Por mais que surjam embusteiros melhoradores do mundo e prometedores de salvação ou de paraísos ideais, sempre estaremos condenados ao limite de sermos humanos. O super-homem ao qual se refere o grande pensador alemão Friedrich Nietzsche não é aquele super-herói salvador, mas o homem que vive a vida na vida e não recorre a neuroses metafísicas para justificar suas ações.
1.
Conhece-se minha exigência ao filósofo, de colocar-se além do bem e do mal — de ter a ilusão do julgamento moral abaixo de si. Tal exigência resulta de uma percepção[51] que fui o primeiro a formular: de que não existem absolutamente fatos morais. O julgamento moral tem isso em comum com o religioso, crê em realidades que não são realidades. Moral é apenas uma interpretação de determinados fenômenos, mais precisamente, uma má interpretação. O julgamento moral é parte, como o religioso, de um estágio de ignorância em que falta inclusive o conceito de real, a distinção entre real e imaginário: de modo que “verdade”, nesse estágio, designa coisas que agora chamamos de “quimeras”. Portanto, o julgamento moral nunca deve ser tomado ao pé da letra: assim ele constitui apenas contra-senso. Mas como semiótica[52] é inestimável: revela, ao menos para os que sabem, as mais valiosas realidades das culturas e interioridades que não sabiam o bastante para “compreenderem” a si próprias. Moral é apenas linguagem de signos, sintomatologia: é preciso saber antes de que se trata, para dela tirar proveito.
2.
Eis um primeiro exemplo, bastante provisoriamente. Sempre se quis “melhorar” os homens: sobretudo a isso chamava-se moral. Mas sob a mesma palavra se escondem as tendências mais diversas. Tanto o amansamento da besta-homem como o cultivo de uma determinada espécie de homem foram chamados de “melhora”: somente esses termos zoológicos exprimem realidades — realidades, é certo, das quais o típico “melhorador”, o sacerdote, nada sabe — nada quer saber... Chamar a domesticação de um animal sua “melhora” é, a nossos ouvidos, quase uma piada. Quem sabe o que acontece nas ménageries duvida que a besta seja ali “melhorada”. Ela é enfraquecida, tornada menos nociva; mediante o depressivo afeto do medo, mediante dor, fome, feridas, ela se torna uma besta doentia. — Não é diferente com o homem domado, que o sacerdote “melhorou”. Na Alta Idade Média, quando, de fato, a Igreja era sobretudo uma ménagerie[53], os mais belos exemplares da “besta loura”[54] eram caçados em toda parte — foram “melhorados”, por exemplo, os nobres germanos. Mas que aparência tinha depois esse germano “melhorado”, conquistado para o claustro? A de uma caricatura de homem, de um aborto: tornara-se um “pecador”, estava numa jaula, tinham-no encerrado entre conceitos terríveis... Ali jazia ele, doente, miserável, malevolente consigo mesmo; cheio de ódio para com os impulsos à vida, cheio de suspeita de tudo o que ainda era forte e feliz. Em suma, um “cristão”... Em termos fisiológicos: na luta contra a besta, tornar doente pode ser o único meio de enfraquecê-la. Isso compreendeu a Igreja: ela estragou o ser humano, ela o debilitou — mas reivindicou tê-lo “melhorado”...
3.
Tomemos o outro caso do que chamam moral, o do cultivo de uma determinada raça e espécie. O mais formidável exemplo dele é fornecido pela moral indiana, sancionada como religião na forma da “Lei de Manu”[55]. Aí se propõe a tarefa de cultivar não menos que quatro raças de vez: uma sacerdotal, uma guerreira, uma de mercadores e agricultores e, por fim, uma raça de servidores, os sudras. Evidentemente, aí já não estamos entre domadores de animais: uma espécie de homem cem vezes mais branda e mais razoável é o pressuposto para simplesmente conceber o plano de tal cultivo. Respira-se aliviado, quando se deixa o ar cristão de doença e masmorra e se adentra esse mundo mais são, mais elevado, mais amplo. Quão miserável é o Novo Testamento ao lado de Manu, como cheira mal! — Mas também essa organização tinha necessidade de ser terrível — dessa vez não em luta com a besta, mas com a noção oposta a essa, o homem do não-cultivo, o homem-mixórdia, o chandala. E novamente não teve outro recurso para torná-lo inofensivo, fraco, a não ser torná-lo doente — era a luta com o “grande número”. Talvez nada contrarie mais nossa sensibilidade do que essas medidas de proteção da moral indiana. O terceiro edito, por exemplo (Avadana-Sastra i), o “dos vegetais impuros”, decreta que a única alimentação permitida aos chandalas seja alho e cebola, visto que as escrituras sagradas proíbem dar-lhes cereais ou frutos que contenham grãos, ou água, ou fogo. O mesmo edito estabelece que a água que necessitam não pode ser retirada dos rios, nem das fontes ou dos lagos, mas somente das vias de acesso aos pântanos e dos buracos deixados pelos pés dos animais. Igualmente lhes é proibido lavar sua roupa e lavar a si mesmos, pois a água que lhes é concedida graciosamente pode ser usada apenas para matar a sede. Por fim, há a proibição de as mulheres sudras assistirem as mulheres chandalas no parto, e também de essas últimas assistirem uma a outra... — O resultado de tal policiamento sanitário não deixou de aparecer: epidemias assassinas, horríveis doenças venéreas e, depois, novamente a “lei da faca”, prescrevendo a circuncisão dos meninos e a remoção dos pequenos lábios das meninas. — O próprio Manu diz: “Os chandalas são fruto do adultério, do incesto e do crime (— esta é a conseqüência necessária do conceito de cultivo). Eles só devem ter por vestimenta os farrapos dos cadáveres; por louça, vasilhames quebrados; por adornos, pedaços velhos de ferro; por culto religioso, somente os maus espíritos. Eles devem errar entre um lugar e outro sem descanso. É-lhes proibido escrever da esquerda para a direita e servir-se da mão direita para escrever: o uso da mão direita e da escrita da esquerda para a direita é reservado aos virtuosos, às pessoas de raça”. —
4.
Essas disposições são muito instrutivas: nelas temos a humanidade ariana, totalmente pura, totalmente primordial — vemos que o conceito de “sangue puro” é o oposto de um conceito inócuo. Por outro lado, torna-se claro em qual povo se eternizou o ódio, o ódio de chandala a essa “humanidade”, onde ele se tornou religião, onde se tornou gênio... Desse ponto de vista os evangelhos são um documento de primeira ordem; e mais ainda o livro de Enoque. — O cristianismo, de raiz judaica e compreensível apenas como produto deste solo, representa o movimento oposto a toda moral do cultivo, da raça, do privilégio: — é a religião antiariana par excellence [por excelência]: o cristianismo[56], a tresvaloração de todos os valores arianos, o triunfo dos valores chandalas, o evangelho pregado aos pobres, aos baixos, a revolta geral de todos os pisoteados, miseráveis, malogrados e desfavorecidos contra a “raça” — a imorredoura vingança chandala como religião do amor...
5.
A moral do cultivo e a moral da domesticação são inteiramente dignas uma da outra nos meios de se imporem: podemos colocar como princípio máximo que, para fazer moral, é preciso ter a vontade incondicional do oposto. Este é o grande, o inquietante problema que persegui mais longamente: a psicologia dos “melhoradores” da humanidade. Um fato pequeno e, no fundo, modesto, o da chamada pia fraus [mentira piedosa][57], permitiu-me o primeiro acesso a este problema: a pia fraus, a herança de todos os filósofos e sacerdotes que “melhoraram” a humanidade. Nem Manu, nem Platão, nem Confúcio,[58] nem os mestres judeus e cristãos duvidaram jamais de seu direito à mentira. Não duvidaram de outros direitos... Expresso numa fórmula, pode-se dizer: todos os meios pelos quais, até hoje, quis-se tornar moral a humanidade foram fundamentalmente imorais --
Conhece-se minha exigência ao filósofo, de colocar-se além do bem e do mal — de ter a ilusão do julgamento moral abaixo de si. Tal exigência resulta de uma percepção[51] que fui o primeiro a formular: de que não existem absolutamente fatos morais. O julgamento moral tem isso em comum com o religioso, crê em realidades que não são realidades. Moral é apenas uma interpretação de determinados fenômenos, mais precisamente, uma má interpretação. O julgamento moral é parte, como o religioso, de um estágio de ignorância em que falta inclusive o conceito de real, a distinção entre real e imaginário: de modo que “verdade”, nesse estágio, designa coisas que agora chamamos de “quimeras”. Portanto, o julgamento moral nunca deve ser tomado ao pé da letra: assim ele constitui apenas contra-senso. Mas como semiótica[52] é inestimável: revela, ao menos para os que sabem, as mais valiosas realidades das culturas e interioridades que não sabiam o bastante para “compreenderem” a si próprias. Moral é apenas linguagem de signos, sintomatologia: é preciso saber antes de que se trata, para dela tirar proveito.
2.
Eis um primeiro exemplo, bastante provisoriamente. Sempre se quis “melhorar” os homens: sobretudo a isso chamava-se moral. Mas sob a mesma palavra se escondem as tendências mais diversas. Tanto o amansamento da besta-homem como o cultivo de uma determinada espécie de homem foram chamados de “melhora”: somente esses termos zoológicos exprimem realidades — realidades, é certo, das quais o típico “melhorador”, o sacerdote, nada sabe — nada quer saber... Chamar a domesticação de um animal sua “melhora” é, a nossos ouvidos, quase uma piada. Quem sabe o que acontece nas ménageries duvida que a besta seja ali “melhorada”. Ela é enfraquecida, tornada menos nociva; mediante o depressivo afeto do medo, mediante dor, fome, feridas, ela se torna uma besta doentia. — Não é diferente com o homem domado, que o sacerdote “melhorou”. Na Alta Idade Média, quando, de fato, a Igreja era sobretudo uma ménagerie[53], os mais belos exemplares da “besta loura”[54] eram caçados em toda parte — foram “melhorados”, por exemplo, os nobres germanos. Mas que aparência tinha depois esse germano “melhorado”, conquistado para o claustro? A de uma caricatura de homem, de um aborto: tornara-se um “pecador”, estava numa jaula, tinham-no encerrado entre conceitos terríveis... Ali jazia ele, doente, miserável, malevolente consigo mesmo; cheio de ódio para com os impulsos à vida, cheio de suspeita de tudo o que ainda era forte e feliz. Em suma, um “cristão”... Em termos fisiológicos: na luta contra a besta, tornar doente pode ser o único meio de enfraquecê-la. Isso compreendeu a Igreja: ela estragou o ser humano, ela o debilitou — mas reivindicou tê-lo “melhorado”...
3.
Tomemos o outro caso do que chamam moral, o do cultivo de uma determinada raça e espécie. O mais formidável exemplo dele é fornecido pela moral indiana, sancionada como religião na forma da “Lei de Manu”[55]. Aí se propõe a tarefa de cultivar não menos que quatro raças de vez: uma sacerdotal, uma guerreira, uma de mercadores e agricultores e, por fim, uma raça de servidores, os sudras. Evidentemente, aí já não estamos entre domadores de animais: uma espécie de homem cem vezes mais branda e mais razoável é o pressuposto para simplesmente conceber o plano de tal cultivo. Respira-se aliviado, quando se deixa o ar cristão de doença e masmorra e se adentra esse mundo mais são, mais elevado, mais amplo. Quão miserável é o Novo Testamento ao lado de Manu, como cheira mal! — Mas também essa organização tinha necessidade de ser terrível — dessa vez não em luta com a besta, mas com a noção oposta a essa, o homem do não-cultivo, o homem-mixórdia, o chandala. E novamente não teve outro recurso para torná-lo inofensivo, fraco, a não ser torná-lo doente — era a luta com o “grande número”. Talvez nada contrarie mais nossa sensibilidade do que essas medidas de proteção da moral indiana. O terceiro edito, por exemplo (Avadana-Sastra i), o “dos vegetais impuros”, decreta que a única alimentação permitida aos chandalas seja alho e cebola, visto que as escrituras sagradas proíbem dar-lhes cereais ou frutos que contenham grãos, ou água, ou fogo. O mesmo edito estabelece que a água que necessitam não pode ser retirada dos rios, nem das fontes ou dos lagos, mas somente das vias de acesso aos pântanos e dos buracos deixados pelos pés dos animais. Igualmente lhes é proibido lavar sua roupa e lavar a si mesmos, pois a água que lhes é concedida graciosamente pode ser usada apenas para matar a sede. Por fim, há a proibição de as mulheres sudras assistirem as mulheres chandalas no parto, e também de essas últimas assistirem uma a outra... — O resultado de tal policiamento sanitário não deixou de aparecer: epidemias assassinas, horríveis doenças venéreas e, depois, novamente a “lei da faca”, prescrevendo a circuncisão dos meninos e a remoção dos pequenos lábios das meninas. — O próprio Manu diz: “Os chandalas são fruto do adultério, do incesto e do crime (— esta é a conseqüência necessária do conceito de cultivo). Eles só devem ter por vestimenta os farrapos dos cadáveres; por louça, vasilhames quebrados; por adornos, pedaços velhos de ferro; por culto religioso, somente os maus espíritos. Eles devem errar entre um lugar e outro sem descanso. É-lhes proibido escrever da esquerda para a direita e servir-se da mão direita para escrever: o uso da mão direita e da escrita da esquerda para a direita é reservado aos virtuosos, às pessoas de raça”. —
4.
Essas disposições são muito instrutivas: nelas temos a humanidade ariana, totalmente pura, totalmente primordial — vemos que o conceito de “sangue puro” é o oposto de um conceito inócuo. Por outro lado, torna-se claro em qual povo se eternizou o ódio, o ódio de chandala a essa “humanidade”, onde ele se tornou religião, onde se tornou gênio... Desse ponto de vista os evangelhos são um documento de primeira ordem; e mais ainda o livro de Enoque. — O cristianismo, de raiz judaica e compreensível apenas como produto deste solo, representa o movimento oposto a toda moral do cultivo, da raça, do privilégio: — é a religião antiariana par excellence [por excelência]: o cristianismo[56], a tresvaloração de todos os valores arianos, o triunfo dos valores chandalas, o evangelho pregado aos pobres, aos baixos, a revolta geral de todos os pisoteados, miseráveis, malogrados e desfavorecidos contra a “raça” — a imorredoura vingança chandala como religião do amor...
5.
A moral do cultivo e a moral da domesticação são inteiramente dignas uma da outra nos meios de se imporem: podemos colocar como princípio máximo que, para fazer moral, é preciso ter a vontade incondicional do oposto. Este é o grande, o inquietante problema que persegui mais longamente: a psicologia dos “melhoradores” da humanidade. Um fato pequeno e, no fundo, modesto, o da chamada pia fraus [mentira piedosa][57], permitiu-me o primeiro acesso a este problema: a pia fraus, a herança de todos os filósofos e sacerdotes que “melhoraram” a humanidade. Nem Manu, nem Platão, nem Confúcio,[58] nem os mestres judeus e cristãos duvidaram jamais de seu direito à mentira. Não duvidaram de outros direitos... Expresso numa fórmula, pode-se dizer: todos os meios pelos quais, até hoje, quis-se tornar moral a humanidade foram fundamentalmente imorais --
Melhoradores do mundo e suas obsessões |
- “Percepção”: Einsicht— as outras versões trazem: “ponto de vista”, “intelecção”, intuición, idea, examen, insight, idem, idem; cf. Além do bem e do mal (São Paulo, Companhia das Letras, 1992), nota 67. Pouco adiante, “quimeras” foi a versão dada a Einbildungen — as traduções consultadas apresentam: “imaginações”, “construções imaginárias”, imaginaciones, chimere, imagination, imaginings, idem, illusions.
- “semiótica”: Semiotik, no original; o termo é aqui usado, como se vê logo adiante, no sentido médico de “sintomatologia”; cf. outro uso do termo em Ecce homo, “As extemporâneas”, 3.
- “ménagerie, s. f. Coleção de animais exóticos e raros para estudo ou recreio. || Coleção de feras que se mostram em jaulas pelas feiras, etc. || Estábulo, pátios onde se criam animais domésticos” (Domingos de Azevedo, Grande dicionário francês/português, 8a ed., Lisboa, Bertrand, 1984).
- “besta loura”: esta expressão, que viria a se tornar famosa, foi usada primeiramente na Genealogia da moral (dissertação i, 11, e ii, 17); esta parece ser a única outra ocasião em que ela aparece.
- “Lei de Manu”: o mais importante dos tratados jurídico-morais hindus, atribuído ao próprio Manu, filho do deus Brahma e pai da raça humana. Nietzsche encontrou excertos dessa obra no livro Les législateurs religieux: Manou — Moïse — Mahomet, de Louis Jacolliet (Paris, 1876), que muito o impressionou, como se vê por uma carta de maio de 1888 (cf. apêndice deste volume). No código de Manu são estabelecidas as quatro castas indianas, mencionadas em seguida no texto: os sacerdotes (brâmanes), os guerreiros (xátrias), os comerciantes e agricultores (vaixás) e os sudras ou párias, os “intocáveis” (“chandalas”, termo que Nietzsche usará com mais freqüência).
- Tanto na edição de Karl Schlechta como na de Colli e Montinari, não há vírgula após “cristianismo”. Dos demais tradutores, um seguiu à risca o original, um acrescentou um travessão, dois acrescentaram um “é”, e quatro optaram também pela vírgula.
- pia fraus: expressão tirada das Metamorfoses (ix, 711), do poeta romano Ovídio (43 a. C.-18 d. C.); designa um logro realizado com boa intenção; cf. Além do bem e do mal, seção 105.
- Confúcio (551-479 a.c): filósofo chinês;sua doutrina foi registrada por seus discípulos nos Analetos