas realizam essa meditação em movimento que acalma a mente. Isso faz uma diferença considerável no campo energético coletivo e avança um pouco no sentido de diminuir o corpo de dor pela redução do pensamento e o estabelecimento do estado de presença.
As práticas espirituais que envolvem o corpo físico, como o tai chi, o qigong e a ioga, também estão sendo cada vez mais adotadas no mundo ocidental. Essas técnicas não criam uma separação entre o corpo e o espírito e ajudam a enfraquecer o corpo de dor. Elas desempenham um papel importante no despertar mundial.
O corpo de dor racial coletivo é muito forte no caso do povo judeu, que sofreu perseguições ao longo de muitos séculos. Não surpreende que ele também seja acentuado nos povos indígenas americanos, que foram dizimados e cuja cultura foi quase toda destruída pelos colonizadores europeus. No que diz respeito aos afro-americanos, o corpo de dor coletivo é igualmente denso. Seus ancestrais foram arrancados com violência de sua terra natal, forçados à submissão e vendidos como escravos. O fundamento da prosperidade econômica dos Estados Unidos dependeu do trabalho de 4 a 5 milhões de escravos negros. Na verdade, o sofrimento não ficou limitado aos indígenas e afro-americanos – ele se tornou parte do corpo de dor coletivo do país. Ocorre que tanto a vítima quanto o agressor sempre sofrem as conseqüências de qualquer ato de violência, opressão ou brutalidade. Porque o que fazemos aos outros fazemos a nós mesmos.
Na realidade, não importa que proporção do nosso corpo de dor pertence à nossa nação ou raça e que proporção é pessoal. Seja como for, só conseguimos superá-lo assumindo a responsabilidade pelo nosso estado interior no momento. Mesmo que culpar pareça algo mais do que justificado (desde que culpemos os outros, é claro), continuamos a alimentar o corpo de dor com nossos pensamentos e permanecemos presos ao ego. Existe apenas um praticante do mal no planeta: a inconsciência humana. Compreender isso é o caminho para o perdão. Quando perdoamos, nossa identidade de vítima se dissipa e nossa verdadeira força se manifesta – a força da presença. Portanto, em vez de culpar a escuridão, acenda a luz.
 
(Tolle, Eckhart - Um novo mundo: o despertar de uma nova consciência)
 
Em sintonia na existência

publicado às 02:01


Penso noventa e nove vezes e nada descubro; deixo de pensar, mergulho em profundo silêncio - e eis que a verdade se me revela.

Albert Einstein  
 

Depois do silêncio, o que mais se aproxima de expressar o inexprimível é a música.

Aldous Huxley
 

O vocabulário do amor é restrito e repetitivo, porque a sua melhor expressão é o silêncio. Mas é deste silêncio que nasce todo o vocabulário do mundo.

Vergílio Ferreira
Silêncio
Costuma-se dizer: “O silêncio é a linguagem de Deus, e tudo mais é tradução malfeita.” O silêncio é realmente outra palavra para espaço. Ao tomarmos consciência dele quando o encontramos na nossa vida, estabelecemos uma ligação com a dimensão sem forma e eterna dentro de nós, aquela que está além do pensamento e do ego. Pode ser o silêncio que envolve o mundo da natureza, a tranqüilidade do nosso quarto nas primeiras horas da manhã ou os intervalos entre os sons. O silêncio não tem forma – é por isso que, por meio do pensamento, não conseguimos ter consciência dele. O pensamento é forma. Ter consciência do silêncio significa ficar em silêncio. Ficar em silêncio é estar consciente sem pensamento. Nunca somos nós mesmos com tanta intensidade do que quando estamos em silêncio. Nessas ocasiões, somos quem fomos antes de assumir temporariamente essa forma física e mental que chamamos de pessoa. Também somos aquele que seremos depois que a forma se dissolver. Quando estamos em silêncio, somos quem somos além da nossa existência temporal: a consciência – incondicional, sem forma, eterna.

(Eckhart Tolle - Um novo mundo: o despertar de uma nova consciência)

publicado às 08:20


Pitonisas & Sibilas

por Thynus, em 22.08.17

De fato, penso no antigo erro, logo punido, mas com efeitos que duram até a terceira geração, no desvio de Laio, surdo à voz de Apolo que, três vezes, em seu trono fatídico de Pito, umbigo do mundo, declarou que ele devia morrer sem filhos, se quisesse salvar sua cidade. Cedendo porém ao insensato desejo (Laio está sob o domínio do álcool ao fazer amor com Jocasta), ele engendra sua própria morte, Édipo, o parricida que, no rego sagrado da mãe que o nutriu, ousou plantar uma raiz sangrenta. O delírio havia unido os esposos ensandecidos (ainda o álcool explicando o esquecimento da recomendação de Apolo). Um mar de males lança sobre nós as suas vagas. Cada uma que rebenta ergue outra, três vezes mais forte, a estrondear fervilhando contra a popa da nossa cidade [...] Pois aqui se cumpre o terrível acerto de contas de antigas imprecações.
(Luc Ferry - A Sabedoria dos Mitos Gregos)

 

 Aproveito para, de passagem, contar de onde vem a expressão “palavras sibilinas”. Sibila era simplesmente uma pítia, uma sacerdotisa encarregada de transmitir os oráculos de Apolo. Como tinha uma grande fama, decidiu-se após sua morte transformar seu nome próprio em nome comum e dizer “uma” sibila para designar as sacerdotisas que a sucedessem em Delfos ou em outro lugar, propagando palavras oraculares. Os oráculos, no entanto, tinham uma característica constante: eram sempre ambíguos, com significado nunca imediato e sempre de difícil interpretação para os mortais. Por isso se diz “palavras sibilinas”, designando argumentos pouco claros ou ambíguos.

(Luc Ferry - A Sabedoria dos Mitos Gregos)



Ouvir profecias foi um hábito constante dos povos etruscos, romanos e gregos. Os centros proféticos se multiplicavam em suas localidades. Porém, o mais famoso foi, sem dúvida, o de Delfos, dedicado a Apolo. Situado no sopé do monte Parnaso, num magnífico cenário natural, donde se podia descortinar boa parte da Grécia, para lá acorriam pessoas de muitos países para consultas, homenagens e oferendas ao deus.

   Os textos homéricos são ricos em citações a este templo onde Apolo, deus do sol e da profecia, se revelava ao mortal através de suas profetisas.

 

   Passado o inverno, quando o sol retornava à Grécia, o mito nos diz que Apolo voltava do paraíso hiperbóreo para Delfos, onde o esperavam as suas Pitonisas.

 

   O nome destas sacerdotisas provinha da serpente Pytton. Esta, após o grande dilúvio que devastara a Grécia, ao primeiro raio de sol enviado por Apolo para recuperar um solo lamacento, havia surgido das profundezas da terra.  

 

 

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Delfos, o lugar sagrado das profecias de Apolo proferidas através das pitonisas

As interpretações de Pytton são divergentes. Dependem de como se entende a simbologia das serpentes. Alguns vêem nelas a potência do mal que, surgida das entranhas da terra, foi morta pela luz de Apolo. Para outros, correspondem ao símbolo da sabedoria, que após um grande impacto que destruiu tudo o que era negativo, surge com toda a força, encontrando-se com a luz sagrada de Apolo.

   Como as pitonisas são encarregadas de trazer aos seus consulentes a sabedoria profética do deus, é possível que a serpente Pytton corresponda à segunda interpretação.

 

   Para receberem o beneplácito do deus e fornecerem oráculos corretos, as pitonisas se purificavam nas águas da fonte sagrada Castália. Entrando depois no templo, situado em enorme caverna, encaminhavam-se a um salão indo mascar folhas de louro, sentadas sobre um tamborete de três pernas. Este, colocado exatamente sobre uma fenda de onde emanavam vapores causadores de tonteiras, as capacitavam ao transe. Momento sublime-segundo acreditavam- quando Apolo lhes falava

 

   Sacerdotes anotavam e transmitiam o que as pitonisas balbuciavam entre estremecimentos convulsos. Tais sacerdotes por vezes deturpavam a seu bel prazer o que era recebido conforme suas conveniências. Contudo, muitos deles até influenciaram positivamente o desenvolvimento das cidades gregas, dando informações que vieram a auxiliar em guerras e colonizações, dando aos oráculos uma importância inegável.

 

   Além das Pitonisas, contava-se para adivinhações, profecias e oráculos ainda com Sibilas. A que melhor sobressaiu-se foi a de Cumes, local da Itália onde existiu uma gruta-santuário de Apolo. Esta Sibila notabilizou-se principalmente por seus famosos livros (os Sibilinos). Neles, ela teria predito os destinos de Roma e seriam sempre revistos como orientações em épocas de grandes crises.

 

   A Capela Sistina nos apresenta, em magníficos afrescos de Michelangelo, uma serie de Sibilas. Algumas portando galhos de louro, mas todas com manuscritos ou livros às mãos num simbolismo da sabedoria que Apolo lhes transmitia.

 

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A Sibila de Cumes, pintura da Capela Sistina

 

 Eram privilegiadas por este deus solar, mas ele se tornava implacável quando alguma delas se negava a amá-lo

   Assim aconteceu com a Cassandra, filha do rei de Troia. Apolo lhe deu o dom da profecia, desejando em troca o seu amor. Porém, quando ela lhe resistiu, ele, decepcionado, lhe impôs um castigo. Ninguém jamais acreditaria nas profecias saídas da boca de Cassandra. Isto resultou em desastres, posto que suas advertências de que Páris ao roubar Helena causaria a destruição de Troia, não foram ouvidas. Nem tampouco seus avisos proféticos de que o célebre “Cavalo de Troia” era um perigo iminente, uma grande farsa que os gregos impingiriam aos troianos.

 

   Nem a Sibila de Cumes, tão famosa, subtraiu-se à ira de Apolo. Ele a queria tanto, que prometeu dar-lhe tudo o que desejasse. A Sibila então pegou um punhado de areia e lhe pediu tantos anos de vida quantos grãos tivesse nas mãos.

 

   O deus notou que ela esqueceu-se de pedir-lhe uma paralela juventude eterna. Ainda usou esta promessa para tentar convencê-la. Porém, quando ainda assim ela recusou-se a ele, Apolo deixou que ela envelhecesse. Os anos de vida da Sibila permanecerão por séculos incontáveis, mas seu corpo degenera sempre.

 

   Em angústias terríveis a Sibila se arrepende de ter querido viver tanto e ter recusado amar Apolo.

(Helyette Malta Rossi - A Diversidade dos Mitos)

publicado às 00:09

 Como em todas as boas histórias, o pior foi deixado para o fim. E esse pior é um certo Procusto (que recebeu vários nomes e apelidos: é chamado Damastes e Polipêmon, além de Procusto, termo que parece significar nesse contexto “aquele que martela”, você já vai saber por quê). Mais uma vez, alguns veem nesse homem uma origem não humana: Higino, por exemplo, faz de Procusto um filho de Poseidon — a quem se imputa, como pode ver, um monte de filhos nada simpáticos. Em sua casa, também situada à beira da estrada que vai de Trezena a Atenas, Procusto tem duas camas, uma grande e a outra pequena. Muito cordialmente, como quem não quer nada, Procusto oferece hospitalidade aos viajantes que passam por perto. E toma sempre o cuidado de oferecer a cama grande aos pequenos e a pequena aos grandes, de forma que os primeiros ficam sobrando no leito, enquanto os segundos ficam com a cabeça e os pés para fora. Assim que dormem, o horrível indivíduo os amarra firmemente na cama. Dos grandes, ele corta tudo que fica para fora do colchão. No caso dos pequenos, ele quebra as suas pernas com um martelo pesado, transformando-as num mingau para poder mais facilmente esticá-las e fazer que ocupem o que sobra da cama grande! Teseu, mais uma vez, não se deixa enganar. Percebe a cruel manobra do hospedeiro, em quem ele, desde o início, já não confiava, e lhe aplica o mesmo suplício normalmente reservado aos convidados.
(Luc Ferry - A Sabedoria dos Mitos Gregos)


Procusto, segundo a mitologia dos gregos antigos, era um malfeitor que morava numa floresta na região de Elêusis (península da Ática, Grécia). Ele tinha mandado fazer uma cama que tinha exatamente as medidas do seu próprio corpo, nem um milímetro a menos. Quando capturava uma pessoa na estrada, Procusto amarrava-a naquela cama. Se a pessoa fosse maior do que a cama, ele simplesmente cortava fora o que sobrava. Se fosse menor, ele a espichava e esticava até caber naquela medida.
 
A simbologia por trás desse mito representa a intolerância diante do outro, do diferente, do desconhecido. Representa uma visão de mundo totalitária daquele sujeito que quer modelar todos os seres a sua própria imagem e semelhança. É a recusa da multiplicidade, da diversidade, da criatividade, da originalidade.
Procusto ou “as cegueiras do conhecimento” esteve presente, por exemplo, na consciência dos juízes de Sócrates, quando condenaram-no a morte por ter “corrompido” a juventude ateniense; esteve presente também no imaginário dos soldados romanos que perseguiam e matavam cristãos por seguir uma religião que se opunha ao paganismo e a figura sagrada do Imperador; continuou presente no Tribunal da “Santa” Inquisição que condenou à fogueira todos àqueles que eram contrários aos seus dogmas: Giordano Bruno, Galileu Galilei (foi poupado por ter negado suas teorias científicas) e até Joana D´arc;  esteve presente também na consciência dos reis absolutistas; nas revoluções burguesas; no processo de escravidão mercantil; na formação dos partidos nazi-fascistas; no extermínio de milhões de judeus nos campos de concentração, de trabalho e também nas Guerras Mundiais… (só para citar alguns poucos exemplos…)
O espírito de Procusto, esteve presente em várias etapas de nossa história e ainda continua atormentando a escola tanto quanto o processo educativo, em outras palavras, está presente na consciência humana produzindo “cegueiras”, erros e ilusões do conhecimento. Dessa forma:
Quanto sofrimento e desorientações foram causados por erros e ilusões ao longo da história humana, e de maneira aterradora, no século XX! Por isso, o problema cognitivo é de importância antropológica, política, social e histórica. Para que haja um progresso na base no século XXI, os homens e as mulheres não podem mais ser brinquedos inconscientes não só de suas idéias, mas das próprias mentiras. O dever principal da educação é de armar cada um para o combate vital para a lucidez. (MORIN, 2003, p. 33)
Mas como perceber os erros, ilusões e cegueiras em torno do conhecimento humano? Ou melhor, como reconhecer o fantasma de Procusto? O filósofo francês Edgar Morin em seu livro: “Os sete saberes necessários à Educação do futuro”, nos apresenta algumas explicações:
 O conhecimento […] é o fruto de uma tradução/reconstrução por meio da linguagem e do pensamento e, por conseguinte, está sujeito ao erro. Este conhecimento, ao mesmo tempo tradução e reconstrução, comporta a interpretação, o que introduz o risco do erro na subjetividade do conhecedor, de sua visão de mundo e de seus princípios de conhecimento[…] A projeção de nossos desejos ou de nossos medos e as perturbações mentais trazidas por nossas emoções multiplicam os riscos de erro. (MORIN, 2003, p. 20)
Portanto, o conhecimento é um processo e produto da consciência humana, na medida em que, colhe dados da realidade através de habilidades de pensamento (tradução/reconstrução); dados que são construídos pela percepção dos sentidos (tato, visão, audição, olfato e paladar); processados por nossa imaginação e linguagem; armazenados na memória e transmitidos pela oralidade. Através do processo de “tradução e reconstrução” corre-se o risco do erro, pois a Interpretação (decorrente do processo do pensar) depende da subjetividade do sujeito que conhece e de sua visão de mundo (conjunto de costumes, tradições, hábitos, crenças, etc.) que são assimilados socialmente.
Nesse argumento conceitual em torno dos erros, ilusões e cegueiras que são inerentes no processo do conhecimento humano, Morin expõe, pelo menos, duas ideias que merecem ser problematizadas: “A subjetividade do sujeito que conhece” e a “sua visão de mundo”.
Quando pensamos em “subjetividade do sujeito que conhece”, e nos remetemos a outras leituras de Morin, entendemos que o ser humano é ao mesmo tempo sapiens, no sentido de ser dotado da racionalidade, mas também é demens, isto é, capaz de condicionar seu pensamento e ação de acordo com sua afetividade, desejos, medos, perturbações mentais, por suas emoções de maneira geral. Isto quer dizer que subjetivamente, somos “atormentados” por nossas emoções que também condicionam nossas atitudes. Dessa forma, sabemos que em muitas ocasiões temos uma alta probabilidade de cometer erros e ilusões quando agimos de acordo com “impulsos” afetivos, ao ponto de mentir para si próprio ou projetar no outro nossos próprios erros, Segundo Morin:
Cada mente é dotada também de potencial de mentira para si próprio (self-deception), que é fonte permanente de erros e ilusões […] a tendência a projetar sobre o outro a causa do mal fazem com que cada um minta para si próprio, sem detectar esta mentira da qual, contudo, é autor. (MORIN, 2003, p. 21)
Mas também, podemos cometer o erro de agir com tamanha racionalidade, ao ponto de nos desumanizar (perdendo o senso de solidariedade e coletividade), como nosso amiguinho Procusto, ou nossa querida Escola que pode ser caracterizada como uma “Instituição regularizadora, normalizadora de comportamentos, seletiva e discriminatória” como alega a educadora Luiza Cortesão da Universidade de Coimbra em palestra proferida no VI Colóquio sobre Instituições Escolares da Universidade Nove de Julho em setembro de 2009.
A segunda consideração que permeia a definição de “cegueiras do conhecimento” para Morin é a consciência de “visão de mundo” do sujeito, que o autor irá classificar como “paradigmas do conhecimento”, estrutura que condiciona os seres humanos a erros interpretativos da realidade, pois direciona o seu conhecimento, pensamento e ação segundo concepções que são inscritas culturalmente, é o que denomina imprinting cultural, “marca matricial que inscreve o conformismo a fundo, e a normalização que elimina o que poderia contestá-lo” (MORIN, 2003, p. 28). Portanto:
 …O paradigma é inconsciente, mas irriga o pensamento consciente, controla-o, neste sentido, é também supraconsciente […] o paradigma instaura relações primordiais que constituem axiomas, determina conceitos, comanda discursos e/ou teorias […] Assim, um paradigma pode ao mesmo tempo elucidar e cegar, revelar e ocultar. É no seu seio que se esconde o problema-chave do jogo da verdade e do erro. (MORIN, 2003, p. 26; 27)
O fantasma de Procusto é justamente essa “visão de mundo” fechada em si mesma, paradigmática, dogmática e totalitária que imprime uma matriz cultural que permeia nossas ações e pensamentos e que inevitavelmente conduz os seres humanos a erros, ilusões e cegueiras no processo do conhecer, fruto da consciência humana. Essa “visão de mundo” imprime idéias, valores, percepções falsas da realidade, e de certa forma, bloqueia o conhecimento do ser humano e inevitavelmente suas ações.
A Instituição escolar vem reproduzindo essa “visão paradigmática” desde a sua origem, e atualmente problemas como: evasão, repetência, indisciplina, violência, etc. são decorrentes de uma educação que não é compatível com as novas demandas culturais e sociais de educandos, e dessa forma, não oferece um tipo de ensino pertinente, global, contextualizado, que orienta uma nova leitura da realidade, ocultando possíveis erros, ilusões e cegueiras… chegar a esse tipo de conhecimento será desafio ou utopia? Derrotar Procusto ou ser seu amigo?
Essas questões estão no cerne dos debates educacionais nos últimos anos e devem ser problematizadas na perspectiva de encontrar um novo modelo de Educação, adequado com as transformações tecnológicas e científicas da atualidade. Os desígnios do século XXI declaram novas matrizes curriculares e novos ordenamentos disciplinares para receber essa nova demanda de educandos. A complexidade dos problemas relativos à Educação atual exige novos direcionamentos pedagógicos com a perspectiva de evitar novos erros e cegueiras para as novas gerações e definitivamente aniquilar o fantasma de Procusto.


(André Rodrigues, historiador, coordenador do curso de licenciatura em História da UNIBAN/ANHANGUERA)

publicado às 22:14


A obra intangível

por Thynus, em 20.08.17
 
Renoir - o almoço dos remadores
Uma das mais saborosas histórias — provavelmente lendária — sobre o advento da sabedoria para aqueles que conseguem maturar, sem sofreguidão, a experiência de vida, é a que se conta a respeito do notável pintor francês Auguste Renoir. No ano em que se iniciava o século 20, ele, já sexagenário e bastante afamado pela vitalidade que deu ao Impressionismo, foi procurado por um jovem admirador interessado em aprender as artes do desenho. Porém, alegando um tempo escasso para tal empreitada, o apressado discípulo desejava saber quanto tempo duraria o aprendizado, pois ficara animado ao ver que o grande mestre fora capaz de fazer uma bela pintura com delgadas pinceladas, mas com uma rapidez assombrosa.
É nesse instante que a resposta de alguém que é um sábio consistente ultrapassa o senso comum e o óbvio, gerando o novo (em vez de produzir mera novidade, como muitos hoje súbita e debilmente famosos). Diz Renoir: 'Fiz este desenho em 5 minutos, mas demorei 60 anos para consegui-lo'.
Estupendo! E faz emergir uma grande questão: como avaliar em um trabalho ou obra todo o intangível percurso e experiência anterior que foram necessários para que o resultado tangível possa ser recompensado, remunerado, apreciado? Quanto vale o trabalho de um artesão, uma cozinheira, um mecânico, um médico, uma professora, um palestrante, uma cientista, uma jornalista, um músico etc.? Quanto vale um pequeno texto? Uma consulta médica com duração de vinte minutos? Uma palestra? Uma aula? Um aperto veloz em alguns parafusos? Uma rápida massagem? Um cavalinho artesanal feito de barro? Um cesto indígena? Uma camisa bem passada? Uma consulta jurídica pelo telefone?
O critério com o qual costumamos atribuir valor ao objeto ou serviço que será adquirido ou apreciado está apoiado especialmente na observação do tempo consumido para realizá-lo ou na suposta dificuldade momentânea de elaboração; no entanto, para escapar de uma postura superficial é necessário lançar mão de um outro critério: a percepção do peso da raridade, do insólito, do invulgar ou, tal como se fala cada vez mais, da expertise e perícia de alguém em alguma atividade.
Há uma antiga historinha, por muitos, difundida, e que serve para exemplificar o valor de uma intensa habilidade, e o quanto nem sempre ela é reconhecida.
Conta-se que em uma imensa fábrica nos EUA, funcionando o tempo todo por 24 horas ininterruptas, plena de mecanismos sofisticados, máquinas avançadas e equipamentos hidráulicos de última geração, ocorreu uma pane desconhecida. De pronto, sem qualquer aviso, todo o sistema ficou paralisado. Ora, cada minuto era precioso, tendo em vista a perda acelerada de dólares que a parada causava. A engenharia de manutenção e o suporte técnico foram imediatamente chamados, os especialistas examinaram todas as estruturas possíveis, os relatórios informatizados e as planilhas de operação foram vasculhados e, nada... O defeito não era localizado.
Passa-se um dia, dois e, no terceiro, com a direção já desesperada, prefere-se convocar dois técnicos do Japão que, um dia após a chegada e a inspeção, já tinham desistido. No sexto dia, tarde da noite, reúne-se a desanimada diretoria, à beira do colapso criativo e próxima de buscar soluções esotéricas para sanar o imenso prejuízo acumulado; num determinado momento um dos diretores diz: 'Lembrei-me de uma coisa! Há um velho encanador que trabalha há mais de 50 anos nesta cidade. Quem sabe, como recurso extremo, ele nos ajuda'. Sem alternativa, chamam o antigo profissional, que, com sua maletinha de ferro já desgastada, caminha silencioso por toda a fábrica e, de repente, perto da área central, pára, abaixa-se, coloca o ouvido no piso e dá um leve sorriso. Tira, então, da maleta um martelo de borracha e, com ele, dá uma pancada no chão. Tudo volta a funcionar. Júbilo, alegria, vivas.
O gerente financeiro, depois de abraçar efusivamente o encanador, pergunta pelo custo do serviço; ele responde que são mil dólares. O gerente, atordoado, retruca: 'Mil dólares por uma marteladinha? Não dá; não vão aceitar. Faça, por favor, uma nota fiscal detalhando todo o seu trabalho aqui'. O velhinho não se incomoda; preenche o documento e o entrega ao gerente, que lê a discriminação: 'a) dar a marteladinha, 1 dólar; b) saber onde dar a marteladinha, 999 dólares'.

(Mario Sergio Cortella - "Não espere pelo epitáfio" 
As banhistas - Renoir

publicado às 21:07


Não Espere Pelo Epitáfio...

por Thynus, em 20.08.17
Há uma frase que é sempre proferida — quase beirando um chavão — quando em determinadas circunstâncias deseja-se cobrar de alguém uma postura direta, uma posição explícita ou, até, uma atitude clara: Deus vomitará os mornos! Essa ameaça vale também quando se quer amedrontar aqueles ou aquelas que seguem pela vida afora sem nunca aproximar-se minimamente dos extremos, ficando sempre no ansiado ou proclamado como seguro 'caminho do meio', evitando-se, assim, qualquer risco de transbordamento ou ruptura da prudência.
Deus vomitará os mornos! Está lá no Apocalipse (último livro da Bíblia dos cristãos), capítulo 3, versículos 15 e 16: 'Conheço tuas obras: não és frio nem quente. Oxalá fosses frio ou quente! Mas, porque és morno, nem frio nem quente, estou para vomitar-te de minha boca'.
Essa admoestação colide frontalmente com um dos pilares da moral greco-romana desde a Antigüidade e que impregna com intensidade a moral do cotidiano: a virtude está no meio. Tal princípio, nascido como teoria completa no século 4 a.C., a partir da obra Ética a Nicômaco, de Aristóteles, anuncia, três séculos após, um ideal de moderação e uma referência de tranqüilidade expressos por um relato da mitologia trazido nas Metamorfoses do poeta latino Ovídio. Conta ele que Hélios (o Sol) tivera um filho, Faêton, com Climene, mas não acolheu a criança; quando Faêton cresceu, foi em busca do reconhecimento do pai que, tendo-o aceito, ofereceu como presente qualquer coisa que o rapaz desejasse. O pedido do jovem foi poder guiar o carro de Hélios, que antes o advertiu com a obrigação de manter-se eqüidistante do céu e da terra, dizendo-lhe que 'pelo meio irás com a máxima segurança'; como o filho não o atendeu, desequilibrando e desviando o Sol, Zeus interveio e liquidou Faêton com um raio.
Ora, há dezenas de mitos, fábulas e histórias com a finalidade de exaltar a exclusividade e preferência do caminho do meio; o que não se deve esquecer é que esse caminho pode também ser o da mediocridade. Em nome da sobriedade, da prudência e do comedimento, o máximo que se obtém em muitas situações é a mornidade mediana, regrada e constantemente refreada.
Nesse sentido, para não ser morno, é preciso ser radical. Cuidado! Em nosso vocabulário usual é feita uma oportunista confusão entre radical e sectário. Radical é aquele — como lembra a origem etimológica — que se firma nas raízes, isto é, que não tem convicções superficiais, meramente epidérmicas; radical é alguém que procura solidez nas posturas e decisões tomadas, não repousando na indefinição dissimulada e nas certezas medíocres. Por sua vez, o sectário é o que é parcial, intransigente, faccioso, ou seja, aquele que não é capaz de romper com seus próprios contornos e dirigir o olhar para outras possibilidades.
É preciso ter limites, mas, estará o limite exatamente no meio? Não é necessário ir ate os extremos, mas é essencial não ficar restrito ao confortável e letárgico centro; muitas vezes o meio pode ficar anódino, inodoro, insípido e incolor. Alguns desses desejos de romper fronteiras mornas só aparecem nos epitáfios, sempre em forma nostálgica e lamentadora de um 'eu devia ter...' Para além da mitologia grega, não é por acaso que outros Titãs têm sido tão festejados quando cantam de forma deliciosa e perturbadora (e muitos com eles): 'Devia ter amado mais, ter chorado mais, ter visto o sol nascer; devia ter arriscado mais e até errado mais, ter feito o que eu queria fazer'...
A sabedoria para equilibrar essas inquietações pode ser encontrada na reflexão feita no século 5 a.C. pelo filósofo chinês Confúcio: 'Eu sei por que motivo o meio-termo não é seguido: o homem inteligente ultrapassa-o, o imbecil fica aquém'.
Radicalidade é uma virtude; o vício está na superficialidade.

(Mario Sergio Cortella - "Não espere pelo epitáfio"

publicado às 00:26


HOMEM DA SIRENE

por Thynus, em 18.08.17

São três e meia no quartel
É quando acordas exaltado mas habituado já sentes na pele
Essa vida de fascina o orgulho de tá fardado
Três dias sem uma dormida, por o alarme que foi soado
E a vida segue sem complicação
Sem tempo para largar o sono desces o varão
Com pressa ajeitas o capacete, botas e blusão
Entras na viatura sem pensar se vais voltar se não


(Nem sempre volta aquilo que vai)
Perante o governo tás ao contrário
Mais vontade que dinheiro e mesmo assim és voluntário
Quantas vezes pensaste ter um bilhete só de ida
E sem ter salva de palmas apenas pra salvar vidas
E quando cais não sabes o fogo sobre serra acima
E sem ter medo serra acima tu vais
Não é boato ser anunciado no jornal
Enquanto os outros rimam ouvir o homem que morreu
Por dez nunca o salvariam

E nunca foi ficção
Para ver uma construção com este meio para o fazer
Chegar á minha rua e ver o povo sentado a ver
A serra arder
Viver sem ter uma garantia no teu dia
Só sabes que no teu ciclo amor, respeito e valentia
Nunca consta no currículo
Porque o povo se ilude com pouco

Tentem chamar o Ronaldo para apagar o fogo
Baixo a minha cabeça, mão no peito
Pelo que pensou na vida e não pensou na fama
Por toda a mangueira que a meia haste alertou a chama
As lembranças nem todas são más
Tô a fazer figas por ti, soldado da pás
A todo o bombeiro do meu país

Há muitas almas perdidas
Matas ardidas e muito para arder
Mas há mais pra pensar
Hà mais para amar e mais pra viver
Porque todo aquele que combateu
Com toda a raça sem baixar a mão
Pelo que luta com gana se levanta
Da cama pra perder a nação

São quatro e meia fora do quartel
Chamas invadiram casas e florestas verdes viraram papel
Tudo corrompe aquela zona trás a tristeza no rosto
E a natureza não faz isto, claro que é fogo posto
Não vês quem esclarece é quem apaga o incêndio
O incendiário não carrega os porquês, então porquê?
Porque é gente que já não presta, floresta que vira brasa
P'ra ricos terem escritórios, os bichos ficam sem casa
Talvez um dia possa agradecer
Pelas vidas que salvaste, nos que acreditaste e tão a viver

Quantas vezes tiveste que partir enquanto outros comem
Quantas vezes chamaram por ti? Por ti super-homem
Eu só queria ser a energia e o teu alimento
Ser a tua valentia para te ajudar nos momentos
Tentar dar o contributo nem que seja em pensamentos
Lado a lado na guerra, em campos cinzentos, eu bem tento

Em campos cinzentos
Sofrem os outros que não lá ficaram
Com a ajuda do vento
Vão ardendo memórias que não se apagaram
E mais que uma chama, o inferno de pé
Que em segundos arde, e sem deixar fé
Mas com toda a bondade, firmeza e vontade
Vai quem já nada teme, o homem da sirene

Há muitas almas perdidas, matas ardidas e muito para arder
Mas há mais pa pensar à mais para amar e mais pa viver
Porque todo aquele que combateu com toda a raça sem baixar a mão
Pelo que luta com gana se levanta da cama pa perder a nação

publicado às 21:00


Socialismo e Nacional-socialismo: a esquerda e a direita autoritárias do século XX
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Em torno da destruição física – o imenso ossário, a demolição da terra, aspecto mais evidente do desastre, sobre o qual se concentram os estudos e as medições – estende-se um domínio invisível em que a devastação é provavelmente maior, afeta mais gente e demandará ainda mais tempo para ser reparada: a destruição das inteligências e das almas.
 
 
A inépcia
 
Pode-se esboçar – e isso foi feito – a genealogia intelectual das duas principais formas ideológicas que dominaram neste século uma parte da humanidade. O perigo é o de se acreditar que as ideias vastas e profundas de que elas tiraram alguma coisa para se formar subsistem ainda nelas. E dar-lhes uma dignidade, cartas de nobreza que elas não merecem. Seria ir na sua direção, pois elas reivindicam essa genealogia.
O marxismo-leninismo se considera o herdeiro de uma tradição que vem de Heráclito e de Demócrito. Ele descende, segundo sua pretensão, de Lucrécio, do lluminismo, de Hegel, de todo o movimento científico. Ele os resumiria e os realizaria. O nazismo buscava suas referências na tragédia grega, em Herder, Novalis, num outro Hegel, em Nietzsche e, claro, se garantia no movimento científico posterior a Darwin. E preciso não levá-los a sério. E uma ilusão, que comporta, além disso, o perigo de comprometer a linhagem reivindicada: arrisca-se a se atribuir a Hegel, ou a qualquer filósofo ou cientista citados por eles, tais descendentes.
Essa ilusão se dissipa caso se queira olhar bem o genuíno funcionamento intelectual dos dirigentes nazistas e comunistas. Ele é inteiramente dominado por um sistema de interpretação do mundo de uma extraordinária indigência. Um combate dualista é levado adiante entre classes ou raças. A definição dessas classes ou dessas raças só tem sentido no e pelo sistema, se bem que o que pode ter objetivo na noção de classe ou de raça perde-se de vista. Essas noções loucas explicam a natureza do combate, justificam-no, guiam-no no espírito da ideologia a ação dos adversários e dos aliados. Pode haver ardis e astúcias nos meios utilizados para atingir o fim e, de fato, o comunismo com Lenin, Stalin, Mao Ho Chi Minh beneficiou-se de atores mais competentes do que Hitlet: a lógica do conjunto do sistema permanece absurda; seu fim, inatingível.
O estado psíquico do militante distingue-se pelo investimento fanático no sistema. A visão central reorganiza todo o campo intelectual e perceptivo, até na periferia. A linguagem transforma-se. Ela não serve mais para comunicar ou expressar, e sim para mascarar a solução de continuidade entre o sistema e a realidade. Assume o papel mágico de sujeitar a realidade à visão do mundo; é uma linguagem litúrgica, em que cada fórmula indica a adesão do locutor ao sistema e intimida o interlocutor a aderir. As palavras reveladoras são, então, ameaças e figuras de um poder.
Não se pode permanecer inteligente sob a ideologia. O nazismo seduziu alguns grandes espíritos: Heidegger, Carl Schmitt. Isso porque eles projetavam sobre o nazismo pensamentos próprios que lhe eram estranhos, um antimodernismo profundo, um antidemocratismo profundo, um nacionalismo transformado em metafísica, tudo que o nazismo parecia ter assumido, salvo o que produzia seu valor na vida intelectual desses filósofos, o pensamento, a profundidade, a metafísica. Eles também cediam à ilusão da genealogia.
O marxismo-leninismo só recrutou espíritos de segundo escalão, um Lukács, por exemplo: eles não tardaram a perder seu talento. Os partidos comunistas podiam se vangloriar de contar com adesões ilustres – Aragon, Brecht, Picasso, Langevin, Neruda: eles tinham o cuidado de mantê-los à margem para isolá-los numa adesão de acaso, de humor, de interesse, de circunstância. Porém, apesar do caráter superficial dessa adesão, a pintura de Picasso (ver os Massacres da Coréia) e a poesia de Neruda e de Aragon não deixaram de sofrer os efeitos. Ela pode subsistir artisticamente em um registro de provocação. A adesão à ideologia dos espíritos superiores produz-se a favor de uma confluência aleatória de paixões diversas cuja natureza é externa à ideologia. Mas, aproximando-se de seu cerne, tais paixões se debilitam, não restando às vezes senão um resíduo de inépcia.
Na zona comunista, os dirigentes tiveram às vezes que resumir sob seu nome o esquema fundamental, como foi o caso Stalin e Mao, que se resume em algumas páginas e contém a totalidade da doutrina: não existem tratados superiores a esses manuais, qualificados às vezes de “elementares” para se fazer crer que haja outros mais profundos; eles seriam apenas a diluição dos primeiros. Nem por isso deixam de ser impostos como objetos de “estudo”, isto é, que os sujeitos têm a obrigação de passar algumas horas a repeti-los e a papagueá-los. Na zona nazista, tais compêndios não existiram. O pensamento deveria estar subordinado ao do líder, que se apresentaria como oracular e inspirado. Quando se analisa o teor, constata-se uma misteriosa mistura de darwinismo social, de eugenismo, de ódio vagamente nietzschiano pelo cristianismo, religião do “ressentimento”, do anti-semitismo patológico.
O homem nazista e comunista oferece-se ao exame clínico do psiquiatra. Ele parece fechado, desligado do real, capaz de argumentar indefinidamente em círculo com seu interlocutor, obscurecido, persuadido, no entanto, de ser racional. E por isso que os psiquiatras associaram esse estado de delírio crônico sistematizado à esquizofrenia, à paranóia. Se nos aprofundamos no exame, vemos que esta caracterização permanece metafórica. O sinal mais evidente de esta loucura ser artificial é que ela é reversível: quando a pressão cessa e as circunstâncias mudam, nós saímos dela imediatamente, como de um sonho. Mas é um sonho desperto, que não bloqueia a motricidade e mantém uma certa coerência de caráter racional. Fora da zona atingida, que, no homem sadio, é a parte superior do espírito, aquela que elabora a religião, a filosofia, as “ideias diretrizes da razão”, diria Kant, as funções do entendimento parecem intactas, mas polarizadas e sujeitas ao lado delirante. De tal modo que, quando despertamos, a cabeça está vazia, a aprendizagem da vida e do saber deve ser completamente retomada. A Alemanha, que tinha sido a Atenas da Europa durante um século, despertou embrutecida por doze anos de nazismo. O que dizer da Rússia, bem mais sistematicamente submetida durante setenta anos à pedagogia do absurdo, e cujas bases intelectuais eram menos estabelecidas e mais frágeis?
Essas doenças mentais artificiais são também epidêmicas e contagiosas. Elas foram comparadas à difusão repentina da peste ou da gripe. Formalmente, a nazificação da Alemanha, em 1933, e a Revolução Cultural chinesa desenvolveram-se de fato como uma espécie de doença contagiosa. Esperando sabermos mais sobre essas pandemias psíquicas, atribuamos a essas comparações um valor simplesmente metafórico.
A inépcia é o cenário de fundo da destruição moral. Ela é sua condição. O desajustamento moral da consciência natural e comum só pode existir se a concepção do mundo, a relação com a realidade, forem previamente perturbadas. Se essa cegueira é uma circunstância atenuante ou se ela é uma parte integrante do mal, eu não discutirei aqui. Ela não suspende o julgamento moral.
 
 
A falsificação nazista do bem
 
Se buscamos olhar atentamente o conjunto das operações que se praticavam contra um povo nos seis campos enumerados anteriormente, nos faltam palavras, conceitos. a imaginação recusa-se a conceber e a memória a reter. Estamos fora do humano, como se nos encontrássemos diante de uma transcendência negativa. A ideia do demoníaco aparece então irresistivelmente ao espírito.
O que assinala a nossos olhos o demoníaco é que estes atos foram realizados em nome de um bem, sob a cobertura de uma moral. A destruição moral tem como instrumento uma falsificação do bem tal que o criminoso, em uma medida impossível de precisar, possa manter a distância a consciência de que pratica o mal.
Himmler pronunciou durante a guerra numerosos discursos diante dos oficiais superiores e dos chefes de serviço da SS. O tom é sempre o da exortação moral.
Eis um texto que se eleva acima das contingências da época, acima mesmo dos interesses imediatos do Reich e que se eleva ao plano do universal: “Tudo o que fazemos deve ser justificado em relação a nossos ancestrais. Se não encontrarmos este vínculo moral, o mais profundo e o melhor porque mais natural, não seremos capazes a esse nível de vencer o cristianismo e de constituir esse Reich germânico que será uma bênção para toda a Terra. Há milênios é o dever da raça loura dominar a terra e sempre lhe propiciar felicidade e civilização.” (9 de junho de 1942)
O bem, segundo o nazismo, consiste em restaurar uma ordem natural corrompida pela história. A correta hierarquização das raças foi transformada por esses acontecimentos funestos que são o cristianismo (“esta peste, a pior doença que nos tem atingido em toda a nossa história”), a democracia, o reino do ouro, o bolchevismo, os judeus. A ordem natural é coroada pelo Reich alemão, mas reserva um lugar aos outros germânicos, que são os escandinavos, os holandeses, os flamengos. Pode-se mesmo deixar intacto o império britânico, que é “um império mundial criado pela raça branca”. Abaixo, os franceses e os italianos. Mais abaixo ainda os eslavos, que serão escravizados e reduzidos em número; Himmler encara uma “diminuição” de trinta milhões. No interior da sociedade, restaurar-se-á assim a ordem natural que quer que dominem os melhores, os mais duros, os mais puros, os mais cavalheirescos, cujos exemplos vivos são fornecidos pela elite da Waffen-SS. Quando Himmler pronunciou esse discurso, os incuráveis, os deficientes, os alienados da “raça” alemã já haviam sido eutanasiados clandestinamente nos hospitais e nos asilos.
Tudo isso não poderá ser feito, continua Himmler, sem um combate extremamente duro. Em seus discursos, ele apela constantemente ao heroísmo, à superação de si, ao sentido do dever superior com o Reich, particularmente quando se trata de executar ordens dolorosas: “Nós devemos atacar as tarefas ideológicas e responder ao destino, qualquer que seja ele; devemos estar sempre de pé, não cair nunca, não nos enfraquecermos nunca, mas estarmos sempre presentes até que o caminho termine ou que a tarefa de cada um tenha sido cumprida.”
A “solução final”, em certos aspectos, é apenas um problema técnico, como a desinfecção quando há perigo de tifo: “Destruir os piolhos não decorre de uma concepção do mundo. É uma questão de higiene. [...] Logo não teremos mais piolhos.” (24 de abril de 1943) A metáfora do inseto a destruir aparece regularmente no campo do extermínio ideológico. Lenin já a usara. Mas Himmler, grande líder, diz isso para fortalecer e encorajar seu auditório. Ele sabe que não é tão simples, que falsos escrúpulos podem ser superados e que para se realizar um certo tipo de tarefa “é sempre preciso ter consciência do fato de que nos encontramos em um combate racial, primitivo, natural e original” (IPde dezembro de 1943). Esses quatro adjetivos descrevem de modo apropriado a característica da ética nazista.
Em seu discurso de 6 de outubro de 1943, Himmler enuncia sua concepção da solução final; “A frase ‘os judeus devem ser exterminados’ comporta poucas palavras, ela é dita rapidamente, senhores. Mas o que ela necessita da parte daqueles que a colocam em prática é o que há de mais árduo e de mais difícil no mundo.
Naturalmente, são judeus, não são senão judeus, é evidente; mas pensem no número de pessoas – mesmo de camaradas do partido – que dirigiram a não importa que serviço, ou a mim mesmo, estes famosos pedidos, dizendo que, claro, todos os judeus são porcos, exceto fulano ou sicrano, que são judeus decentes, aos quais não se deve fazer nada. Eu ouso dizer que, a julgar pelo número desses pedidos e pelo número dessas opiniões na Alemanha, há mais judeus decentes do que propriamente judeus. [...] Eu lhes peço então com insistência para simplesmente ouvir o que eu digo aqui neste círculo fechado, e nunca falem disso com ninguém. Foi-nos feita a seguinte pergunta: o que fazer com as mulheres e as crianças? – Eu decidi, e também neste caso, encontrei uma solução evidente. Eu não me sentia no direito de exterminar os homens – se vocês preferem, matá-los ou mandá-los matar – e deixar crescer as crianças que se vingariam em nossas crianças e em nossos descendentes. Foi preciso tomar a grave decisão de fazer desaparecer esse povo da Terra. Foi, para a organização que teve de realizar essa tarefa, a coisa mais dura que já conhecera. Eu creio poder dizer que isso foi realizado sem que os nossos homens e os nossos oficiais tenham sofrido em seus corações ou em suas almas. Esse perigo era, no entanto, real. A via situada entre as duas possibilidades: tornar-se duro demais, agir sem coração e não respeitar mais a vida humana, ou então se tomar muito brando e perder a cabeça até ter crises de nervos – a via entre Caribde e Cila é desesperadamente estreita.”
Este justo meio virtuoso que Himmler reclama foi, às vezes, atingido: vários grandes carrascos, de fato, foram ternos pais de família, maridos sentimentais. Ele exige que a “tarefa” seja realizada sem intervenção de motivos “egoístas”, calmamente, sem fraqueza nervosa. Entregar-se à bebida, violar uma jovem, roubar os deportados, entregar-se a um sadismo inútil revela indisciplina, desordem, esquecimento do idealismo nazista, que são condenáveis e devem ser punidos.
A moral nazista impõe a busca da ordem que indica a natureza. Mas a ordem natural não é contemplada, mas sim deduzida do saber ideológico. O pólo do bem é representado pela “raça loura”, o pólo do mal pela “raça judia”. O combate cósmico terminará pela vitória de uma ou de outra.
Mas tudo isso é falso. Não há raças, no sentido em que o entendem os nazistas. O grande ariano alto e louro não existe, mesmo que se possam exibir alemães que sejam grandes e louros. O judeu, conforme eles o entendem, não existe, pois a representação racial que é feita pelo nazismo só tem relações de coincidência com a verdadeira identidade do povo da Aliança bíblica. O nazista crê ver a natureza, mas a natureza se esconde atrás do esquema interpretativo. A situação histórica e militar não é mais percebida sem deformação. Por causa de seu “nazismo”, Hitler entra em guerra e, por causa do próprio nazismo, ele a perde. A superioridade de Stalin residiu em ter conseguido colocar sua ideologia de lado o tempo necessário para preparar a vitória. A ideologia leninista era “melhor” porque permitia essas pausas e autorizava uma paciência política de que o nazismo, impulsivo e convulsivo, se mostrou incapaz.
A ética nazista se manifestava como uma negação da tradição ética de toda a humanidade. No máximo alguns pensadores marginais ousaram lançar, por provocação estética, alguns de seus temas. De fato, o gênero de naturalismo que ela propõe, o super-homem, o sub-homem, o desejo de poder, o niilismo, o irracionalismo, fazem-na recair no terreno da estética. É o kitsch artístico que embriaga, as encenações de Nuremberg, a arquitetura colossal ao estilo de Speer, o sombrio esplendor da força bruta. Enquanto moral, ela não pode produzir um correlato sério na História. Sua perversidade se torna evidente; ela não é universalizável: estas duas fraquezas se opõem à moral comunista.
Isto explica o motivo de a moral nazista ter sido menos contagiosa que a moral comunista e de a destruição moral ter sido mais limitada. As raças “inferiores”, “sub-humanas”, viam nessa doutrina uma ameaça mortal iminente e não podiam ser tentadas. O próprio povo alemão, na medida em que seguiu Hitler, o fez mais por nacionalismo do que por nazismo. O nacionalismo, que é uma paixão natural, singularmente estimulada há dois séculos, forneceu às formações artificiais do regime nazista, como aliás às do regime comunista, sua energia, seu carburante. Alguns membros da elite alemã tinham apoiado a chegada ao poder do chanceler: o aristocratismo indolente das tropas hitleristas não tinha nada a ver com a antiga elite. Aquele que reivindicava Nietzsche caiu na armadilha, como todo mundo. Quanto à lealdade do corpo de oficiais, ela se explica pela tradição militar, reforçada por um pouco de kantismo ou de hegelianismo. Os soldados obedeceram como obedecem os soldados.
É por isso que a abordagem teórico-simbólica do nazismo, a destruição física do povo judeu, e depois, por ordem hierárquica, a dos outros povos, foi um segredo, e dos mais bem guardados, do Reich. A “Noite de Cristal”, que foi um teste, uma tentativa para convocar e unir o povo alemão no grande projeto, não se constituiu um sucesso político. Hitler também decidiu construir fora dos territórios da Alemanha histórica os seis grandes centros de extermínio.
O desgaste moral nazista pode ser descrito em círculos concêntricos em torno de um núcleo central que os propósitos citados por Himmler permitem imaginar. Ele é formado por aqueles que se converteram plenamente ao nazismo. Eles são pouco numerosos. É o coração do partido, o coração da Waffen-SS, o coração da Gestapo. Os executores do extermínio são ainda menos numerosos. Não tinham necessidade de sê-lo: o alto desenvolvimento industrial e tecnológico alemão permitia economia de mão-de-obra. Algumas centenas de SS que governavam os campos da morte delegavam as tarefas “manuais” às próprias vítimas. Os Einsatzgruppen eram recrutados sem qualificação prévia. Percebeu-se que eles poderiam teoricamente abandonar esse corpo de assassinos. Mas grandes problemas os esperavam então, o primeiro dos quais o de combater na frente soviética. Esses homens eram, ou tinham se tornado, monstros. Não é certo que todos eles tinham feito adesão à ideologia nazista. Em toda população é fácil recrutar tantos torturadores e assassinos quanto se necessita. O verniz ideológico facilitava sua vocação ou lhes permitia desabrocharem. Já observamos que a atividade das Einsatzgruppen não podia ser ignorada pela Wehrmacht, em cuja sombra elas operavam; que o destino dos trens, a liquidação dos guetos, não deixavam muita margem a suposições; que, apesar da no man’s land que envolvia os campos da morte, alguma coisa terminava por transparecer. Hillberg escreve que o segredo era “um segredo conhecido por todo mundo”. O que é, sem dúvida, verdade, mas é preciso considerar dois pontos.
Um segredo conhecido por todo mundo não é a mesma coisa que uma política proclamada e um fato público. Os alemães seguiam, por disciplina militar e cívica, por nacionalismo, por medo, por impotência em conceber ou em realizar um ato de resistência. O segredo, mesmo ventilado, livrava-os da responsabilidade moral imediata, ou pelo menos permitia desviar, voltar a cabeça para outro lado, fazer como se tudo aquilo não existisse. Sob o nazismo subsistia uma sociedade que vivia sobre as relíquias do direito. O corpo de oficiais compreendia um número de homens que permaneciam fiéis aos cânones da guerra e se esforçavam, com maior ou menos sucesso, para manter uma certa honra. Porque a propriedade não tinha sido ainda eliminada, uma sociedade civil sobrevivia. O filme A lista de Schindler repousa no fato de que podia existir, na Alemanha, um proprietário de empresa em condições de recrutar e de abrigar uma mão-de-obra judia. Desde os primeiros anos do comunismo, algo desse tipo não era mais concebível na Rússia.
O conteúdo do segredo não era algo em que poderia crer um espírito normalmente constituído. O fato de que uma grande parte da Alemanha vivia ainda em uma sociedade e sob uma moral naturais, e de não avaliar bem o que a esperava, tornava mais difícil acreditar na realidade do que lhe escondiam, na consistência das suspeitas, na evidência dos indícios. Os próprios judeus, que tinham passado pela expropriação, concentração, deportação, quando chegavam diante das câmaras de gás ainda não podiam acreditar.
A pedagogia nazista teve apenas alguns anos de exercício. Quando a Alemanha foi ocupada, o nazismo rapidamente se evaporou – pelo menos na zona ocidental; no leste, ele foi, em parte, utilizado de novo. Em primeiro lugar porque foi julgado e condenado por todas as justiças alemãs e internacionais. Em seguida, porque a maioria da população não tinha ficado profundamente impregnada. Enfim, porque os próprios nazistas, despertos, não viam nitidamente a relação entre o que eles tinham sido sob a influência mágica da ideologia e o que eles eram agora que essa influência tinha se dissipado. Eichmann voltou à sua natureza básica de quadro médio, o que ele era antes e o que teria sido depois se não tivesse sido preso e condenado. Punição que ele recebeu de forma passiva, conforme seu caráter apagado. Os fatos relatados, como mostrou com razão Hannah Arendt, eram incomensuráveis para a consciência estreita daquele ser banal.
 
 
A falsificação comunista do bem
 
O comunismo é moral. O imperativo moral sustenta toda a pré-história do bolchevismo (o socialismo francês e alemão, o populismo russo), e sua vitória é celebrada como uma vitória do bem. A estética não predomina sobre a ética. O nazista se acha um artista; o comunista, um virtuoso.
O fundamento dessa moral está no sistema interpretativo. Ela é deduzida do saber. A natureza primitiva, afirma ele, não é a natureza hierarquizada, cruel, implacável com que se encanta o homem superior nazista. Ela se parece com a natureza boa de Rousseau. Ela se perdeu, mas o socialismo a recriará, levando-a a um nível superior. O homem se realizará completamente nela. Trotski afirmava que o nível de base da humanidade nova seria Michelangelo e Leonardo da Vinci. O comunismo democratiza o super-homem.
O progresso natural é um progresso histórico, pois o materialismo histórico e dialético garante a unidade entre a natureza e a história. O comunismo faz seu o grande tema do Iluminismo, o Progresso, em oposição, então, aos temas da decadência que assombram o nazismo; mas progresso dramático, que passa por imensas e inevitáveis destruições. Reconhecemos aqui vestígios do pantragismo hegeliano e sobretudo do darwinismo árduo da luta pela sobrevivência aplicada à sociedade. As “relações sociais de produção” (“escravismo”, “feudalismo”, “capitalismo”) se sucedem à maneira dos grandes reinos no mundo animal, como os mamíferos sucedem aos répteis. É um terreno de acordo secreto entre o nazismo e o comunismo: não se chora sobre o leite derramado; não se faz omelete sem quebrar os ovos; quando o gato sai, os ratos fazem a festa, todas expressões familiares a Stalin. De um lado e do outro, a história é dona da verdade. O nazismo restabelecerá o mundo em sua beleza; o comunismo, em sua bondade.
O restabelecimento depende da vontade humana iluminada pela ideologia. O leninismo, mais claramente ainda que o nazismo, obedece ao esquema gnóstico dos dois princípios antagônicos e dos três tempos. No momento inicial era a comuna primitiva; no momento futuro será o comunismo, e hoje é o momento da luta entre os dois princípios. As forças que fazem “avançar” são boas; as que “atrasam”, ruins. A ideologia (cientificamente garantida) designa o princípio ruim. Não se trata de uma entidade biológica (a raça inferior), mas social, que se tece na realidade em toda a sociedade: a propriedade, o capitalismo, o complexo dos costumes, do direito, da cultura que se eleva sobre o princípio ruim e que resume a expressão “o espírito do capitalismo”. Aqueles que compreenderam os três momentos e os dois princípios, que conhecem a essência da ordem natural e histórica, e que conhecem o sentido de sua evolução e os meios para acelerá-la, reagrupam-se e formam o partido.
É bom então o conjunto dos meios que fazem advir o fim que o revolucionário prevê. Como o processo é tão natural quanto histórico, a destruição da velha ordem é em si uma possibilidade para fazer advir o novo. A fórmula de Bakunin, que resumia o que ele tinha compreendido de Hegel, é a máxima do bolchevismo: o espírito de destruição é o mesmo que o espírito de criação. Na pré-história do bolchevismo, os heróis narodnik eram muito conscientes da revolução moral que suas concepções continham. Tchemychevski, Netchaiev e Tkatchev desenvolveram uma literatura do “homem novo”, de que Dostoievski satirizou e de que ele compreendeu o sentido metafísico. O homem novo é aquele que faz sua a nova moral de dedicação absoluta aos fins, que se dedica a expulsar de si mesmo os restos da velha moral, aquela que os “inimigos de classe” propagam para perpetuar o seu domínio. Lenin canonizou a ética comunista, e Trotski escreveu um pequeno livro cujo título já diz tudo: A moral deles e a nossa.
O fato assustador é que essa ruptura moral não é percebida por todos de fora desse meio revolucionário. De fato, para descrever a nova moral, o comunismo serve-se de palavras da velha: justiça, igualdade, liberdade... É fato que o mundo que ele se apresta a destruir está repleto de injustiça e de opressão. Os homens de bem não podem deixar de aceitar que os comunistas denunciam esses males com extremo vigor. Eles concordam que a justiça distributiva não é respeitada. Guiando-se pela ideia de justiça, o homem de bem busca promover uma melhor distribuição das riquezas. Para o comunista, a ideia de justiça não consiste numa divisão “justa”, e sim no estabelecimento do socialismo, na supressão da propriedade privada, anulando assim todo tipo de divisão, a própria divisão e, enfim, o direito das partes. Os comunistas dedicam-se a fazer nascer a consciência da desigualdade, não tendo como objetivo fazer constatar uma falta de direito, mas fazer desejar uma sociedade em que a regulação não passará pelo direito. Da mesma forma, a ideia comunista de liberdade tem por fim estimular a consciência de uma opressão onde o indivíduo, vítima da alienação capitalista, crê ser livre. Finalmente, todas as palavras que servem para expressar as modalidades do bem – justiça, liberdade, humanidade, bondade, generosidade, realização – são instrumentalizadas em vista do fim único, que contém todas elas e as realiza: comunismo. Do ponto de vista da ideia comunista, essas palavras mantêm com as antigas apenas uma relação de homonímia. Havia, no entanto, critérios simples que deveriam ter dissipado essas confusões.
Eu chamo de moral natural ou comum aquela à qual se referem os sábios da Antiguidade, e também os da China, da índia ou da África. No mundo constituído pela Bíblia, essa moral é resumida na segunda tábua dos mandamentos de Moisés. A ética comunista opõe-se a ela de forma frontal e muito consciente. Ela se propõe a destruir a propriedade e, com ela, o direito e a liberdade que se vinculam a ela, e reformar a ordem familiar. Ela se dá o direito de todos os meios de mentira e de violência para derrubar a velha ordem e fazer surgir a nova. Ela transgride abertamente, em seu princípio, o quinto mandamento (“honrarás pai e mãe”), o sexto (“não matarás”), o sétimo (“não cometerás adultério”), o oitavo (“não roubarás”), o nono (“não darás falso testemunho contra teu próximo”) e o décimo (“não cobiçarás a mulher do próximo”).
Não é absolutamente necessário crer na revelação bíblica para aceitar o espírito desses preceitos que se encontram em todo o mundo. A maioria dos homens considera que existem comportamentos que são verdadeiros e bons porque correspondem ao que eles conhecem das estruturas do universo. O comunismo concebe um outro universo e vincula a ele sua moral. É por isso que ele recusa não só os preceitos, mas também seu fundamento, o mundo natural. Dizíamos que a moral comunista baseia-se na natureza e na história; é falso. Baseia-se numa supernatureza que não existe e numa História sem verdade.
“O regime soviético”, escreveu Raymond Aron, em Democracia e totalitarismo “originou-se de uma vontade revolucionária inspirada em um ideal humanitário. O objetivo era o de criar o regime mais humano que a História já tivesse conhecido, o primeiro regime em que todos os homens poderiam ter acesso à humanidade, em que as classes teriam desaparecido, em que a homogeneidade da sociedade permitiria o reconhecimento recíproco dos cidadãos. Mas esse movimento tendeu para um fim absoluto, não hesitando diante de qualquer meio, porque, segundo a doutrina, apenas a violência poderia criar essa sociedade absolutamente boa, e o proletariado estava engajado numa guerra impiedosa contra o capitalismo. Dessa combinação entre um fim último e uma técnica impiedosa surgiram as diferentes fases do regime soviético.”
Estas linhas refletem, com toda a clareza possível, a ambigüidade e o engodo do comunismo. Pois o que é chamado de humano e de humanitário é, de fato, o sobre-humano e o sobre-humanitário que promete a ideologia. O humano e o humanitário não têm nem direito nem futuro. As classes não se reconciliam, elas desaparecem. A sociedade não se torna homogênea, ela é destruída em sua autonomia e em sua dinâmica própria. Não é o proletariado que faz a guerra ao capitalismo, é a seita ideológica que fala e age em seu nome. Enfim, o capitalismo só existe por oposição a um socialismo não existente senão na ideologia, e, em conseqüência, o conceito de capitalismo é inadequado para descrever a realidade que deve ser derrubada. O objetivo não é sublime: ele assume as cores do sublime. O meio, que é matar, se toma o único fim possível.
Ao fim de um longo e admirável paralelo entre o nazismo e o comunismo, Raymond Aron escreve: “Eu manterei, no ponto de chegada, que, entre esses dois fenômenos, a diferença é essencial, quaisquer que sejam as similitudes. A diferença é essencial à causa da ideia que anima os dois empreendimentos. Num caso, o ponto de chegada é o campo de trabalho; no outro, a câmara de gás. Num caso, é a vontade de construir um regime novo e talvez um outro homem, não importando quais os meios; no outro, uma vontade propriamente demoníaca de destruição de uma pseudo-raça.”
Eu também admito a diferença na base de argumentos que exporei mais adiante. Aqueles que são mencionados aqui não me convencem. O nazismo também projetava um regime novo e um homem novo, não importando quais os meios. Não é possível decidir qual o mais demoníaco: destruir uma pseudo-raça, inclusive a “superior”, porque elas são todas poluídas; ou destruir uma pseudoclasse e, depois, sucessivamente, as outras, todas contaminadas pelo espírito do capitalismo.
Raymond Aron, enfim, conclui: “Se eu tivesse que resumir o sentido de cada uma dessas empresas, acho que estas são as fórmulas que eu sugeriria: a propósito da empresa soviética, eu recordaria a fórmula banal ‘quem quer se passar por anjo, passa por animal’; a propósito da empresa hitlerista, eu diria: ‘O homem erraria ao se colocar como objetivo assemelhar-se a um animal de rapina, porque ele o conseguiria perfeitamente’.”
É melhor ser um animal que se passa por anjo ou ser um homem que se faz de animal, tendo-se confessado que todos os dois são de “rapina”? E impossível decidir. No primeiro caso, o grau de mentira é maior e a sedução mais atraente. A falsificação do bem é mais profunda, dado que o crime se assemelha mais ao bem do que o crime do nazismo, o que permite ao comunismo difundir-se mais amplamente e tocar corações que teriam recuado diante de uma vocação SS. Tomar maus homens bons talvez seja mais demoníaco que tornar pior homens já maus. O argumento de Raymond Aron vincula-se à diferença de intenções. A intenção nazista contradiz a ideia universal do bem. A intenção comunista perverte-a, pois ela tem um jeito bom e permite a muitas almas desatentas aderir ao projeto. O projeto sendo inacessivel, só restam, para qualificar o julgamento moral, os meios, que, sendo impotentes para atingir o seu fim, tornam-se o fim efetivo. Agregando-se ao crime, a mentira o torna mais tentador e mais perigoso.
Mais tentador: o comunismo leninista rouba a herança de um ideal muito antigo. Nem todos estão em condição de discernir, no momento da adesão, a corrupção que ele operou. Acontece que se permanece por muito tempo comunista, até toda a vida, sem se dar conta disso. A confusão da velha moral (comum) com a nova nunca é completamente dissipada. Se bem que ainda resta nos partidos comunistas uma proporção de “gente boa”, que resiste à deterioração moral e cuja presença joga a favor da anistia coletiva. O ex-comunista é mais facilmente perdoado do que o ex-nazista, já que este é suspeito de ter, desde sua adesão, rompido conscientemente com a moral comum.
Mais perigoso porque a educação comunista é insidiosa, progressiva, e transforma em bons os atos ruins que ela faz cometer. Mais perigoso também por ser imprevisível com as suas futuras vítimas. Todo mundo, de fato, pode assumir virtualmente, de um momento para o outro, a qualidade do inimigo. O nazismo designava por antecipação seus inimigos. Ele lhes atribuía uma natureza fantástica sem relação com a verdadeira, mas por trás do sub-homem havia um judeu real, por trás do eslavo desprezível um polonês ou um ucraniano de carne e osso. Aqueles que não eram nem judeus nem eslavos dispunham de um sursis. O universalismo, que é, antes da tomada do poder, a grande superioridade do comunismo sobre o exclusivismo nazista, se torna, uma vez no poder, uma ameaça universal. O capitalismo, como esta palavra é empregada, só tem uma existência ideológica, e não há categoria da humanidade que não possa cair sob a maldição que se abate sobre ele: o camponês “médio” e “pobre”, a intelligentsia, o “proletariado”, o próprio partido, enfim. Todos podem ser contaminados pelo espírito do capitalismo. Ninguém está a salvo da suspeita.
Com um certo realismo, os líderes nazistas prometiam sangue e lágrimas, previam um combate mortal para restabelecer a humanidade em sua correta ordem racial. Ao contrário, Lenin achava que os tempos estavam maduros e que a escatologia se realizaria assim que o “capitalismo” tivesse sido derrubado. A revolução iria inflamar o mundo inteiro. Uma vez expropriados os expropriadores, os quadros do socialismo iriam espontaneamente ocupar seu lugar. Mas nada disso se passou em seguida ao 7 de novembro de 1917, e a cortina subiu sobre um palco vazio. Para onde foram o proletariado, o campesinato pobre e médio, o internacionalismo proletário? Lenin está sozinho com seu partido, alguns guardas vermelhos, em um mundo hostil ou indiferente. 
No entanto, o marxismo-leninismo é científico. É preciso então que a experiência prove a teoria. Como o capitalismo foi derrubado, é necessário que o socialismo chegue. Como, aparentemente, ele não chega, resta construí-lo segundo as linhas indicadas pela teoria e verificar que em cada momento o resultado será conforme a previsão. Assim se constrói, pedra sobre pedra, um universo falso que se supõe que deveria substituir o verdadeiro. Assim se torna espessa uma atmosfera de mentira generalizada, à medida que os fatos se afastam das palavras encarregadas de descrevê-los. O bem se afirma freneticamente para negar a realidade do mal.
É principalmente por esta via que se produz a destruição moral no regime comunista. Como no regime nazista, ela se estende em círculos concêntricos em torno do núcleo inicial.
No centro se encontra o partido, e, no partido, seu círculo dirigente. Nos primeiros tempos do poder, ele ainda está sob o domínio total da ideologia. Nesse momento é que ele se dedica a eliminar “o inimigo de classe”. Em uma intoxicação absoluta da consciência moral, ele destrói em nome da utopia categorias inteiras de pessoas. Uma olhada retrospectiva mostra que, nos casos russo, coreano, chinês, romeno, polonês, cambojano, esta sangria inicial foi uma das mais importantes da história desses regimes: às vezes da ordem de 10% da população, ou até mais do que isso.
Quando parece que o sonho utópico já não se realizará, que a dizimação propiciatória não serviu para nada, observa-se um deslizamento da utopia para a simples conservação do poder. O inimigo objetivo estando já exterminado, é preciso cuidado para que não se reconstitua, até mesmo para que não reapareça nas fileiras do próprio partido. É o momento de um segundo terror, que parece absurdo porque não responde a uma resistência social e política, e visa a um controle total de todos os homens e de todos os pensamentos. O medo então se torna universal, ele se alastra no próprio partido, onde cada membro se sente ameaçado. Todo mundo denuncia todo mundo; todo mundo trai em cadeia.
Depois vem o terceiro estágio, o partido previne-se contra o expurgo permanente. Ele se contenta com uma gestão rotineira do poder e de sua segurança. Ele não crê mais na ideologia, mas continua a falar sua linguagem, e cuida para que essa linguagem, que ele sabe que é mentirosa, seja a única falada, pois ela é o sinal de sua dominação. Ele acumula os privilégios e as vantagens; transforma-se em casta. Ele entra em uma corrupção generalizada. Entre o povo, não se comparam mais seus membros a lobos, mas a porcos.
A periferia é constituída pelo restante da população. Na sua totalidade, de fato, esta é imediatamente convocada e mobilizada para a construção do socialismo. Ainda na sua totalidade ela sofre a ameaça, ela está exposta à mentira, ela é solicitada a participar do crime.
Ela está, antes de tudo, fechada. Todo governo comunista fecha as fronteiras, esse é um de seus primeiros atos. Os nazistas, até 1939, autorizavam as partidas, a troco de resgate. A “pureza” da Alemanha ganhava com isso. Mas jamais os comunistas. Eles têm necessidade do fechamento absoluto das fronteiras para proteger o segredo de suas matanças, de seu fracasso; mas, sobretudo, porque o país supostamente se tornou uma vasta escola em que todos devem receber a educação que extirpará o espírito do capitalismo e filtrará, em seu lugar, o espírito socialista.
O segundo passo é conttolar a informação. A população não deve saber o que se passa fora do campo socialista. Ela não deve tampouco saber o que se passa dentro. Ela não deve conhecer seu passado. Ela não deve conhecer seu presente: somente seu futuro radioso.
O terceiro é substituir a realidade por uma pseudo-realidade. Todo um corpo especializado no falso produz falsos jornalistas, falsos historiadores, uma falsa literatura, uma falsa arte que finge refletir fotograficamente uma realidade fictícia. Uma falsa economia produz estatísticas imaginárias. Acontece às vezes que as necessidades da cenografia chegam à adoção de medidas de estilo nazista. Assim, na URSS, os mutilados de guerra e do trabalho eram afastados da vista do público, transportados para asilos longínquos onde eles não chamavam mais atenção. Na Coréia, recordemos, são os anões, cuja “raça” deve desaparecer, que são deportados e impedidos de procriar. A construção dessa cenografia ocupa milhões de homens. Para que serve isso? Para provar que o socialismo não só é possível, mas que se constrói, se afirma, mais do que isso, que já está realizado: que existe uma sociedade nova, livre, auto-regulamentada, em que crescem os “homens novos” que pensam e agem espontaneamente conforme os cânones da realidade-ficção. O instrumento mais poderoso do poder é a confecção de um novo idioma em que as palavras assumem um sentido diferente do habitual. Sua elocução, seu vocabulário especial lhe dão o valor de uma linguagem litúrgica: ela denota a transcendência do socialismo. Ela assinala a onipotência do partido. Seu emprego pelo povo é a marca imediatamente visível de sua servidão.
No começo, uma parte importante da população recebe de boa-fé a pedagogia da mentira. Ela entra na nova moral com seu patrimônio moral antigo. Ela ama os dirigentes que lhe prometem a felicidade, ela crê que é feliz. Ela pensa viver na justiça. Ela detesta os inimigos do socialismo, ela os denuncia, aprova que eles sejam expropriados, que sejam mortos. Ela apóia seu extermínio com dureza. Ela participa do crime sem se dar conta. Ao mesmo tempo, ela se embrutece por ignorância, desinformação, raciocínios falsos. Ela perde suas referências intelectuais e suas referências morais.
A incapacidade de distinguir o comunismo do ideal moral comum faz com que, quando seu sentimento de justiça é ferido, ela atribua o abuso ao inimigo externo. Até a queda do comunismo, na Rússia, era freqüente os homens que sofriam maus-tratos pelos policiais ou pelos militantes os tratarem de “fascistas”. Não passava chamar-lhes por seu verdadeiro nome – comunistas.
E a vida, na cenografia socialista, em vez de se tornar “mais alegre, mais feliz”, como dizia Stalin, enfaticamente, em pleno “grande expurgo”, se torna mais sinistra, mais lúgubre. O medo invade tudo e é preciso sobreviver. O aviltamento moral, até ali inconsciente, penetra na consciência. O povo socialista, que fazia o mal acreditando que fazia o bem, sabe agora que o faz. Ele denuncia, rouba, se humilha, se torna mau, covarde e tem vergonha. O regime comunista não esconde seus crimes, como fez o nazismo; ele os proclama, convida a população a se associar a eles. Cada condenação é seguida de uma reunião de aprovação. O acusado é publicamente renegado por seus camaradas, sua mulher, seus filhos. Estes se unem à cerimônia por medo, por interesse. O stakhanovismo entusiasta dos primeiros tempos – se ele chegou a existir foi apenas como elemento cenográfico – é revelado no Homo sovieticus como um indolente, servil, imbecil. As mulheres sentem horror pelos homens. As crianças por seus pais, e sentem que se tornam aos poucos como eles.
O último estágio nos é descrito pelos escritores do fim do sovietismo, Erofeev, Zinoviev. Os sentimentos mais difundidos são o desespero e a repugnância de si mesmo. Resta aproveitar-se dos prazeres específicos que esse regime proporciona: a irresponsabilidade, a preguiça, a passividade vegetativa. Não vale mais a pena praticar o duplo pensamento, procura-se na verdade não pensar em nada. As pessoas se fecham sobre si mesmas. O sentimentalismo choroso, a selppity são uma maneira, como fazem os bêbados, de tomar os outros testemunhas de sua degradação. Estamos sempre no “ratorium' de Zinoviev, na luta hobbesiana de todos contra todos, mas com muito pouca energia. Zinoviev estimava que o Homo sovieticus era o produto de uma mutação irreversível da espécie. Provavelmente um erro.
Não há lugar protegido para escapar à pedagogia da mentira. Os quadros sociais da velha sociedade foram destruídos, juntamente com a propriedade, e substituídos por novos quadros que são outras tantas escolas e lugares de vigilância: o kolkhoz, a comuna popular chinesa para o camponês, o “sindicato” para o operário, as “Uniões” para o escritor e o artista. Pode-se descrever a história desses regimes como uma corrida permanente para o controle universal e, do lado dos indivíduos, como uma corrida perdida para encontrar refúgios ou pelo menos alguns recantos. Eles sempre existiram. Foi assim que na Rússia algumas famílias da velha intelligemsia souberam preservar suas tradições. Um Andrei Sakharov apareceu. Nas universidades, houve cátedras mais ou menos tranqüilas de assiriologia ou de filologia grega. Nas igrejas subjugadas, golpes de ar puro. No fim do regime, eram encontrados em Moscou pequenos grupos de jovens que, tendo recuperado a vida moral e intelectual, viviam voluntariamente de expedientes, não pegando nenhum trabalho, não brigando por nenhum posto, reduzindo ao mínimo os contatos com o exterior soviético. Eles se mantiveram assim até o fim.
No império soviético, o espírito reeducativo do comunista deter-se-ia na porta do campo. Para os nazistas, a conversão não tinha lugar, mas os bolcheviques praticamente renunciaram a converter os presos. Se bem que Soljenitsyn tenha podido afirmar que o campo era, apesar de seu horror, um lugar de liberdade intelectual e de respiração espiritual. O comunismo asiático fez dele, ao contrário, o lugar em que a pedagogia se exerce da maneira mais obsessiva, mais torturante. As autoridades observam o progresso do preso. Ele só sairá morto ou reeducado.
 
 
Avaliação
 
Pode-se tentar, nos limites que impõe o ponto de vista histórico, avaliar comparativamente a destruição moral produzida neste século pelo nazismo e pelo comunismo.
Por destruição moral, não entendo a desestruturação dos costumes, no sentido em que reclamam desde sempre as pessoas velhas olhando os costumes dos mais jovens. Eu não quero tampouco fazer um juízo sobre este século em comparação com outros. Não há nenhuma razão filosófica para pensar que o homem tenha sido mais virtuoso ou menos virtuoso. Resta que o comunismo e o nazismo buscaram mudar, agindo sobre os costumes, a regra moral, a consciência do bem e do mal. Por causa disso, algumas coisas que a experiência humana jamais tinha registrado foram cometidas.
Apesar de a intensidade no crime ser levada pelo nazismo a um grau que o comunismo talvez jamais se igualou, deve-se, no entanto, afirmar que este último a levou a uma destruição moral mais extensa e mais profunda. Por duas razões.
Em primeiro lugar, porque a obrigação de interiorizar a nova regra moral se estende à população inteira submetida à reeducação. As testemunhas nos dizem que esta interiorização obrigatória é a parte mais insuportável da opressão comunista: que todo o resto – a ausência das liberdades políticas e civis, a vigilância policial, a repressão física, o próprio medo – não é nada ao lado desta pedagogia mutilante, que se torna louca porque contradiz as evidências dos sentidos e do entendimento. Que toda a panóplia das “medidas” e dos “órgãos” lhe está finalmente subordinada. Como o comunismo, à diferença do nazismo, teve o tempo para ele, a pedagogia foi até o fim. Sua queda ou sua retirada de cena deixaram como herança uma humanidade arruinada, e o envenenamento das almas é mais difícil de ser expurgado que na Alemanha, que, afetada por uma alienação temporária, despertou de seu pesadelo pronta para o trabalho, o exame de consciência e o arrependimento purificador.
Em seguida, porque a confusão permanece insuperável entre a moral comum e a moral comunista, esta se escondendo atrás daquela, tornando-se parasita dela, gangrenando-a, fazendo dela o instrumento de seu contágio. Um exemplo recente: nas discussões que se seguiram à publicação do Livro Negro, um editorialista do L’Humanité declarou à televisão que os oitenta milhões de mortos não manchavam em nada o ideal comunista. Eles representavam apenas um lamentável desvio. Depois de Auschwitz, continuou ele, não se pode ser mais nazista; mas depois dos campos soviéticos, pode-se continuar sendo comunista. Esse homem que falava com consciência não se dava de forma alguma conta de que ele acabava de formular sua mais fatal condenação. Ele não percebia que a ideia comunista tinha pervertido de tal forma o princípio de realidade e o princípio moral, que ela não poderia de fato sobreviver a oitenta milhões de cadáveres, ao passo que a ideia nazista tinha sucumbido sob os seus. Acreditando falar como um homem muito honesto, idealista e intransigente, ele tinha pronunciado uma palavra monstruosa. O comunismo é mais perverso que o nazismo porque ele não pede ao homem que atue conscientemente como um criminoso, mas, ao contrário, se serve do espírito de justiça e de bondade que se estendeu por toda a terra para difundir em toda a terra o mal. Cada experiência comunista é recomeçada na inocência.


(ALAIN BESANÇON - A INFELICIDADE DO SÉCULO, SOBRE O COMUNISMO,
 O NAZISMO
 E A UNICIDADE DA SHOAH)
 

publicado às 05:34

.. "É a organização minuciosa da execução que confere à fome, ao terror ucraniano, o carácter de um genocídio, o segundo do nosso século, após o da Arménia e antes dos Judeus. Durante o Outono de 1932, os campos ucranianos adquirem o aspecto de um campo da morte.“ 
(Alain Besançon
 
 
A doença da luta de classes
 
Existe atualmente um acordo bastante geral, pelo menos entre os membros do Instituto, sobre o grau de conaturalidade entre o comunismo de tipo bolchevique e o nacional-socialismo. A meu ver, é correta a expressão de Pierre Chaunu: gêmeos heterozigotos. Essas duas ideologias tomaram o poder no século XX. Elas têm como objetivo chegar a uma sociedade perfeita extirpando o princípio maligno que a bloqueia. Em um caso, o princípio maligno é a propriedade, então os proprietários, e depois, como o mal subsiste após a “liquidação enquanto classe” destes, a totalidade dos seres humanos, corrompidos pelo espírito do “capitalismo”, que resulta em penetrar até no próprio partido. No outro caso, o princípio maligno está situado nas raças chamadas “inferiores”, em primeiro lugar os judeus, depois, o mal continuando a subsistir após o seu extermínio, é preciso persegui-lo nas outras raças e na própria “raça ariana”, cuja “pureza” foi maculada. Comunismo e nazismo invocam para a sua legitimidade a autoridade da ciência. Eles se propõem reeducar a humanidade e criar um homem novo.
Essas duas ideologias se pretendem filantrópicas. O nacional-socialismo quer o bem do povo alemão e declara prestar serviço à humanidade ao exterminar os judeus. O comunismo leninista quer diretamente o bem de toda a humanidade. O universalismo do comunismo lhe dá uma imensa vantagem sobre o nazismo, cujo programa não é exportável. As duas doutrinas propõem “ideais elevados”, próprios para suscitar o devotamento entusiástico e atos heróicos. No entanto, elas ditam também o direito e o dever de matar. Citando Chateaubriand, profético neste caso: “No fundo desses diversos sistemas repousa um remédio heróico confesso ou subentendido: esse remédio é matar.” E Hugo: “Você pode matar este homem com tranqüilidade.” Ou categorias inteiras de homens. Justamente o que essas doutrinas fizeram quando chegaram ao poder, em uma escala desconhecida na história. É por essa razão que, aos olhos dos que são estranhos ao sistema, nazismo e comunismo são criminosos. Igualmente criminosos? Por ter estudado um e outro, conhecendo também os auges em intensidade no crime do nazismo (a câmara de gás) e em extensão do comunismo (mais de 60 milhões de mortos), o gênero de perversão das almas e dos espíritos operado por um e por outro, creio que não se pode entrar nessa discussão perigosa, que é preciso ser respondida simples e firmemente: sim, igualmente criminosos.
O que nos leva a um problema: como é possível que hoje, isto é, em 1997, a memória histórica os trate desigualmente a ponto de parecer ter esquecido o comunismo? Sobre o fato dessa desigualdade não é necessário nos estendermos. Desde 1989, a oposição polonesa, com o primado da Igreja à cabeça, recomendava o esquecimento e o perdão. Na maioria dos países que saíam do comunismo, não se falou sequer em castigar os responsáveis que haviam matado, privado de liberdade, arruinado, embrutecido as pessoas, durante duas ou três gerações. Salvo na Alemanha Oriental e na República Tcheca, os comunistas foram autorizados a permanecer no jogo político, o que lhes permitiu retomar aqui e ali o poder. Na Rússia e em outras repúblicas, o pessoal diplomático e policial continuou nos seus postos. No Ocidente, esta anistia foi julgada favoravelmente. Comparou-se a confirmação da nomenklatura à evolução termidoriana dos antigos jacobinos. Há algum tempo nossa mídia voltou a falar com boa vontade da “epopéia do comunismo”. O passado do Komintern do partido comunista, devidamente exposto e documentado, não o impede de forma alguma de ser aceito no seio da democracia francesa.
Ao lado disso, a damnatio memorice do nazismo, bem longe de conhecer a mínima prescrição, parece se agravar a cada dia. Uma ampla biblioteca se enriquece todos os anos. Museus e exposições mantêm, e com razão, o horror do crime.
Consultemos na internet o serviço de documentação de um grande jornal. Selecionemos os “temas” chamados por palavras-chave, que foram tratados de 1990 a 14 de junho de 1997, data da minha consulta:
para “nazismo”, 480 ocorrências; para “stalinismo”, 7;
para “Auschwitz”, 105; para “Kolyma”, 2;
para “Magadan”, 1; para “Kuropaty”, 0;
para “fome na Ucrânia” (5 a 6 milhões de mortos em 1933), 0.
Esta sondagem tem apenas um valor indicativo. Alfred Grosser (em seu livro Im Mémoire et 1’Oubli), declarava, em 1989: “O que eu peço quando se pesa a responsabilidade dos crimes passados é que sejam aplicados os mesmos critérios a todo mundo.” Certamente, mas é muito difícil e é como simples historiador e não como juiz que eu gostaria somente hoje, sine ira et studio, de tentar interpretar esses fatos. Não posso ter a pretensão de esgotar o tema. Mas pelo menos posso enumerar uma lista não limitativa de fatores.
1) O nazismo é mais bem conhecido que o comunismo, porque o número dos cadáveres foi amplamente divulgado pelas tro
pas aliadas, e vários povos europeus tiveram uma experiência dire
ta do fenômeno. Pergunto frequentemente a estudantes se eles tiveram conhecimento da fome artificial organizada na Ucrânia 
em 1933. Eles nunca ouviram falar. O crime nazista foi principalmente físico. Ele não contaminou moralmente suas vítimas e suas testemunhas, às quais não se exigia uma adesão ao nazismo. Ele é então visível, flagrante. A câmara de gás concebida para exterminar industrialmente uma porção delimitada da humanidade é um fato único. O gulag, o laogai permanecem envoltos em brumas e continuam sendo um objeto distante, conhecido indiretamente. Uma exceção: o Camboja, onde hoje se abrem os ossários.
2) O povo judeu assumiu a memória da Shoah. Era uma obrigação moral para ele que se inscrevesse na longa memória das perseguições; uma obrigação religiosa ligada ao louvor ou ao questionamento apaixonado, à maneira de Jó, do Senhor que prometeu proteger seu povo e que puniu a injustiça e o crime. A humanidade inteira deve então render graças à memória judaica por ter conservado piedosamente os arquivos da Shoah. O enigma está do lado dos povos que esqueceram, e deles falarei em seguida. Acrescentemos que o mundo cristão procede desde o evento a um exame de consciência e se sente atingido intimamente pela indelével ferida.
3) A inserção do nazismo e do comunismo no campo magnético polarizado pelas noções de direita e de esquerda. O fenômeno é complexo. Por um lado, a ideia de esquerda acompanha a entrada sucessiva das classes sociais no jogo político democrático. Mas é preciso observar que a promoção da classe operária americana excluiu a ideia socialista, e que as classes operárias inglesa, alemã, escandinava, espanhola, fortalecendo-se, opuseram uma recusa majoritária à ideia comunista. Apenas na França e na Tchecoslováquia, no imediato pós-guerra e mais tarde na Itália, o comunismo pôde pretender se identificar com o movimento operário e assim se tornar um dos membros de direito da esquerda. Acrescentemos que, na França, historiadores como Mathiez, admiradores da Grande Revolução, fizeram de forma completamente natural um paralelo entre outubro de 1917 e 1792, e o terror bolchevique em paralelo com o terror jacobino.
Por outro lado, muitos historiadores de vanguarda mantêm uma consciência viva das raízes socialistas ou proletárias do fascismo italiano e do nazismo alemão. Considero como testemunha o livro clássico de Elie Halévy, Histoire du socialisme européen, escrito em 1937. O capítulo 111 da quinta parte é consagrado ao socialismo da Itália fascista; o capítulo IV ao nacional-socialismo. Este último regime, declarando-se anticapitalista, expropriando ou eliminando as antigas elites, dando-se uma forma revolucionária, tinha com alguma razão que figurar, o que hoje seria inconcebível, em uma história do socialismo.
4) A guerra, ao estabelecer uma aliança militar entre as democracias e a União Soviética, enfraqueceu as defesas imunitárias ocidentais contra a ideia comunista, muito forte, no entanto, no momento do pacto Hitler-Stalin, provocando um tipo de bloqueio intelectual. Para fazer a guerra com convicção, uma democracia tem necessidade de que seu aliado possua um certo grau de respeitabilidade; caso conttário, ela lhe atribui. O heroísmo militar soviético assumia, com o incentivo de Stalin, uma forma puramente patriótica, e a ideologia comunista, deixada de lado, escondia-se. À diferença da Europa Oriental, a Europa Ocidental não teve a experiência direta da chegada do Exército Vermelho. Este foi visto como libertador, no mesmo nível que os outros exércitos aliados, o que não sentiam nem os bálticos, nem os poloneses. Os soviéticos foram juizes em Nuremberg. As democracias consentiram sacrifícios muito pesados para liquidar o regime nazista. Elas aceitaram em seguida sacrifícios menores para conter o regime soviético, até o fim, para ajudá-lo a sobreviver, com uma preocupação de estabilidade. Ele desmoronou por si mesmo e sobre o seu próprio nada, sem que as democracias tivessem algo a ver. Sua atitude não podia ser a mesma, nem seu julgamento igual, nem sua memória imparcial.
5) Um dos maiores sucessos do regime soviético foi o de ter difundido e aos poucos imposto sua própria classificação ideológica dos regimes políticos modernos. Lenin os vinculava à oposição entre socialismo e capitalismo. Até os anos 30, Stalin conservou esta dicotomia. O capitalismo, chamado também de imperialismo, englobava os regimes liberais, os regimes socialdemocratas, os regimes fascistas e, finalmente, nacional-socialistas. Isso permitia aos comunistas alemães manter uma balança equilibrada entre os “sociahfascistas” e os nazistas. Mas, aprovando a chamada política das frentes populares, a classificação tomou-se a seguinte: o socialismo (isto é, o regime soviético), as democracias burguesas (liberais e socialdemocratas) e, finalmente, o fascismo. Sob o nome de fascismo eram compreendidos conjuntamente o nazismo, o fascismo mussolinista, os diversos regimes autoritários que vigoravam na Espanha, em Portugal, na Áustria, na Hungria, na Polônia etc., e, finalmente, as extremas-direitas dos regimes liberais. Uma cadeia contínua ligava, por exemplo, Chiappe a Hitler, passando por Franco, Mussolini etc. A especificidade do nazismo se perdia. Além disso, ele era fixado na direita, sobre a qual projetava sua sombra negra. Ele se tornava a direita absoluta, ao passo que o sovietismo era a esquerda absoluta.
O fato assustador é que, em um país como a França, essa classificação se tenha incrustrado na consciência histórica. Consideremos nossos manuais de história para uso dos ensinos secundário e superior. A classificação geral é: o regime soviético; as democracias liberais, com sua esquerda e sua direita; os fascismos, isto é, o nazismo, o fascismo italiano, o franquismo espanhol etc. E uma versão atenuada da vulgata soviética. Em compensação, não se encontra quase nunca nesses manuais a classificação correta, aquela sobre a qual existe o consenso entre os historiadores atualmente, mas que já tinha sido proposta desde 1951 por Hannah Arendt, a saber: o conjunto dos dois regimes totalitários, comunismo e nazismo, os regimes liberais, os regimes autoritários (Itália, Espanha, Hungria, América Latina) que provêm das categorias clássicas da ditadura e da tirania, organizadas por Aristóteles.
6) A fraqueza dos grupos capazes de conservar a memória comunismo. O nazismo durou doze anos; o comunismo europeu, conforme os países, entre 50 e 70 anos. A duração tem um efeito auto-anistiante. De fato, durante esse tempo imenso a sociedade civil foi atomizada, as elites foram sucessivamente destruídas, substituídas, reeducadas. Todo mundo, ou quase, de cima a baixo, traficou, traiu, degradou-se moralmente.
Mais grave ainda, a maior parte dos que estariam em condições de pensar foi privada
de conhecer sua história e perdeu a capacidade de análise. Lendo a literatura da oposição russa, que é a única verdadeira literatura do país, ouve-se um lamento dilacerante, a expressão tocante de um infinito desespero, mas quase nunca se encontra uma análise racional. A consciência do comunismo é dolorosa, mas ela permanece confusa. Atualmente, os jovens historiadores russos não se interessam por esse período, votado ao esquecimento e à repugnância. O Estado, aliás, fecha os arquivos. O único meio que poderia ter sido portador da memória lúcida do comunismo é o da dissidência, nascida por volta de 1970. Mas ela rapidamente se decompôs em 1991 e não foi capaz de participar do novo poder. É por isso que o seu empreendimento do Memorial não pôde existir nem se desenvolver. E de fato necessário que o órgão que tenha como função manter a memória consiga uma certa massa crítica, pelo número, pelo poder, pela influência. Os armênios não conseguiram de forma alguma obter essa massa crítica. Muito menos ainda os ucranianos, os cazaquis, os chechenos, os tibetanos, entre tantos outros.
Nada é tão problemático, depois da dissolução de um regime totalitário, quanto a reconstituição, no povo, de uma consciência moral e de uma capacidade intelectual normais. A esse respeito, a Alemanha pós-nazista se achava em melhor posição que a Rússia pós-soviética. A sociedade civil não teve tempo de ser destruída em profundidade. Julgada, punida, desnazificada pelos exércitos ocidentais, ela foi capaz de acompanhar esse movimento de purificação, de se julgar a si mesma, de se recordar e de se arrepender. Não foi bem assim no Leste Europeu, e o Ocidente tem a sua parte de responsabilidade. Quando os comunistas russos transformaram sua posse geral de bens em propriedade legítima, quando legitimaram seu poder de fato pelo sufrágio universal, quando substituíram o leninismo pelo nacionalismo mais chauvinista, o Ocidente julgou inoportuno de sua parte pedir-lhes contas. Era o pior serviço que ele poderia prestar à Rússia. A ubiquidade das estátuas de Lenin nas praças públicas da Rússia é apenas o sinal visível de um envenenamento das almas cuja cura levará anos. Do lado ocidental, a vulgata histórica deixada pelo Komintern das Frentes Populares está longe de ter sido apagada. O envolvimento da ideia leninista pela ideia de esquerda, que tinha no entanto horrorizado Kautsky, Bernstein, Léon Blum, Bertrand Russell e até Rosa Luxemburgo, faz com que atualmente essa ideia por vezes seja assimilada a um avatar maravilhoso ou a um acidente de alguma forma meteorológico dessa mesma esquerda, e, agora que ela desapareceu, essa ideia permanece como um projeto honroso que não deu certo.
7) A amnésia do comunismo e a memória do nazismo se exa peram mutuamente quando a simples e justa memória basta para condená-los a um e outro. É uma característica da má consciência ocidental, há séculos, que o lugar do mal absoluto deve-se encontrar em seu seio. A opinião variou sobre essa localização. O mal foi às vezes situado na África do Sul do apartheid, na América da guerra do Vietnã. Mas ele sempre permaneceu com seu centro na Alemanha nazista. Rússia, Coréia, China e Cuba eram sentidas como exteriores ou levadas para o exterior na medida em que se preferia desviar os olhos. O vago remorso que acompanhava esse abandono era compensado por uma vigilância, uma concentração feroz da atenção sobre tudo o que havia entrado em contato com O nazismo, sobre Vichy em primeiro lugar, ou, atualmente, sobre essas ideias perversas que supuram em certos núcleos das extremas direitas européias.
 
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Uma das características do século XX é a de que não só a história foi horrível, do ponto de vista do massacre do homem pelo homem, mas também que a consciência histórica – e isto explica aquilo – teve uma dificuldade particular em se orientar corretamente. Orwell observava que muitos haviam se tomado nazistas por um horror motivado do bolchevismo, e comunistas por um horror motivado do nazismo. Isso realça o perigo das falsificações históricas. Vemos uma em vias de formação, e seria uma pena que legássemos ao próximo século uma história falseada.
Para concluir, uma esperança e um receio. Foram necessários anos para se tomar consciência completa do nazismo, porque ele excedia o que se julgava possível e que a imaginação humana era incapaz de percebê-lo. Poderia acontecer o mesmo com o comunismo de tipo bolchevique, cujas obras abriram um abismo tão profundo, e que foram protegidas, como Auschwitz o foi até 1945, pelo inverossímil, pelo incrível, pelo impensável. O tempo, cuja função é revelar a verdade, fará talvez, lá também, o seu trabalho.
 
(ALAIN BESANÇON - A INFELICIDADE DO SÉCULO, SOBRE O COMUNISMO,
 O NAZISMO
 E A UNICIDADE DA SHOAH)
Comunismo e Nazismo: Farinha do mesmo saco
 

publicado às 22:24

Este é um ponto da investigação em que é preciso deixar a análise histórica, caso se queira fazer justiça à experiência dos homens. De fato, diante do excesso de iniqüidade, eles sentiram que seu coração vacilava e que a razão soçobrava; que faltava um precedente histórico; que eles estavam diante de uma espécie nova e desconhecida. A maior parte das grandes testemunhas deste século XX gritaram aos céus. Alguns estimaram que ele estava vazio; outros, que se poderia suplicar-lhe, jurar-lhe, esperar. Na realidade, quando se lê Orwell, Platonov, Akhmatova, Mandelstam, Levi, adivinha-se que essas duas respostas ao desafio metafísico coabitam ou altemam-se obscuramente nas mesmas almas.
 
 
O mal
 
Plotino definia o mal como “a privação do bem”. Os escolásticos precisaram: a privação de um bem devido. A cegueira, por exemplo, é um mal, porque faz parte do homem o direito de ver. Se ele é incapaz de ver o invisível, apesar de ter bons olhos, ele não pode se lamentar, pois a vista não é feita para ver as coisas mais além de um campo limitado. A ideia é então de que o mal se define negativamente. Ele é puro nada, um vazio no ser. Parece-me que essa definição não dá conta suficientemente do horror que se apoderou das pessoas diante do que o comunismo e o nazismo lhes infligiram.
O que causava esse horror era menos o mal do que, principalmente, a vontade do mal. O homem quer naturalmente ser feliz. Sua vontade está normalmente voltada para o que ele considera como seu bem. Como sua imaginação é curta, não custa imaginar – e os filósofos mais antigos explicaram-no – que o homem se engana facilmente sobre o que é o seu bem, que ele comete atos ruins porque ele não vê o que isso pode lhe custar. Ao roubar, se busca evidentemente um bem, a violação produz prazer, matar apazigua a cólera, mentir permite sair de uma situação embaraçosa. É preciso, porém, pagar um preço. No entanto, nós reencontramos uma outra categoria de atos que não são seguidos por nenhum prazer imaginável pelo homem comum, atos que parecem desumanamente desinteressados. Aqueles que os praticam parecem atraídos pela pura transgressão da regra. Eles causam medo porque não são compreendidos, parecem estar alheios à humanidade comum. Compreendemos muito bem o ladrão, o violador, o assassino, porque encontramos em nossa alma pontos de ressonância, e não é necessário adentrar-se profundamente em nós mesmos para encontrarmos em algum grau a avidez, a luxúria, a violência. Porém, diante deste tipo de atos, ficamos desconcertados como ficaríamos diante de um milagre, um milagre ao contrário, uma exceção negativa às leis comuns da natureza. O homem deseja seu bem, mas não há lá nenhum bem concebível. E porque aqueles que sofreram o comunismo ou o nazismo, ou que apenas o estudaram com alguma aplicação, foram permanentemente perseguidos pela indagação: por quê? Por que comprometer o esforço de guerra, dispender dinheiro, sobrecarregar os transportes, mobilizar soldados para irem descobrir num celeiro uma menina judia escondida apenas para assassiná-la? Por que, quando não existe nenhuma oposição organizada, tudo estando submisso e obediente, prender milhões de pessoas, mobilizar o aparato policial e judiciário para fazê-los confessar crimes inimagináveis e manifestamente absurdos e, uma vez que confessados, reunir o povo para fazê-lo representar a comédia da indignação e obrigá-lo a participar na execução? Por que, na véspera de uma guerra programada, fuzilar a metade do corpo de oficiais generais?
Mas o que parecia ainda mais incompreensível é que esses crimes enormes e ineptos eram cometidos por homens medíocres, e até particularmente medíocres, mediocremente inteligentes e morais. Encontravam-se às vezes na imensa massa de executantes individualidades perversas por caráter, sádicos que sentiam prazer em fazer sofrer. Eram a exceção. Como os perversos certamente prosperavam, eles eram utilizados para certas tarefas, mas só até um certo ponto; no mais, eram afastados em nome da disciplina e algumas vezes até punidos. Em seu desejo de compreender, as vítimas não podiam mais apegar-se à explicação da perversidade de que o homem é capaz e freqüentemente portador. Era preciso ir mais alto, na direção do “sistema”. Mas a racionalidade, ainda que delirante, do sistema era desmentida por essas ações autodestrutivas que iam contra o interesse do projeto.
É por essa razão que a personalidade criminosa de alguns dirigentes – sobretudo Stalin restituindo-lhes uma certa parte de humanidade, contava a seu favor e lhes valia uma certa gratidão: dava uma certa explicação e restabelecia uma certa coerência. Porque a história oferece numerosos exemplos de tiranos criminosos; havia então precedentes e nada de novo sob o sol: a angústia diante do desconhecido ficava atenuada. No entanto, os mais lúcidos sabiam que o pretenso tirano não era o único, pois ele não agia em função de seu interesse particular. Ele próprio era tiranizado por algo de caráter superior. Era necessário concluir, então, que o crime estava encadeado à loucura. Mas não se tratava de uma loucura normal, como aquela que vemos nos tiranos loucos, porque a loucura comporta um elemento aleatório e afeta zonas em que o repouso e o jogo podem se alojar.
Assim, os romenos ficaram por um momento aliviados pelas trapalhadas do casal Ceausescu. Mas, nos piores momentos, a loucura ideológica criou um bloco compacto, sem o menor interstício em que se refugiar, e tudo andava mal.
 
 
O demônio e a pessoa
 
Foi assim espontaneamente que espíritos, mesmo pouco religiosos, eram tentados a olhar por cima da ordem humana inteligível e entrever a direção superior de uma ordem diferente. Não era só o peso da injustiça, a proximidade do mal, mas também a impotência de referi-los ao que quer que fosse de conhecido que os levava a interrogar os céus. Eles eram levados a isso, porque os dois regimes professavam um ódio ativo contra todas as religiões que honrassem uma ordem divina diferente daquela estabelecida pelos homens. O nazismo odiava o Deus de Abraão; o comunismo, todo tipo de deus e particularmente aquele Deus. A organização religiosa dos países conquistados foi sempre imediatamente modificada. Ela foi liquidada (a Albânia proclamou-se o primeiro país ateu do mundo), frequentemente reduzida à servidão e pervertida. Cristãos, judeus, muçulmanos, budistas, taoístas, confucionistas foram perseguidos como tais, e a perseguição não foi temporária, mas permanente. Ela não tinha nenhuma utilidade política, sendo antes uma loucura inconveniente, que durou até o último dia.
Foi assim que vários mártires desses regimes encararam a ação de uma ordem sobre-humana, “angelical”, capaz de exercer um poder direto. Um poder que não passaria verdadeiramente pela mediação da vontade ruim dos homens, mas que os levaria a agir à sua revelia de forma que eles não soubessem, talvez apenas confusamente, o que faziam. Que adormeceria o senso comum e a consciência moral, e transformaria o homem, submetido a um tipo de encantamento, em uma marionete da qual ele puxaria os fios. Nessa intuição, o último tirano não é nem Hitler, nem Lenin, nem Mao, mas o Príncipe desse mundo em pessoa.
Em pessoa: a palavra é ambígua. Boécio deu uma definição da pessoa que tem servido muito: “uma substância individuada de natureza racional”. Nessa linha teológica, pode-se estimar que essa substância criada, se ela perde sua ordenação a seu Criador e a seu próprio fim, sofre contradições que a mutilam ou decompõem. Pode-se especular, dado que não se sabe nada de positivo sobre o mundo angelical, que a substância do anjo ruim, por causa de seu nível superior, é muito mais devorada do que a do homem dominado pela vontade ruim. O ato de aniquilamento que ele provoca se realiza primeiro sobre si mesmo, de forma que sua substância – que para nós, os homens, evoca uma natureza positiva, indestrutível, arruinada, mas não destruída pelo pecado – se reduz progressivamente à sua pura vontade do mal. Em razão da capacidade de mal superior de que ele é dotado, o que subsiste nele de cúmplice natural, a pessoa, tenderia assintoticamente para a impessoalidade. A pessoa angelical decaída suportaria o máximo possível de impessoalidade. Especulação, sem dúvida, mas ela dá razão à noção de pessoa impessoal que se encontra tão universalmente na literatura das testemunhas, sufocadas pelo tédio, pela pobreza, pela banalidade daqueles que as fazem sofrer, morrer, como pela impessoalidade de toda a hierarquia do poder, incluída até mesmo sua cúpula. Elas ficavam assim assustadas pelo contraste entre o incrível poder de destruição desses aparelhos, de uma maravilhosa engenhosidade, capaz de entrar no maior detalhe, e seu incrível poder de organizar, de construir ou simplesmente de deixar existir as coisas mais humildemente necessárias à vida, até para sua própria perdurabilidade.
Quem tem o poder no regime nazista ou comunista puro? Esta simples pergunta, à qual pareceria mais fácil de responder em relação a não importa que regime, porque o possuidor de todos os poderes é visível em todos os lados, até mesmo de uma visibilidade obsessiva – o Führer, o Secretário-Geral, o Partido –, constituía um profundo enigma para aqueles que eram capazes de uma profunda reflexão filosófica: Jünger, Platonov, Orwell, Milosz, Zinoviev... Eles deixaram entender o que as almas religiosas – Mandelstam, Akhmatova, Bulgakov, Rauschning, Herbert, Soljenitsyn – proclamaram: é o diabo! Era ele quem comunicava a seus súditos sua inumana a impessoalidade. Dostoievski e Vladimir Soloviev tinham tido antecipadamente a intuição. Não fazer referência a esse personagem seria não ouvir fielmente todas essas testemunhas, mantendo a consciência da reserva em que nós devemos nos manter em relação ao centro misterioso que eles chamaram dessa maneira e cuja proximidade conhecem por experiência e por evidência.
 
 
A salvação
 
Nada marca mais o traço bíblico no comunismo e no nazismo que sua vontade comum de salvar o mundo, incluindo nos meios de salvação a supressão de qualquer traço bíblico. Nas religiões “pagãs”, a ordem natural contém em si mesma a ideia divina e basta para fazê-la conceber. Ela é equivalente à ordem divina. Basta contemplá-la, conhecê-la, imitá-la. A filosofia antiga – e, tanto quanto eu saiba, a hindu e a chinesa – não prometia uma salvação universal, só aquela de uma pequena elite através de exercícios espirituais longos e difíceis, ao final dos quais a pessoa se tornava apta a viver feliz, em conformidade com a natureza, suas estruturas eternas. A ideia de salvação, enquanto supõe um “êxodo” em relação ao mundo, ou ainda a ideia de “mudar” o mundo em sua totalidade, lhe são inconcebíveis.
A salvação marxista-leninista é otimista. Ela é comparável à salvação anunciada pela profecia bíblica. Seu objetivo é superar a natureza como ela é, o homem como ele é; chegar a um tempo messiânico de paz e de justiça, em que o lobo conviva com o cordeiro, em que as disciplinas e as frustrações do casamento, da família, da propriedade, do direito, da penúria sejam abolidas. Finalmente, é a própria morte que é vencida: houve devaneios sobre esse tema no começo da revolução bolchevique, alimentados por um certo Fedorov, um quimérico da ressurreição científica dos corpos e da imortalidade. “O homem novo”, produto do socialismo, é um tipo de corpo glorioso tal como a profecia o entrevê. E sua salvação está nas mãos do homem. Ela é obtida por meios políticos. Non Domino sed nobis.
Apenas uma pequena minoria acredita hoje na existência dos mandamentos divinos. Se ela ainda acredita nisso – como acreditavam muitos judeus e cristãos que mais tarde se tornaram – deveria ver no primeiro piscar de olhos a contradição entre o progresso de que o homem assume a direção e a lição bíblica. O conceito de progresso, entendido no sentido de uma transformação em profundidade do ser humano, sob a ação da história ou de uma vontade político-histórica, não pode ser aceito, pois ele faz depender da ação política uma transformação que, segundo a Bíblia, só se deve a uma graça divina. Quando o que só é possível pela ação divina se toma o objetivo da ação humana, esta visa realizar o impossível. A ação violenta contra a natureza fracassa e logo se transforma em destruição da natureza e, com ela, do humano. Pelágio pensava que, numa certa medida, o homem poderia salvar a si próprio, pela força de vontade e de ascese. Santo Agostinho estimava que o pelagiano se oprimia sem com isso melhorar. Assim fazia o “herói positivo” da lenda bolchevique. De fato, ele piorava, pois o pelagiano pensava atingir a virtude, no sentido comum do termo, e o herói positivo uma virtude definida pela ideologia, isto é, um vício. Além disso, o velho pelagiano não visava, da mesma forma que a filosofia antiga, senão a um progresso individual. O novo é coletivizado. A transferência ao poder político da ideia pelagiana é mais destruidora, pois é o outro, enfim, são todos os outros, que serão corrigidos pela educação, se necessário pela reeducação, em um muro cercado por arame farpado.
A salvação nazista é pessimista. Ela requer superar as ilusões introduzidas na humanidade pelo veneno bíblico, e particularmente evangélico, fruto do “ressentimento”. Trata-se de retornar a uma ordem natural concebida na luz negra do tragicismo romântico: reencontrar a pureza original da terra e do sangue, corrompida pela sociedade mercantil e tecnicista e a mistura bastarda das raças. O apelo do nazismo se dirige aos heróis que aceitam morrer, àqueles que renunciaram à ilusão da verdade e da justiça e que estão prontos para seguir até o fim a vontade da raça, do Volk, encarnada no líder. O super-homem é um cavaleiro impassível, leal, vencedor ou vencido, mas sempre nobre e belo. Nós já vimos suficientemente que o ideal desembocou num regimento de SS descerebrados, em uma hierarquia de indolentes coroada por um demente, em uma guerra maluca de aniquilamento.
As duas doutrinas opostas compartilham ainda assim a ideia de uma salvação coletiva advinda da história – ideia bíblica –, se opondo ao ahistoricismo dos filósofos antigos, hindus e chineses. Nesse esquema, as duas doutrinas juntaram uma coleção de noções tiradas das ciências naturais, das ciências históricas, transformando o imenso saber acumulado pelo século XIX em um automatismo mental de uma pobreza sobrenatural. De fato, não é algo, em conformidade com a natureza da inteligência humana, que esses dois sistemas insanos possam se apresentar como sendo seu produto. Não se pode explicar que tantos espíritos normal e às vezes superiormente constituídos – professores, cientistas, pensadores capazes e eminentes – tenham sofrido uma paralisia e um desvio similares do senso comum. As explicações pela psiquiatria são tão metafóricas quanto a imagem empregada a propósito do nazismo, aquela do flautista de Hamelin. Mas, ao evocar essa lenda, estamos bem próximos de citar aquele que está por trás do flautista, aquele que, segundo as Escrituras, é o “pai da mentira”, “homicida e mentiroso desde o começo”.
 
 
'Biblismo” nazista
 
Afirma-se que Gobineau e Nietzsche, de quem às vezes os nazistas reclamavam, não eram anti-semitas. De fato, eles faziam profissão de fé de admiração  pelos judeus, porque estes eram uma “raça superior”, uma “aristocracia” (Gobineau); porque eles não se dissolviam na massa dos “últimos homens” engendrados pela democracia, porque o anti-semitismo era no máximo uma vulgaridade democrática (Nietzsche). Não é necessário aprofundarmo-nos muito para adivinhar, sob a aparência de admiração, a inveja, o ciúme. No nacionalismo alemão, a exaltação da nação e do povo assume ou imita a forma da eleição providencial do povo judeu. E uma eleição que não deve nada à providência, mas que é um produto da história e da natureza, e faz com que o povo alemão receba a herança pan-humana transmitida pela sucessão dos povos. O nacionalismo russo contentou-se em transpor aos eslavos e ao povo russo o que era prometido aos germanos e aos alemães.
Porque são a natureza e a terra que fazem a eleição, é coerente que o povo judeu seja a negação viva da natureza e da terra.
E o que sublinha o jovem Hegel; “O primeiro ato pelo qual Abraão se torna o pai de uma nação é uma cisão que dilacera os vínculos entre a vida comum e o amor, a totalidade dos vínculos das relações nas quais ele viveu até ali com os homens e a natureza.” “Abraão era um estranho na Terra [...]. O mundo inteiro, seu oposto absoluto, era mantido vivo por um Deus que lhe era estranho, um Deus de que nenhum elemento da natureza devia participar E somente graças ao Deus que ele entraria também em relação com o mundo [...]. Era impossível para ele não amar nada.” “Havia no Deus invejoso de Abraão e de sua descendência a exigência espantosa de que ele e sua nação fossem os únicos a ter um Deus.”
Sua relação com Deus suprime os judeus da humanidade. Eles não podem pertencer a nenhuma comunidade, pois o sagrado, por exemplo, o eleusiniano, dessa comunidade lhes é eternamente estranho, “eles não o vêem nem o sentem”. Eles não participam tampouco do heroísmo épico. “No Egito, grandes coisas foram realizadas para os judeus, mas eles mesmos não empreenderam ações heróicas; por eles.
O Egito sofreu todo tipo de calamidades e de misérias, e foi em meio a essas lamentações universais que eles, expulsos pelos infelizes egípcios, se retiraram, embora só sentindo a alegria maligna do covarde cujo inimigo se acha aniquilado sem que ele mesmo intervenha.” Seu último ato no Egito é também um “roubo”.
Hegel considera intolerável a pretensão dos judeus à eleição, a absoluta dependência que eles confessam em relação a um Deus que ele julga, por seu lado (pelo menos em sua juventude, porque depois ele evoluiu), estranho ao homem, inimigo de sua nobreza e de sua liberdade. O espírito de Abraão, porque ele continha a ideia desse Deus, faz do judeu “o único favorito”, convicção de que também é a raiz de seu “desprezo pelo mundo inteiro”. Escravos proclamados de seu Deus, os judeus não podem ter acesso à dignidade do homem livre: “Os gregos deviam ser iguais porque são todos livres; os judeus, porque são todos incapazes de independência.” E por isso que Hegel, abertamente adepto de Marcião, considera o Deus dos cristãos como fundamentalmente diferente do Deus judeu: “Jesus não combatia só uma parte do destino judeu, pois ele não tinha vínculo com nenhuma parte dele, opondo-se a ele em sua totalidade.”
Hegel traduz, no tom da grande filosofia, sentimentos, conscientes ou não, que existem na alma pagã quando ela é colocada na presença do mistério sobrenatural de Israel, que ela sente, de fato, como estranho, inimigo de toda natureza; que existem também nas almas batizadas. Esses obscuros afetos foram bem mais conceitualizados pelo pensamento alemão do que pelos outros. Harnack, que foi a grande autoridade teológica da Alemanha wilhelmiana e do protestantismo liberal europeu, fez, na Universidade de Berlim, diante de todos os estudantes, conferências reunidas sob o título A essência do cristianismo. Esta essência se desenvolve em quatro grandes momentos históricos: o momento judeu, o momento grego, o momento latino e, enfim, o momento alemão, que é a realização mais pura. Ele escreveu um livro a favor de Marcião, não hesitou em fazer um paralelo com Martin Lutero, o fundador do “cristianismo alemão”. Os russos, por seu lado, produziriam uma abundante literatura sobre o cristianismo russo, o Cristo russo, até mesmo a Rússia-Cristo. Léon Bloy e Péguy reclamam para a França um privilégio de preferência da parte de Deus. No entanto, neste país, a temática antijudaica não foi orquestrada pelos grandes espíritos, só pelos medíocres.
O drama foi que ela se instalou nas almas ruins e dementes dos líderes nazistas. Eis Hitler, caricaturizando Hegel diante de Rauschning: “O judeu é uma criatura de um outro Deus. É preciso que ele tenha saído de uma outra origem humana. O ariano e o judeu, eu os oponho um ao outro e, se eu dou a um o nome de homem, sou obrigado a dar um nome diferente ao outro. Eles estão tão afastados um do outro quanto as espécies animais da espécie humana. Não que eu chame o judeu de animal. Ele está muito mais abaixo do animal do que nós, arianos. É um ser estranho à ordem natural, um ser fora da natureza.”
Rauschning afirma ainda a esse respeito: “Não pode haver dois povos eleitos. Nós somos o povo de Deus.” E pura retórica, pois Hitler era absolutamente ateu do Deus judeu e do Deus cristão. Mas mostra como o anti-semitismo delirante de Hitler se adapta bem à forma bíblica de uma perversa imitatio da história sagrada judaica. O povo ariano, eleito, a raça germânica escolhida purifica a terra alemã como Israel purificou a terra de Canaã. É a primeira etapa da história da salvação. A segunda é a eliminação do cristianismo judaizado, que leva ao cúmulo a covardia judaica e o abastardamento democrático. A terceira é o triunfo das almas magnânimas, que poderão a rigor referir-se a um cristianismo germanizado ou, melhor ainda, aos velhos deuses do panteão natural pré-cristão. Nietzsche e Wagner, depois de terem passado pela centrifugadora da ideologia nazista, poderiam ser propostos, mutilados, tornados selvagens, embrutecidos, como os padroeiros da nova cultura.
 
 
'Biblismo” comunista
 
Se o nazismo oferece uma farsa do Antigo Testamento, o comunismo oferece ao mesmo tempo a do Antigo e do Novo. A perversa imitatio do judaísmo e do cristianismo, que faz parte do seu “charme”, é um fato tão reconhecido que bastam algumas palavras para caracterizá-lo.
Esta ideologia propõe um mediador e um redentor. O “proletariado”, o “explorado”, aquele que não tem nada, vai abrir ao mundo a porta de sua libertação. Ele é para as outras classes o que Israel é entre as nações, o que o “resto de Israel” é para Israel. Ele é o servidor de Isaías que sofre e é o Cristo. Ele é o fruto da história naturalizada, como o outro é a história sagrada. O comunismo é, sob diversos aspectos, sedutor tanto para o judeu como para o cristão que crê reconhecer a boa nova anunciada aos pobres e aos fracos. Ele é um universalismo, porque nele não há mais nem judeu nem grego, nem escravo nem homem livre, nem homem nem mulher, tal como prometeu São Paulo. Ele abole as barreiras nacionais, o que equivale à salvação prometida às “nações”. Ele contribui para a paz e a justiça do reino messiânico. Ele supera o regime do interesse, termina com “as águas glaciais do cálculo egoísta”. O amor puro de Fenelon e o desinteresse kantiano vão desabrochar nesse clima novo.
O comunismo prometia aos judeus a supressão da carga dos mandamentos, do ódio da Torá, da segregação das nações. Ele lhes tirava o peso de ser judeu. Suprimia também, de fato, as causas permanentes da opressão. Era uma alternativa à vida judaica que não era uma passagem ao cristianismo e ao islamismo, igualmente desprezados, e que não os protegia, porque a marca judia subsistia depois da conversão, como a história havia demonstrado. O comunismo era então uma entrada em um mundo novo, sem no entanto haver lugar para pagar uma traição ou uma apostasia formais, porque o objetivo religioso da Torá, a paz e a justiça, era supostamente garantido e porque a comunidade poderia continuar existindo idealmente, de forma que o nome de judeu pudesse ser usado sem pudor, não implicando responsabilidade e obrigações particulares, mas simplesmente como a marca de uma origem gloriosa, pois, pela opressão, ele estava aparentado com o “proletariado”. Enfim, a passagem ao comunismo – estamos tentados a dizer: o Êxodo – poderia parecer a realização da emancipação e da secularização, cujo élan era, há um século, irresistível.
Os cristãos, por seu lado, eram diretamente intimados a renegar a sua fé em Deus. Mas ela estava, como uma fruta madura, a ponto de cair. Diante das vagas de assalto que se sucediam desde o começo do lluminismo, a fé tinha cada vez mais dificuldade em conservar um status defensável em termos racionais. Nenhum outro grande espírito, desde Leibniz, se apoiava na autoridade dos dogmas, nem buscava a verdade aprofundando-se neles. Se grandes autores ainda confessavam a fé cristã, ou, como Kant e Hegel, lhe davam uma interpretação racional no marco de seu sistema, ou, como Rousseau, Kierkegaard e Dostoievski, admitiam a sua completa irracionalidade. Ou ainda pensavam deduzi-la das necessidades da moral, da ação prática, das obras. Mas ela era desalojada desse último refúgio pela ideia comunista, que tinha bons argumentos para acusar o cristianismo de ser o ópio do povo, de ser uma fuga ilusória, um consolo impotente diante de um estado de injustiça de que a fé cristã, por sua simples existência, era cúmplice. Uma importante parte do pensamento cristão, durante todo um século, de Lamennais a Tolstoi, e para além deles, era muito mais tentada a se fundir com o humanitário do que a apresentação deste como mais verdadeiramente cristão e animado por um entusiasmo e um fervor que tinham desaparecido da religião tradicional. Tornar-se comunista dá o sentimento de realizar, de forma enfim realista, o mandamento de amor ao próximo, enquanto a razão era garantida porque agora ela era restabelecida na base certa da ciência.
 
 
Heresias
 
A religião cristã é instável desde o seu nascimento. Ela abriga um conjunto de dificuldades, uma massa de motivos de dúvida, e tem necessidade de um esforço constante para manter seu equilíbrio. Mas raramente as crises que aparecem sucessivamente ao sabor das circunstâncias históricas obedecem a esquemas regulares já conhecidos. Há, no comum dos cristãos, corredores de avalanche que foram seguidos desde os primeiros séculos da nossa era e que sempre permanecerão ali. As grandes heresias inaugurais são retomadas com outras roupagens por correntes que se julgam novas e por pessoas inconscientes de seguirem tendências antigas. Elas não sabem que estão trilhando os caminhos dos heréticos de que eles ignoram o nome e, mais ainda, o parentesco doutrinário que as liga a eles.
No caso que analisamos, os caminhos heréticos estão entre os mais antigos do cristianismo: o gnosticismo, o marcionismo e o milenarismo.
O gnosticismo, na verdade, não é especificamente cristão. Ele é parasita tanto do judaísmo quanto do islamismo. Ele ocupa um domínio tão vasto que não posso abordá-lo aqui de outra forma senão por alusão. O marxismo-leninismo é, antes de tudo, eu já o afirmei, uma visão central do mundo natural e histórico, polarizado entre um bem e um mal, que discernem e separam os iniciados no verdadeiro aber. São eles que fazem penetrar no espírito dos homens o conhecimento salvador e fazem o mundo se mover na direção do bem definitivo. Essa estrutura-mãe está presente na maior parte dos gnosticismos, principalmente naqueles que, no tempo de Corinto, horrorizavam São João ou, nos tempos de Valentim, o Santo Irineu. Que esse núcleo gnóstico pretenda se apoiar, a partir de Marx, na ciência positiva, que perca sua luxúria mitológica, sua cor poética, e mesmo que caia na repetição prosaica de Lenin, isso não significa que ele tenha desaparecido. É verdade que muitos “cristãos progressistas” desejavam render-lhe homenagem por sua atitude religiosa primitiva e tinham dificuldade em compreender por que o comunismo se considerava ateu de forma militante, enquanto que eles aprovavam a ação prática, o “método de análise”, como eles diziam, isto é, a teoria do conjunto. Outros terminaram aceitando este ateísmo por um tipo de “salto da fé” ao contrário, e como um sacrifício supremo que eles faziam à lógica de sua persuasão.
O marcionismo, que é uma espécie do gênero do gnosticismo, pertence ao mundo cristão. Ele é um produto histórico precoce (do começo do século II) da separação contenciosa da Igreja com a Sinagoga. Marcião estimava que o Deus de Abraão, o Deus criador e justiceiro, não era o mesmo que o Deus do amor salvador de que Jesus era a emanação. Ele tinha então arrancado do corpo escriturário o Antigo Testamento e a parte do Novo que lhe estava diretamente vinculada. A revelação cristã se dissocia então da revelação mosaica, de que Marcião nega que ela tenha etapas históricas que levaram à chegada do Messias. O messias de Marcião não encontra as suas provas, a sua genealogia na profecia bíblica. Sua legitimidade está condicionada ao valor da persuasão da “mensagem” tirada apenas do Evangelho (aliás, depurado) e dos adendos da mitologia gnóstica que o completam e guiam a sua interpretação. Esse Cristo traz uma mensagem anticósmica e antinomista: uma moral diferente, sublime, heróica, paradoxal. Ela tem a vocação de substituir a moral comum que os mandamentos bíblicos tinham ratificado. O inferno também, segundo Marcião, albergava os justos do Antigo Testamento, servidores do Deus criador, enquanto que o Deus salvador recebia em seu paraíso os sodomitas e os egípcios que tinham se recusado a aderir à Lei antiga. Os judeus, à luz desta heresia, representavam adequadamente a figura do mundo extinto e da ética ultrapassada, obra do mau Deus.
Gnosticismo e marcionismo, sempre associados, jamais deixaram de trabalhar a imaginação e de subverter o pensamento cristão. Ainda que condenados a seu nascimento como a pior das heresias, subsistiram como uma tentação permanente, saltando de um século ao outro e nunca tanto quanto no nosso. Eles foram o ponto fraco do ensino, uma fissura no terreno da fé, que permitiram a tantos cristãos lançarem-se no gnosticismo político do comunismo e no marcionismo frenético do nazismo.
Como estavam sempre intimamente ligados, sua associação provocou um novo ponto de contato entre o nazismo e o comunismo.
No gnosticismo comunista, o esquema historicista suplanta abertamente o sentido bíblico da história, e tanto o Deus criador como o Deus salvador são recusados: o primeiro sendo substituído pela história natural da humanidade, e O segundo pela ação voluntária do Partido. O assalto contra a Igreja cristã foi então imediato e fez em poucos anos mais mártires do que os que ela tivera desde o seu nascimento. Mas todos os deuses e todas as religiões eram igualmente inimigos, o que fez com que a Sinagoga fosse igualmente atacada, assim como a própria ideia de comunidade. O anti-semitismo puro e simples sucedeu, desde o fim dos anos 30, ao antijudaísmo inicial. Depois de 1945, foi proibido distinguir os judeus entre as “vítimas do fascismo”, mencionar a Shoah, tolerar o sionismo a partir do momento em que ele se afirmou como um movimento nacional independente. O comunismo é ciumento e não aceita “outros deuses diante de si”.
O nazismo se concentrou na versão marcionita do gnosticismo. Ele aceitou formal e provisoriamente um outro Deus diferente do de Abraão. Ele perseguiu os cristãos fiéis. Ele tratou de se enriquecer com elementos tomados do esoterismo e do ocultismo do final do século. Ele quis despertar o neopaganismo dos velhos deuses alemães, fazendo assim injúrias por essa outra contrafação ao que a mitologia alemã tinha de honroso, de belo e de comum com aquela de Homero. Nos dois sistemas de salvação, comunista e nazista, é difícil distinguir, no ódio que confunde judeus e cristãos, se os primeiros são detestados por estarem na origem dos segundos ou os segundos por serem os filhos dos primeiros. Qualquer que seja a ordem seguida, a perseguição atinge um depois do outro.
A terceira heresia é o milenarismo. Em seus efeitos históricos, ele conflui com o messianismo. Ele é uma expectativa de mudança radical no interior da história. O messianismo bíblico espera o advento de uma figura real capaz de restaurar uma aliança de paz em Israel e nas Nações. O milenarismo primitivo cristão acreditava que Cristo retornaria à Terra para reinar gloriosamente mil anos com os justos ressuscitados. Essas doutrinas sofreram no século XX derivações seculares. Foi assim que a ideia messiânica contaminou as formas mais extremas do nacionalismo: o povo alemão, o povo russo, tinham esperanças da redenção final da história humana. O milenarismo é uma impaciência de fazer advir o Reino de Deus e uma vontade de tomar em suas mãos esse acontecimento. Ele pode ser compreendido como um tipo de pelagianismo paroxístico, coletivizado e politizado. A história moderna é abalada por essas crises heróicas: os taboritas da Boêmia, os anabatistas de Münster, a ala extremista da revolução inglesa, Sabbatai Zvi. Elas são mais sangrentas quando, livres da ideia de Deus, visam à instauração de um regnum hominis. É raro que, valendo-se dessas crises, a separação entre judeus e cristãos não seja envenenada por aqueles mesmos que atacavam suas respectivas religiões, das quais não subsiste mais nenhum sinal senão o ódio recíproco.
 
(ALAIN BESANÇON - A INFELICIDADE DO SÉCULO, SOBRE O COMUNISMO,
 O NAZISMO
 E A UNICIDADE DA SHOAH)
A política é o ópio do povo

publicado às 18:10

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