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NÃO SOMOS TODOS EGOÍSTAS?

por Thynus, em 31.05.17

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Por um mundo menos babaca

 

 

Determinadas variantes desta pergunta são frequentemente levantadas como objeção àqueles que defendem uma ética de auto-interesse racional. Por exemplo, às vezes: “Cada um faz o que verdadeiramente quer fazer — do contrário, não faria”. Ou; “Ninguém se sacrifica realmente. Já que toda ação proposital é motivada  por algum valor ou meta que o agente deseja, age-se sempre egoisticamente, sabendo-se ou não”.

Para desembaraçar a confusão intelectual envolvida neste ponto de vista, consideremos que fatos da realidade conduzem a uma questão como egoísmo versus auto sacrifício, ou egoísmo versus altruísmo, e o que o conceito de “egoísmo” significa e necessariamente acarreta.

A questão do egoísmo versus auto sacrifício emerge em um contexto ético. A ética é um código de valores que guia as escolhas e ações do homem — as escolhas e ações que determinam o propósito e o rumo de sua vida. Ao escolher suas ações e objetivos, o homem enfrenta alternativas constantes. Para optar, requer um critério de valor — um propósito ao qual suas ações devem servir e visar. “‘Valor’ pressupõe uma resposta à pergunta: de valor para quem e para que?” (A Revolta de Atlas). Qual deve ser o objetivo ou propósito das ações de um homem? Quem deve ser o pretendido beneficiário de suas ações? Deve ele sustentar, como seu propósito moral básico, a realização de sua própria vida e felicidade — ou deveria o seu propósito moral básico servir aos desejos e necessidades de outros?

O choque entre egoísmo e altruísmo repousa em suas respostas conflitantes a estas perguntas. O egoísmo sustenta que o homem é um fim em si mesmo; o altruísmo, que o homem é um meio para os fins de outros. O egoísmo sustenta que, moralmente, o beneficiário de uma ação deveria ser a pessoa que age; o altruísmo, que, moralmente, o beneficiário de uma ação deveria ser outro, e não a pessoa que age.

Ser egoísta é estar motivado pela preocupação com os próprios interesses. Isto exige que se considere o que constitui os interesses de um indivíduo e como alcançá-los — que valores e metas buscar, que princípios e políticas adotar. Se um homem não estiver interessado nesta questão, não se poderá dizer objetivamente que se interessa ou deseja seu auto-interesse; não se pode estar interessado em ou desejar aquilo de que não se tem conhecimento.

O egoísmo vincula: (a) uma hierarquia de valores estabelecida pelo padrão dos auto-interesses de alguém, e (b) a recusa a sacrificar um valor maior a um menor ou a algo carente de valor.

Um homem genuinamente egoísta sabe que somente a razão pode determinar o que é, na verdade, do seu auto-interesse, que buscar contradições ou tentativas de agir em provocação aos fatos da realidade é autodestrutivo — e a autodestruição não é de seu auto-interesse. “Pensar é do auto-interesse do homem; interromper a sua consciência, não. Escolher as suas diretrizes no contexto do seu conhecimento, seus valores e sua vida é do auto-interesse do homem; agir no impulso do momento, sem consideração ao seu contexto de longo prazo, não. Existir como um ser produtivo é do auto-interesse do homem; uma tentativa de existir como um parasita, não. Procurar a vida adequada a sua natureza é do auto-interesse do homem; procurar viver como um animal, não”.

Porque um homem genuinamente egoísta escolhe as suas diretrizes orientado pela razão — e porque os interesses de homens racionais não se chocam — outros homens podem, frequentemente, beneficiar-se de suas ações. Mas o benefício de outros homens não é seu propósito ou objetivo básico; seu próprio benefício são seu propósito básico e objetivo consciente que dirigem suas ações.[Nathaniel Branden, Who is Ayn Rand?, Nova York: Random House, 1962; Paperback Library, 1964]

Para tornar este princípio inteiramente claro, consideremos um exemplo extremo de uma ação, que é, na verdade, egoísta, mas que, convencionalmente, poderia ser chamada de auto sacrifício: a disposição de um homem para morrer a fim de salvar a vida da mulher que ama. De que modo seria este homem o beneficiário de sua ação?

A resposta é dada em A Revolta de Atlas — na cena em que Galt, sabendo estar por ser preso, diz a Dagny: “Se eles tiverem a menor suspeita a respeito do que somos um para o outro, vão colocá-la em uma sessão de tortura — quero dizer, tortura física — diante dos meus olhos, em menos de uma semana. Não vou esperar por isto. Na primeira menção de uma ameaça a você, vou me matar e fazê-los parar bem aí... não preciso lhe dizer que, se eu fizer isto, não será um ato de auto sacrifício. Não me importa viver nas condições deles. Não estou a fim de obedecê-los e não estou a fim de ver você sofrendo um assassinato planejado. Não haverá nenhum valor para buscar depois, disto — e não estou a fim de viver sem valores.” Se um homem ama uma mulher tão intensamente que não quer sobreviver à sua morte, se a vida não pode oferecer-lhe mais nada a este preço, então morrer para salvá-la não é um sacrifício.

O mesmo princípio se aplica a um homem que se encontra em uma ditadura, que conscientemente arrisca a sua vida para obter a liberdade. Para classificar o seu ato de “auto sacrifício”, ter-se-ia que admitir que ele preferiria viver como escravo. O egoísmo de um homem que está disposto a morrer, se necessário, lutando por sua liberdade, repousa no fato de não estar disposto a viver num mundo onde já não é capaz de agir sob o seu próprio juízo — isto é, um mundo onde condições humanas de existência já não são possíveis para ele.

O egoísmo ou não-egoísmo de uma ação deve ser determinado objetivamente, e não pelos sentimentos da pessoa que age. Assim como sentimentos não são armas da cognição, também não são um critério, na ética.

Obviamente, para agir, tem-se de ser movido por algum motivo pessoal: deve-se “querer”, em algum sentido, desempenhar a ação. A questão do egoísmo de uma ação ou do seu não-egoísmo depende, não do fato do indivíduo querer ou não a efetuar, mas apenas do porquê quer fazê-lo. Por que critério escolheu sua ação? Para alcançar qual objetivo?

Se um homem proclamasse que sentira que melhor beneficiaria os outros roubando-os ou assassinando-os, os homens não estariam dispostos a reconhecer altruísmo em suas ações. Pela mesma lógica e razões, se um homem busca um rumo de autodestruição cega, seu sentimento de que ele tem algo a ganhar através disto, não estabelece que suas ações são egoístas.

Se, motivada unicamente por senso de caridade, compaixão, obrigação ou altruísmo, uma pessoa renuncia a um valor, desejo ou objetivo em favor do prazer, desejos ou necessidades de outra pessoa a quem valoriza menos do que aquilo a que renunciou — este é um ato de auto sacrifício. O fato de uma pessoa poder sentir que “quer” fazê-lo, não torna a sua ação egoísta ou estabelece objetivamente que ela é a beneficiária da ação.

Suponha, por exemplo, que um filho escolha a carreira que deseja através de critérios racionais, mas aí renuncie a ela para agradar sua mãe, que prefere que siga uma carreira diferente, que tenha mais prestígio aos olhos dos vizinhos. O garoto acede ao desejo de sua mãe porque aceitou isto como sua obrigação moral: acredita que seu dever como filho consiste em colocar a felicidade de sua mãe acima da sua própria, mesmo que saiba que a exigência da mãe é irracional e mesmo que saiba que está se sentenciando a uma vida de miséria e frustração. É absurdo para os defensores da doutrina “todos somos egoístas” declararem que, já que o garoto está motivado pelo desejo de ser “virtuoso” ou de evitar a culpa, nenhum auto sacrifício está envolvido, e sua ação é verdadeiramente egoísta. O que se evita é a pergunta de por que o garoto sente e deseja de tal forma. Emoções e desejos não são premissas irredutíveis, desprovidas de causa, são o produto das premissas que se aceitou. O garoto “quer” renunciar à sua carreira apenas porque aceitou a ética do altruísmo; crê
ser imoral agir para seu próprio auto-interesse. Este é o princípio que está dirigindo suas ações.

Defensores da doutrina “todos somos egoístas” não negam que, sob a pressão da ética altruísta, os homens podem intencionalmente agir contra sua própria felicidade, a longo prazo. Eles simplesmente afirmam que em algum sentido maior, indefinível, esses homens ainda estão agindo “egoisticamente”. Uma definição de “egoísmo” que inclui e permite a possibilidade de intencionalmente agir contra a felicidade a longo prazo de um indivíduo, é uma contradição em termos.

É apenas o legado do misticismo que permite aos homens imaginarem que ainda estão falando com sentido quando declaram que se pode procurar a felicidade na renúncia a ela.

A falácia básica no argumento “todos somos egoístas” consiste em um equívoco extraordinariamente brutal. É um truísmo psicológico — uma tautologia — pelo qual todo comportamento intencional é motivado. Mas igualar “comportamento motivado” com “comportamento egoísta” é zerar a distinção entre um fato elementar da psicologia humana e o fenômeno da escolha ética. É fugir ao problema central da ética, a saber: o quê motiva o homem?

Um egoísmo genuíno — isto é: um interesse genuíno por saber o que é do auto-interesse do indivíduo, uma aceitação da responsabilidade de conquistá-lo, uma recusa a jamais traí-lo agindo sob caprichos cegos, estado de espírito, impulso ou sentimento do momento, uma lealdade sem compromissos com juízos, convicções e valores próprios — representa uma profunda conquista moral. Aqueles que afirmam que “todos somos egoístas” comumente apresentam sua afirmação como uma expressão de cinismo e desdém. Mas a verdade é que sua afirmação faz à Humanidade um elogio que não merece.

(Setembro de 1962) 

 Nathaniel Branden
 

 (Ayn Rand - A Virtude do Egoísmo - a verdadeira ética do homem: o egoísmo nacional) 

 

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Aqueles que afirmam que “todos somos egoístas” comumente apresentam sua afirmação como uma expressão de cinismo e desdém. Mas a verdade é que sua afirmação faz à Humanidade um elogio que não merece.

publicado às 21:05


Sexo e morte

por Thynus, em 30.05.17
O sexo dota o indivíduo de um instinto inebriante e poderoso que o move continuamente, de corpo e alma, na direção de outro; transforma a escolha e conquista de uma companheira numa das mais gratas ocupações da sua vida e acrescenta à posse o prazer mais intenso, à rivalidade a raiva mais feroz e a solidão uma eterna melancolia. Que mais será preciso para inundar o mundo do significado e beleza mais profundos?
(GEORGE SANTAYANA, The sense of beauty)

A morte é a grande reprimenda que a vontade de viver, ou, mais concretamente, o egoísmo que lhe é essencial, recebe da marcha da Natureza; e pode ser encarada como uma punição à nossa existência.
É o doloroso desatar do nó que o ato de procriação apertou [...]
(ARTHUR SCHOPENHAUER, O mundo como vontade e representação)
 
Os pirilampos, lá fora, numa cálida noite de Verão, ao verem debaixo deles a fosforescência ansiosa, faiscante e de um tom branco-amarelado, ficam loucos de desejo; as borboletas noturnas lançam para as vidraças uma poção de encantar que atrai o sexo oposto, num apressado bater de asas, de quilômetros de distância; os pavões exibem uma coroa irresistível de azuis e verdes e as pavoas ficam todas alvoroçadas; partículas de pólen adversárias expelem tubos minúsculos que competem entre si para descerem pelo orifício da flor fêmea até o óvulo, que aguarda lá em baixo; chocos luminescentes apresentam caleidoscópicos espetáculos de luz, alterando o padrão, a luminosidade e a cor que irradiam da cabeça, tentáculos e globos oculares; diligentemente, uma tênia põe num só dia uma centena de milhares de ovos fertilizados; uma baleia enorme desloca-se ruidosamente nas profundezas do mar, soltando lamentos, que são captados a centenas ou milhares de quilômetros de distância, onde se encontra outro enorme exemplar solitário atentamente à escuta; as bactérias juntam-se umas às outras e fundem-se; as cigarras cantam em coro uma serenata colectiva de amor; casais de abelhas-comuns planam em voos matrimoniais, dos quais apenas um dos parceiros regressa; peixes machos vaporizam com o seu sêmen um montinho viscoso de ovos postos sabe-se lá por quem ; os cães, nas suas passeatas, cheiram as partes íntimas uns dos outros, procurando estímulos eróticos; as flores emanam perfumes intensos e enfeitam as suas pétalas com garridos avisos ultravioletas para os insetos, aves e morcegos que passam; os homens e as mulheres cantam, vestem-se, enfeitam-se, pintam-se, fazem poses, automutilam-se, exigem, coagem, simulam, imploram, sucumbem e arriscam a vida. Dizer que o amor é que faz girar o mundo é ir longe demais.

A Terra gira porque sempre o fez desde que se formou e desde então nada houve que a fizesse parar. No entanto, a devoção quase maníaca ao sexo e ao amor pela maior das plantas, animais e micro-organismos com os quais estamos familiarizados é um aspecto intrigante e surpreendente da vida na Terra. Está a clamar por uma explicação.

Qual é a utilidade de tudo isto? Que significa essa torrente de paixão e obsessão? Por que razão os organismos passam sem dormir, sem comer e enfrentam de bom grado perigos mortais por causa do sexo? Alguns seres, entre eles as plantas e animais de tamanho razoável, como os dentes de leão, as salamandras, alguns répteis e peixes, podem reproduzir-seassexuadamente. Pelos vistos, durante mais de metade da história da vida na Terra os organismos passaram perfeitamente bem sem ele.

Para que serve o sexo?

E mais: o sexo sai caro. Requer laboriosas programações genéticas para a ligação de cantares e danças, para produzir feromonas sexuais, para desenvolver armações heroicas utilizadas apenas para derrotar rivais, para estabelecer peças de engrenagem, movimentos ritmados e um entusiasmo mútuo pelo sexo. Tudo isto representa um escoamento das reservas de energia, que podiam muito bem ser utilizadas em algo que, mais obviamente e a curto prazo, trouxesse benefícios ao organismo.

Além disso, parte daquilo que os seres da Terra fazem ou suportam pelo sexo coloca-os diretamente em perigo; o pavão, ao exibir-se, fica muito mais vulnerável aos predadores do que se se mantivesse discreto, receoso e pardacento. O sexo proporciona uma via adequada e potencialmente mortífera para a transmissão de doenças. Todos estes custos devem sermais do que compensados pelos benefícios do sexo. Quais são esses benefícios?

Embaraçados, os biólogos não sabem explicar totalmente para que serve o sexo. Neste aspecto a situação pouco se alterou desde 1862, quando Darwin escreveu: "Nem sequer conhecemos minimamente a causa final da sexualidade; a razão pela qual novos seres devem ser produzidos pela união de dois elementos sexuais [...] Toda essa questão permanece ainda oculta nas trevas."

Ao longo de 4 bilhões de anos de seleção natural, as instruções foram sendo limadas e afinadas — instruções mais elaboradas, mais redundantes, mais seguras, mais aptas a multiplicar-se —, as sequências de AA, CC, GG e TT, manuais escritos no alfabeto da vida em competição com outros idênticos, publicados por outras empresas. Os organismos tornam-se o meio através do qual as instruções circulam e se copiam a si mesmas, pelo qual novas instruções são postas à prova, no qual a seleção se processa. "A galinha" afirmou Samuel Butler, "é a maneira de o ovo fazer outro ovo." É a este nível que devemos entender para que serve o sexo.

Sabemos bastante acerca do mecanismo molecular do sexo. Para começar, analisemos alguns desses seres microbianos que, rotineiramente, fazem o que muita gente acharia impossível — reproduzirem-se sem sexo. Uma vez em cada geração os seus ácidos nucleicos copiam-se fielmente a partir dos blocos de construção moleculares A, C, G e T que fabricam para esse fim. Os dois DNA funcionalmente iguais pegam então cada um em metade da célula e põem-se a andar — um pouco como uma partilha de bens num divórcio. Algum tempo depois o processo repete-se.

Cada geração é uma réplica monótona da anterior e cada organismo a cara chapada — quase igual até a última mitocôndria e sistema de propulsão por flagelos — do seu único progenitor. Se o organismo estiver adaptado e o meio ambiente for repetitivo e estático, esta combinação pode até dar bons resultados. A monotomia raramente é quebrada pormutações. Estas, porém, como já o salientamos , são aleatórias e têm muito mais possibilidades de causar danos do que benefícios. Todas as rações subsequentes serão afetadas, a menos que, e isso é improvável, ocorra entretanto uma mutação compensadora. O ritmo da evolução, nestas condições, deve ser lento, como de fato parece estar patente no registro fóssil entre 3,5 e cerca de bilhões de anos atrás — até à invenção do sexo.

Agora, em vez de uma mudança lenta e ao acaso nos materiais genéticos, imaginemos que podíamos, numa só etapa, colar numa parte das mensagens existentes um longo e complexo conjunto de instruções novas — não apenas a alteração de uma letra numa palavra do DNA, mas volumes inteiros de manuais experimentados pelo consumidor. Imaginemostambém que o mesmo tipo de reordenamento ocorre em gerações subsequentes. Trata-se-á de uma ideia estúpida se, idealmente, estivermos adaptados a um ambiente imutável ou muito marginal; nesse caso, qualquer mudança será para pior. Se, no entanto, o mundo a que devemos adaptar-nos for heterogêneo e dinâmico, o progresso evolucionista terá mais hipóteses se em cada geração houver resmas de novas instruções genéticas disponíveis do que quando a única coisa que tem de resolver é a ocasional conversão de um A num C. Além disso, se conseguirmos reordenar os genes, poderemos, nós ou os nossos descendentes, sair da armadilha montada pelo acumular, geração após geração, de mutações perniciosas. Genes prejudiciais poderão ser rapidamente substituídos por outros, vantajosos. O sexo e a seleção natural funcionam como uma espécie de revisor de provas, substituindo os inevitáveis erros mutacionais por instruções não contaminadas. Pode ser esta a razão por que as eucariotas se diversificaram — pelas várias linhas hereditárias que deram origem aos protozoários (como a paramécia), aos plasmódios (como os que provocam a malária), algas, fungos, todas as plantas e animais terrestres — precisamente ao tempo em que as eucariotas descobriram o sexo.

Alguns organismos modernos — desde as bactérias aos pulgões e aos choupos — reproduzem-se umas vezes sexuadamente e outras assexuadamente.

Podem fazê-lo de ambas as maneiras. Outros — os dentes de leão, por exemplo, e certos lagartos cauda de chicote — evoluíram recentemente de formas sexuadas para assexuadas, como parece evidente pela sua anatomia e comportamento: os dentes de leão produzem flores e néctar que não têm qualquer utilidade para a atual forma de reprodução; por mais ativas que sejam, as abelhas não podem servir de agentes na fertilidade dos dentes de leão. Quanto aos lagartos cauda de chicote, são todos do sexo feminino e as crias não têm pai biológico. Mas, mesmo assim, a reprodução requer preliminares heterossexuais — o cerimonial da cópula com outras espécies de lagartos, ainda sexuados, mesmo que não consigam fecundar essas fêmeas, ou uma pseudocópula ritual com outras fêmeas da mesma espécie. Pelos vistos, estamos a observar estes dentes de leão e lagartos tão recentemente após a sua evolução de seres sexuados para assexuados que não houve tempo suficiente para que os guiões e adereços do sexo murchassem. Talvez haja situações em que seja possível reproduzirem-se sexuadamente e outras em que não; alguns seres talvez alternem, prudentemente, de um estado para outro, consoante as condições de vida ambientais. Esta alternativa, porém, não está ao nosso alcance. Nós estamos dependentes do sexo.

Hoje em dia um reordenamento das instruções genéticas semelhante ao que acontece no sexo processa-se — estranhamente — nas infecções: um micróbio penetra num organismo maior, invade-lhe as defesas e introduz furtivamente o seu ácido nucleico no do hospedeiro. Existe um intrincado mecanismo na célula, inativo, mas pronto a entrar em ação, que lê e faz cópias de sequências de A, C, G e T preexistentes. O mecanismo não é, contudo, suficientemente eficaz para distinguir os ácidos nucleicos forasteiros dos locais. Trata-se de uma máquina impressora para manuais de instruções que copiará tudo quanto carregarem nos botões. O parasita carrega nos botões, as enzimas da célula recebem novas instruções e são cuspidas cá para fora hordas de parasitas recém-cunhados e ansiosos por aumentarem a subversão.

Ocasionalmente, os mortos conseguem ter relações sexuais e gerar descendentes. Quando uma bactéria morre, o seu conteúdo espalha-se pelas redondezas. Os seus ácidos nucleicos pouco se ralam com a morte da bactéria e, mesmo enquanto, lentamente, se desfazem, os fragmentos permanecem funcionais durante um certo tempo — como a perna cortada de um inseto. Se um desses fragmentos for ingerido por uma bactéria de passagem (e intata) pode ser incorporado nos ácidos nucleicos residentes.

Talvez seja utilizado como um registro independente do que deviam dizer as instruções incólumes, com utilidade na reparação do DNA alterado pelo oxigênio. Talvez esta forma de sexo, extremamente rudimentar, tenha surgido juntamente com a atmosfera de oxigênio da Terra.

Combinações de genes, estranhas e quiméricas, acontecem mais raramente — por exemplo, entre bactérias e peixes (atualmente há não só genes bacterianos nos peixes, como também genes písceos nas bactérias), ou babuínos e felídeos. Parece terem sido causadas por um vírus que se fixou ao DNA de um organismo hospedeiro, reproduzindo-se com eadaptando-se a ele durante gerações para depois se libertar, levando consigo parte dos genes do hospedeiro inicial e ir infectar outras espécies.

Sabe-se que os felídeos apanharam um virogene algures na costa do mar Mediterrâneo a 10 milhões de anos atrás. Os vírus assemelham-se cada vez mais a genes peripatéticos que, só acidentalmente, provocam doenças.

Mas, se hoje em dia as trocas genéticas podem ocorrer num leque tão amplo de organismos, deve ser muito mais fácil ocorrerem, por acidente, em organismos da mesma espécie ou de espécies muito intimamente relacionadas. Talvez o sexo tenha começado como uma infecção, tornando-se mais tarde institucionalizado pelas células infecciosas e infectadas.

Dois familiares distantes, membros da mesma espécie, cada um deles no processo de replicação, encontram as suas cadeias de ácidos nucleicos, uma de cada um, confortavelmente deitadas lado a lado. Um curto segmento de uma sequência muito longa seria, digamos, o segmento correspondente da outra, como



… ATG AAG TCG ATC CTA …


E o segmento correspondente à da outra...


… TAC TTC GGG CGG AAT …


As longas moléculas de ácido nucleico separam-se no mesmo ponto da sequência (vejamos, logo a seguir a AAG na primeira molécula e TTC na segunda), depois do que se recombinam, pegando cada uma num segmento da outra:


… ATG AAG GGG CGG AAT …


e


… TAC TTC TCG ATC CTA …



Devido a esta recombinação genética, existem agora duas novas sequências de instruções e, consequentemente, dois novos organismos no mundo — não propriamente quimeras, dado que provêm ambos da mesma espécie, mas constituindo, apesar de tudo, cada um deles um conjunto de instruções que talvez nunca tenham coexistido no mesmo ser.

Um gene é, como já dissemos, uma sequência de talvez milhares de AA, CC, GG e TT que codifica para uma determinada função normalmente através da síntese de uma determinada enzima. Quando as moléculas DNA são cortadas, mesmo antes da recombinação, o corte dá-se no início ou no fim de um gene e quase nunca no meio dele. Um gene pode ter muitas funções. As caraterísticas importantes de um organismo — a altura, digamos, a agressividade, a cor da pelagem ou a inteligência serão, por norma, resultantes de muitos genes diferentes que atuam em sintonia.

Graças ao sexo, diferentes combinações de genes podem agora ser experimentadas para competir com as variedades mais convencionais.

Está a ser levada a cabo uma série de experiências naturais que muito promete. Em vez de gerações aguardando pacientemente na fila que ocorra uma sequência de mutações favoráveis — pode levar milhões de gerações até acontecer a mutação certa e talvez a espécie não possa esperar esse tempo todo —, o organismo pode agora adquirir novos traços, novas caraterísticas, novas adaptações por atacado. Duas ou mais mutações, que por si mesmas não servirão de muito, mas conferem um enorme benefício quando trabalham em série, talvez venham a ser adquiridas de linhas hereditárias largamente afastadas. As vantagens (para a espécie, pelo menos) parecem óbvias, se os custos forem suportáveis.

A recombinação genética proporciona um precioso achado de variabilidade no qual a seleção natural pode atuar.

Outra explicação proposta para a persistência do sexo, maravilhosa no seu aspecto de novidade, convida-nos a analisar o antiquíssimo braço de ferro entre os organismos parasitas e os seus hospedeiros. Existem neste momento mais micro-organismos infecciosos no nosso corpo do que pessoas na Terra. Uma única bactéria, a reproduzir-se duas vezes por hora, deixará um milhão de gerações sucessivas durante o nosso tempo de vida.

Com tantos organismos e tantas gerações, a seleção tem ao seu dispor, para aí atuar, uma quantidade imensa de variedades orgânicas — principalmente a seleção para superar as defesas do nosso corpo. Certos micróbios alteram a composição química e a forma da sua superfície mais depressa do que o corpo consegue produzir novos anticorpos-padrão;esses pequeninos seres levam, regularmente, a melhor sobre alguns sectores do sistema imunizante do homem. Por exemplo, uns alarmantes 2% dos parasitas plasmódios que provocam a malária alteram significativamente os seus formatos e graus de aderência em cada geração que passa.

Perante o incrível poder de adaptação dos micro-organismos infecciosos, nós, seres humanos, estaríamos a correr sérios riscos se fôssemos geneticamente iguais geração após geração. Muito rapidamente a mancha de patogenes evolutivos nos apanharia todos os pontos fracos. Uma variedade que consiga passar a perna às nossas defesas talvez se instale, mas, se o nosso DNA for recombinado em cada geração, temos mais hipóteses de nos anteciparmos à infestação potencialmente mortífera dos micróbios infecciosos. Encarando favoravelmente esta hipótese, o sexo provocaria uma confusão enorme aos nossos inimigos e seria a solução para termos saúde.



Uma vez que fêmeas e machos são fisiologicamente diferentes, por vezes adotam estratégias diferentes para cada um deles propagar a sua própria linha hereditária; e essas estratégias, embora, é claro, não sejam totalmente incompatíveis, introduzem um certo aspecto de conflito nas relações entre os sexos. Em muitas espécies de répteis, aves e mamíferos a fêmea produz apenas uma pequena quantidade de ovos de cada vez, e isso, talvez, só uma vez por ano. Faz, portanto, sentido, em termos de evolução, que ela seja criteriosa na escolha de parceiros e se dedique à nutrição dos ovos fertilizados e das crias.

O macho, em contrapartida, com grande abundância de espermatozoides — algo como centenas de milhões por ejaculação e a capacidade de muitas ejaculações por dia num jovem primata saudável —, pode muitas vezes propagar melhor a sua linha hereditária através de numerosos e indiscriminados acasalamentos, se conseguir realizá-los. Talvez sejamuito mais apaixonado e ansioso e, ao mesmo tempo, muito mais dado a saltar de parceira em parceira — cortejando, exibindo-se, intimidando e fecundando quantas fêmeas puder. Para além disso, dado que há outros machos com estratégias idênticas, ele não pode ter a certeza de que um certo ovo fertilizado ou cria seja seu; para que perder tempo e trabalho nutrindo e criando um jovem que talvez nem contenha os seus genes?

O investimento poderia beneficiar os descendentes de um rival, e não os seus. O melhor é ir andando para fecundar outras fêmeas.

Contudo, este padrão não é fixo; há espécies em que a fêmea se mostra ansiosa por acasalar com muitos machos e espécies em que o macho desempenha um papel importante, até mesmo primordial, na criação das crias. Mais de 90% das espécies de aves conhecidas são "monógamas" tal como o são os macacos e chimpanzés, já para não falar de todos os lobos, chacais, coiotes, raposas, elefantes, musaranhos, castores e antílopes-anões. No entanto, a monogamia não significa exclusividade sexual; em muitas espécies em que o macho ajuda a criar as crias e dedica cuidados à fêmea, sai também para uma pequena facada no matrimônio; quanto a ela, está muitas vezes receptiva a outros machos.

Os biólogos chamam a isso uma "estratégia de acasalamento misto" ou "cópula extramatrimonial". Eleva-se a 40% o número de jovens criados por casais de aves "monógamas" em cujas impressões digitais do DNA

se descobre que foram gerados em relações adúlteras e uma percentagem quase tão alta poderá aplicar-se aos seres humanos. Apesar disso, o traço dominante dos filhos criados pelas fêmeas quanto aos seus parceiros sexuais e machos dados a aventuras sexuais com muitas parceiras está muito espalhado, sobretudo entre os mamíferos.



Existe uma grande dose de erotismo, de sinais odoríferos e outra maquinaria nos organismos superiores para pôr em contato os genes de um com os de outro para que as moléculas possam deitar-se lado a lado e recombinar-se. Mas isso é apenas o hardware. O principal acontecimento sexual, das bactérias aos homens, é a troca de sequências DNA.

O hardware serve os propósitos do software.



No seu início, o sexo deve ter sido atabalhoado, confuso, fortuito, o equivalente microbiano a uma comédia erótica. Todavia, as vantagens que o sexo confere a gerações futuras parecem tão grandes que, desde que os custos não fossem demasiado altos, a seleção para um hardware sexual mais avançado, juntamente com todo e qualquer software novo que fortalecesse uma decisão para o ato sexual, em breve deve ter sido posta em prática. Quanto mais não seja, os organismos fogosos deixam uma maior descendência do que os de carácter mais desinteressado. Não esclarecidos quanto às vantagens seletivas de novas combinações do DNA, os organismos desenvolveram, apesar de tudo, uma compulsão espantosa para a troca das suas instruções hereditárias. Tal como os colecionadores, que trocam livros de banda desenhada, selos postais,cromos de basebol, pregadeiras de esmalte, moedas estrangeiras ou autógrafos de celebridades, não o faziam após profunda reflexão; era algo que não conseguiam evitar. A troca tem, pelo menos, bilhões de anos.

Duas paramécias podem conjugar-se, como se diz, trocar material genético e depois seguir cada uma o seu caminho. A recombinação não requer o fator gênero. Não há bactérias masculinas e femininas e, no caso delas, não existe sexo -não recombinam segmentos do seu DNA — em cada ato de reprodução. No caso das plantas e dos animais sexuados, existe. Seja como for que se coloque a questão, recombinar significa que cada novo ser tem dois progenitores, em vez de apenas um significa que membros da mesma espécie — e, exceto durante a fase de acasalamento, os membros de muitas espécies são solitários e nada sociáveis — têm de concretizar um ato da maior importância que só pode ser realizado aos pares. Os dois sexos até podem ter objetivos e estratégias diferentes, mas o ato sexual exige, como requisito mínimo, cooperação.

Uma vez libertado no mundo, um ímpeto tão intenso poderá levar, por modos lentos e naturais, a outros tipos de cooperação. O sexo aproxima a espécie inteira — não apenas ao protegerem-se uns aos outros da crescente acumulação de mutações perigosas, não apenas ao proporcionar as adaptações a um ambiente variável, mas também no sentido de a iniciativa dinâmica e colectiva, o encadear de diversas linhagens é muito diferente da prática assexuada, onde existem muitas linhas de descendência paralelas, com organismos quase iguais dentro de cada linha, geração após geração, e sem quaisquer familiares próximos entre linhas.

Quando o sexo se torna essencial para a reprodução, a atração de sexo pelo outro e o drama de escolher entre rivais passam para grande plano. A isso vem associar-se o ciúme sexual, os combates a sério ou a fingir, a cuidadosa observação das identidades e paradeiros de potenciais parceiros e adversários sexuais, a coação e o estupro — tudo o que, por sua vez, veio a dar origem, como Darwin salientou, à evolução de estranhos e maravilhosos apêndices, padrões cromáticos e atos de sedução que os homens muitas vezes consideram de grande beleza mesmo em membros de espécies remotamente associadas. Darwin achava que esta seleção sexual pode estar na origem do sentido estético dos homens.

Eis o que um biólogo do século XX aponta como resultado da seleção sexual nas aves: "Cristas, barbelas, tufos, colares, estolas, caudas, esporas, excrescências nas asas e bicos, bocas pintadas, popas de formato estranho ou insólito, bolsas, manchas de pele nua imensamente coloridas, plumas alongadas, pés e patas intensamente matizados [...] O espetáculo é, quase sempre, de grande beleza." Principalmente para a ave do sexo oposto, que escolhe os parceiros sexuais em parte com base na sua boa aparência.



As modas, na beleza, alastram então rapidamente a toda a população, se bem que o estilo não seja minimamente o adequado a, digamos, afugentar os predadores. Mas a verdade é que se propagam, ainda que o tempo de vida dos que as adotam venha a ser consideravelmente encurtado, na condição de que os benefícios para as gerações futuras sejamsuficientemente grandes. Uma possível explicação para a ostensiva exibição de aves e peixes machos para as fêmeas da sua espécie é que é tudo feito para a certificarem da sua saúde e potencialidades". Uma plumagem luzidia e escamas brilhantes revelam ausência de qualquer infestação de carrapatos, ácaros ou fungos, e as fêmeas — o que não surpreende preferemacasalar com machos livres de parasitas.

Os salmões-azuis do Alasca esgotam totalmente as forças na subida do caudaloso rio Colúmbia para desovarem, lutando estoicamente com cataratas, num esforço que serve para transmitirem as suas sequências de DNA a gerações futuras. Mal terminam o trabalho, começa a decadência.

As escamas soltam-se, as barbatanas descaem e passado pouco tempo — muitas vezes horas depois da desova — estão mortos, libertando um cheiro intenso. Cumpriram o seu objetivo. A Natureza não é sentimental.

A morte é parte integrante.

Isto em nada se assemelha à reprodução muito menos dramática de seres como a paramécia, cujos descendentes remotos, muito provavelmente, são geneticamente idênticos aos seus antepassados distantes.

Poder-se-á dizer, com certa razão, que os organismos antigos ainda estão vivos. Com todas as suas múltiplas vantagens, o sexo trouxe algo mais: o fim da imortalidade.

Os organismos sexuados não se reproduzem habitualmente por cissiparidade, dividindo-se em dois. Os grandes organismos sexuados macroscópicos reproduzem-se através da criação de células sexuais específicas, muitas vezes os nossos conhecidos espermatozoide e óvulo, que congregam os genes da geração seguinte. Estas células sobrevivem apenas o tempo necessário à realização das suas tarefas e dificilmente conseguiriam fazer mais alguma coisa. Nos seres sexuados o progenitor não distribui equitativamente as partes do seu corpo nem se transmuta em dois descendentes; em vez disso, acabará por morrer, deixando o seu mundo para a geração seguinte, a qual, a seu devido tempo, morrerá também. Osorganismos assexuados individuais morrem por engano — quando se lhes esgota alguma coisa ou quando sofrem um acidente fatal. Os organismos sexuados estão destinados a morrer, pré-programados para isso. A morte atua como uma lancinante lembrança das nossas limitações e fraquezas — e do elo de ligação com os nossos antepassados, os quais, de certa forma, morreram para que nós pudéssemos viver.

Quanto mais ativas forem as enzimas destinadas à revisão de provas e reparação do DNA em grandes organismos moleculares, mais longo tende a ser o período de vida. Quando essas enzimas — elas próprias, claro, sintetizadas sob o controle do DNA do organismo — se tornam escassas e inativas, os erros na replicação proliferam e são acobertados, e as células individuais aumentam os seus esforços para implementarem instruções sem sentido. Ao reduzir a extrema fidelidade da sua replicação, o DNA pode contribuir, no momento propício, para a sua própria morte e a do organismo que cumpre as suas ordens.

Conquanto ordene a morte do organismo individual, o sexo dá vida à linha hereditária e às espécies. No entanto, por muitas que sejam as gerações consecutivas de seres assexuados praticamente iguais, a acumulação de mutações perniciosas acabará por destruir o clone. Mais cedo ou mais tarde haverá uma geração em que todos os indivíduos serão maispequenos e mais fracos e nesse caso já se adivinha uma possível extinção.



O sexo é a única saída. O sexo rejuvenesce o DNA, revigora a geração seguinte. Existe motivo para nos alegrarmos com isso.

Há bilhões de anos foi estabelecido um acordo: os prazeres do sexo em troca da perda da imortalidade pessoal. Sexo e morte: não é possível ter o primeiro sem ter a última. A Natureza sabe negociar muito bem.



As primeiras coisas vivas não tiveram progenitores. Durante cerca de bilhões de anos, toda a gente teve um progenitor e aproximou-se bastante da imortalidade. Agora muitos seres têm dois progenitores e são, discutivelmente, mortais. Não existem, tanto quanto se saiba, formas de vida que, por norma, tenham três ou mais progenitores — embora não pareça muito mais difícil de arranjar, em termos de órgãos reprodutivos e postura sexuada, do que só dois. A variedade de recombinações genéticas seria, obviamente, maior. E a capacidade para detectar um erro na mensagem (como a sequência que se desvia quando as três são comparadas entre si) seria deveras aperfeiçoada. Talvez nalgum outro planeta...

Ao ouvir o chamamento do macho, a pega adota prontamente uma pose insinuante, revelando indubitavelmente a sua disposição para a cópula. As fêmeas adultas, criadas em cativeiro, adotarão essa postura mal ouçam pela primeira vez a serenata do macho. Este, se criado em cativeiro e sem nunca ter ouvido na sua vida o canto da fêmea, ainda assim, sabe-o de cor. A partitura da música e a informação para a interpretar estão codificadas no DNA de cada um. Ao ouvi-la, talvez afêmea se apaixone, pelo menos um bocadinho, por ele. Ao vê-la reagir de uma forma tão encantada à sua música, talvez o macho se apaixone, pelo menos um bocadinho, por ela.

Contrastando com o afeto dos progenitores e a seleção de parentesco, tão notórios entre as aves e os mamíferos, muitas rãs e peixes comem os mais jovens. O canibalismo é uma coisa banal — não apenas em circunstânciasextraordinárias, de excesso populacional ou escassez de alimentos, mas em condições normais do dia a dia: os pequenitos são numerosos, fizeram todos os esforços para engordarem até se transformarem em acessíveis unidades nutricionais, basta que sobrevivam alguns para que se mantenha a linhagem e não existe uma vida familiar afetuosa que poderia exerceralguma influência para o impedir. Mas os cuidados paternais não se restringem às aves e aos mamíferos. Surge, aqui e além, entre peixes e até mesmo invertebrados. As coleópteros-bosteiras fêmeas, que põem os seus ovos nas "bolas incubadoras" que habilmente moldam a partir de fezes de animais, são loucas pelas crias. E os crocodilos do Nilo, cujas fortíssimasmandíbulas podem cortar um homem ao meio, movem-se cuidadosamente de um lado para o outro quando transportam as crias, que espreitam por entre os dentes da progenitora "como turistas num autocarro.

Mesmo que o seu egoísmo seja apenas resultado das sequências genéticas, algo que um observador cá de fora pode interpretar como amor tem vindo a desenvolver-se no reino animal, sobretudo desde a extinção dos dinossauros. Com a origem dos primatas inicia-se em pleno esse desabrochar. Serve para manter unida uma espécie, para moldar, aliás, algo que se assemelha a uma lealdade comunitária.

A primazia da reprodução, a consciência de que a geração seguinte é tudo, ou quase tudo, o que interessa, torna-se ainda mais evidente nas muitas espécies em que morrem voluntariamente enormes quantidades de indivíduos de ambos os sexos imediatamente após se ter dado a concepção e terem sido tomadas precauções para a salvaguarda dos ovos fertilizados.

Noutras, incluindo a nossa, os pais desempenham um papel crucial na proteção e educação dos filhos, pelo que para eles há vida depois do ato sexual. Caso contrário, a geração dos pais teria cumprido a sua finalidade e seria eliminada antes de entrar na luta pelos escassos recursos com a sua própria progênie.

O valor adaptativo da junção das cadeias do DNA veio a revelar-se tão substancial que se operaram mudanças enormes na anatomia, na fisiologia e no comportamento, de modo a satisfazer as necessidades dessas moléculas. Conquanto a cooperação já existisse muito antes do sexo — em colônias estromatólitas, por exemplo, ou nas relações simbióticas de cloroplastos e mitocôndrias com a célula —, o sexo trouxe à realidade um novo tipo de cooperação, empenhamento comum e autossacrifício.

Nas diferentes estratégias sexuais de machos e fêmeas, o sexo introduziu também uma nova tensão criativa — que clama por conciliação e cedências de parte a parte —, assim como um forte e novo motivo para a competição. A nossa própria espécie é um bom exemplo do papel quase determinante do sexo — não apenas o ato sexual em si, mas todos os preparativos que o antecedem, consequências, associações e obsessões — na definição de grande parte da personalidade, carácter, agenda e cenário da vida na Terra.
 
SOBRE A TEMPORANEIDADE

Só estamos aqui para dormir, para sonhar.

Mentira! É mentira.

Viemos para viver na Terra.

Tal como uma erva silvestre,

Chegamos sempre na primavera,

túrgidos de verde, abrem-se os nossos corações,

o corpo faz algumas flores e tomba, mirrado, em algum lugar.

(POEMAS DOS POVOS ASTECAS)
 
 
(CARL SAGAN e ANN DRUYAN   - SOMBRAS DE ANTEPASSADOS ESQUECIDOS)
 
 
Tenha sempre em mente que as preocupações com a morte freqüentemente se disfarçam em trajes sexuais. O sexo é o grande neutralizador da morte, a antítese vital absoluta da morte. (...)
O termo francês para orgasmo, la petite mort ("pequena morte"), aponta para a perda orgásmica do self, que elimina a dor da separação — o "eu" solitário desaparecendo no "nós" fundidos.
(Irvin D. Yalom - Os desafios da terapia)

publicado às 10:03


É proibido proibir

por Thynus, em 15.05.17
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"Vocês não estão entendendo nada!" (Caetano Veloso)
Já faz alguns anos vi em Paris, na televisão francesa, um documentário que ficou gravado em minha memória; de vez em quando os acontecimentos cotidianos atualizam suas imagens e lhes conferem estrondosa vigência, sobretudo quando se fala do problema cultural maior de nossos dias: a educação.

O documentário descrevia a problemática de um colégio na periferia de Paris, um desses bairros onde famílias francesas empobrecidas convivem com imigrantes de origem subsaariana ou latino-americana e com árabes do Magreb. Esse colégio secundário público, cujos alunos, de ambos os sexos, constituíam um arco-íris de raças, línguas, costumes e religiões, fora cenário de violências: surras em professores, estupros nos banheiros ou corredores, confrontos entre bandos com facadas e pauladas e, se bem me lembro, até tiroteios. Não sei se de tudo isso resultara algum morto, mas sei que alguns feridos, e nas buscas feitas no local a polícia apreendera armas, drogas e álcool.

O documentário não queria ser alarmista, e sim tranquilizador, mostrando que o pior já havia passado e que, com a boa vontade de autoridades, professores, pais de família e alunos, as águas estavam se acalmando. Por exemplo, com indisfarçável satisfação, o diretor ressaltava que, graças ao detector de metais recém-instalado, pelo qual agora os estudantes precisavam passar ao entrarem no colégio, era possível confiscar socos-ingleses, facas e outras armas perfurocortantes. Desse modo, os atos sangrentos haviam sido drasticamente reduzidos. Tinham sido baixadas instruções para que professores e alunos não circulassem sozinhos, nem mesmo nos banheiros, que sempre estivessem pelo menos em grupos de dois. Desse modo evitavam-se assaltos e emboscadas. E, agora, o colégio tinha dois psicólogos permanentes para dar aconselhamento a alunos e alunas inadaptáveis ou desordeiros recalcitrantes — quase sempre órfãos de pai ou mãe, vindos de famílias desestruturadas pelo desemprego, pela promiscuidade, pela delinquência e pela violência de gênero.

O que mais me impressionou no documentário foi a entrevista de uma professora que afirmava, com naturalidade, algo como: “Tout va bien, maintenant, mais il faut se débrouiller” (“Agora tudo vai bem, mas a gente precisa se virar”). Explicava que, para evitar os assaltos e as surras de antes, ela e um grupo de professores tinham combinado encontrar-se em hora certa na estação de metrô mais próxima e caminharem juntos até o colégio. Desse modo o risco de agressões pelos voyous (vadios) diminuía. Aquela professora e seus colegas, que iam diariamente para o trabalho como quem vai para o inferno, estavam resignados, tinham aprendido a sobreviver e não pareciam nem sequer imaginar que exercer a docência pudesse ser algo diferente de sua via-crúcis cotidiana.

Naqueles dias, estava terminando de ler um dos amenos e sofísticos ensaios de Michel Foucault em que, com seu brilhantismo habitual, o filósofo francês afirmava que, assim como a sexualidade, a psiquiatria, a religião, a justiça e a linguagem, o ensino sempre fora, no mundo ocidental, uma das “estruturas de poder” erigidas para reprimir e domesticar o corpo social, instalando sutis mas eficazes formas de sujeição e alienação, a fim de garantir a perpetuação dos privilégios e o controle do poder dos grupos sociais dominantes. Bom, pelo menos no campo do ensino, a partir de 1968 a autoridade castradora dos instintos libertários dos jovens havia ido pelos ares. Mas, a julgar por aquele documentário, que poderia ter sido filmado em muitos outros lugares da França e de toda Europa, a derrocada e o desprestígio da própria ideia de professor e de magistério — e, em última instância, de qualquer forma de autoridade — não pareciam ter traído a libertação criativa do espírito juvenil, mas, ao contrário, transformado os colégios assim liberados em instituições caóticas, no melhor dos casos, e, no pior, em pequenas satrapias de valentões e delinquentes precoces.

É evidente que maio de 68 não acabou com a “autoridade”, que já fazia tempo vinha passando por um processo de debilitação generalizada em todas as esferas, desde a política até a cultural, sobretudo no campo da educação. Mas a revolução dos filhos de gente bem, a fina flor e a nata das classes burguesas e privilegiadas da França, que foram os protagonistas daquele divertido carnaval que proclamou como um dos lemas do movimento “É proibido proibir!”, estendeu ao conceito de autoridade sua certidão de óbito. E deu legitimidade e glamour à ideia de que toda autoridade é suspeita, perniciosa e desprezível, e de que o ideal libertário mais nobre é desconhecê-la, negá-la e destruí-la. O poder não foi minimamente afetado com essa insolência simbólica dos jovens rebeldes que, com o desconhecimento de sua imensa maioria, levaram para as barricadas os ideais iconoclastas de pensadores como Foucault. Basta recordar que nas primeiras eleições realizadas na França depois de maio de 68, a direita gaullista obteve esmagadora vitória.

Mas a autoridade, no sentido romano de auctoritas — não de poder, mas, como define o Diccionario da Real Academia Espanhola, em sua terceira acepção, de “prestígio e crédito que se reconhece a uma pessoa ou instituição por sua legitimidade ou por sua qualidade e competência em alguma matéria” —, essa não voltou a levantar a cabeça. Desde então, tanto na Europa como em boa parte do resto do mundo, são praticamente inexistentes as figuras políticas e culturais que exercem aquela ascendência, moral e intelectual ao mesmo tempo, da “autoridade” clássica que, em nível popular, era encarnada nos mestres, palavra que então soava tão bem porque associada ao saber e ao idealismo. Em nenhum campo isso foi tão catastrófico para a cultura quanto na educação. O mestre, despojado de credibilidade e autoridade, muitas vezes transformado, do ponto de vista progressista, em representante do poder repressivo — ou seja, no inimigo ao qual era preciso resistir e que se devia até mesmo abater, caso se quisesse alcançar a liberdade e a dignidade humana —, não só perdeu a confiança e o respeito sem os quais era impossível cumprir eficazmente sua função de educador — de transmissor tanto de valores como de conhecimentos — perante seus alunos, como também o dos próprios pais de família e de filósofos revolucionários que, à maneira do autor de Vigiar e punir, nele encarnaram um daqueles sinistros instrumentos — como os carcereiros e os psiquiatras dos manicômios —, dos quais o establishment se vale para coibir o espírito crítico e a sã rebeldia de crianças e adolescentes.

Muitos mestres, de boa-fé, deram crédito a essa satanização de si mesmos e, pondo lenha na fogueira, contribuíram para aumentar o estrago, aderindo a algumas das mais disparatadas consequências da ideologia de maio de 68 no que se refere à educação, como considerar aberrante a reprovação dos maus alunos, a repetição de ano e até mesmo a atribuição de notas e o estabelecimento de uma ordem de preferência no rendimento escolar dos estudantes, pois, fazendo semelhantes distinções, se propagariam a nefasta noção de hierarquias, o egoísmo, o individualismo, a negação da igualdade e o racismo. É verdade que esses extremos não chegaram a afetar todos os setores da vida escolar, mas uma das perversas consequências do triunfo das ideias — das diatribes e fantasias — de maio de 68 foi que, como resultado disso, se acentuou brutalmente a divisão de classes a partir das salas de aula.

A civilização pós-moderna desarmou moral e politicamente a cultura de nosso tempo, e isso explica em boa parte por que alguns dos “monstros” que acreditávamos extintos para sempre depois da Segunda Guerra Mundial, como o nacionalismo mais extremista e o racismo, ressuscitaram e estão de novo rondando no próprio coração do Ocidente, ameaçando mais uma vez seus valores e princípios democráticos.

O ensino público foi uma das grandes conquistas da França democrática, republicana e laica. Em suas escolas e colégios, de altíssimo nível, as levas de alunos gozavam de uma igualdade de oportunidades que, a cada nova geração, corrigia as assimetrias e os privilégios de família e de classe, abrindo para crianças e jovens dos setores mais desfavorecidos o caminho do progresso, do sucesso profissional e do poder político. A escola pública era um poderoso instrumento de mobilidade social.

O empobrecimento e a desordem pela qual passou o ensino público, tanto na França quanto no restante do mundo, conferiram ao ensino privado (ao qual, por razões econômicas, só tem acesso um setor social minoritário de alta renda, que sofreu menos os estragos da suposta revolução libertária) papel preponderante na formação dos dirigentes políticos, profissionais e culturais de hoje e do futuro. Nunca foi tão certo o dito “nunca se sabe para quem se está trabalhando”. Acreditando trabalhar para construir um mundo realmente livre, sem repressão, alienação e autoritarismo, os filósofos libertários como Michel Foucault e seus inconscientes discípulos atuaram com muito acerto para que, graças à grande revolução educacional que propiciaram, os pobres continuassem pobres, os ricos continuassem ricos, e os inveterados donos do poder, com o chicote nas mãos.

Não é arbitrário citar o caso paradoxal de Michel Foucault. Suas intenções críticas eram sérias, e seu ideal libertário, inegável. Sua repulsa pela cultura ocidental — que, com todas as suas limitações e desvios, mais fez progredir a liberdade, a democracia e os direitos humanos na história — o induziu a acreditar que seria mais factível encontrar a emancipação moral e política apedrejando policiais, frequentando as saunas gays de San Francisco ou os clubes sadomasoquistas de Paris, do que nas salas de aula ou nas urnas eleitorais. E, em sua paranoica denúncia dos estratagemas de que, segundo ele, o poder se valia para submeter a opinião pública a seus ditames, ele negou até o final a realidade da AIDS — doença que o matou — como mais um logro do establishment e de seus agentes científicos para aterrorizar os cidadãos, impondo-lhes a repressão sexual. Seu caso é paradigmático: o mais inteligente pensador de sua geração, ao lado da seriedade com que empreendeu suas investigações em diversos campos do saber — história, psiquiatria, arte, sociologia, erotismo e, claro, filosofia —, sempre teve uma vocação iconoclasta e provocadora (em seu primeiro ensaio pretendera demonstrar que “o homem não existe”) que a intervalos se transformava em mera insolência intelectual, gesto desprovido de seriedade. Também nisso Foucault não esteve só, mas assumiu o preceito de toda uma geração, que marcaria como ferrete a cultura de seu tempo: a propensão ao sofisma e ao artifício intelectual.

Essa é outra razão da perda de “autoridade” de muitos pensadores de nosso tempo: não eram sérios, brincavam com as ideias e as teorias como os malabaristas dos circos brincam com lenços e clavas, que divertem e até causam admiração, mas não convencem. No campo da cultura, chegaram a produzir uma curiosa inversão de valores: a teoria, ou seja, a interpretação chegou a substituir a obra de arte, a tornar-se sua razão de ser. O crítico importava mais que o artista, era o verdadeiro criador. A teoria justificava a obra de arte, esta existia para ser interpretada pelo crítico, era algo assim como uma hipóstase da teoria. Esse endeusamento da crítica teve o paradoxal efeito de ir afastando cada vez mais a crítica cultural do grande público, inclusive do público culto, mas não especializado, e foi um dos fatores mais eficazes da frivolização da cultura de nossos dias. Aqueles teóricos expunham suas teorias frequentemente com um jargão esotérico, pretensioso e muitas vezes oco e desprovido de originalidade e profundidade, a tal ponto que o próprio Foucault, que algumas vezes também incorreu nele, o chamou de “obscurantismo terrorista”.

Mas o conteúdo delirante de certas teorias pós-modernas — o desconstrucionismo, em especial — às vezes era mais grave que o obscuro da forma. A tese comungada por quase todos os filósofos pós-modernos, mas exposta principalmente por Jacques Derrida, sustentava que é falsa a crença de que a linguagem expressa a realidade. Na verdade, as palavras se expressam a si mesmas, dão “versões”, máscaras, disfarces da realidade, e, por isso, a literatura, em vez de descrever o mundo, só descreve a si mesma, é uma sucessão de imagens que documentam as diversas leituras da realidade dadas pelos livros, com o uso dessa matéria subjetiva e enganosa que é sempre a linguagem.

Os desconstrucionistas subvertem desse modo nossa confiança em qualquer verdade, na crença de que existam verdades lógicas, éticas, culturais ou políticas. Em última instância, nada existe fora da linguagem, que é o que constrói o mundo que acreditamos conhecer, que nada mais é que uma ficção fabricada pelas palavras. Daí só havia um pequeno passo para se afirmar, como fez Roland Barthes, que “toda linguagem é fascista”.

O realismo não existe e nunca existiu, segundo os desconstrucionistas, pela simples razão de que a realidade tampouco existe para o conhecimento; ela nada mais é que um emaranhado de discursos que, em vez de expressá-la, ocultam-na ou dissolvem-na num tecido escorregadio e inapreensível de contradições e versões que se relativizam e se negam reciprocamente. O que existe, então? Os discursos, a única realidade apreensível para a consciência humana, discursos que remetem uns aos outros, mediações de uma vida ou de uma realidade que só podem chegar a nós através dessas metáforas ou retóricas cujo protótipo máximo é a literatura. Segundo Foucault, o poder utiliza essas linguagens para controlar a sociedade e matar no embrião qualquer tentativa de solapar os privilégios do setor dominante que tal poder serve e representa. Essa talvez seja uma das teses mais controvertidas do pós-modernismo. Porque, na verdade, a tradição mais viva e criativa da cultura ocidental não foi nada conformista, mas precisamente o contrário: um questionamento incessante de tudo o que existe. Ela foi, isso sim, inconformada, crítica tenaz do estabelecido, e, de Sócrates a Marx, de Platão a Freud, passando por pensadores e escritores como Shakespeare, Kant, Dostoiévski, Joyce, Nietzsche, Kafka, elaborou ao longo da história mundos artísticos e sistemas de ideias que se opunham radicalmente a todos os poderes entronizados. Se só fôssemos as linguagens impostas pelo poder, nunca teria nascido a liberdade e nem teria havido evolução histórica, nunca teria brotado a originalidade literária e artística.

Evidentemente, não faltaram reações críticas às falácias e aos excessos intelectuais do pós-modernismo. Por exemplo, sua tendência a proteger-se e obter certa invulnerabilidade para suas teorias valendo-se de linguagem científica sofreu duro revés quando dois cientistas de verdade, os professores Alan Sokal e Jean Bricmont, publicaram em 1998 Imposturas intelectuais, uma contundente demonstração do uso irresponsável, inexato e muitas vezes cinicamente fraudulento das ciências, presente em ensaios de filósofos e pensadores tão prestigiados como Jacques Lacan, Julia Kristeva, Luce Irigaray, Bruno Latour, Jean Baudrillard, Gilles Deleuze, Félix Guattari e Paul Virilio, entre outros. Deve-se lembrar que anos antes — em 1957 —, em seu primeiro livro, Pourquoi des philosophes?, Jean-François Revel denunciara com virulência o emprego de estilos abstrusos e falazmente científicos pelos pensadores mais influentes da época para ocultar a insignificância de suas teorias ou a própria ignorância.

Outra crítica severa às teorias e teses da moda pós-moderna foi Gertrude Himmelfarb, que, numa polêmica coleção de ensaios intitulada On Looking Into the Abyss [Olhando o abismo] (Nova York, Alfred A. Knopf, 1994), investiu contra aquelas e, sobretudo, contra o estruturalismo de Michel Foucault e o desconstrucionismo de Jacques Derrida e Paul de Man, correntes de pensamento que lhe pareciam vazias, se comparadas com as escolas tradicionais de crítica literária e histórica.

Seu livro é também uma homenagem a Lionel Trilling, autor de The liberal imagination (1950) e de muitos outros ensaios sobre cultura, que exerceram grande influência na vida intelectual e acadêmica do pós-guerra nos Estados Unidos e na Europa, hoje lembrado por poucos e quase não lido. Trilling não era liberal no plano econômico (nesse campo, estava mais ligado a teses social-democratas), mas sim no político — em vista de sua defesa ferrenha da virtude, para ele suprema, da tolerância e da lei como instrumento de justiça — e sobretudo no cultural, com sua fé nas ideias como motor do progresso e sua convicção de que as grandes obras literárias enriquecem a vida, melhoram os homens e são o alimento da civilização.

Para um pós-moderno estas crenças parecem de uma ingenuidade angelical ou de uma estupidez supina, a tal ponto que ninguém se dá nem o trabalho de refutá-las. A professora Himmelfarb mostra que, apesar dos poucos anos que separam a geração de Lionel Trilling das de Derrida ou Foucault, há um verdadeiro abismo intransponível entre aquele, convicto de que a história humana é uma só, o conhecimento é uma empresa totalizadora, o progresso é uma realidade possível, e a literatura é uma atividade da imaginação com raízes na história e projeções na moral, e os que relativizaram as noções de verdade e valor até as transformarem em ficções, entronizando como axioma que todas as culturas se equivalem, dissociando literatura de realidade e confinando-a num mundo autônomo de textos que remetem a outros textos sem nunca se relacionarem com a experiência vivida.

Não concordo com a desvalorização de Foucault por parte de Gertrude Himmelfarb. Com todos os sofismas e exageros que possam ser criticados nele, como, por exemplo, suas teorias sobre as “estruturas de poder” implícitas em toda linguagem — o que, segundo o filósofo francês, transmitiria sempre as palavras e ideias que privilegiem os grupos sociais hegemônicos —, Foucault contribuiu de maneira decisiva para conferir direito de inserção na vida cultural de certas experiências marginais e excêntricas (sexualidade, repressão social, loucura). Mas as críticas de Himmelfarb aos estragos que a desconstrução causou no âmbito das humanidades me parecem irrefutáveis. Aos desconstrucionistas devemos, por exemplo, o fato de em nossos dias já ser quase inconcebível falar de humanidades, para eles sintoma de obsolescência intelectual e de cegueira científica.

Toda vez que enfrentei a prosa obscurantista e as asfixiantes análises literárias ou filosóficas de Jacques Derrida tive a sensação de estar perdendo miseramente o meu tempo. Não por acreditar que todo ensaio de crítica deva ser útil — se for divertido ou estimulante me basta —, mas porque, se a literatura for o que ele supõe — uma sucessão ou arquipélago de textos autônomos, impermeabilizados, sem contato possível com a realidade exterior, portanto imunes a qualquer valoração e inter-relação com o desenvolvimento da sociedade e o comportamento individual —, qual é a razão de desconstruí-los? Para que esses laboriosos esforços de erudição, de arqueologia retórica, essas árduas genealogias linguísticas, aproximando ou distanciando um texto de outro até constituir essas artificiosas desconstruções intelectuais que são como que vazios animados? Há uma incongruência absoluta no labor crítico que começa proclamando a inépcia essencial da literatura para influir na vida (ou para sofrer sua influência) e para transmitir verdades de qualquer índole, associáveis à problemática humana, e depois se dedica com tanto afã a esmiuçar esses monumentos de palavras inúteis, frequentemente com uma ostentação intelectual insuportavelmente pretensiosa. Quando discutiam o sexo dos anjos, os teólogos medievais não perdiam tempo: por trivial que parecesse, essa questão para eles se vinculava de algum modo a assuntos graves, como a salvação ou a condenação eterna. Mas desmontar uns objetos verbais cuja montagem se considera, no melhor dos casos, uma intensa ninharia formal, uma gratuidade verbosa e narcisista que nada ensina sobre nada, a não ser sobre ela mesma, e que carece de moral, isso é fazer da crítica literária uma atividade gratuita e solipsista.

Não é de estranhar que, depois da influência exercida pela desconstrução em tantas universidades ocidentais (e, de maneira especial, nos Estados Unidos), os departamentos de literatura começassem a esvaziar-se de alunos, que neles se infiltrassem tantos embusteiros, e que haja cada vez menos leitores não especializados para os livros de crítica literária (que precisam ser buscados com lupa nas livrarias, não sendo raro encontrá-los em recessos sebentos, entre manuais de judô e caratê ou horóscopos chineses).

Para a geração de Lionel Trilling, por outro lado, a crítica literária relacionava-se com as questões centrais do fazer humano, pois via na literatura o testemunho por excelência das ideias, dos mitos, das crenças e dos sonhos que fazem a sociedade funcionar, bem como das secretas frustrações ou estímulos que explicam a conduta individual. Sua fé nos poderes da literatura sobre a vida era tão grande que, num dos ensaios de The liberal imagination (Imaginação liberal), Trilling se perguntava se o mero ensino da literatura não é já, em si, uma maneira de desvirtuar o objeto de estudo. Seu argumento se resumia no seguinte caso: “Pedi a meus alunos que ‘olhassem o abismo’ (as obras de Eliot, Yeats, Joyce, Proust), e eles, obedientes, o fizeram, tomaram notas e depois comentaram: muito interessante, não?” Em outras palavras, a academia congelava, tornava superficial e transformava em saber abstrato a trágica e revulsiva humanidade contida naquelas obras de imaginação, privando-as de sua poderosa força vital, de sua capacidade de revolucionar a vida do leitor. A professora Himmelfarb indica com melancolia toda a água que rolou desde que Lionel Trilling expressava escrúpulos de despojar a literatura de alma e poder ao transformá-la em matéria de estudo, até a alegre ligeireza com que Paul de Man, vinte anos mais tarde, se valeria da crítica literária para desconstruir o Holocausto, numa operação intelectual não muito distante da dos historiadores revisionistas empenhados em negar o extermínio de 6 milhões de judeus pelos nazistas.

Esse ensaio de Lionel Trilling sobre o ensino da literatura eu reli várias vezes, principalmente quando precisei atuar como professor. É verdade que há algo de enganoso e paradoxal em reduzir a uma exposição pedagógica, com ares inevitavelmente esquemáticos e impessoais, e a deveres escolares que, ainda por cima, é preciso conceituar, obras de imaginação que nasceram de experiências profundas e, às vezes, dilacerantes, com verdadeiras imolações humanas, cuja autêntica valoração não pode ser feita na tribuna de um auditório, mas na ensimesmada intimidade da leitura, e só pode ser cabalmente medida pelos efeitos e repercussões que têm na vida pessoal do leitor.

Não me lembro de nenhum professor meu de literatura que me fizesse sentir que um bom livro nos aproxima do abismo da experiência humana e de seus efervescentes mistérios. Os críticos literários, em compensação, sim. Lembro-me principalmente de um, da mesma geração de Lionel Trilling, que em mim produziu efeito semelhante ao que este exerceu sobre Gertrude Himmelfarb, contagiando-me com sua convicção de que o pior e o melhor da aventura humana sempre passam pelos livros, e de que eles ajudam a viver. Refiro-me a Edmund Wilson, cujo extraordinário ensaio sobre a evolução das ideias socialistas e sua literatura, desde que Michelet descobriu Vico até a chegada de Lenin a São Petersburgo, Rumo à estação Finlândia, caiu em minhas mãos no tempo de estudante. Nessas páginas de estilo diáfano, pensar, imaginar e inventar com o uso da pluma é uma forma magnífica de atuar e imprimir uma marca na história; em cada capítulo se comprova que as grandes convulsões sociais ou os miúdos destinos individuais estão visceralmente articulados com o impalpável mundo das ideias e das ficções literárias.

Edmund Wilson não teve o dilema pedagógico de Lionel Trilling no que se refere à literatura, pois nunca quis ser professor universitário. Na verdade, exerceu um magistério muito mais amplo do que os delimitados pelos recintos acadêmicos. Seus artigos e resenhas eram publicados em revistas e jornais (algo que um crítico desconstrucionista consideraria uma forma extrema de degradação intelectual), e alguns de seus livros — como o que trata dos manuscritos encontrados no mar Morto — foram reportagens para The New Yorker. Mas escrever para o grande público leigo não lhe reduziu o rigor nem a ousadia intelectual; ao contrário, obrigou-o a tentar ser sempre responsável e inteligível na hora de escrever.

Responsabilidade e inteligibilidade andam de mãos dadas com certa concepção de crítica literária, com a convicção de que o âmbito da literatura abarca toda a experiência humana — pois a reflete e contribui decisivamente para modelá-la — e de que, por isso mesmo, ela deveria ser patrimônio de todos, atividade que se alimenta no fundo comum da espécie e à qual se pode recorrer incessantemente em busca de ordem quando parecemos imersos no caos, de alento em momentos de desânimo e de dúvidas e incertezas quando a realidade que nos cerca parece excessivamente segura e confiável. Inversamente, se se achar que a função da literatura é apenas contribuir para a inflação retórica de um campo especializado do conhecimento, e que poemas, romances e dramas proliferam com o único objetivo de produzir certas perturbações formais no corpo linguístico, o crítico poderá, à maneira de tantos pós-modernos, entregar-se impunemente aos prazeres do desatino conceitual e à obscuridade de expressão.


(Mario Vargas Llosa - A Civilização do Espetáculo, uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura)

publicado às 01:51


O desaparecimento do erotismo

por Thynus, em 15.05.17
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O desaparecimento do erotismo?
O que ocorreu com as artes e as letras e, em geral, com toda a vida intelectual, também ocorreu com o sexo. A civilização do espetáculo não só deu o golpe fatal à velha cultura como também está destruindo uma de suas manifestações e êxitos mais excelsos: o erotismo.

Um exemplo, entre mil.

No final de 2009 houve um pequeno alvoroço midiático na Espanha quando se descobriu que a Junta da Extremadura, em poder dos socialistas, organizara, dentro de seu plano de educação sexual dos escolares, oficinas de masturbação para meninos e meninas a partir dos 14 anos, campanha que foi batizada, não sem sagacidade, de O prazer está em suas mãos.

Diante dos protestos de alguns contribuintes, para que não se aplicasse desse modo o dinheiro dos impostos, os porta-vozes da Junta alegaram que a educação sexual das crianças é indispensável para “prevenir gravidezes indesejadas”, e que as aulas de masturbação serviriam para “evitar males maiores”. Na polêmica que o assunto provocou, a Junta da Extremadura recebeu felicitações e apoio da Junta da Andaluzia, cuja Conselheira da Igualdade e do Bem-estar Social, Micaela Navarro, anunciou que na Andaluzia teria início em breve uma campanha semelhante à da Extremadura. Por outro lado, a tentativa de acabar com as oficinas de masturbação, mediante ação judicial movida por uma organização ligada ao Partido Popular, tentativa batizada, com não menos acuidade, de Mãos Limpas, fracassou de maneira estrepitosa, pois a procuradoria do Tribunal de Justiça da Extremadura não acolheu a denúncia e a arquivou.

Masturbai-vos, pois, meninos e meninas de todo o mundo! Quanta água rolou neste planeta que ainda nos suporta desde que, em minha infância, os padres salesianos e os irmãos de La Salle — colégios em que estudei — nos assustavam com o espantalho de que os “toques indecentes” produziam cegueira, tuberculose e imbecilidade. Seis décadas depois aulas de punheta nas escolas! Isso sim é progresso, minha gente.

Será mesmo?

A curiosidade criva-me o cérebro de perguntas. Darão notas? Farão provas? As oficinas serão só teóricas ou também práticas? Que proezas os alunos terão de realizar para tirarem a nota mais alta, e que fiascos, para serem reprovados? Dependerá da quantidade de conhecimentos retidos pela memória ou da velocidade, da quantidade e da consistência dos orgasmos produzidos pela destreza tátil de meninos e meninas? Não são piadas. Se alguém tem a audácia de abrir oficinas para instruir a meninada nas técnicas da masturbação, essas perguntas são pertinentes.

Não faço o menor reparo moral à iniciativa O prazer está em suas mãos da Junta da Extremadura. Reconheço as boas intenções que a animam e admito que, com campanhas dessa índole, não é impossível que diminua o número de gravidezes indesejadas. Minha crítica é de índole sensual e sexual. Temo que, em vez de livrar as crianças das superstições, mentiras e preconceitos que tradicionalmente cercaram o sexo, as oficinas de masturbação o trivializem ainda mais do que a civilização de nosso tempo já o trivializou, de tal modo que acabem por transformá-lo num exercício sem mistério, dissociado do sentimento e da paixão, privando assim as futuras gerações de uma fonte de prazer que irrigou até agora de maneira tão fecunda a imaginação e a criatividade dos seres humanos.

A vacuidade e a vulgaridade que têm minado a cultura de certa forma também prejudicaram outra das mais importantes conquistas de nossa época nos países democráticos: a liberdade sexual, o eclipse de muitos tabus e preconceitos que cercavam a vida erótica. Porque, assim como nos campos da arte e da literatura, o desaparecimento dos formalismos na vida sexual não significa progresso, mas sim retrocesso que desnatura a liberdade e empobrece o sexo, rebaixando-o ao puramente instintivo e animal.

Masturbação não precisa ser ensinada, é descoberta na intimidade, é uma das atividades que fundamentam a vida privada. Ela vai desprendendo o menino e a menina de seu entorno familiar, individualizando-os e sensibilizando-os ao lhes revelar o mundo secreto dos desejos, e instruindo-os sobre assuntos capitais, como o sagrado, o proibido, o corpo e o prazer. Por isso, destruir os ritos privados e acabar com a discrição e o pudor que acompanharam o sexo desde que a sociedade humana atingiu a civilização não é combater um preconceito, mas amputar da vida sexual a dimensão que foi surgindo em torno dela à medida que a cultura e o desenvolvimento das artes e das letras iam enriquecendo-a e transformando-a também em obra de arte. Tirar o sexo das alcovas para exibi-lo em praça pública é, paradoxalmente, não o libertar, mas fazê-lo regredir aos tempos da caverna, quando, assim como os macacos e os cães, os casais ainda não haviam aprendido a fazer amor, só a acasalar. A suposta liberação do sexo, um dos traços mais pronunciados da modernidade nas sociedades ocidentais, de que faz parte essa ideia de dar aulas de masturbação nas escolas, talvez consiga abolir certos preconceitos estúpidos sobre o onanismo. Em boa hora. Mas também poderia contribuir para desferir outra punhalada no erotismo e talvez acabe com ele. Quem sairia ganhando? Não os libertários nem os libertinos, mas os puritanos e as igrejas. E continuariam o delírio e a futilização do amor que caracterizam a civilização contemporânea no mundo ocidental.

A ideia das oficinas de masturbação é um novo elo no movimento que — para dar uma data de nascimento (embora na verdade seja anterior) — começou em Paris em maio de 1968 e pretende pôr fim aos obstáculos e prevenções de caráter religioso e ideológico que, desde tempos imemoriais, reprimiram a vida sexual, provocando inúmeros sofrimentos, principalmente para as mulheres e as minorias sexuais, assim como frustração, neurose e outros desequilíbrios psíquicos para aqueles que, em vista da rigidez da moral reinante, foram discriminados, censurados e condenados à clandestinidade insegura.

Esse movimento teve saudáveis consequências, evidentemente, nos países ocidentais, enquanto em outras culturas, como a islâmica, exacerbou as proibições e a repressão. O culto da virgindade, que pesava como lápide sobre a mulher, evaporou-se e, graças a isso e à generalização do uso da pílula, as mulheres hoje, se não desfrutam exatamente da mesma liberdade dos homens, pelo menos gozam de uma margem de autonomia sexual infinitamente mais ampla que suas avós e bisavós e do que suas congêneres dos países muçulmanos e terceiro-mundistas. Por outro lado, mesmo sem desaparecerem de todo, foram-se reduzindo os preconceitos e anátemas contra a homossexualidade, bem como as disposições legais que até há poucos anos a apenavam por considerá-la uma prática perversa. Pouco a pouco vão sendo admitidos nos países ocidentais o casamento entre pessoas do mesmo sexo, com os mesmos direitos dos casais heterossexuais, inclusive o de adotar filhos. Além disso, estende-se paulatinamente a ideia de que, em matéria sexual, o que os adultos fizerem ou deixarem de fazer entre si em pleno uso da razão e por livre decisão é prerrogativa deles, e ninguém, a começar pelo Estado e a terminar pelas igrejas, deve imiscuir-se no assunto.

Tudo isso constitui um progresso, está claro. Mas é errôneo acreditar, como os promotores desse movimento liberador, que, dessacralizado, despido dos véus, do pudor e dos rituais que o acompanham há séculos, abolida de sua prática toda e qualquer forma simbólica de transgressão, o sexo passará a ser uma prática saudável e normal na cidade.

O sexo só é saudável e normal entre os animais. Foi assim entre os bípedes quando ainda não éramos totalmente humanos, ou seja, quando o sexo era para nós desafogo do instinto e pouco mais que isso, descarga física de energia que garantia a reprodução. A desanimalização da espécie foi um longo e complicado processo, e nele teve papel decisivo o que Karl Popper chama de “mundo terceiro”, o da cultura e da invenção, o lento surgimento do indivíduo soberano, sua emancipação da tribo, com tendências, disposições, desígnios, anseios e desejos que o diferenciavam dos outros e o constituíam como ser único e intransferível. O sexo desempenhou papel importantíssimo na criação do indivíduo e, como mostrou Sigmund Freud, nesse domínio, o mais recôndito da soberania individual, são forjados os caracteres distintivos de cada personalidade, o que nos pertence como próprio e nos faz diferentes dos outros. Esse é um domínio privado e secreto, e deveríamos procurar fazer de tudo para que continue assim, se não quisermos obstruir uma das fontes mais intensas de prazer e criatividade, ou seja, da civilização.

Georges Bataille não se equivocava quando alertou para os riscos da permissividade desenfreada em matéria sexual. O desaparecimento dos preconceitos, algo libertador de fato, não pode significar a abolição dos rituais, do mistério, dos formalismos e da discrição, graças aos quais o sexo se civilizou e humanizou. Com sexo público, saudável e normal, a vida se tornaria mais enfadonha, medíocre e violenta do que é.

Há muitas formas de definir o erotismo, mas a principal talvez consista em chamá-lo de desanimalização do amor físico, que é sua transformação, ao longo do tempo e graças ao progresso da liberdade e à influência da cultura na vida privada, de mera satisfação de uma pulsão instintiva em atividade criativa e compartilhada que prolonga e sublima o prazer físico, cercando-o de uma encenação e de refinamentos que o transformam em obra de arte.

Talvez em nenhuma outra atividade tenha sido estabelecida uma fronteira tão evidente entre o animal e o humano como no domínio do sexo. Essa diferença no princípio, na noite dos tempos, não existia e confundia ambos num acasalamento carnal sem mistério, sem graça, sem sutileza e sem amor. A humanização da vida de homens e mulheres é um longo processo no qual intervêm o avanço dos conhecimentos científicos, as ideias filosóficas e religiosas, o desenvolvimento das artes e das letras. Nessa trajetória nada muda tanto como a vida sexual. Esta sempre foi um fermento da criação artística e literária, e, reciprocamente, pintura, literatura, música, escultura, dança, todas as manifestações artísticas da imaginação humana contribuíram para o enriquecimento do prazer através da prática sexual. Não é abusivo dizer que o erotismo representa um momento elevado da civilização, e que é um de seus componentes determinantes. Para saber até que ponto é primitiva uma comunidade ou quanto ela avançou em seu processo civilizador nada é tão útil como perscrutar seus segredos de alcova e verificar como seus membros fazem amor.

O erotismo não só tem a função positiva e enobrecedora de embelezar o prazer físico e abrir um amplo leque de sugestões e possibilidades que permitam aos seres humanos satisfazer seus desejos e fantasias como é também uma atividade que traz à superfície aqueles fantasmas escondidos na irracionalidade que são de índole destrutiva e mortífera. Freud os chamou de pulsão tanática, que disputa com o instinto vital e criativo — o Eros — a condição humana. Entregues a si mesmos, sem freio algum, aqueles monstros do inconsciente que afloram na vida sexual e pedem direito de cidadania poderiam acarretar uma violência vertiginosa (como a que banha de sangue e cadáveres os romances do marquês de Sade) e até o desaparecimento da espécie. Por isso, o erotismo não só encontra na proibição um estímulo voluptuoso, como também um limite, com cuja violação ele se transforma em sofrimento e morte.

Descobri que o erotismo está inseparavelmente unido à liberdade humana, mas também à violência, ao ler os grandes mestres da literatura erótica que Guillaume Apollinaire reuniu na coleção que organizou (prefaciando e traduzindo alguns de seus volumes) com o título Les maîtres de l’amour.

Aconteceu em Lima, por volta de 1955. Tinha acabado de me casar pela primeira vez e precisei acumular vários trabalhos para ganhar a vida. Cheguei a ter oito, enquanto continuava os estudos universitários. O mais pitoresco deles era fichar os mortos das quadras coloniais do cemitério Presbítero Maestro, de Lima, cujos nomes tinham desaparecido dos arquivos da Beneficência Pública. Fazia isso aos domingos e feriados, indo ao cemitério equipado com uma escadinha, fichas e lápis. Depois de realizar meu escrutínio das velhas lápides, elaborava listas com nomes e datas, e a Beneficência Pública de Lima me pagava por morto. Porém o mais grato de meus oito ganha-pães não era esse, e sim o de ajudante de bibliotecário do Clube Nacional. O bibliotecário era meu professor, o historiador Raúl Porras Barrenechea. Minhas obrigações consistiam em passar duas horas diárias de segunda a sexta no elegante edifício do Clube, símbolo da oligarquia peruana, que naqueles anos celebrava seu centenário. Teoricamente, precisava dedicar essas poucas horas a fichar as novas aquisições da biblioteca, mas, não sei se por problemas de verbas ou se por negligência da diretoria, o Clube Nacional já quase não adquiria livros naquela época, de modo que eu podia dedicar aquelas duas horas a escrever e ler. Eram as duas horas mais felizes daqueles dias, em que da manhã até a noite eu não parava de fazer coisas que me interessavam pouco ou nada. Não trabalhava na bela sala de leitura do térreo do Clube, mas num escritório do quarto andar. Ali descobri com felicidade, dissimulada atrás de uns discretos biombos e de umas cortininhas pudibundas, uma esplêndida coleção de livros eróticos, quase todos franceses. Ali eu li as cartas e fantasias eróticas de Diderot e Mirabeau, o marquês de Sade e Restif de la Bretonne, Andréa de Nerciat, Aretino, Memórias de uma cantora alemã, Autobiografia de um inglês, Memórias de Casanova, Ligações perigosas de Choderlos de Laclos e não sei quantos outros livros clássicos e emblemáticos da literatura erótica.

Ela tem antecedentes clássicos, evidentemente, mas irrompe de verdade na Europa no século XVIII, em pleno auge dos philosophes e suas grandes teorias renovadoras da moral e da política, sua ofensiva contra o obscurantismo religioso e sua apaixonada defesa da liberdade. Filosofia, sedição, prazer e liberdade era o que pediam e praticavam em seus escritos aqueles pensadores e artistas que reivindicavam orgulhosos o apelativo de “libertinos” com que eram chamados, recordando que o sentido primário desse vocábulo era, segundo lembra Bataille, “o que desacata ou desafia Deus e religião em nome da liberdade”.

A literatura libertina é muito desigual, evidentemente; não abundam obras-primas entre as que ela produziu, embora se encontrem alguns romances ou textos de grande valor em meio de muitas outras de escassa ou nula significação artística. A limitação principal que costuma empobrecê-la é que, concentrados de maneira obsessiva e exclusiva na descrição de experiências sexuais, os livros apenas eróticos logo sucumbem à repetição e à monomania, porque a atividade sexual, embora intensa e fonte maravilhosa de gozos, é limitada e, quando separada do restante das atividades e funções que constituem a vida de homens e mulheres, perde vitalidade e apresenta um caráter truncado, caricatural e inautêntico da condição humana.

Mas isso não é empecilho para que na literatura libertina sempre ressoe um grito de liberdade contra todas as sujeições e servidões — religiosas, morais e políticas — que restringem o direito ao livre-arbítrio, à liberdade política e social, bem como ao prazer, direito reivindicado pela primeira vez na história da civilização: o de poder materializar as fantasias e os desejos que o sexo desperta nos seres humanos. O grande mérito dos monótonos romances do marquês de Sade é mostrar como o sexo, se exercido sem limitação nem freio algum, acarreta violências insanas, pois é o veículo privilegiado através do qual se manifestam os instintos mais destrutivos da personalidade.

O ideal nesse campo é que as fronteiras dentro das quais se desenvolve a vida sexual se ampliem o suficiente para que homens e mulheres possam agir com liberdade, despejando nela seus desejos e fantasmas, sem se sentirem ameaçados nem discriminados, mas dentro de certas formalidades culturais que preservem a natureza privada e íntima do sexo, de maneira que a vida sexual não se banalize nem animalize. Isso é erotismo. Com seus rituais, fantasias, vocação à clandestinidade, amor aos formalismos e à teatralidade, nasce como um produto da alta civilização, um fenômeno inconcebível nas sociedades ou nos povos primitivos e rudes, pois se trata de uma atividade que exige sensibilidade refinada, cultura literária e artística e certa vocação transgressora. Transgressora é uma palavra que neste caso deve ser tomada com cuidado, pois dentro do contexto erótico não significa negação da regra moral ou religiosa imperante, mas ambas as coisas ao mesmo tempo: reconhecimento e rejeição, misturados de maneira indissolúvel. Violando a norma na intimidade, com discrição e de comum acordo, o casal ou o grupo levam a cabo uma representação, um jogo teatral que inflama seu prazer com um tempero de desafio e liberdade, ao mesmo tempo que conserva no sexo o status de atividade velada, confidencial e secreta.

Sem o cuidado com as convenções, com esse ritual que, enriquecendo, prolonga e sublima o prazer, o ato sexual volta a ser um exercício puramente físico — uma pulsão da natureza no organismo humano, de que o homem e a mulher são meros instrumentos passivos —, desprovido de sensibilidade e emoção. E isso nos é ilustrado, sem querer nem saber, por essa literatura barata que, pretendendo ser erótica, só chega aos rudimentos vulgares do gênero: a pornografia. A literatura erótica torna-se pornografia por razões estritamente literárias: o descuido das formas. Ou seja, quando a negligência ou a inabilidade do escritor ao utilizar a linguagem, construir a história, desenvolver diálogos e descrever situações revela, involuntariamente, tudo o que há de reles e repulsivo num acasalamento sexual isento de sentimento e elegância — de mise-en-scène e de ritual —, convertido em mera satisfação do instinto reprodutor.

Fazer amor em nossos dias, no mundo ocidental, está muito mais perto da pornografia que do erotismo e, paradoxalmente, isso resultou como deriva degradada e perversa da liberdade.

As oficinas de masturbação às quais os jovens extremenhos e andaluzes assistirão no futuro como parte do currículo escolar têm a aparência de um passo audaz na luta contra a carolice e o preconceito no âmbito sexual. Na realidade, é provável que essa e outras iniciativas semelhantes, destinadas a dessacralizar a vida sexual transformando-a em prática tão comum e corrente como comer, dormir e ir trabalhar, tenham como consequência desiludir precocemente as novas gerações em relação à prática sexual. Esta perderá mistério, paixão, fantasia e criatividade e se banalizará até se confundir com mera ginástica. Com o resultado de induzir os jovens a buscar prazer em outro lugar, provavelmente no álcool, na violência e nas drogas.
Por isso, se quisermos que o amor físico contribua para enriquecer a vida das pessoas, deveremos livrá-lo dos preconceitos, mas não do formalismo e dos ritos que o embelezam e civilizam, e, em vez de exibi-lo à luz do dia e nas ruas, preservar a privacidade e a discrição que possibilitam aos amantes fazer de conta que são deuses e sentir que o são naqueles instantes intensos e únicos da paixão e do desejo comungados.


(Mario Vargas Llosa - A Civilização do Espetáculo, uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura)

publicado às 01:22


Espelho

por Thynus, em 09.05.17
Se existe uma lei universal que rege o gênero humano, é que não
se é aquele que se vê no espelho, mas, sim, aquele que se reconhece no
olhar do Outro. É a alteridade que me faz existir

(Veja Também:A ontologia da vergonha em Sartre)
 
 
Anunciação
Olho a ausência
da minha
imagem no espelho
 
no seu abismo perverso
 
O nada absoluto
onde a luz
é o excesso
 
(Maria Teresa Horta - Anunciações)

publicado às 18:14


Luz na escuridão

por Thynus, em 08.05.17
Nós somos feitos de poeira de estrelas
 
 
 
O QUE ACONTECEU A ED MITCHELL talvez tenha sido causado pela ausência de gravidade, ou talvez pelo fato de que todos os seus sentidos estavam desorientados. Ele estava a caminho de casa, que no momento estava a cerca de 400 mil quilômetros de distância, em algum lugar da superfície do azul-celeste nublado e do crescente branco que apareciam intermitentemente na janela triangular do módulo de comando da Apollo 14.1
Dois dias antes, ele se tornara o sexto homem a aterrissar na Lua. A viagem fora um triunfo: a primeira alunissagem destinada a efetuar investigações científicas. Os 150 quilos de amostras de rocha e do solo no compartimento de carga confirmavam isso. Embora ele e seu comandante, Alan Shepard, não tivessem chegado ao cume da antiquíssima Cratera do Cone com 230 metros de altitude, os itens restantes que constavam da meticulosa programação presa ao pulso de ambos, que detalhava praticamente cada minuto da jornada de dois dias, tinham sido metodicamente assinalados como concluídos.
"A Terra parecia uma joia verde e azul encrustada no céu da meia noite"
 
O que eles não haviam racionalizado por completo era o efeito desse mundo desabitado, de baixa gravidade, desprovido do efeito amenizante da atmosfera, sobre os sentidos. Sem a sinalização de árvores ou fios de telefone, na verdade sem qualquer outra coisa além do Antares, no módulo lunar dourado semelhante a um inseto, em meio a toda aquela extensão de paisagem cinzenta, todas as percepções de espaço, escala, distância ou profundidade ficavam terrivelmente distorcidas; Ed ficara chocado ao descobrir que todos os pontos de navegação que haviam sido cuidadosamente assinalados nas fotografias de alta-resolução ficavam pelo menos duas vezes mais distantes do que o esperado. Era como se ele e Alan tivessem encolhido durante a viagem espacial, e o que na Terra deram a impressão de ser montículos e pequenas cadeias montanhosas, na superfície da Lua parecia ter crescido e atingido uma altura de quase dois metros. No entanto, embora se sentissem menores em tamanho, também estavam mais leves do que nunca. Experimentaram uma estranha leveza devida à fraca atração da gravidade, e apesar do peso e do volume do desgracioso traje espacial, sentiam que flutuavam a cada passo que davam.
Houvera também o efeito de distorção do Sol, puro e não-adulterado nesse mundo sem ar. Na ofuscante luminosidade, mesmo naquela manhã relativamente fresca, antes das temperaturas máximas que poderiam ultrapassar 130° C, as crateras, pontos de referência, o solo e a Terra - até mesmo o próprio céu - destacavam-se com absoluta clareza. Para a mente acostumada ao suave filtro da atmosfera, as sombras pronunciadas, as cores cambiantes do solo cinza-ardósia conspiravam para pregar peças nos olhos. Sem saber, ele e Alan tinham estado a apenas dezenove metros da borda da Cratera do Cone, a cerca de 10 segundos de distância, quando decidiram voltar, convencidos de que não a alcançariam a tempo - insucesso que deixaria Ed amargamente desapontado, pois ele ansiara por olhar para dentro desse buraco de 340 metros de diâmetro no meio dos terrenos elevados da Lua. Os olhos dos dois não souberam interpretar esse hiperestado de visão. Nada estava vivo, tampouco algo estava oculto da vista, e tudo carecia de sutileza. Todos os cenários esmagavam os olhos com contrastes e sombras brilhantes. Ele estava enxergando, de certo modo, com mais clareza e menos clareza do que jamais enxergara.
Durante a implacável atividade da programação, pouco tempo tiveram para refletir sobre quaisquer ideias relacionadas a um propósito mais amplo do que a viagem. Haviam ido mais longe no Universo do que qualquer homem antes deles. No entanto, oprimidos por saberem que estavam custando 200 mil dólares por minuto aos contribuintes americanos, sentiam-se obrigados a manter os olhos no relógio, assinalando os detalhes concluídos da lista planejada por Houston na compacta programação. Apenas depois que o módulo lunar se conectou de novo ao módulo de comando e iniciou a jornada de dois dias de volta à Terra é que Ed pôde tirar o traje especial, agora sujo de solo lunar, sentar-se vestindo suas ceroulas e tentar ordenar de alguma maneira a sua frustração e o seu emaranhado de pensamentos.
O módulo de comando Kittyhawk girava lentamente, como um frango no espeto, a fim de equilibrar o efeito térmico em cada um dos lados da espaçonave; e na sua lenta revolução, a Terra era intermitentemente emoldurada pela janela como um fino crescente em uma noite de estrelas que circundavam tudo. A partir dessa perspectiva, enquanto a Terra trocava de lugar com o restante do sistema solar, entrando e saindo de vista, o céu que estava sobre os astronautas não era como em geral o vemos, e sim como uma entidade abrangente que embalava a Terra por todos os lados.
Foi então que, enquanto olhava para fora da janela, Ed experimentou o mais estranho sentimento que jamais teria na vida: um sentimento de conexidade, como se todos os planetas e todas as pessoas em todos os tempos estivessem ligadas por uma teia invisível. Ele mal conseguia respirar devido à grandiosidade do momento. Embora continuasse a girar maçanetas e apertar botões, sentiu-se distante do corpo, como se outra pessoa estivesse fazendo a navegação.
Um enorme campo de força parecia estar presente, ligando para sempre todas as pessoas, com suas intenções e pensamentos, e todas as formas animadas e inanimadas. Qualquer coisa que ele fizesse ou pensasse influenciaria o resto do cosmo, e qualquer ocorrência neste teria um efeito semelhante nele. O tempo era apenas um conceito artificial. Tudo que ele aprendera sobre o Universo e a separação das pessoas e das coisas pareciam erradas. Não havia acidentes ou intenções individuais. A inteligência natural que continuara a existir durante bilhões de anos, que moldara as moléculas do seu ser, também era responsável por sua jornada atual. Isso não era algo que ele estava simplesmente percebendo em sua mente, e sim um sentimento visceral, como se estivesse se estendendo fisicamente para fora da janela, em direção aos confins mais longínquos do cosmo.
Ele não vira a face de Deus. Parecia mais uma ofuscante epifania de significado do que uma experiência religiosa convencional - o que as religiões orientais com frequência chamam de "êxtase de unidade". Era como se, em um único instante, Ed Mitchell tivesse descoberto e sentido A Força.
Ele olhou de soslaio para Alan e Stu Roosa, os outros astronautas na missão Apollo 14, para verificar se eles estavam experimentando algo remotamente semelhante. Houvera um momento em que eles tinham descido pela primeira vez da Antares e pisado nas planícies de Fra Mauro, uma região elevada da lua, quando Alan, veterano do primeiro lançamento espacial americano, em geral impassível, com pouco tempo para esse tipo de superstição mística, espremeu-se em seu volumoso traje espacial para olhar para cima e chorou ao avistar a Terra, incrivelmente bela no céu desprovido de ar. Mas agora Alan e Stu pareciam estar se dedicando às suas tarefas, de modo que Ed ficou com medo de dizer qualquer coisa a respeito do que estava começando a ter a impressão de ser o seu momento supremo da verdade.
Ed sempre fora, de certo modo, o homem esquisito do programa espacial. Aos 41 anos de idade, embora mais jovem do que Shepard, era um dos veteranos da Apollo. Ele representava bem o seu papel, com o cabelo vermelho, rosto largo, aparência típica do meio-oeste e a fala arrastada de um piloto comercial. Mas para os outros, ele era um pouco intelectual: o único entre eles que tinha doutorado e brevê de piloto de provas. A maneira como ele entrara no programa espacial fora decididamente fora do comum. Fazer o doutorado em astrofísica no MIT foi a maneira pela qual ele achou que se tornaria indispensável - foi dessa maneira que deliberada- mente havia traçado o seu caminho em direção à NASA - e apenas depois lhe ocorreu usar as horas de voo que somava no exterior para se qualificar. Não obstante, Ed era muito eficiente quando se tratava de voar. Como todos os outros companheiros, ele praticava no circo voador de Chuck Yeager no Deserto de Mojave, levando os aviões a fazerem manobras para as quais não tinham sido projetados. Em certa ocasião, chegara até a ser o instrutor. Mas Ed gostava de pensar em si mesmo mais como explorador do que como piloto de provas: uma espécie de buscador da verdade dos dias de hoje. Sua atração pela ciência lutava a todo tempo com o ardente fundamentalismo batista de sua juventude. Não parecia ter sido por acaso que ele fora criado em Roswell, Novo México, onde alienígenas teriam supostamente sido vistos pela primeira vez - apenas a um quilômetro e meio mais da casa de Robert Goddard, o pai da astronáutica. A ciência e a espiritualidade coexistiam nele, disputando a primazia, mas Ed desejava que elas de algum modo apertassem as mãos e fizessem as pazes.
Havia outra coisa que ele se abstivera de contar aos seus companheiros na Apollo. Mais tarde naquela mesma noite, enquanto Alan e Stu dormiam em suas redes, Ed silenciosamente retomou o que fora uma experiência contínua durante toda a jornada para a Lua e depois em direção à terra. Nos últimos tempos, ele andara se envolvendo em experiências com a consciência e a percepção extra-sensorial (PES), dedicando algum tempo ao estudo do trabalho do dr. Joseph B. Rhine, um biólogo que conduzia muitas experiências sobre a natureza extra-sensorial da consciência humana. Dois dos seus mais recentes amigos eram médicos que tinham realizado experiências dignas de crédito acerca da natureza da consciência. Juntos, haviam compreendido que a viagem de Ed à Lua estava lhes oferecendo a oportunidade única de verificar se a telepatia humana poderia ocorrer em distâncias maiores do que as do laboratório do dr. Rhine. Eles estavam diante de uma oportunidade raríssima de constatar se esse tipo de comunicação poderia se estender para além de quaisquer distâncias possíveis na Terra.
Quarenta e cinco minutos depois do início do período de sono, como fizera nos dois dias de viagem para a Lua, Ed pegou uma pequena lanterna portátil e, no papel de sua prancheta, copiou alguns números de maneira aleatória, cada um dos quais correspondia aos famosos símbolos Zener do dr. Rhine - quadrado, círculo, cruz, estrela e par de linhas onduladas. Então, Ed se concentrou intensamente neles, de forma metódica, de um em um, tentando "transmitir" as suas escolhas aos colegas na Terra. Mesmo estando extremamente estimulado pela experiência, ele a guardou para si mesmo. Tentara certa vez ter uma conversa com Alan sobre a natureza da consciência, mas não era muito próximo de seu chefe e aquele não era o tipo de assunto que animava os outros tanto quanto ele. Alguns dos astronautas tinham pensado em Deus enquanto estavam no espaço, e todo mundo no programa espacial sabia que eles estavam procurando alguma coisa nova a respeito da maneira como o Universo funcionava. Mas se Alan e Stu soubessem que Ed estava tentando transmitir pensamentos para pessoas na Terra, teriam achado que ele era ainda mais excêntrico do que já imaginavam.
Ed encerrou a experiência da noite e faria outra na noite seguinte, mas depois do que lhe acontecera mais cedo, dificilmente parecia necessário repeti-las; ele tinha agora a sua própria convicção interior de que tudo era verdade. As mentes humanas estavam interconectadas, assim como estavam ligadas a tudo o mais neste mundo e em todos os outros mundos. A sua parte intuitiva aceitava esse fato, mas para o cientista que havia dentro dele isso não era o bastante. Nos 25 anos seguintes ele se voltaria para a ciência esperando que ela lhe explicasse exatamente o que lhe havia acontecido naquela viagem.
A exploração do espaço interior se revelaria infinitamente mais longa e difícil do que aterrissar na Lua ou vasculhar a Cratera do Cone.
 
Edgar Mitchell voltou para casa em segurança. Nenhuma outra exploração física na Terra poderia se comparar com uma viagem à Lua. Ele deixou a NASA dois anos depois, quando os três últimos voos lunares foram cancelados por falta de recursos financeiros, e foi então que a sua verdadeira jornada teve início. A exploração do espaço interior se revelaria infinitamente mais longa e difícil do que aterrissar na Lua ou vasculhar a Cratera do Cone.
A sua pequena experiência com a PES foi bem-sucedida, indicando que alguma forma de comunicação que desafiava todas as lógicas tinha ocorrido. Ed não conseguira fazer todas as experiências que havia planejado, e foi preciso algum tempo para correlacionar as quatro que ele fizera com as seis sessões de adivinhação que tinham sido realizadas na Terra. Mas quando os quatro conjuntos de dados que Ed reunira durante a viagem de nove dias foram afinal comparados com os de seus colegas na Terra, a correspondência entre eles se revelou significativa, com uma chance em três mil de que tivesse acontecido por acaso.2 Esses resultados estavam de acordo com milhares de experiências semelhantes conduzidas na Terra por Rhine e seus colegas ao longo dos anos.
A fantástica experiência de Edgar Mitchell no espaço deixara minúsculas rachaduras em um grande número de seus sistemas de crença. No entanto, o que mais incomodava Ed a respeito de sua experiência no espaço eram as explicações científicas da biologia, em particular acerca da consciência, que agora lhe parecia impossivelmente redutiva. Apesar do que aprendera na física quântica a respeito da natureza do Universo nos anos que passou no MIT, ele tinha a impressão de que a biologia permanecia atolada em uma visão de mundo com 400 anos de idade. O modelo biológico ainda parecia se basear em uma visão newtoniana clássica da matéria e da energia, de corpos sólidos e separados que se movimentam de maneira previsível no espaço vazio, e em uma concepção cartesiana do corpo como sendo separado da alma, ou da mente. Nada nesse modelo poderia refletir com precisão a verdadeira complexidade de um ser humano, de sua relação com o seu mundo ou, mais particularmente, com a sua consciência; os seres humanos e as suas partes ainda eram tratados, para todos os efeitos, como máquinas.
A maioria das explicações biológicas dos grandes mistérios das coisas vivas tentam compreender o todo desmembrando-o em partes cada vez mais microscópicas. O corpo supostamente assume a sua forma devido às informações genéticas, à síntese da proteína e da mutação cega. De acordo com os neurocientistas da época, a consciência residia no córtex cerebral - o resultado de uma simples mistura de substâncias químicas com as células cerebrais. As substâncias químicas eram responsáveis pela televisão ligada em nosso cérebro, e também por "aquilo" a que assistimos nela.3 Conhecemos o mundo por causa das complexidades do nosso mecanismo.
A biologia moderna não acredita em um mundo que seja essencialmente indivisível.
Em seu trabalho de física quântica no MIT, Ed Mitchell aprendera que no nível subatômico, a visão newtoniana, ou clássica - que diz que tudo funciona de maneira previsível, confiável e portanto mensurável - havia muito tinha sido descartada em favor das teorias quânticas, que sustentam que o Universo e a forma como ele funciona não são tão comportados quanto os cientistas costumavam imaginar.
A matéria, em seu nível mais fundamental, não poderia ser dividida em unidades que existem de modo independente, nem mesmo ser plenamente descrita. As partículas subatômicas não eram pequenos objetos sólidos como bolas de bilhar, mas pacotes de energia que não poderiam ser quantificados ou compreendidos em si mesmos com exatidão. Ao contrário, eles eram esquizofrênicos, às vezes se comportando como partículas — uma coisa determinada e confinada a um pequeno espaço - e às vezes como onda - algo vibrante e mais difuso espalhado sobre uma grande região de espaço e do tempo. E em outras ocasiões se comportava simultaneamente como onda e partícula. As partículas quânticas também eram onipresentes. Por exemplo, ao passar de um estado de energia para outro, os elétrons pareciam estar experimentando ao mesmo tempo todas as novas órbitas possíveis, como alguém que deseja comprar uma casa e esteja tentando morar em todas as casas do quarteirão no mesmo instante para escolher em qual irá por fim se instalar. E nada era certo. Não havia localizações definidas, apenas a possibilidade de que um elétron, digamos, poderia estar em determinado lugar, nenhuma ocorrência garantida, mas apenas a probabilidade de que aquilo pudesse acontecer. Nesse nível de realidade, não se tinha certeza de nada; os cientistas precisavam ficar satisfeitos com o fato de poder apostar nas possibilidades. O melhor que jamais poderia ser calculado era a probabilidade de que, quando você fizesse uma medida, obteria determinado resultado em certa percentagem do tempo. Os relacionamentos de causa e efeito não mais eram válidos no nível subatômico. Átomos que pareciam estáveis poderiam, de repente, sem nenhuma causa aparente, experimentar um distúrbio interior; os elétrons, sem qualquer motivo, decidem passar de um estado de energia para outro. Depois de observar cada vez mais atentamente a matéria, ela já não era mais matéria, não era uma coisa sólida que você poderia tocar ou descrever, e sim uma grande quantidade de eus experimentais, todos se exibindo ao mesmo tempo. Em vez de um Universo de certeza estática, no nível mais fundamental da matéria, o mundo e os seus relacionamentos eram incertos e imprevisíveis, um estado de puro potencial, de infinitas possibilidades.
Os cientistas levavam em consideração uma conexão universal no Universo, mas somente no mundo quântico, ou seja, na esfera das coisas inanimadas, e não das vivas. A física quântica descobrira uma estranha propriedade, chamada "não-localidade", no mundo subatômico. Ela se refere à capacidade de uma entidade quântica, como um elétron individual, influenciar instantaneamente outra partícula quântica a distância, mesmo sem ter ocorrido nenhuma troca de força ou energia. Ela indicava que quando as partículas quânticas entram em contato umas com as outras, elas mantêm uma ligação mesmo quando separadas, de modo que as ações de uma sempre influenciarão nas da outra, não importa o quanto se separem. Albert Einstein desacreditou essa "misteriosa ação a distância", que foi uma das principais razões pelas quais ele desconfiava da mecânica quântica, mas esse fato tem sido decididamente confirmado por uma série de físicos desde 1982.4
A não-localidade abalou os alicerces da física. O assunto não mais poderia ser examinado em separado. As ações não precisavam ter uma causa observável em um espaço observável. O axioma mais fundamental de Einstein não estava correto: em certo nível da matéria, as coisas podiam viajar mais rápido do que a velocidade da luz. As partículas subatômicas não encerravam nenhum significado enquanto entidades isoladas, podendo apenas ser compreendidas por intermédio de seus relacionamentos. O mundo, em sua essência básica, existia como uma rede complexa de relacionamentos interdependentes, para sempre indivisíveis.
Talvez o componente mais essencial desse Universo interligado fosse a consciência viva que o observava. Na física clássica, o experimentador era considerado uma entidade separada, um observador silencioso atrás do vidro, tentando entender um Universo que seguia adiante, quer ele o estivesse observando, quer não. A física quântica, contudo, descobriu que o estado de todas as possibilidades de qualquer partícula quântica colapsava em uma entidade determinada assim que era observada ou quando era feita uma medição. Para explicar esses estranhos eventos, os físicos quânticos haviam postulado que existia um relacionamento participativo entre o observador e o objeto observado — essas partículas só poderiam ser consideradas como "provavelmente" existindo no espaço e no tempo até serem "perturbadas", e o ato de serem observadas e medidas as obrigava a assumir um estado definido - um ato similar à solidificação de uma substância gelatinosa. Essa espantosa observação também teve implicações devastadoras na interpretação da natureza da realidade. Ela sugeria que a consciência do observador conferia vida ao objeto observado. Nada no Universo existia como uma "coisa" efetiva independentemente da nossa percepção dela. Criamos nosso mundo a cada minuto de cada dia.
Na opinião de Ed, havia um paradoxo fundamental no fato de os físicos desejarem que acreditássemos que os galhos e as pedras continham conjuntos de regras físicas diferentes das partículas atômicas que existiam dentro deles, que deveria haver uma regra para as coisas pequenas e outra para as grandes, uma regra para as coisas vivas, e outra para as inertes. As leis clássicas eram sem dúvida úteis para as propriedades fundamentais do movimento, para descrever como o esqueleto nos sustenta ou como o pulmão respira, como o coração bate ou os músculos carregam grandes pesos. E muitos dos processos básicos do corpo, como a alimentação, a digestão, o sono e a função sexual, são de fato governados por leis físicas.
Mas nem a física clássica ou a biologia eram capazes de explicar questões fundamentais, por exemplo: por que somos capazes de pensar, por que as células se organizam da maneira como o fazem, como muitos processos moleculares ocorrem praticamente de modo instantâneo, por que os braços se desenvolvem como braços e as pernas como pernas, embora tenham os mesmos genes e proteínas, por que contraímos câncer, por que esta nossa máquina consegue milagrosamente curar a si mesma, e até mesmo o que é o conhecimento, como sabemos o que sabemos. Os cientistas talvez conhecessem em detalhes os parafusos, os pinos, as dobradiças e vários maquinismos, mas nada sabiam a respeito da força que prove energia para a máquina. Eles conseguiam tratar das mais minúsculas estruturas mecânicas do corpo, mas mesmo assim revelavam-se ignorantes a respeito dos mistérios mais fundamentais da vida.
Caso fosse verdade que as leis da mecânica quântica também se aplicavam ao mundo como um todo, e não apenas ao mundo subatômico, à biologia e não só ao mundo da matéria, todo o paradigma da ciência biológica era imperfeito ou estava incompleto. Assim como as teorias de Newton haviam com o tempo sido aperfeiçoadas pelos teóricos quânticos, talvez os próprios Heisenberg e Einstein estivessem errados ou apenas parcialmente certos. Se a teoria quântica fosse aplicada à biologia em maior escala, seríamos encarados mais como uma rede complexa de campos de energia em uma espécie de interação dinâmica com os nossos sistemas celulares químicos. O mundo existiria como uma matriz de inter-relação indivisível, exatamente como Ed experimentara no espaço cósmico. O que estava faltando na biologia clássica era uma explicação para o princípio organizador - para a consciência humana.
Ed começou a devorar livros a respeito de experiências religiosas, do pensamento oriental e da pequena evidência científica que existia sobre a natureza da consciência. Iniciou pesquisas preliminares com uma série de cientistas de Stanford, criou o Institute of Noetic Sciences (uma organização sem fins lucrativos cujo papel era financiar esse tipo de pesquisa) e começou a reunir, em um livro, trabalhos científicos sobre a consciência. Em pouco tempo, Ed não conseguia pensar em mais nada, e o que se tornara uma obsessão destruiu o seu casamento.
O trabalho dele talvez não tenha acendido uma chama revolucionária, mas ele com certeza a alimentou. Ilhas de uma silenciosa revolução estavam germinando nas mais renomadas universidades do planeta, contrárias à visão de mundo de Newton e de Darwin, ao dualismo na física e à atual perspectiva da percepção humana. Ao longo de sua pesquisa, Ed começou a entrar em contato com cientistas com esplêndidas credenciais em muitas das grandes e respeitáveis universidades, como Yale, Stanford, Berkeley e Princeton, que estavam fazendo descobertas que simplesmente não se encaixavam na concepção convencional.
Ao contrário de Edgar, esses cientistas não haviam passado por uma epifania para chegar a uma nova visão do Universo. O que aconteceu foi que, no decurso de seus trabalhos, eles se depararam com resultados científicos que eram pinos quadrados que tentavam se encaixar no buraco redondo da teoria científica consagrada, e por mais que tentassem introduzir os pinos no lugar — e, em muitos casos, os cientistas de fato queriam que eles se encaixassem - estes resistiam obstinadamente. Quase todos os cientistas haviam chegado por acidente às suas conclusões e, como se tivessem ido parar na estação de trem errada, quando se viam lá, concluíam que a única possibilidade deles era saltar do trem e explorar o novo território. O verdadeiro explorador dá seguimento à exploração mesmo quando ela o conduz a um lugar que não estava nos planos.
A mais importante qualidade comum a todos esses pesquisadores era a simples disposição de interromper temporariamente a descrença e se abrir à verdadeira descoberta, mesmo que isso significasse desafiar a ordem existente das coisas, indispondo-se com colegas ou se tornando vulneráveis à censura e à ruína profissional. Ser um revolucionário na ciência hoje em dia significa flertar com o suicídio profissional. Por mais que a área afirme encorajar a liberdade de experimentação, a estrutura da ciência como um todo, com seu sistema de subvenção altamente competitivo, aliada ao sistema de publicações e de revisão realizada por especialistas da área, chamada de revisão por pares, depende amplamente de que as pessoas se sujeitem à consagrada visão científica do mundo. O sistema tende a encorajar os profissionais a realizarem experiências cujo propósito seja confirmar a visão existente das coisas, ou a desenvolver de maneira mais detalhada a tecnologia para a indústria, em vez de estimular a verdadeira inovação.5
Todos aqueles que trabalharam nessas experiências tinham a sensação de que estavam beirando algo que iria transformar tudo que conhecíamos a respeito da realidade e dos seres humanos, mas na época eles eram apenas cientistas pioneiros que trilhavam seus caminhos sem uma bússola. Vários cientistas que trabalhavam de forma independente tinham resolvido uma parte isolada do quebra-cabeça e estavam com medo de comparar suas anotações. Não havia uma linguagem comum porque o que estavam descobrindo parecia desafiar a linguagem.
Mesmo assim, quando Mitchell entrou em contato com eles, o trabalho isolado de cada um começou a se aglutinar em uma teoria alternativa da evolução, da consciência humana e da dinâmica de todas as coisas vivas. Ela oferecia a melhor perspectiva de uma visão unificada do mundo baseada na experimentação efetiva e em equações matemáticas, e não apenas na teoria. O principal papel de Ed foi fazer apresentações, financiar parte da pesquisa e, por meio de sua disposição para usar sua condição de celebridade como herói nacional, para tornar público esse trabalho, convencer os cientistas de que não estavam sozinhos.
O trabalho dele convergia para um único ponto: o eu tinha um campo de influência no mundo e vice- versa. Todos esses cientistas também estavam de acordo em outra questão: as experiências que estavam sendo realizadas fincaram uma estaca no coração da teoria científica existente.
 
(Lynne McTaggart  -  O CAMPO, Em busca da força secreta do universo)
 NOTAS:
1. Para o relato da viagem do dr. Mitchell, recorri a E. Mitchell, The Way of the Explorer: An Apollo Astronaut's Journey Through the Material and MysticalWorlds (G. P. Putnam, 1996): 61; M. Light, FullMoon (Londres: Jonathan Cape, 1999); uma visita a uma exposição de fotografias lunares (Londres: Tate Gallery, novembro de 1999); entrevistas pessoais com o dr. Mitchell (verão e outono de 1999); T. Wolfe, The Right Sft#(Londres: Jonathan Cape, 1980); e A. Chaikin, A Man on the Moon (Harmondsworth: Penguin, 1994).
2. Mitchell, Way of the Explorer. 61. Os resultados do dr. Mitchell foram publicados no Journal ofParapsychology, junho de 1971.
3. D. Loye, An Arrow Through Chãos (Rochester, Vt: Park Street Press, 2000).
4. A não-localidade foi considerada comprovada por experiências realizadas por Alain Aspect e seus colegas em 1982 em Paris.
5. M. SchifF, The Memory ofWater: Homeopathy and the Battle of Ideas in the New Science (Thorsons, 1995).

publicado às 11:18


O ópio do povo

por Thynus, em 05.05.17
Ao contrário do que imaginavam os livres-pensadores, agnósticos e ateus dos séculos XIX e XX, na era pós-moderna a religião não está morta e enterrada nem foi posta no desvão das coisas imprestáveis: está viva e ativa, ocupando um lugar central na atualidade.

Não há como saber, evidentemente, se o fervor dos crentes e praticantes das diversas religiões existentes no mundo aumentou ou diminuiu. Mas ninguém pode negar a presença que o tema religioso tem na vida social, política e cultural contemporânea, provavelmente igual ou superior à que tinha no século XIX, quando as lutas intelectuais e cívicas favoráveis ou contrárias ao laicismo eram preocupação central em grande número de países de ambos os lados do Atlântico.

Para começar, o grande protagonista da política atual, o terrorista suicida, visceralmente ligado à religião, é um subproduto da versão mais fundamentalista e fanática do islamismo. O combate da Al-Qaeda e seu líder, o finado Osama bin Laden, não devemos esquecer, é acima de tudo religioso, ofensiva purificadora contra os maus muçulmanos e renegados do islã, assim como contra os infiéis, nazarenos (cristãos) e degenerados do Ocidente encabeçados pelo Grande Satã, os Estados Unidos. No mundo árabe a confrontação que mais violências gerou tem caráter inequivocamente religioso, e o terrorismo islamita fez até agora mais vítimas entre os próprios muçulmanos que entre os seguidores de outras religiões. Principalmente se levarmos em conta o número de iraquianos mortos ou mutilados por obra dos grupos extremistas xiitas e sunitas, bem como os assassinados no Afeganistão pelos talibãs, movimento fundamentalista nascido nos madraçais ou escolas religiosas afegãs e paquistanesas, que, assim como a Al-Qaeda, nunca vacilou em assassinar muçulmanos que não compartilhem seu puritanismo fundamentalista.

As divisões e os conflitos diversos que percorrem as sociedades muçulmanas não contribuíram em nada para atenuar a influência da religião na vida dos povos, e sim para exacerbá-la. Em todo caso, não é o laicismo que ganhou terreno; ao contrário, em países como o Líbano e a Palestina, os focos laicistas encolheram nos últimos anos com o crescimento, como forças políticas, do Hezbolá (“Partido de Deus”) libanês e do Hamás, que obteve o controle da Faixa de Gaza em eleições limpas. Esses partidos, assim como o Jihad Islâmico da Palestina, têm origem fundamentalmente religiosa. E, nas primeiras eleições livres realizadas na história da Tunísia e do Egito, a maioria dos votos favoreceu os partidos islâmicos (mais moderados).

Enquanto isso ocorre no seio do islamismo, não se pode dizer que a convivência entre as diversas denominações, igrejas e seitas cristãs seja sempre pacífica. Na Irlanda do Norte a luta entre a maioria protestante e a minoria católica, agora interrompida (oxalá para sempre), deixou uma espantosa quantidade de mortos e feridos pelas ações criminosas dos extremistas de ambos os lados. Também nesse caso o conflito político entre unionistas e independentistas foi acompanhado por um antagonismo religioso simultâneo e mais profundo, como entre as facções adversárias do islã.

O catolicismo vive grandes conflitos em seu seio. Até há alguns anos, o mais intenso era entre os tradicionalistas e os progressistas promotores da Teologia da Libertação, luta que, depois da entronização de dois pontífices da linha conservadora — João Paulo II e Bento XVI — parece ter-se resolvido, por enquanto, com o encurralamento (não a derrota) desta última tendência. Agora, o problema mais agudo enfrentado pela Igreja católica é a revelação de uma poderosa tradição de violações e pedofilia em colégios, seminários, albergues e paróquias, truculenta realidade sugerida havia anos por indícios e suspeitas que, durante muito tempo, a Igreja conseguiu silenciar. Mas, nos últimos anos, em vista de ações e denúncias judiciais das próprias vítimas, esses abusos sexuais foram vindo à tona em tão grande número que não se pode falar de casos isolados, mas sim de práticas muito disseminadas no espaço e no tempo. O fato provocou arrepios no mundo inteiro, sobretudo entre os próprios fiéis. O aparecimento de testemunhos de milhares de vítimas em quase todos os países católicos levou a Igreja em certos lugares, como a Irlanda e os Estados Unidos, à beira da falência em vista das elevadíssimas somas que se viu obrigada a gastar na defesa perante os tribunais ou no pagamento por danos e prejuízos causados às vítimas de violações e maus-tratos sexuais cometidos por sacerdotes. Apesar de seus protestos, está evidente que pelo menos parte da hierarquia eclesiástica — as acusações nesse sentido atingiram o próprio pontífice — foi cúmplice dos religiosos pedófilos e violadores, protegendo-os, negando-se a denunciá-los às autoridades e limitando-se a mudá-los de lugar, sem os afastar de suas tarefas sacerdotais, entre as quais o ensino de menores. A severíssima condenação por parte do papa Bento XVI dos Legionários de Cristo, declarando sua reorganização integral, e de seu fundador, o padre Marcial Maciel, mexicano, bígamo, incestuoso, vigarista, estuprador de meninos e meninas, inclusive de um de seus próprios filhos — personagem que parece saído dos romances do marquês de Sade —, não dissipa as sombras que tudo isso lançou sobre uma das mais importantes religiões do mundo.

Todo esse escândalo contribuiu para reduzir a influência da Igreja católica? Eu não me atreveria a afirmá-lo. É verdade que em muitos países fecham-se seminários por falta de noviços, e que, em comparação com o que ocorria antes, esmolas, doações, heranças e legados que a Igreja recebia diminuíram. Mas, num sentido não numérico, seria possível dizer que as dificuldades aguçaram a energia e a militância dos católicos, que nunca estiveram mais ativos em suas campanhas sociais, manifestando-se contra casamentos gays, legalização do aborto, práticas anticoncepcionais, eutanásia e laicismo. Em países como a Espanha a mobilização católica — tanto da hierarquia como das organizações seculares da Igreja —, de impressionante amplitude, em alguns momentos atinge tal virulência que de modo algum se poderia considerar tratar-se de uma Igreja em retirada ou com a corda no pescoço. O poder político e social, exercido na maior parte dos países latino-americanos pela Igreja católica, continua incólume, e a isso se deve o fato de, em matéria de liberdade sexual e de liberação da mulher, os avanços serem mínimos. Na grande maioria de países ibero-americanos, a Igreja católica conseguiu que a “pílula” e a “pílula do dia seguinte” continuem sendo ilegais, assim como toda e qualquer forma de prática anticonceptiva. A proibição, claro, só é efetiva para as mulheres pobres, pois da classe média para cima os anticoncepcionais, assim como o aborto, são amplamente utilizados, apesar da proibição legal.

Coisa parecida pode ser dita das igrejas protestantes. Muitas vezes com o apoio dos católicos, nos Estados Unidos elas tomaram a iniciativa de mobilizar-se para que o ensino escolar se ajuste aos postulados da Bíblia, e seja abolida dos currículos a teoria de Darwin sobre a seleção das espécies e a evolução, sendo esta substituída pelo “criacionismo”, ou “projeto inteligente”, postura anticientífica que, por mais anacrônica e obscurantista que pareça, não é impossível que chegue a prevalecer em certos estados norte-americanos onde a influência religiosa é muito grande no campo político.

Por outro lado, a ofensiva missionária protestante na América Latina e em outras regiões do Terceiro Mundo é enorme, decidida e obteve resultados notáveis. Em muitos lugares afastados e marginalizados, de extrema pobreza, as igrejas evangélicas ocuparam o lugar do catolicismo, que, por falta de sacerdotes ou por esmorecimento do fervor missionário, cedeu terreno às impetuosas igrejas protestantes. Estas têm boa acolhida entre as mulheres por proibir o álcool e pela exigência de dedicação constante às práticas religiosas por parte dos conversos, o que contribui para a estabilidade das famílias e mantém os maridos afastados de bares e bordéis.

A verdade é que em quase todos os conflitos mais sangrentos dos últimos tempos — Israel/Palestina, a guerra dos Bálcãs, as violências de Chechênia, os incidentes da China na região de Xinjiang, onde houve levantes dos uigures, de religião muçulmana, as matanças entre hindus e muçulmanos na Índia, os choques entre esta e o Paquistão etc. — a religião desponta como razão profunda do conflito e da divisão social que está por trás do derramamento de sangue.

O caso da URSS e dos países satélites é instrutivo. Com a derrubada do comunismo, depois de setenta anos de perseguição às igrejas e de pregação ateia, a religião não só não desapareceu, como também renasceu e voltou a ocupar lugar proeminente na vida social. Isso ocorreu na Rússia, onde as igrejas se enchem de novo e os popes reaparecem no mundo oficial e em todos os lugares, e também nas antigas sociedades que viveram sob o controle soviético. Com a queda do comunismo, a religião, ortodoxa ou católica, floresce de novo, o que indica que nunca desapareceu, apenas se manteve adormecida e oculta para resistir ao assédio, contando sempre com o apoio discreto de amplos setores da sociedade. O renascimento da Igreja ortodoxa russa é impressionante. Os governos sob a presidência de Putin e depois de Medvedev começaram a devolver igrejas e propriedades religiosas confiscadas pelos bolcheviques, e está em andamento até mesmo a devolução das catedrais do Kremlin, assim como conventos, escolas, obras de arte e cemitérios que outrora pertenceram à Igreja. Calcula-se que, desde a queda do comunismo, o número de fiéis ortodoxos triplicou em toda a Rússia.

A religião, portanto, não dá sinais de eclipsar-se. Tudo indica que tem vida para muito tempo. Isso é bom ou ruim para a cultura e a liberdade?

Não deixam dúvidas as respostas dadas pelo cientista britânico Richard Dawkins, que publicou um livro contra a religião e em defesa do ateísmo — Deus, um delírio —, nem a do jornalista e ensaísta Christopher Hitchens, autor de outro livro recente, intitulado significativamente Deus não é grande: como a religião envenena tudo. Mas na recente polêmica que ambos protagonizaram atualizando as antigas acusações de obscurantismo, superstição, irracionalidade, discriminação de gênero, autoritarismo e conservadorismo retrógrado contra as religiões, houve também numerosos cientistas, como o prêmio Nobel de Física Charles Tornes (que patrocina a tese do “projeto inteligente”) e publicitários que, com não menos entusiasmo, defenderam suas crenças religiosas e refutaram os argumentos segundo os quais a fé em Deus e a prática religiosa são incompatíveis com a modernidade, o progresso, a liberdade e as descobertas e verdades da ciência contemporânea.

Essa não é uma polêmica que se possa vencer ou perder por meio de razões, porque são sempre antecedidas por um parti pris: um ato de fé. Não há maneira de demonstrar racionalmente que Deus existe ou não existe. Qualquer raciocínio a favor de uma tese tem seu equivalente na tese contrária, de modo que em torno desse assunto qualquer análise ou discussão que queira restringir-se ao campo das ideias e razões deve começar por excluir a premissa metafísica e teológica — existência ou inexistência de Deus — e concentrar-se nos resultados e nas consequências derivados daquela: a função de igrejas e religiões no desenvolvimento histórico e na vida cultural dos povos, assunto que está dentro do verificável pela razão humana.

Um dado fundamental que deve ser levado em conta é que a crença num ser supremo, criador do que existe e em outra vida que antecede e sucede à vida terrena, é parte de todas as culturas e civilizações conhecidas. Não há exceções a essa regra. Todas têm seu deus ou seus deuses e todas confiam em outra vida depois da morte, embora as características dessa transcendência variem infinitamente, segundo o tempo e o lugar. Qual o motivo de os seres humanos de todas as épocas e geografias terem adotado essa crença? Os ateus respondem de imediato: a ignorância e o medo da morte. Homens e mulheres, seja qual for seu grau de informação ou cultura, do mais primitivo ao mais refinado, não se resignam com a ideia da extinção definitiva, de que sua existência seja um fato passageiro e acidental, e, por isso, precisam da existência de outra vida e de um ser supremo que a presida. A força da religião é tanto maior quanto maior for a ignorância de uma comunidade. Quando o conhecimento científico vai limpando as crostas e as superstições da mente humana e substituindo-as por verdades objetivas, toda a construção artificial dos cultos e crenças, com que o primitivo tenta explicar o mundo, a natureza e o mundo oculto, começa a fender-se. Esse é o princípio do fim para essa interpretação mágica e irracional da vida e da morte, o que, ao fim e ao cabo, fará a religião fenecer e evaporar.

Essa é a teoria. Na prática tais coisas não ocorreram nem dão sinal de vir a ocorrer. O desenvolvimento do conhecimento científico e tecnológico foi prodigioso (nem sempre benéfico) desde a época das cavernas e permitiu que o ser humano conhecesse profundamente a natureza, o espaço estelar, seu próprio corpo, investigasse seu passado, travasse batalhas decisivas contra as doenças e elevasse as condições de vida dos povos de maneira inimaginável para nossos ancestrais. Mas, salvo em relação a minorias relativamente pequenas, não conseguiu arrancar Deus do coração dos homens nem extinguir as religiões. O argumento dos ateus é que se trata de um processo ainda em marcha, que o avanço da ciência não se deteve, continua progredindo e, cedo ou tarde, chegará o final desse combate atávico em que Deus e a religião desaparecerão, expulsos da vida dos povos pelas verdades científicas. É difícil aceitar esse artigo de fé dos liberais e progressistas à moda antiga quando o cotejamos com o mundo de hoje, que o desmente em todos os lugares: Deus nos cerca pelos quatro cantos e, mascaradas com disfarces políticos, as guerras religiosas continuam causando à humanidade tantos estragos quantos causaram na Idade Média. Isso não demonstra que Deus existe efetivamente, mas que uma grande maioria de seres humanos, entre os quais muitos técnicos e cientistas de destaque, não se conforma em renunciar a essa divindade que lhe garante alguma forma de sobrevivência depois da morte.

Além do mais, não foi só a ideia da morte, da extinção física, que manteve viva a transcendência ao longo da história. Há também a crença complementar de que, para tornar esta vida suportável, é necessária, indispensável, uma instância superior à terrena, onde se recompense o bem e se castigue o mal, onde haja distinção entre boas e más ações, sejam reparadas as injustiças e crueldades de que somos vítimas e sejam punidos os que as infligem. A realidade é que, apesar de todos os avanços da sociedade desde os tempos antigos em matéria de justiça, não há comunidade humana na qual o grosso da população não tenha o sentimento e a convicção absoluta de que a justiça total não é deste mundo. Todos creem que, por mais equitativa que seja a lei, por mais respeitável que seja o corpo de magistrados encarregados de administrar a justiça, ou por mais honrados e dignos que sejam os governos, a justiça nunca chega a ser uma realidade tangível e ao alcance de todos, que defenda o indivíduo comum, o cidadão anônimo, de abusos, desrespeito e discriminação por parte dos poderosos. Por isso, não é de estranhar que a religião e as práticas religiosas estejam mais arraigadas nas classes e nos setores mais desfavorecidos da sociedade, aqueles que, por sua pobreza e vulnerabilidade, mais sofrem abusos e vexames de todos os tipos que, de modo geral, permanecem impunes. Suporta melhor a pobreza, a discriminação, a exploração e o desrespeito quem acredita que após a morte haverá desagravo e reparação para tudo isso. (Por esse motivo Marx chamou a religião de “ópio do povo”, droga que anestesia o espírito rebelde dos trabalhadores e possibilita que seus senhores vivam tranquilos a explorá-los.)

Outra razão pela qual os seres humanos se aferram à ideia de um deus todo-poderoso e de uma vida ultraterrena é que quase todos desconfiam (uns mais e outros menos) que, caso essa ideia desaparecesse e se instalasse como verdade científica inequívoca que Deus não existe e que a religião nada mais é que um embuste desprovido de substância e realidade, no curto ou longo prazo sobreviriam a barbarização generalizada da vida social, a regressão selvagem à lei do mais forte e a conquista do espaço social pelas tendências mais destrutivas e cruéis que se aninham no homem e, em última instância, são freadas e atenuadas não pelas leis humanas nem pela moral preconizada pela racionalidade dos governantes, e sim pela religião. Em outras palavras, se há algo que ainda possa ser chamado de moral, um corpo de normas de conduta que propiciem o bem, a coexistência na diversidade, a generosidade, o altruísmo, a compaixão e o respeito ao próximo, que rechacem a violência, o abuso, o roubo, a exploração, esse algo é a religião, a lei divina, e não as leis humanas. Desaparecido esse antídoto, a vida iria se tornando aos poucos uma barafunda de selvageria, prepotência e excesso, em que os donos de qualquer forma de poder — político, econômico, militar etc. — se sentiriam livres para cometer todos os roubos concebíveis, dando vazão a seus instintos e apetites mais destrutivos. Se esta vida é a única que temos, se não há nada depois dela e vamos nos extinguir para todo o sempre, por que não tentaríamos aproveitá-la da melhor maneira possível, ainda que isso significasse precipitar nossa própria ruína e semear ao nosso redor as vítimas de nossos instintos desbragados? Os homens se empenham em crer em Deus porque não confiam em si mesmos. E a história demonstra que não deixam de ter razão, pois até agora não demonstramos que somos confiáveis.

Isso não quer dizer, evidentemente, que a vigência da religião garanta o triunfo do bem sobre o mal neste mundo e a eficácia de uma moral que impeça a violência e a crueldade nas relações humanas. Quer dizer apenas que, por pior que ande o mundo, um obscuro instinto leva grande parte da humanidade a pensar que ele iria pior ainda se os ateus e laicos extremados atingissem seu objetivo de erradicar Deus e a religião de nossa vida. Isso só pode ser intuição ou crença (outro ato de fé): não há estatística capaz de provar que é assim ou o contrário. Finalmente, há uma última razão, filosófica ou, mais propriamente, metafísica para tão prolongado arraigamento de Deus e da religião na consciência humana. Ao contrário do que acreditavam os livres-pensadores, nem conhecimento científico nem cultura em geral — muito menos a cultura devastada pela frivolidade — são suficientes para libertar o homem da solidão em que o submerge o pressentimento da inexistência de um além-mundo, de uma vida ultraterrena. Não se trata de medo da morte, de espanto ante a perspectiva da extinção total, mas sim da sensação de desamparo e extravio nesta vida, aqui e agora, que surge no ser humano diante da simples suspeita da inexistência de outra vida, de um além a partir do qual um ser ou alguns seres mais poderosos e sábios que os humanos conheçam e determinem o sentido da vida, da ordem temporal e histórica, ou seja, do mistério dentro do qual nascemos, vivemos e morremos, e de cuja sabedoria possamos nos aproximar o suficiente para entender nossa própria existência de um modo que lhe dê sustentação e justificação. Com todos os seus avanços, a ciência não conseguiu desvendar esse mistério, e é de se duvidar que venha a conseguir. Pouquíssimos seres humanos são capazes de aceitar a ideia do “absurdo existencialista” de estarmos “lançados” aqui no mundo por obra de um acaso incompreensível, um acidente estelar, de nossa vida ser mera casualidade desprovida de ordem e coerência, de tudo o que ocorra ou deixe de ocorrer com ela depender exclusivamente de nossa conduta e vontade e da situação social e histórica em que nos achamos inseridos. Essa ideia, que Albert Camus descreveu em O mito de Sísifo com lucidez e serenidade, da qual extraiu belas conclusões sobre a beleza, a liberdade e o prazer, é capaz de submergir o comum dos mortais na anomia, na paralisia e no desespero.

No ensaio inicial de El hombre y lo divino, “Do nascimento dos deuses”, María Zambrano se pergunta: “Como e por que os deuses nasceram?”. A resposta que ela encontra é ainda anterior e mais profunda que a mera consciência do desamparo, da solidão e da vulnerabilidade por parte do homem primitivo. Na verdade, diz ela, é constitutivo, é uma “necessidade abissal, definidora da condição humana”, sentir diante do mundo aquela “estranheza” que provoca no ser humano um “delírio de perseguição” que só cessa, ou pelo menos se aplaca, quando ele reconhece e sente ao seu redor aqueles deuses cuja existência ele pressentia, que o faziam viver na aflição e no frenesi antes de reconhecê-los e de incorporá-los em sua existência. María Zambrano estuda o caso específico dos deuses gregos, mas suas conclusões valem para todas as civilizações e culturas. Se não fosse assim, pergunta ela mesma, “Por que sempre houve deuses, de diversos tipos, certamente, mas, afinal, deuses?”. A resposta a essa interrogação é dada em outro ensaio do livro, “A marca do paraíso”, e não pode ser mais convincente: “E nos dois pontos extremos que marcam o horizonte humano, o passado perdido e o futuro por criar, resplandece a sede e o anseio de uma vida divina sem deixar de ser humana, uma vida divina que o homem sempre parece ter tido como modelo preliminar, que se foi desenhando através da confusão em imagens variegadas, como um raio de luz pura que se colorisse ao atravessar a turva atmosfera das paixões, da necessidade e do sofrimento”.[María Zambrano, El hombre y lo divino, Barcelona, Círculo de Lectores, Opera Mundi, 1999, p. 145-149 e 429] Nos anos 1960 vivi, em Londres, uma época em que uma nova cultura irrompeu com força e dali se estendeu por boa parte do mundo ocidental, a dos hippies ou flower children. O que ela trouxe consigo de mais novo e chamativo eram a revolução musical, a dos Beatles e dos Rolling Stones, uma nova estética nos trajes, a reivindicação da maconha e de outras drogas, a liberdade sexual, mas, também, o ressurgimento de uma religiosidade que, afastando-se das grandes religiões tradicionais do Ocidente, voltava-se para o Oriente — budismo e hinduísmo, principalmente, e todos os cultos relacionados com eles —, assim como para inúmeras seitas e práticas religiosas primitivas, muitas de origem duvidosa e, às vezes, fabricadas por gurus de meia-tigela e aproveitadores pitorescos. Contudo, por mais que houvesse ingenuidade, modismo e bobagem nessa tendência, o certo é que por trás daquela proliferação de igrejas e crenças exóticas, genuínas ou farsantes, era evidente que os milhares de jovens de todo o mundo que se voltaram para elas e lhes deram vida, ou peregrinaram para Katmandu como outrora seus avós para os Lugares Santos ou os muçulmanos para Meca, mostraram de maneira palpável essa necessidade de vida espiritual e transcendência, de que apenas pequenas minorias ao longo da história se livraram. Não deixa de ser instrutivo, a propósito, que tantos inconformistas e rebeldes contra a primazia do cristianismo tenham sucumbido depois ao feitiço e às prédicas religioso-psicodélicas de personagens como o pai do LSD, Timothy Leary, o Maharishi Mahesh Yogi, santo e guru favorito dos Beatles, ou o profeta coreano dos moonies e da Igreja da Unificação, o reverendo Sun Myung Moon.

Muitos levaram pouquíssimo a sério este ressurgimento de religiosidade superficial, tingido de pitoresco, candura, parafernália cinematográfica e proliferação de cultos e igrejas promovidos por publicidade barulhenta e de mau gosto, como produtos comerciais de consumo doméstico. Mesmo sendo recentes, às vezes grotescamente embusteiras, aproveitando-se da incultura, da ingenuidade e da frivolidade de seus adeptos, nada disso é obstáculo para que tais igrejas prestem a estes algum serviço espiritual e os ajudem a preencher um vazio na vida, tal como ocorre a milhões de outros seres humanos com as igrejas tradicionais. Não se explica de outra maneira o fato de algumas dessas igrejas que surgiram recentemente, como a cientologia fundada por L. Ron Hubbard e favorecida por alguns astros de Hollywood, entre eles Tom Cruise e John Travolta, terem resistido aos ataques que sofreram em países como a Alemanha, onde foi acusada de lavagem cerebral, exploração de menores e constituição de um verdadeiro império econômico internacional. Nada tem de surpreendente o fato de na civilização da pantomima a religião se aproximar do circo e às vezes se confundir com ele.
Para fazer um balanço da função que foi desempenhada pelas religiões ao longo da história humana é imprescindível separar os efeitos que elas produziram no âmbito privado e individual e no público e social. Não devem ser confundidos, pois assim seriam perdidos matizes e fatos fundamentais. É evidente que para o crente e praticante a religião tem uma utilidade, seja ela profunda, antiga e popular, ou contemporânea, superficial e minúscula. Ela lhe permite explicar para si mesmo quem é e o que está fazendo neste mundo, proporciona-lhe uma ordem, uma moral para organizar sua vida e sua conduta, esperança de perenidade depois da morte, consolo para o infortúnio, bem como o alívio e a segurança provenientes do sentimento de ser parte de uma comunidade que comunga crenças, ritos e formas de vida. Sobretudo para quem sofre e é vitimado por abusos, exploração, pobreza, frustração e desgraça, a religião é uma tábua de salvação à qual é possível agarrar-se para não sucumbir ao desespero, que anula a capacidade de reação e resistência ao infortúnio e impele ao suicídio.

Do ponto de vista social há também muitas derivações positivas da religião. No caso do cristianismo, por exemplo, foi uma verdadeira revolução para seu tempo a ampla pregação do perdão, inclusive aos inimigos, que, segundo ensinava Cristo, deviam ser amados tanto quanto os amigos, e a transformação da pobreza em valor moral, que Deus premiaria na outra vida (“os últimos serão os primeiros”), assim como a condenação da riqueza e do rico, feita por Jesus no Evangelho segundo São Mateus (19,24): “É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus.” O cristianismo propôs a fraternidade universal, combatendo os preconceitos e a discriminação entre raças, culturas e etnias e afirmando que todas elas, sem exceção, são filhas de Deus e bem-vindas na casa do Senhor. Embora tenham demorado para abrir caminho e traduzir-se em formas de conduta por parte de Estados e governos, essas ideias e pregações contribuíram para aliviar as formas mais brutais de exploração, discriminação e violência, humanizar a vida no mundo antigo e assentar as bases daquilo que, com o correr do tempo, seria o reconhecimento dos direitos humanos, a abolição da escravatura, a condenação do genocídio e da tortura. Em outras palavras, o cristianismo deu um impulso determinante ao nascimento da cultura democrática. No entanto, ao mesmo tempo que, por um lado, servia a essa causa com a filosofia implícita em sua doutrina, por outro — sobretudo em sociedades que não haviam passado por um processo de secularização — ele seria um dos maiores obstáculos para que a democracia se expandisse e arraigasse. Nisso, não foi diferente de nenhuma outra religião. As religiões só admitem e proclamam verdades absolutas e cada qual rejeita as das outras de maneira categórica. Todas elas aspiram não só a conquistar a alma e o coração dos seres humanos, como também sua conduta. Enquanto foi uma religião das catacumbas, marginal, perseguida, de gente pobre e desvalida, o cristianismo representou uma forma de civilização que contrastava com a barbárie dos pagãos, com suas violências insanas, com seus preconceitos e superstições, com os excessos de sua vida e com sua desumanidade no trato com o outro. Mas, quando se firmou e foi incorporando a suas fileiras as classes dirigentes e passou a cogovernar ou a governar diretamente a sociedade, o cristianismo perdeu o semblante de mansuetude que tinha. No poder, tornou-se intolerante, dogmático, exclusivista e fanático. A defesa da ortodoxia o levou a validar e a cometer violências idênticas ou piores que as infligidas aos primeiros cristãos pelos pagãos, bem como a encabeçar e legitimar guerras e crueldades iníquas contra seus adversários. Sua identificação ou proximidade com o poder o induziu muitas vezes a fazer concessões vergonhosas a reis, príncipes, caudilhos e, em geral, aos poderosos. Se em certas épocas, como o Renascimento, favoreceu o desenvolvimento das artes e das letras — nem Dante nem Piero della Francesca nem Michelangelo teriam sido possíveis sem ela —, a Igreja depois se tornaria, na esfera do pensamento, tão brutalmente repressiva como o foi desde o princípio na esfera da investigação científica, censurando e castigando até mesmo com a tortura e a morte pensadores, cientistas e artistas suspeitos de heterodoxia. As Cruzadas, a Inquisição, o Index são outros tantos símbolos da intransigência, do dogmatismo e da ferocidade com que a Igreja combateu a liberdade intelectual, científica e artística, assim como das duras batalhas que os grandes lutadores precisaram travar pela liberdade nos países católicos. Nos países protestantes houve menos intolerância para com a ciência e uma censura menos estrita para com a literatura e as artes, mas a rigidez não foi menor que nas sociedades católicas no que se refere à família, ao sexo e ao amor. Em ambos os casos, a discriminação da mulher sempre teve a Igreja como cabeça, e em ambos também a Igreja incentivou ou tolerou o antissemitismo.

Só com a secularização a Igreja iria aceitando o fato (ou melhor, resignando-se a ele) de que era preciso dar a César o que era de César e a Deus o que é de Deus. Ou seja, admitir uma divisão estrita entre o espiritual e o temporal, aceitar que sua soberania fosse exercida no primeiro, e que, no segundo, se respeitasse o que fosse decidido por todos os cidadãos, cristãos ou não. Sem esse processo de secularização que separou a Igreja do governo temporal não teria havido democracia, sistema que significa coexistência na diversidade, pluralismo cívico e também religioso, e leis que podem não só não coincidir com a filosofia e a moral cristãs como também discordar delas radicalmente. Durante a Revolução Francesa, entre os setores anarquistas e comunistas da Segunda República Espanhola ou num período importante da Revolução Mexicana e nas Revoluções da Rússia e da China, a secularização da sociedade foi entendida como luta frontal contra a religião até que esta fosse extirpada da sociedade. Incendiaram-se conventos e igrejas, assassinaram-se religiosos e crentes, proibiram-se as práticas litúrgicas, erradicou-se da educação toda e qualquer forma de ensino cristão e houve intensa promoção do ateísmo e do materialismo. Tudo isso foi não só cruel e injusto, mas principalmente inútil. As perseguições tiveram um efeito de poda, pois, após algum tempo, as crenças e as práticas religiosas renasceram com mais viço. França, Rússia e México são na atualidade os melhores exemplos disso.

Secularização não pode significar perseguição, discriminação nem proibição a crenças e cultos, e sim liberdade irrestrita para que os cidadãos exerçam e vivam sua fé sem o menor tropeço, desde que respeitem as leis ditadas pelos parlamentos e pelos governos democráticos. A obrigação destes é garantir que ninguém seja incomodado ou perseguido em razão de sua fé e, ao mesmo tempo, atuar de tal maneira que as leis sejam cumpridas, mesmo que se afastem das doutrinas religiosas. Isso ocorreu em todos os países democráticos em assuntos como divórcio, aborto, controle da natalidade, homossexualismo, casamentos gays, eutanásia, descriminalização das drogas. De maneira geral, a Igreja limitou sua reação a protestos legítimos, como manifestos, comícios, publicações e campanhas destinadas a mobilizar a opinião pública contra as reformas e disposições que ela rejeita, embora haja em seu seio instituições e clérigos extremistas que incentivam as práticas autoritárias da extrema direita.

A preservação do secularismo é requisito indispensável à sobrevivência e ao aperfeiçoamento da democracia. Para saber disso basta voltar o olhar para as sociedades onde o processo de secularização é nulo ou mínimo, como ocorre na grande maioria dos países muçulmanos. A identificação do Estado com o islamismo — os casos extremos são agora a Arábia Saudita e o Irã — foi um obstáculo insuperável para a democratização da sociedade e serviu — serve ainda, embora pareça que finalmente teve início um processo emancipador no mundo árabe — para preservar sistemas ditatoriais que impedem a livre coexistência das religiões e exercem controle abusivo e despótico sobre a vida privada dos cidadãos, punindo-os com dureza (que pode chegar à prisão, à tortura e à execução) quando eles se afastam das prescrições da única religião tolerada. Não era muito diferente a situação das sociedades cristãs antes da secularização e assim continuaria sendo se esse processo não tivesse ocorrido. Catolicismo e protestantismo reduziram sua intolerância e aceitaram coexistir com outras religiões não porque sua doutrina fosse menos totalizadora e intolerante que a do islamismo, mas porque foram a tanto forçados pelas circunstâncias, por alguns movimentos e pela pressão social que puseram a Igreja na defensiva e a obrigaram a adaptar-se aos costumes democráticos. Não é verdade que o islamismo seja incompatível com a cultura da liberdade, não menos que o cristianismo, em todo caso. A diferença é que nas sociedades cristãs, com o impulso de movimentos políticos inconformistas e rebeldes e de uma filosofia laica, houve um processo que obrigou a religião a privatizar-se, a desestatizar-se, e com isso a democracia prosperou. Na Turquia, graças a Mustafa Kemal Atatürk, a sociedade viveu um processo de secularização (impulsionado por métodos violentos) e, há alguns anos, apesar de a maioria dos turcos ser de confissão muçulmana, a sociedade foi-se abrindo para a democracia muito mais do que no resto dos países islâmicos.

O laicismo não é contrário à religião; é contrário à transformação da religião em obstáculo para o exercício da liberdade e em ameaça ao pluralismo e à diversidade que caracterizam as sociedades abertas. Nestas, a religião pertence à esfera privada e não deve usurpar as funções do Estado, que deve manter-se laico precisamente para evitar no âmbito religioso o monopólio que é sempre fonte de abuso e corrupção. A única maneira de exercer a imparcialidade que garante o direito de todos os cidadãos a professar a religião que bem queiram ou a rejeitá-las todas é ser laico, ou seja, não subordinado a instituição religiosa alguma em seus deveres funcionais. Enquanto se mantiver no âmbito privado, a religião não será um perigo para a cultura democrática, e sim seu alicerce e complemento insubstituível.

Aqui entramos num assunto difícil e controvertido, sobre o qual não há unanimidade de opinião entre os democratas, nem mesmo entre os liberais. Por isso devemos avançar nesse terreno com prudência, evitando as minas com que está semeado. Assim como tenho a firme convicção de que o laicismo é insubstituível numa sociedade realmente livre, com não menos firmeza acredito que, para ser livre, é igualmente necessário que na sociedade prospere uma intensa vida espiritual — o que, para a grande maioria, significa vida religiosa —, pois, caso contrário, as leis e as instituições, por mais bem concebidas que sejam, não funcionam cabalmente e muitas vezes se deterioram ou corrompem. A cultura democrática não é feita apenas de instituições e leis que garantam equidade, igualdade perante a lei, igualdade de oportunidades, mercados livres, justiça independente e eficaz, o que implica juízes probos e capazes, pluralismo político, liberdade de imprensa, sociedade civil forte, direitos humanos. É feita também e sobretudo da convicção arraigada entre os cidadãos de que esse sistema é o melhor possível e da vontade de fazê-lo funcionar. Isso não pode ser realidade sem valores e paradigmas cívicos e morais profundamente ancorados no corpo social, algo que, para a imensa maioria de seres humanos, é indistinguível das convicções religiosas. É verdade que desde os séculos XVIII e XIX, no mundo ocidental, houve entre os setores de livres-pensadores (sempre minoritários) cidadãos exemplares cujo agnosticismo ou ateísmo não foi obstáculo para condutas cívicas irrepreensíveis, marcadas por honestidade, respeito à lei e solidariedade social. Foi o que ocorreu na Espanha, durante as primeiras décadas do século XX com tantos mestres e mestras que, imbuídos da ideologia anarquista, graças à sua moral laica, de alto civismo, se transformaram em verdadeiros missionários sociais que, fazendo grandes sacrifícios pessoais e levando vida espartana, se esforçaram por alfabetizar e formar os setores mais empobrecidos e marginalizados da sociedade. Poderiam ser citados muitos exemplos parecidos. Mas, feita esta ressalva, o certo é que essa moral laica só encarnou em grupos reduzidos. Ainda continua sendo realidade indiscutível o fato de que, para as grandes maiorias, é a religião a fonte primeira e maior dos princípios morais e cívicos que dão sustento à cultura democrática. E de que, quando a religião começa a esmorecer, a perder dinamismo e crédito e a tornar-se superficial e frívola, mero ornamento social (como ocorre em nossos dias nas sociedades livres, tanto do Primeiro como do Terceiro Mundo), o resultado é prejudicial e pode chegar a ser trágico para o funcionamento das instituições democráticas.

Isso ocorre em todos os estratos da vida social, mas é sem dúvida na economia que o fenômeno se torna mais visível.

A Igreja católica e o capitalismo nunca se deram bem. Já nos primórdios da Revolução Industrial inglesa, que disparou o desenvolvimento econômico e a economia de mercado, os papas lançaram duros anátemas, em encíclicas e sermões, contra um sistema que, a seu ver, alimentava o apetite por riquezas materiais, o egoísmo e o individualismo, acentuava as diferenças econômicas e sociais entre ricos e pobres e afastava os seres humanos da vida espiritual e religiosa. Há um elemento de verdade nessas críticas, mas elas perdem capacidade persuasiva se situadas em contexto histórico e social mais amplo, o da transformação positiva que para o conjunto dos seres humanos representaram o regime da propriedade privada e a economia livre, em que empresas e empresários concorram de acordo com regras claras e equitativas pela satisfação das necessidades dos consumidores. A esse sistema se deve o fato de boa parte da humanidade ter-se livrado daquilo que Karl Marx chamava de “cretinismo da vida rural”, de ter havido progressos na medicina em particular e nas ciências em geral e de terem se elevado os níveis de vida de maneira vertiginosa em todas as sociedades abertas, enquanto as cativas definhavam no regime patrimonialista e mercantilista que conduzia à pobreza, à escassez e à miséria para a maioria da população e ao luxo e à opulência para a cúpula. O mercado livre, sistema não superado e insuperável para a atribuição de recursos, produziu o surgimento das classes médias, que conferem estabilidade e pragmatismo políticos às sociedades modernas, e propiciou uma vida digna à imensa maioria dos cidadãos, algo que não ocorreu antes na história da humanidade.

No entanto, é verdade que esse sistema de economia livre acentua as diferenças econômicas e aumenta o materialismo, o apetite consumista, a posse de riquezas e as atitudes agressivas, beligerantes e egoístas, que, se não encontrarem nenhum freio, poderão chegar a provocar transtornos profundos e traumáticos na sociedade. De fato, a recente crise financeira internacional, que fez todo o Ocidente cambalear, tem como origem a cobiça desenfreada de banqueiros, investidores e financistas que, obcecados pela sede de multiplicar suas receitas, transgrediram as regras do jogo do mercado, enganaram, trapacearam e precipitaram um cataclismo econômico que arruinou milhões de pessoas no mundo.

Por outro lado, nas atividades criativas e, digamos, não práticas, o capitalismo provoca uma confusão total entre preço e valor, de que este último sempre sai prejudicado, algo que, no curto ou longo prazo, leva à degradação da cultura e do espírito, que é a civilização do espetáculo. O mercado livre fixa os preços dos produtos em função da oferta e da demanda, e por isso em quase todos os lugares, inclusive nas sociedades mais cultas, obras literárias e artísticas de altíssimo valor ficam diminuídas e são deixadas de lado, em virtude de sua dificuldade e da exigência de certa formação intelectual e de uma sensibilidade aguçada para serem totalmente apreciadas. Como contrapartida tem-se que, quando o gosto do grande público determina o valor de um produto cultural, é inevitável que, em muitíssimos casos, escritores, pensadores e artistas medíocres ou nulos, mas vistosos e pirotécnicos, espertos na publicidade e na autopromoção ou hábeis em acalentar os piores instintos do público, atinjam altíssimos níveis de popularidade, pareçam ser os melhores à maioria inculta, e suas obras sejam as mais cotadas e divulgadas. Isso, na esfera da pintura, por exemplo, como vimos, levou ao ponto de as obras de verdadeiros embusteiros alcançarem preços vertiginosos, graças às modas e à manipulação do gosto dos colecionadores por galeristas e críticos. Tais coisas induziram pensadores como Octavio Paz a condenar o mercado e a afirmar que ele foi o grande responsável pela bancarrota da cultura na sociedade contemporânea. O tema é amplo e complexo; abordá-lo em todas as suas vertentes nos levaria muito longe da matéria deste capítulo, que é a função da religião na cultura de nosso tempo. Bastará assinalar, porém, que nessa anarquia e nos múltiplos mal-entendidos que a ruptura entre preço e valor significou para os produtos culturais, também influi, tanto quanto o mercado, o desaparecimento das elites, da crítica e dos críticos, que antes estabeleciam hierarquias e paradigmas estéticos, fenômeno que não está relacionado diretamente com o mercado, mas sim com o empenho de democratizar a cultura e pô-la ao alcance de todos.

Todos os grandes pensadores liberais, de John Stuart Mill a Karl Popper, passando por Adam Smith, Ludwig von Mises, Friedrich Hayek, Isaiah Berlin e Milton Friedman, ressaltaram que a liberdade econômica e política só cumpre cabalmente sua função civilizadora, criadora de riqueza e de empregos, defensora do indivíduo soberano, da vigência da lei e do respeito aos direitos humanos, quando a vida espiritual da sociedade é intensa, mantém viva e inspira uma hierarquia de valores respeitada e acatada pelo corpo social. Segundo eles, esse é o melhor modo de fazer desaparecer ou pelo menos atenuar a ruptura entre preço e valor. O grande fracasso e as crises que não dão trégua ao sistema capitalista — corrupção, tráfico de influências, operações mercantilistas para enriquecer transgredindo a lei, cobiça frenética que explica as grandes fraudes de entidades bancárias e financeiras etc. — não se devem a falhas constitutivas de suas instituições, mas do desmonte desse suporte moral e espiritual encarnado na vida religiosa que funciona como freio e corretivo permanente para manter o capitalismo dentro de certas normas de honestidade, respeito ao próximo e à lei. Quando essa estrutura de caráter ético, invisível mas influente, desaba e se desvanece para grandes setores sociais, sobretudo aqueles que têm maior ingerência e responsabilidade na vida econômica, propaga-se a anarquia, e a economia das sociedades livres começa a ser infectada por aqueles elementos perturbadores que provocam a crescente desconfiança num sistema que parece funcionar só em benefício dos mais poderosos (ou dos mais malandros) e em prejuízo dos cidadãos comuns, carentes de fortuna e privilégios. A religião, que, no passado, deu ao capitalismo uma grande consistência nas consciências, como percebeu Max Weber em seu ensaio sobre a religião protestante e o desenvolvimento do capitalismo, ao banalizar-se até desaparecer em muitas camadas da sociedade moderna — nas elites, precisamente —, contribuiu para provocar essa “crise do capitalismo” de que se fala cada vez mais, ao mesmo tempo que, com o desaparecimento da URSS e a transformação da China em país capitalista autoritário, o socialismo pareceu, para todos os efeitos práticos, ter chegado ao final de sua história.

A frivolidade desarma moralmente uma cultura descrente. Mina seus valores e infiltra em seu exercício práticas desonestas e, às vezes, abertamente delituosas, sem que haja para elas nenhum tipo de sanção moral. E é ainda mais grave se quem delinque — por exemplo, invadindo a privacidade de alguma pessoa famosa para exibi-la em situação embaraçosa — é premiado com o sucesso midiático e chega a desfrutar dos 15 minutos de fama prognosticados por Andy Warhol para todo o mundo em 1968. Exemplo recentíssimo do que digo é o simpático embusteiro italiano Tommaso Debenedetti, que durante anos publicou em jornais de seu país “entrevistas” com escritores, políticos e religiosos (inclusive o papa), frequentemente reproduzidas em jornais estrangeiros. Todas eram falsas, inventadas de cabo a rabo. Eu mesmo fui um de seus “entrevistados”. Quem descobriu foi o romancista norte-americano Philip Roth, que não se reconheceu em algumas declarações a ele atribuídas pelas agências jornalísticas. Começou a seguir a pista da notícia, até dar com o falsário. Aconteceu alguma coisa a Tommaso Debenedetti por ter enganado jornais e leitores com as 79 colaborações falsas detectadas até agora? Punição, nenhuma. A revelação da fraude o tornou um herói midiático, um maroto audaz e inofensivo; sua imagem e sua façanha deram volta ao mundo, como de um herói de nosso tempo. E o fato é que ele o é, embora seja triste reconhecer. Ele se defende com este belo paradoxo: “Menti, mas só para poder dizer uma verdade.” Qual? Que vivemos num tempo de fraudes, em que o delito, se for divertido e entretiver o grande número, será perdoado.

Dois assuntos tornaram atual o tema da religião nos últimos anos e provocaram acaloradas polêmicas nas democracias avançadas. O primeiro é se nos colégios públicos administrados pelo Estado e financiados por todos os contribuintes deve ser excluída qualquer forma de ensino religioso e deixar que este se restrinja exclusivamente ao âmbito privado. E o segundo é se nas escolas deve ser proibido o uso de véu, burca e hijab por parte das meninas e das jovens.

Abolir inteiramente toda e qualquer forma de ensino religioso nos colégios públicos seria formar as novas gerações com uma cultura deficiente e privá-las de um conhecimento básico para entender sua história, sua tradição e desfrutar da arte, da literatura e do pensamento do Ocidente. A cultura ocidental está impregnada de ideias, crenças, imagens, festividades e costumes religiosos. Mutilar este riquíssimo patrimônio da educação das novas gerações equivaleria a entregá-las com pés e mãos atados à civilização do espetáculo, ou seja, à frivolidade, à superficialidade, à ignorância, à bisbilhotice e ao mau gosto. Um ensino religioso não sectário, objetivo e responsável, no qual se explique o papel hegemônico que foi desempenhado pelo cristianismo na criação e na evolução da cultura do Ocidente, com todas as divisões e cismas, guerras, incidências históricas, sucessos, excessos, santos, místicos, mártires e martirizados, com a maneira como tudo isso influiu, para o bem e para o mal, na história, na filosofia, na arquitetura, na arte e na literatura, será indispensável se quisermos que a cultura não degenere no ritmo em que vem degenerando, e que o mundo do futuro não se divida entre analfabetos funcionais e especialistas ignorantes e insensíveis.

O uso do véu ou das túnicas que cobrem parcial ou inteiramente o corpo da mulher não deveria ser objeto de debate numa sociedade democrática. Acaso nela não existe liberdade? Que tipo de liberdade é esse que impediria uma menina ou uma jovem de vestir-se de acordo com as prescrições de sua religião ou com seu capricho? Contudo, não é nada indubitável que o uso do véu ou da burca seja uma decisão livremente tomada pela menina, jovem ou mulher, que os usa. É muito provável que ela os use não por gosto nem por um ato livre e pessoal, mas sim como símbolo da condição que a religião islâmica impõe à mulher, ou seja, de absoluta servidão ao pai ou ao marido. Nessas condições, o véu e a túnica deixam de ser apenas peças de vestuário e se transformam em emblemas da discriminação que cerca a mulher ainda em boa parte das sociedades muçulmanas. Um país democrático, em nome do respeito às crenças e culturas, deve tolerar que em seu seio continuem existindo instituições e costumes (ou melhor, preconceitos e estigmas) que a democracia aboliu há séculos à custa de grandes lutas e sacrifícios? A liberdade é tolerante, mas não pode sê-lo para aqueles que, com sua conduta, a neguem, escarneçam dela e, afinal de contas, queiram destruí-la. Em muitos casos, o emprego de símbolos religiosos como a burca e o hijab, usados pelas meninas muçulmanas nos colégios, é mero desafio à liberdade que a mulher alcançou no Ocidente, liberdade que gostariam de cercear, obtendo concessões e constituindo enclaves soberanos no seio de uma sociedade aberta. Isso significa que, por trás do traje aparentemente inócuo, espreita uma ofensiva que pretende obter direitos para práticas e comportamentos incompatíveis com a cultura da liberdade.

A imigração é indispensável para os países desenvolvidos que queiram assim continuar e, também por essa razão prática, eles devem favorecê-la e acolher trabalhadores de línguas e crenças distintas. Evidentemente, um governo democrático deve facilitar para essas famílias imigrantes a preservação da religião e dos costumes. Mas desde que estes não firam os princípios e as leis do Estado de direito. Este não admite a discriminação nem a submissão da mulher a uma servidão que faz tábua rasa de seus direitos humanos. Uma família muçulmana numa sociedade democrática tem a mesma obrigação das famílias oriundas dessa sociedade a ajustar sua conduta às leis vigentes, mesmo quando estas contradizem costumes e comportamentos inveterados de seus lugares de origem.

Esse é o contexto no qual sempre se deve situar o debate sobre o véu, a burca e o hijab. Assim se entenderia melhor a decisão da França, justa e democrática em minha opinião, de proibir categoricamente o uso do véu ou de qualquer outra forma de uniforme religioso para as meninas nas escolas públicas.


(Mario Vargas Llosa - A Civilização do Espetáculo, uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura)
A religião é o ópio do povo!
 

publicado às 19:49


Estética e Filosofia

por Thynus, em 04.05.17
O mais orgulhoso dos homens,
o filósofo, acredita ver por todos
os lados os olhos do universo
voltados telescopicamente na
direção de seu agir e pensar.

(F. Nietzsche)
 
Para seguir com o que Nietzsche nos diz acima, seria apropriado perguntar quem são os filósofos? Uma definição praticamente cabal pode ser encontrada em Hegel, que descreveu o filósofo como um escolástico que jamais entra em um rio antes de aprender a nadar... O cacoete da antecipação, do apriorismo, é a melhor e a pior característica do filósofo.
Quando filosofamos, “ainda estamos, de algum modo, reproduzindo, mesmo sem ter clareza disto, o modelo grego de pensamento”. (MOSÉ, 2011-B, p. 94). Em um amplo espectro, podemos afirmar que duas correntes do pensamento grego disputaram a hegemonia do saber no ocidente. De um lado, sofistas, alguns pré-socráticos e outros filósofos escolheram variadas formas de materialismo e perspectivismo, relativizando o poder da palavra em transmitir o conhecimento. Por outro lado, filósofos idealistas, como Platão, Aristóteles e seus discípulos, preferiram crer na possibilidade de conhecer verdades universais, baseados na crença ancestral de que o cerne da sabedoria consiste em conceber o nome verdadeiro das coisas – estes metafísicos tornaram-se dependentes dos atributos da gramática, cujos métodos permitiram a abstração do real.
A criação de um “mundo além do mundo”, isto é, da metafísica, foi uma operação ideológica que tomou certo tempo para se constituir, tendo em Platão seu primeiro grande articulador. Dentre as diversas fontes das quais surgiu a metafísica, GALIMBERTI nos lembra daquela que talvez seja sua matriz principal.
Dessa piedade[Do latim pietatem, significa o sentimento de fidelidade que conduz o homem a crer no divino e nas coisas da religião, podendo ser interpretado como “fé”. Mas, a palavra piedade vem ao português com a conotação de “compaixão”, derivada da ideia de que o crente em deus, por óbvia razão, seria alguém que nutre compaixão pelo outro. Mas, ao contrário da ideia de compaixão, a palavra “piedade”, em seu sentido original, se refere a “fé” e “crença”] cósmica nasce a primeira reflexão ontológica da filosofia ocidental, quando no Parmênides Platão pensa a relação entre o múltiplo e o Uno. A conclusão dessa reflexão é que o Todo tem precedência sobre as partes e é melhor do que as partes. É nele que as partes estão, aí encontram a sua causa e também o significado das suas existências.(2006, p. 33)
Aqui surge o embrião do pensamento metafísico que nega, de imediato, a origem do real como produto de forças naturais, com a intenção de assumir sem qualquer prova ou exame, a crença de que a origem do mundo está além de tudo o que existe. Via de consequência, aquilo que origina o mundo não está no mundo originado, mas se encontra em outro princípio original, enquanto este mundo no qual vivemos se torna mero reflexo fragmentado (formado de partículas e manifestações singulares) do “outro mundo” que, então, passa a ser considerado o mundo verdadeiro – o “Uno”.
Ao criarem um mundo ideal mais permanente e pacífico do que o mundo das aparências movediças e transitórias do real, os idealistas imbuíram-se da portentosa tarefa de tornar “melhor” o homem e seu mundo “imperfeito”. Impuseram-se o trabalho de submeter o devir aos parâmetros do pensamento claro, exato, distinto e objetivo da razão. E as gerações de pensadores que prepararam o edifício doutrinário hoje conhecido como racionalismo ocidental assentaram as bases intelectuais da única forma de pensar considerada verdadeira, isto é, aquela cuja principal estratégia provém do sequestro exaustivo da exuberância do real e da experiência da vida.
O que chamamos de razão ocidental não somente busca, mas afirma atingir, desligando-se de todas as condições históricas e particulares, o permanente, o incondicionado e o verdadeiro. A busca pela verdade é a base daquilo que chamamos razão ocidental. (MOSÉ, 2011-B, p. 95)
O abuso cometido pela tradição filosófica ocidental foi descrer da abundância diversificante do mundo e nos fazer acreditar na verdade oculta das abstrações essenciais. A petulância orgulhosa do pensador chegou à delirante conclusão de que a razão humana, subsidiada pela linguagem, poderia, cabalmente, alcançar a perfeição e a universalidade, qualidades imprescindíveis à contemplação da verdade eterna. Diferentemente da propalada busca pela adequação do pensamento às coisas, a verdade filosófica acabou por se fazer estranha ao mundo real, para flutuar no plano metafísico das essências. Segundo esse pensamento, a verdade deixa de ser a melhor interpretação semiótica da realidade do fenômeno, de modo a dirigir o pensamento para fora deste mundo, na forma de uma concordância entre as regras da razão. Nietzsche supõe que “a verdade quer alguma coisa, e o que ela quer é um outro mundo, uma outra vida. O mundo ‘pensado’ é o mundo simplificado, codificado, tornado linguagem”. (MOSÉ, 2011, p. 37)
O programa da tradição filosófica, que ainda permeia a maior parte do debate contemporâneo, sempre teve por objetivo fazer crer que todo conhecimento passa pelo verbo, pois acredita que todo o real é inteligível. Mas, o real, esse conjunto indefinido de fenômenos materiais inefáveis, jamais será completamente acessível a qualquer linguagem humana.
Os guardiões da palavra – os filósofos –, crendo ser a realidade redutível ao verbo, manipulam mundos a seu bel prazer, projetam utopias universais, criam um ‘novo’ homem, transformando a gramática numa espécie de chave geral do conhecimento.
“Na interpretação de Nietzsche, a filosofia não conseguiu dar um passo além da gramática: toda filosofia é, em última instância, uma ‘filosofia da gramática’”. (MOSÉ, 2011, p. 139)
Por conta de uma manobra diversionista da tradição, a lógica gramatical impôs-se como método de exposição do pensamento filosófico, descolando a produção do discurso reflexivo do chão das coisas para o céu das ideias. Por isso, “a metafísica decorre de um aperfeiçoamento da linguagem. Linguagem e razão são ‘aparelhos’ de produzir duração. É a linguagem que ‘advoga’ a favor do erro metafísico do ser: raciocinar é submeter o pensamento a este sistema”. (MOSÉ, 2011-B, p. 164) Mas, o pobre “filósofo que crê alcançar por reflexão significações puras tropeça nos mal-entendidos acumulados pela história das palavras”. (MERLEAU-PONTY, 2012, p. 56)
A impressão que se tem é que a verdade dos conceitos só é universal porque dura o tempo que a linguagem resiste contra as derivas semânticas. A ilusão de estabilidade do sentido é a miragem com a qual a linguagem ilude os incautos idealistas, que passam a crer na verdade como permanência e identidade do ser. Para que o ‘ser’ ganhasse existência concreta seria preciso congelar o fluxo do real, paralisando o mundo, de modo que se impeçam as coisas de vir-a-ser outras.
No mundo real não pode haver o ser, já que não existe duração suficiente para estancar o fluxo das coisas e congelá-las no momento em que elas ‘são’. Contudo, apesar da insistente realidade dos fatos, os “filósofos gostam de mumificar tudo que amam, arrastar de um lado para outro múmias conceituais enquanto a vida escapa”. (MOSÉ, 2011-B, p. 173)
Ao investir contra a fisiologia dos corpos, a tradição do pensamento concebeu a metafísica, cuja etimologia é muito simples ao indicar tudo aquilo que está situado além ou fora do mundo real. Também se atribui ao idealismo filosófico a invenção do “niilismo, como forma de substituição da vida pela ideia. É somente na ficção, na ideia, que a duração, a verdade, a identidade, podem se sustentar” (MOSÉ, 2011, p. 14).
Uma das mais prementes urgências, a que a humanidade está sujeita, é conhecer melhor o ambiente em que habita, de modo a garantir sua sobrevivência e prosperidade. Todo e qualquer conhecimento deve contribuir para o esforço do homem em seu relacionamento com a realidade do mundo. Em vista disso, as linguagens não podem ser utilizadas, como querem os idealistas, para inventar outros mundos descolados da realidade – ficções artísticas à parte –, muito menos serem instrumentos de imposição de ideias antropocêntricas ao fluxo inconstante do real.
Como foi mencionado em capítulo anterior, as linguagens dão suporte à consciência. Embora seja o repositório da sabedoria comunitária, a consciência não é universal, porque sempre se trata da história cultural de uma sociedade específica. Transmitida por meio das linguagens, de geração em geração, não existe uma “consciência em si”, porque seu justo papel é fornecer às pessoas os modelos de representação social e psicológica aos quais elas devem se submeter para garantir seu pertencimento a uma comunidade específica.
[A] consciência é o lugar da semelhança, do nivelamento, da vulgaridade. Por ser a valorização da linguagem, do pensamento, da tradução em signos de comunicação, a consciência diz respeito, exclusivamente, ao tornar-se rebanho, mediano, comum. A consciência é uma grade interpretativa que traduz a vida para um universo específico de conceitos e valores e se tornou a instância moral por excelência. (MOSÉ, 2011-B, p. 45)
Sem se apresentar de forma oposta ao pensamento inteligível, existe em cada indivíduo um conjunto de conhecimentos subjetivos, pessoais, privados e singulares, que se compõe de experiências pessoais adquiridas a partir do exercício das percepções, sensações, emoções, sentimentos e afetos, formadores da memória sensível (estética). Esse conhecimento estético está na base da constituição da personalidade individual e se junta (harmônica e/ou conflituosamente) à consciência coletiva internalizada socialmente pelo indivíduo, dando forma à sua memória de longo prazo (estética e lógica), fonte da qual emerge a ipseidade do homem.
Se considerarmos que a consciência é da ordem do coletivo, a ideia de uma “autoconsciência” independente se transforma num equívoco metafísico. Pois a consciência pessoal é aquela parte do conhecimento coletivo que todo membro da sociedade incorpora em sua psiché, como condição necessária de seu pertencimento ao grupo social. No âmbito da consciência não tem como predominar um ‘eu’, mas obrigatoriamente um ‘nós’. Este é o caso, por exemplo, do domínio filosófico da ética – a regra, por excelência, da convivência comunitária –, que muitos ainda acreditam ter vínculos metafísicos com verdades reveladas acerca do bem e do mal, e encravadas no subsolo da psiché humana, como traço definitivo de nossa origem divina. Tolice!
Toda ética e suas moralidades são obra e reflexo de longa sedimentação de valores no interior de uma comunidade, que passam ao indivíduo pela comunicação da consciência (cum + scientia = ciência de todos), que se coletiviza, na medida em que é sempre mais comunicada e reafirmada pela tradição. Mas a consciência não deixa de ser a superfície de um lago, que reflete nada mais que os valores de uma comunidade. E como espelho, a consciência reflete o que existe pelo lado de fora e nos dá a ciência do mundo exterior ao ‘eu’. Somente os processos não-conscientes (inconscientes) pertencem exclusivamente ao indivíduo!
Note o parentesco entre reflexo, coisa de espelho, e reflexão, coisa do pensamento: reflexão é pensar os reflexos. [...] As águas profundas são o corpo. A psicanálise fala de ‘inconsciente’. O inconsciente é o lugar onde mora a sabedoria, os saberes que o corpo sabe sem que deles a consciência tenha consciência. Por isso, eles não podem ser ditos. Na profundeza das águas, tudo é silêncio. A sabedoria do corpo não pode ser dita com palavras-conceitos. Ela só pode ser sugerida por meio de metáforas.(ALVES, 2011, p. 71-72)
Se a consciência é a ciência da sabedoria comum, ela é o conhecimento do outro, que cada membro compartilha com a comunidade a qual pertence. Por ser produto dos discursos das linguagens da cultura, a consciência se parece muito com, por exemplo, a linguagem verbal: é comum a todos e ninguém a possui, cada indivíduo se utiliza dela, mas por ela é moldado; a linguagem não existe sem os indivíduos, mas ela controla suas vidas. Por isso, a consciência é sobredeterminada pela comunicação social de símbolos e valores.
Se a sociedade é formada por indivíduos, precisamos ter ao menos duas ciências para lidar com nossa humanidade. Uma delas é a ‘consciência’, necessária para nos relacionarmos com o outro, a partir de sistemas simbólicos e discursos que estão presentes da cultura. O outro conhecimento que faz par com a consciência se relaciona com minha ipseidade e remete ao conhecimento que acumulo de minhas experiências pessoais e que permite me individualizar em relação a todos os demais membros da comunidade.
Como não existem comunidades sem indivíduos, a coletividade e a individualidade são conexas. A noção de ipseidade não tem como se opor à consciência, pois ambos os conhecimentos (do outro e de si) são necessários para a congregação humana. Se adotarmos essa interpretação, a consciência não pode então ser entendida como a mente individual desperta em estado de vigília, nem como sinônimo de subjetividade, mas como um conjunto de cognições e valores comunitários impostos ao/ou apropriados pelo indivíduo durante o aprendizado necessário para se tornar membro de sua comunidade.
A ipseidade, por sua vez, não pode ser considerada uma oposição à consciência, tão pouco significar o domínio onírico do inconsciente, nem a totalidade dos processos fisiológicos de nosso sistema cerebral, mas o conjunto de cognições individuais e subjetivas adquirido pela experiência do corpo em atrito com o fluxo do real – que forma a memória estética, em seu processo natural de ‘egocentramento’.
Podemos inferir que a consciência é o ambiente, ao mesmo tempo social e psicológico, em que o logos predomina, enquanto que a ipseidade é o meio apropriado para a formação de cognições estéticas e da memória afetiva (experimental). Naquilo que se refere à cognoscência humana, essas regiões cognitivas (consciência e ipseidade) não são opostas, mas complementares e interdependentes. Para se obter um conhecimento eficiente do mundo real, o pensamento humano deve se utilizar de cognições híbridas, que comportem elementos lógicos, como também estéticos – o que demanda uma educação estética, a par com a educação intelectual.
Comenta Luc FERRY que, antes de Freud, Nietzsche já teria dito que a consciência é um produto da linguagem verbal, desenvolvida a partir da necessidade de comunicar. Desse modo, o humano teria se tornado consciente apenas daquilo que é comunicável, partilhável e comum. Caso concordemos nisso, seria necessário reconsiderar o famoso aforismo délfico nosce te ipsum (conhece-te a ti mesmo), pois tal preceito não poderia se realizar, caso levássemos em conta apenas a consciência que, segundo o pensador alemão, é a menor parte, talvez o mais vulgar conjunto de conhecimentos que socialmente obtemos sobre nós e as coisas. (2003, p. 181-182) Sócrates, quando propôs este oráculo como um elemento próprio da filosofia, teria sido o primeiro a se enganar a respeito.
Além de constituir um conhecimento parcial, a consciência pode ser também perigosa. Segundo narra a mitologia grega, a mãe de Narciso desejou saber se seu filho teria uma longa vida e para isso procurou Tirésias, que Juno havia cegado, mas Júpiter concedido o dom de ver o futuro. Segundo o oráculo, Narciso terá “uma longa vida se não conhecer a si mesmo”. Todos sabemos que Narciso ainda jovem definhou até a morte, ao apaixonar-se pelo reflexo de sua própria imagem nas águas de um lago.
Como deveríamos interpretar essa alegoria mítica? Seria, talvez, uma advertência contra a vaidade intelectual de enxergar a imagem do homem na face do mundo? Se esta for a interpretação do oráculo, corremos o risco de nos destruir, e ao mundo, caso humanizemos a realidade à nossa semelhança.
Ao inverter o mandamento délfico, tão venerado e repetido como um mantra pelo senso comum, Tirésias denuncia a orgulhosa pretensão humana de se conhecer pela reflexão (das águas do lago e do pensamento) e o perigo que a ilusão da consciência pode representar, ao nos fazer crer que podemos saber quem somos e nos maravilhar acreditando ser aquilo que pensamos de nós mesmos. (CASSIN, 1999, p. 131)
Esse maravilhamento do homem para consigo mesmo é de longa data. O consenso produzido pelas linguagens no interior das comunidades humanas é um feito ímpar na história da vida, embora muitas vezes nos iluda com a forçada identidade que produzimos com a imagem que fazemos de nós e do mundo.
Mas, por meio das linguagens o homem também produziu a concórdia, que por sua vez criou a civilização. Desse modo, as regras das linguagens tornaram-se as regras da comunidade (e vice-versa), criando-se o princípio do logos como o acordo geral que o homem sonha fazer entre si e o real, a ponto de imaginar que as palavras e sua gramática provêm das próprias coisas (nomina sunt consequentia rerum[“As palavras são consequência das coisas”. Este conceito provém da crença de que as palavras emitidas pela linguagem humana mantêm vínculos metafísicos com as coisas que denominam, o que faz da palavra um elemento da realidade ou daquilo que formata a realidade, podendo substituí-la ou até criá-la.]. Os gregos já imaginavam o logos como o sentido da ordem cósmica partilhado por todas as coisas e eventos, igualmente presente no interior do verbo.
O logos também é comum enquanto princípio de acordo entre potências diversas, de entendimento entre quem fala e quem escuta, de unidade pública e ação conjunta entre os membros de uma dada comunidade política. O logos é todas essas coisas porque o termo significa não apenas o discurso dotado de sentido, mas o exercício da inteligência enquanto tal, [...] logos significa não simplesmente ‘linguagem’, mas também discussão racional, cálculo e escolha: a racionalidade tal como expressa na fala, no pensamento e na ação. (KAHN, 2009, p. 132)
A lógica (logos + technè) desenvolveu-se ao longo dos milênios como a base constituinte da filosofia, da ciência, como também das instituições sociais ocidentais, tornando-se nesse processo a própria maquinaria da consciência, sob a qual os indivíduos se tornaram ‘sujeitos’. A construção da ordem geral e do acordo político em torno do qual o governo apascenta o rebanho humano, demandou o desenvolvimento da racionalidade, cuja base hermenêutica é o logos. Hospedeiro das entranhas da consciência ocidental, o logos se alojou no cerne do pensamento filosófico e ganhou com a modernidade cartesiana seu mais representativo modelo teórico.
Fundada na cisão entre sujeito e objeto, a herança deixada pelas filosofias da consciência (de Descartes a Husserl) foi a separação e oposição entre corpo e alma, matéria e espírito, mundo e consciência, fato e ideia, sensível e inteligível. [...] Torna-se o projeto de posse intelectual do mundo, domesticado pelas representações construídas pelo sujeito do conhecimento. (CHAUÍ, 2010, p. 267)
Ainda influenciada direta e/ou indiretamente pela onipresença do judaico-cristianismo, segundo o qual é imperativo transcender a matéria da encarnação, a filosofia moderna continua crendo no logos como o lócus privilegiado da verdade (alcançável apenas por suas technai: gramática e matemática), enquanto transfere todas suas preocupações de ordem reflexiva para o exercício da consciência como modelo humano a ser imposto ao mundo, inclusive aos outros homens. Em sentido contrário, mantém isolado sob o tapete epistemológico, o conjunto desarticulado das forças sensacionais, das percepções sensoriais, das paixões pulsionais, dos desejos e necessidades fisiológicas, que ali perfazem o reino obscuro da ipseidade. Esse abismo cognitivo sobre o qual o olhar transcendental do filósofo pouco se demora é ...
o conhecimento do sensível, da não razão, dos estados que antecedem a distinção entre sujeito e objecto [que] constitui um território ainda muito pouco explorado. [...] O meu corpo, cuja coesão é a de uma ‘coisa’, é preso no tecido do mundo, o qual é percebido como qualquer coisa de contínuo. (PERNIOLA, 1998, p. 114-115)
O que incomoda a esse filósofo tradicional é a impossibilidade de abstrair o corpo humano e torná-lo invisível, para que sua carne deixe de ser essa coisa sensível, atada a este mundo em inconstante transição, material e concreto, que sempre desafia a imagem excelsa dos conceitos da razão.
O esforço milenar do idealismo filosófico e religioso para dessensibilizar o corpo do homem contaminou também o senso comum. Em seu famoso livro O pequeno príncipe, Antoine de Saint-Exupéry escreve que “o essencial é invisível aos olhos”. Se interpretarmos que “essencial” para o escritor é tudo aquilo de mais importante, Saint-Exupéry estaria fazendo coro com o senso comum cartesiano que ainda vigora no ocidente, ao crer que “o mais importante é o conteúdo”.
O hálito morno que exala da boca dos corpos vivos talvez seja aquilo de invisível que realmente importa para a vida, mas não os castelos de vento das utopias intelectuais que visam transcender a biologia e a fisiologia dos corpos para criar um novo mundo, um “homem novo”. Na sociedade contemporânea, vemos aumentar o grau de desconfiança com relação às promessas jamais cumpridas pela razão e nos sentimos algo fatigados de tanto pensamento abstrato e transcendental, de modo que uma revolução silenciosa caracterizada por uma estética cognitiva abre espaço para a elaboração de uma ideia mais concreta de pensamento28.
Essa ideia de pensamento repousa sobre uma afirmação fundamental: existe pensamento que não pensa, pensamento operando não apenas no elemento estranho do não-pensamento, mas na própria forma do não-pensamento. Inversamente, existe não-pensamento que habita o pensamento e lhe dá uma potência específica. Esse não-pensamento não é só uma forma de ausência do pensamento, é a presença eficaz de seu oposto. (RANCIÈRE, 2009, p. 34)
Quando se crê que apenas o logos é capaz de fundar o verdadeiro pensamento, obviamente tudo aquilo que não traz a logomarca da racionalidade deve ser desprezado como não-pensamento. No entanto, também devemos reconhecer que o conjunto da humanidade e sua cultura sempre serão menores que o mundo que nos abriga, ultrapassa e determina. O alcance do logos é limitado não apenas em sua versão humana, como também pelo fato do homem auferir conhecimentos por outras vias.
Além de existirem outros conhecimentos (e, consequentemente, outros pensamentos) gerados a partir da atuação de diversas linguagens e sistemas simbólicos não-verbais, encontra-se disponível em nosso campo cognitivo todo conhecimento inefável derivado de percepções e experiências sensoriais que constituem vasta soma de conhecimentos eficientes acerca do mundo.
Quando a filosofia se vê como uma reflexão sobre o conhecimento humano, precisa deixar de se traduzir apenas e tão somente pelo verbo. O conhecimento humano tem várias faces, dentre elas aquelas que não se configuram por meio da gramática ou da matemática. Textos de linguagens, como a imagética, musical, cinestésica, dentre outras, permitem um imenso volume de informações capazes de gerar, transmitir e registrar conhecimentos vitais para a sociedade humana. Além disso, a memória afetiva e experimental produzida pela sensibilidade do indivíduo em contato com o mundo também é outro recurso cognitivo indispensável ao sucesso do humano em sua busca pelo conhecimento. A filosofia deveria impor-se o desafio de também pensar sem palavras, por meio de outros signos ou pela experiência de saborear o real. Fazendo isso, talvez a filosofia nos brindasse com novos conhecimentos, desenvolvendo pensamentos bem mais originais e criativos do que os surrados conceitos abstratos sobre tudo. Segundo Roberto MACHADO, quando Deleuze diz que o filósofo deve ser um criador e não apenas um reflexivo, faz uma crítica contra a caracterização da filosofia como um metadiscurso, uma metalinguagem. “Insurgindo-se contra essa tendência, ele reivindica para a filosofia a produção de conhecimento ou, mais propriamente, a criação de pensamento, como acontece com as outras formas de saber, sejam elas científicas ou não”. (2009, pp. 12-13) O pensamento não é privilégio da filosofia: filósofos, cientistas, artistas, inovadores de quaisquer áreas são antes de tudo, pensadores.
A filosofia contemporânea já entendeu que a função do filósofo não é mais justificar o real ou transformar o mundo em pensamento, nem criar um novo homem. Agora é preciso inventar conceitos, tal como um artista inventa sua obra, de modo a dar ao homem variadas opções de imagem do real, algo novo com o que possamos vislumbrar outras facetas das coisas.
Abrir-se para outros vieses da cognição demanda evadir- se do logos, que se mimetiza em meio aos ordenamentos da gramática à maneira de um Minotauro no labirinto; esta é uma condição sem a qual não alcançaremos outras formas de pensamento que reclamam nossa mais aguda atenção. Mas a tradição filosófica que compõe a falange do logos ainda se encontra por aí, nas instituições, na linguagem e no senso comum, com a estratégia de contaminar todos os campos do saber com sua metafísica. A política do logos sempre foi impor um sentido final ao pensamento, embutindo-o em suas classificações abstratas, com o intuito de domesticar a confusão natural do mundo e purificar as ideias por meio de sua ascensão ao suprassensível e ao inteligível.
Ora, o mundo, que se torna presente sob as espécies do sensível, não se organiza sob a forma de um sentido (o que se dá a ver, a ouvir, a tocar) mas sob a forma de um complexo de sensações – o sensível. O que vem a nós, ocorre sob a forma da confusão (na terminologia de Baumgarten), sob a forma do sensível, que é na explicação de Mikel Dufrenne, ‘aquilo relativamente ao qual não há recuo, aquilo sobre o qual não podemos construir um ponto de vista’ (FERRY, 2003, p. 16).
A imagem movediça do real embaralha as velhas retinas dos sóbrios pensadores, que reafirmam sua rejeição ao mundo, meditando sobre suas essências universais como anteparos marmóreos, brancos e frios, a proteger suas múmias inteligíveis do turbilhão da realidade. Mas parece que a velha meditação já perdeu toda sua dignidade simbólica, “tornou-se ridículo o cerimonial e a atitude solene daquele que reflete; não se poderia mais suportar um sábio da velha escola. Pensamos muito rápido, e a caminho, em plena marcha, em meio a negócios de toda sorte, mesmo quando se trata das coisas mais graves...” (NIETZSCHE, 1976, p. 43).
A filosofia falocrática – com a pretensão universalista de abarcar toda a ciência humana, nunca houve qualquer campo do conhecimento em que a tradição filosófica não se fizesse presente, com a evidente exceção dos assuntos relativos à mulher. Uma das curiosidades mais espantosas que assombra o mundo da filosofia é o completo e suspeito silêncio acerca do pensamento feminino e da mulher como pensadora. Todos os filósofos centrais da história oficial do pensamento são homens e tratam os temas femininos exatamente como o senso comum e vulgar de sua época, sem empreender qualquer reflexão mais ampla sobre o pensamento da mulher ou sobre a mulher como objeto de reflexão.
É certo que grande parte desse desprezo para com o pensamento feminino tem fundo religioso, devido à incestuosa promiscuidade entre a filosofia ocidental e a teologia judaicocristã, desde o princípio desta era. “A maioria dos doutrinadores cristãos, dos chamados membros da patrística, migrou de algum movimento filosófico para o cristianismo”. (SPINELLI, 2009, p. 351) Com a rápida neoplatonização do pensamento cristão, observou-se desde muito cedo seus efeitos colaterais deletérios, dentre eles a reprovação incondicional do corpo humano, a condenação da mulher e o banimento do pensamento feminino.
Também é sabido que a tradição machista do pensamento cristão não é devida apenas a seu idealismo neoplatônico, ela também se encontra em quase toda a história cultural dos povos. Reza a lenda que Brahma criou a primeira mulher e lhe concedeu o nome de Sarasvati; ela lhe deu um filho por nome de Manu, que se tornou o pai da humanidade e grande legislador. Os livros oitavo e novo do Código de Manu legisla assim sobre a mulher:
Art. 420. Dia e noite as mulheres devem ser mantidas em um estado de dependência por seus protetores; e, mesmo quando elas têm demasiada inclinação pelos prazeres inocentes e legítimos, devem ser submetidas por aqueles de quem dependem à sua autoridade. Art. 421. Uma mulher está sob a guarda de seu pai durante a infância; sob a guarda de seu marido durante a juventude; sob a guarda de seus filhos na velhice; ela não deve jamais se conduzir à sua vontade. (VIEIRA, 2011, p. 89)
Ainda hoje, quando os judeus ortodoxos recitam suas preces matinais diárias, nunca se esquecem de agradecer a Javé: “abençoado seja Deus, Rei do universo que não nos fez mulher”. A graça que os judeus e muitos cristãos julgam ter recebido dos céus por terem nascido homens e escapado da má sorte de ser mulher, certamente tem a ver com o que diz o texto bíblico: “O pecado começa com a mulher e, graças a ela, todos nós devemos morrer”. (Eclesiastes 25:33).
Aristóteles, próximo à tradição de sua época, sustenta que a natureza só faz mulheres quando não pode fazer homens. Para este importante filósofo grego, a mulher é um espécime humano defeituoso e inferior. Seria o caso de se perguntar a Aristóteles porque a natureza erra tanto a ponto de criar uma humanidade com 50% de mulheres?
Paulo de Tarso recomenda em sua primeira carta a Timóteo (2:12) a seguinte orientação: “Pois não permito que a mulher ensine, nem que tenha domínio sobre o homem, mas que esteja em silêncio”, assim como em sua primeira carta aos Coríntios (14:34/35): “conservem-se as mulheres caladas nas igrejas, porque não lhes é permitido falar; mas estejam submissas como também a lei o determina. [...] para a mulher é vergonhoso falar na igreja”. Tomás de Aquino, refletindo o pensamento de Aristóteles em sua Suma Teológica, questão 92, diz com todas as letras no artigo primeiro: “A mulher é defeituosa e bastarda, pois o princípio ativo da semente masculina tende a produzir homens gerados à sua perfeita semelhança. A geração de uma mulher resulta de defeitos no princípio ativo...”.
No ocidente muito raramente o pensamento filosófico de uma mulher chegou a gozar de boa reputação entre os pensadores. Pelo contrário, até mesmo os grandes filósofos incensados pela historiografia oficial, fazendo coro com religiosos e hierarcas de todas as épocas, jamais desconfiaram que a mulher fosse um indivíduo pensante.
A mulher é declarada civilmente incapaz em qualquer idade: o marido é seu curador natural. [...] as mulheres não defendem pessoalmente seus direitos, nem exercem por si mesmas seus deveres cívicos-estatais, mas somente mediante um responsável, assim como tampouco convém a seu sexo ir à guerra, e essa menoridade legal no que se refere ao debate público a torna tanto mais poderosa no que se refere ao bem-estar doméstico: porque aqui entra o direito do mais fraco, que o sexo masculino, já por sua natureza, se sente convocado a defender. (KANT, 2006, p. 106)
O solteirão e celibatário Immanuel Kant ainda tentou um falso elogio à mulher concedendo a ela o duvidoso poder de reinar sobre o lar, tal e qual o senso comum de todas as épocas. Hegel, por seu turno, no livro Princípios da filosofia do direito (1821) declara que a diferença entre homens e mulheres é a mesma que se dá entre um animal e uma planta, sendo que o temperamento animal é masculino e da planta, feminino. Segundo este filósofo de Stuttgard, o pensamento da mulher é indeterminado pela sensibilidade e se torna um perigo quando decide segundo suas inclinações emocionais, ao contrário do homem que age segundo a universalidade exigida pelo governo do Estado.
E o mais interessante a se registrar é que o mesmo NIETZSCHE que rompe com toda a filosofia socrática, desmonta toda a tradição metafísica platônica e dá início à mais radical de todas as revisões epistemológicas da filosofia ocidental, não consegue ultrapassar o mais venal senso comum acerca do mundo feminino. Segundo o criador de Zaratustra, a mulher “aprende a odiar à medida que desaprende a fascinar. [...] Onde não está em jogo nem o amor nem o ódio, as mulheres são medíocres artistas”. (1977, pp.90/94). Este pensador também acredita que o pensamento é incompatível com a maternidade, e quando uma “mulher tem veleidades literárias, eis um índice de qualquer afecção da sensualidade. A esterilidade predispõe a uma certa virilidade do gosto...” (NIETZSCHE, 1977, p. 99).
Adversários em pensamento, Kant e Nietzsche, ao menos em relação a um assunto coincidem perfeitamente: a inferioridade da mulher. Vejamos suas vidas pessoais; eles não se casaram e, ao que parece, tudo o que aprenderam a respeito da mulher foi com suas mães, com seus livros e as tradições de seu tempo (!). O primeiro viveu casto pelos seus oitenta anos de vida; Nietzsche chegou a pedir a mão de Lou Andrea Salomè em casamento, que ao recusá-lo parece ter-lhe acentuado a misoginia. Ambos não mantiveram qualquer relação madura com uma mulher sexualmente ativa, mas só conviveram com estereótipos femininos.
Os filósofos parecem nunca ter sido realmente amigos da mulher. Com exceção de alguns sofistas e epicuristas que chegaram a compreender a especificidade do pensamento feminino, os pensadores da antiguidade clássica, helenística, romana, medieval, renascentista e moderna apenas refletiram a cultura de seu tempo, quando a mulher não tinha posição de grande destaque na sociedade.
É óbvio que, desde sempre, a mulher produziu pensamento de qualidade em todas as áreas do conhecimento, mas isso foi constantemente negligenciado, ignorado ou menosprezado pelo pensamento oficial. Quando o cristianismo se aliou ao poder imperial romano no quarto século desta era a reflexão passou a ser privilégio único dos padres da Igreja e nem é preciso comentar – o mínimo espaço devido à mulher no estertor do mundo greco-latino desaparece completamente da ordem do pensamento cristão. Com o fim do medievo a situação não melhorou para a mulher, pois a modernidade cartesiana jamais compreendeu a contribuição feminina ao embate dialético entre razão e sensibilidade humanas.
Por volta do século XVII, quando os cientistas desenvolveram os primeiros microscópios, uma de suas mais vivas preocupações foi saber o que poderia conter o esperma masculino. O que o primitivo aparelho permitiu vislumbrar, obviamente por meio de uma imagem muito pouco nítida, não impediu que os observadores confirmassem o antigo preconceito patriarcal ao “enxergarem” na parte bulbosa do espermatozoide humano um homúnculo em posição fetal. O entendimento geral à época era de que o espermatozoide continha um protótipo completo de ser humano, semelhante a uma semente que contém a árvore, enquanto o útero fazia o papel mais humilde e inerte de um vaso que apoia o crescimento de uma planta, reafirmando a inferioridade da mulher. Somente nos anos 1950, quando as pesquisas relativas ao DNA comprovaram evidentemente a separação e a combinação dos genes na reprodução sexuada, a contribuição genética da mulher ao feto deixou de ser uma hipótese, para se tornar uma realidade incômoda para tradicionalistas, que ainda veem a mulher como responsável pelo traço demoníaco da humanidade.
Apenas com as feministas, no último quarto do século XX, a contragosto dos pensadores masculinos, a mulher começa a imiscuir-se no mundo machista da reflexão filosófica. Ainda hoje, contudo, a ciência e a filosofia ocidentais formam uma escolástica completamente falocrática. Prova disso é o fato de que até o ano de 2016, as mulheres respondem por menos de 5% dos agraciados com o Prêmio Nobel. Em mais de cem anos, apenas duas mulheres receberam o Prêmio Nobel de Física. Quando a filosofia se entende como teoria do conhecimento, se dá o direito de dizer o que é o conhecimento humano, enquanto o olhar falocêntrico do filósofo qualifica o saber. A mulher e a estética – uma das mais distintas evidências de que o pensamento do macho humano não tem condições de alcançar a tão propalada universalidade que sonha para seus conceitos, reside no fato de que sua filosofia não consegue compreender o campo da estética nos termos de sua racionalidade. A mesma incapacidade que o pensamento falocêntrico tem de entender a estética sem conceituá-la, curiosamente se repete na ideia que o filósofo masculino faz acerca da mulher como fenômeno do mundo. Não é de estanhar que o mesmo preconceito filosófico que ainda perdura sobre a estética como forma de conhecimento, também se estende ao mundo feminino como produtor de pensamento original.
Em primeiro lugar, o homem se recusa a lidar com a peculiaridade da razão feminina e trata a mulher como uma coisa entre outras, tornando-a em um objeto que não dispõe de suficiente racionalidade. Oblitera seu pensamento sensível e denuncia a incompatibilidade de sua intuição com a virilidade dos conceitos filosóficos. Ao desterrar a mulher para os confins inferiores da paixão e da sensibilidade, o homem nega a importância de seu viés cognitivo, que o universo feminino desenvolve por meio de um pensamento experimental e estético.
O filósofo talvez seja o mais machista entre homens. Praticamente estéril, como disse Nietzsche, a subjetividade do filósofo é um deserto; seu ego é a-tômico (de onde vem a crença masculina no uno, unidade, univocidade e não-contradição); não tendo como se dividir psiquicamente, nem sequer consegue compartilhar de si com os outros – talvez por isso a “cabeça” masculina seja tão clara e distinta –, um vazio em busca de sentido, que lhe empresta a excepcional facilidade para abstrair. Por ser menos complexa, a mente masculina não experimenta conflitos identitários de imagem, o que lhe permite maravilhar-se com a univocidade de seu raciocínio – o homem se sente sempre aquilo que ele pensa que é! Em função de sua cognição de ângulos retos e contornos exatos, não há outro papel social que se lhe imponha, senão, o de ser homem.
Ao temer a natural ambiguidade de sua psiché, dividida entre atitudes lógicas e estéticas, o homem experimenta uma grande angústia. Por esse motivo, sempre tenta fazer de sua personalidade um monobloco indivisível. Ao contrário, a mulher vive em si mesma com no mínimo duas subjetividades, por vezes até conflitantes: juntamente com seu próprio ego individual e singular, ela comporta outra subjetividade que lhe é posta pela biologia da espécie: a de ser agente do banco genético da humanidade – o meio de reprodução da espécie.
Esta segunda subjetividade, que compõe a psiché feminina, faz da mulher a casa do conflito existencial, emocional e psicológico, que lhe permite conceber o pensamento por perspectivas nunca alcançadas pelo raciocínio monológico do macho. Por isso, a mulher tem mais facilidade para desenvolver pensamentos híbridos acerca de si e do outro. Diferentemente da mentalidade masculina, que só produz discursos solipsistas provenientes de sua individualidade monotípica, o pensamento feminino é aquele que consegue fazer a relação entre a subjetividade egoística e a objetividade social, gerando um pensamento capaz de ponderar mais eficientemente os pesos da personalidade e da sociedade, na conta do conhecimento humano.
Vendo-se como indivíduo e, ao mesmo tempo, como máquina biológica de interesse público, a mulher transita entre a consciência e o inconsciente (ipseidade) com muito mais facilidade, a ponto de ter um entendimento mais íntimo da fusão cognitiva entre sujeito e objeto, entre inteligível e sensível, entre lógica e estética. Mas, contabilizada pela tradição tão somente como serviçal da espécie, a mulher é constrangida e pilhada de seus plenos direitos à individualidade, devido ao compromisso a ela imposto pela sociedade, de ser a garantia e a promessa de sobrevivência do grupo.
Em variados graus, cada sociedade concede à mulher apenas uma pseudoindividualidade que limita sua completa autarquia pessoal, enquanto reafirma sua imagem social na forma de um maquinário biológico de uso geral, sob a administração do patriarcado, do clã, da religião e do Estado. Esse controle arbitrário e alienador se impõe mais exatamente às funções biológicas vinculadas à reprodução. Mas, como a mulher não pode se desvincular de seus próprios órgãos, a tradição se encarrega de arbitrar sobre sua vida, uma vez que provém de seu corpo a garantia do futuro da comunidade. Por isso mesmo é comum em todas as culturas as mais diversas formas de obstrução (e até mesmo de negação) dos direitos individuais da mulher, na medida em que seu corpo é tomado como responsabilidade política de toda a coletividade.
Não é à toa a enorme resistência que a tradição impõe contra leis que reservam à mulher o direito exclusivo sobre a gestação. O fato de que somente as mulheres possuem úteros faz com que toda tradição, de qualquer cultura humana, nutra algum tipo de temor, desconfiança e até mesmo ódio do sexo feminino, cobrindo-o com maldições, desprezo, condenações, que são abundantes nas narrativas dos livros religiosos, filosóficos e tradicionais. Tudo isso, porque a história e, até mesmo a glória de todo homem, deve passar obrigatoriamente por entre as pernas da mulher.
Diferentemente do macho humano, cuja individualidade lhe confere um senso de unidade física, psicológica e cognitiva, a mulher luta desde sempre para apropriar-se de seu próprio corpo que, por diversas formas, lhe é alienado e colocado a serviço da descendência. Entender-se como uma pessoa esgarçada, com a psicologia dividida entre ser um indivíduo de plenos direitos e ser um objeto impessoal, destinado à revelia para o benefício da espécie, produz uma fissura psicológica na mulher, da qual o sexo masculino não tem a menor noção. Essa subjetividade bifurcada, de caráter diabólico, que habita cada ser humano do sexo feminino, torna sua psiché muito mais complexa, multiforme, sofisticada e indefinida, em relação ao monopsiquismo masculino.
Certamente, é por isso que a reflexão filosófica masculina sempre qualificou o pensamento da mulher como dispersivo e incapaz de alcançar a ideia de unidade na multiplicidade, nem tão pouco de entender a abstração da multiplicidade em favor da univocidade da essência universal. – blábláblá! – A estéril tagarelice intelectual dos machos pensadores.
Os meandros labirínticos do pensamento polissêmico da mulher sempre serão obscuros e confusos para a cultura falocrática da filosofia. A mulher, por ter as mesmas condições cognitivas dos homens está apta a elucubrar conceitos com a mesma desenvoltura de qualquer pensador masculino. Mas, ela dispõe de mecanismos psíquicos mais afeitos a conjugar a racionalidade dos silogismos abstratos com a sensualidade dos afetos concretos que se comunicam por meio dos corpos vivos.
Forçada a encarar a materialidade dos corpos humanos que emergem de seu próprio corpo, a mente feminina sempre foi capaz de desconfiar das melindrosas especulações abstracionistas que têm grande valor para o pensador masculino; o pensamento feminino, ao contrário, é um mar atormentado por conflitos inteligíveis e derivas estéticas, acerca dos quais o macho humano é incompetente para perceber, criticar ou sequer refletir filosoficamente.
O pensamento feminino é mais bem adaptado para elaborar o conhecimento em fluxo, porque conecta-se mais facilmente com a carne semovente do mundo, ao mesmo tempo em que compreende conceitualmente esse devir em uma linguagem híbrida, que só recentemente a tecnologia da informação vem tornando possível.
Como pode, então, o pensador tradicional imaginar-se criador de conceitos universais se nem sequer vislumbra o modo de pensar experimentado pela outra metade da humanidade - a mulher?
Como o olhar feminino em direção ao mundo pouco foi levado em conta até hoje, o pensamento filosófico ignora ao menos outra importante forma de inferir conhecimentos acerca do real. Enquanto for majoritariamente masculino, o conhecimento filosófico não pode ser universal.
A primeira grande diversidade irredutível a conceitos e impenetrável ao pensador masculino é a mulher. O feminino é o diverso que mais incomoda o pensador masculino, porque a sensibilidade feminina não pode ser convertida a uma identificação genérica pelos conceitos.
Obviamente, a tradição masculina do pensamento sempre temeu e condenou aquilo que não podia conter em ideias abstratas; sempre evitou abordar ou reconhecer o que não podia ser generalizado, classificado, compreendido e definido em qualidades essenciais de um conceito. A dor, o gozo, a alegria e a angústia da existência humana são arenas nas quais a razão masculina falha, enquanto aponta tais manifestações como demasiado humanas, refugos sensoriais que não merecem a atenção da ilustração – seriam os campos da obscuridade e da confusão afetivas próprios do mundo feminino.
O que a tradição filosófica masculina entende como reflexão só tem a ver com a virilidade sólida, rígida e objetiva do pensamento intelectual, que visa penetrar falicamente a substância das coisas, para fecundá-las com interpretações categóricas, fazendo germinar no útero da razão os conceitos de feições antropológicas, que se dão à luz para transcender o mundo e dominar a realidade.
O caminho da identidade escolhido pela reflexão masculina mesmifica, homogeneíza e aplaina das diferenças realmente existentes no mundo, tornando-se um olhar mortal sobre a vida. Desde sempre tem sido necessária a contribuição da forma feminina de pensar o real, de modo a complementar a cognição humana. Segundo Stephen PINKER, a “neurociência, genética, psicologia e etnografia estão documentando diferenças entre os sexos que quase certamente se originam da biologia humana”. (2004, p. 462) Mas, a desigualdade biológica entre os sexos não contradiz a realidade da extrema semelhança genética de nossa espécie, embora forneça uma rica oportunidade de colher dessa diversidade várias formas de ver o mundo. As diferenças entre os sexos masculino e feminino não devem ser apagadas, mitigadas ou hostilizadas, de modo a falsificar uma igualdade ideológica, mas explicitadas com o objetivo de ampliar toda experiência cultural da humanidade, para que o respeito à diversidade entre os sexos produza múltiplos olhares, capazes de ampliar os recursos cognitivos a disposição da humanidade.
Porque as pessoas têm tanto medo da idéia de que as mentes de homens e mulheres não são idênticas em todos os aspectos? [...] O medo, evidentemente, é que diferença implique desigualdade – de que se os sexos diferem em qualquer aspecto, os homens teriam de ser melhores, ou mais dominantes, ou ficar com toda a diversão. [...] [Mas] a seleção natural tende a um investimento igual dos dois sexos: números iguais, igual complexidade de corpos e cérebros, organizações igualmente eficientes para a sobrevivência. [...] Homens e mulheres possuem todos os mesmos genes, com exceção de um punhado no cromossomo Y, e seus cérebros são tão semelhantes que é preciso um neuroanatomista com olho de águia para encontrar as pequenas diferenças entre eles. (PINKER, 2004, pp. 464-465)
Até na baixa modernidade ainda pensávamos que o caminho da igualdade social, econômica, política e jurídica entre homem e mulher seria a única forma de resgatar o mundo feminino de seu lugar impróprio e garantir direitos até então vedados à mulher. Embora a legalização da cidadania feminina ainda seja uma luta importante e decisiva, neste princípio de século XXI tem se investido também no respeito às diferenças entre a mulher e o homem. É claro que sempre haverá identidade genética entre os sexos, que permite grande coincidência cognitiva entre homens e mulheres, porém, as qualidades que os diferem também são extremamente úteis para explorarmos outras dimensões do conhecimento humano.
As mentes de homens e mulheres não são idênticas. Estudos recentes sobre as diferenças entre os sexos convergiram para algumas características dignas de nota: os homens têm mais probabilidade de competir violentamente pelos seus interesses, mais habilidade em manipular mentalmente coisas tridimensionais; elas, por sua vez, são melhores em lembrar a posição espacial dos objetos, são melhores em fazer cálculos, mais sensíveis a sons e odores, tem melhor percepção de profundidade, mais fluência e memória para material verbal, fazem correspondência entre as formas mais depressa e são muito melhores na leitura de expressões faciais e da linguagem corporal. (PINKER, 2004, p. 467)
Duas dessas características diversificantes se provam promissoras: diversos estudos cognitivos têm atribuído à mulher grande facilidade em cálculo e mais fluência verbal, que parecem habilitá-las mais à ciência e à filosofia. Seria o caso de se imaginar o quanto as ciências e as filosofias tornar-se-iam mais ricas e desenvolvidas caso fossem desde sempre abertas à participação da mulher!
A conhecida e propalada propensão feminina para a linguagem nunca foi aproveitada pelas reflexões da linguística.
Até recentemente, as formas masculinas de comunicar a língua eram entendidas como normal, geral e universal.
Embora exista uma longa tradição de estudos das variações na língua dependentes da classe social e/ou da região do/a falante, poucas pesquisas foram realizadas sobre as variações que dependem do sexo, pelo menos até o começo da década de [19]80. Agora, no entanto, já é evidente que homens e mulheres não falam exatamente da mesma maneira. (COULTHARD, 2001, p. 8)
A linguagem verbal não fundamenta todos os tipos de reflexão, nem comunica adequadamente todos os tipos de pensamento, mas principalmente aqueles da ordem do conceito.
Apesar de sua limitação, a linguagem conceitual (verbal) tem sido desde muito tempo o grande veículo de comunicação de conhecimentos socialmente decisivos, de modo que a destreza no conhecimento verbal é condição necessária ao exercício da convivência social. Não por acaso, a forma verbal masculina sempre foi considerada “natural” e universal. Vista como objeto, a mulher nunca foi sujeito para a gramática.
Como criação de homens, a gramática verbal em seu âmbito lexical e sintático reflete a forma masculina de significar o mundo. No Gênesis, não foi Eva a quem o criador chamou para nominar os animais e plantas, mas Adão. Formador de conceitos e árbitro do significado das palavras, o homem transformou os discursos religiosos, filosóficos, científicos, políticos e artísticos em cosmovisões masculinas do mundo.
No âmbito gramatical, a linguagem construída por homens também caracteriza fortemente o pensamento conceitual, especialmente quando o masculino é considerado linguisticamente “não marcado”, isto é, geral e genérico, dando ao âmbito feminino dos termos um caráter particular e específico.
Para a linguagem da tradição filosófica apenas o gênero masculino tem condições de inferir os universais. Portanto, quando se quer fazer referência a uma lei universal, a palavra ou o discurso ganha um caráter masculino. Basta ver os termos que definem a própria humanidade: Homem, mankind, Mensh, Homo sapiens.
Chega a ser curiosa a atenção dada por filósofos às nuanças estilísticas entre filosofias de vários autores, épocas, países e até continentes, tal como os conceitos de “filosofia anglo-saxã”, “filosofia francesa” e a “filosofia alemã” ou “filosofia continental”. Porém, esses mesmos pensadores não conseguem perceber – ou dizem que não há – diferenças notáveis entre o pensamento filosófico feminino e o masculino, já que eles entendem a linguagem conceitual como uma universalidade que se sobrepõe à manifestação específica dos sexos. Mas é evidente que homens não pensam como mulheres!
O pensamento tradicional alimenta a imagem, segundo a qual todo filósofo é um desinteressado observador, assexuado, incorpóreo e racional, insistindo na falácia epistemológica da neutralidade de gênero. Em vista dessa ingênua crença, os homens filósofos pensam que a reflexão crítica que eles produzem não é influenciada por seus corpos físicos, permitindolhes serem observadores externos da cena humana e, por assim dizer, despidos de suas sexualidades no ato da reflexão – creem pensar não como machos da espécie humana, mas como mentes universais abstratas.
O chauvinismo filosófico deplora a capacidade do pensamento feminino em promover um convívio frutífero entre a razão e a sensibilidade, já que para a tradição do pensamento essa mistura, qualquer miscelânea ou miscigenação, é sempre perigosa e deletéria para a clareza e distinção dos conceitos. Assim, condenam a reflexão feminina, acusando a falsidade e a precariedade de seu ecletismo ou, pior dos pecados, denunciando o viés emocional de suas ponderações.
O idealismo da tradição sempre será misógino. Abstrações são incompatíveis com a cornucópia biológica da realidade do mundo. Atualmente, no entanto, tornou-se urgente denunciar a falsa superioridade do pensamento masculino. Ao contrário, o pensamento feminino se revela muito mais rico do que o masculino, devido ao fato de a mulher tanto alcançar quaisquer níveis de raciocínio lógico desenvolvido pelo homem, como também, muitas vezes ao mesmo tempo, exceder as capacidades masculinas ao obter conhecimentos eficientes a partir da sensibilidade e da percepção educadas pela experiência da vida feminina.
Bem ao contrário do mundo das ideias perfeitas, sonhado e cultivado por homens pensadores que julgaram domesticar o real pela força mesmificadora do conceito, o pensamento feminino sempre atribuiu à carne de seu corpo o fundamento de qualquer forma de conhecimento humanamente factível. A mulher sempre soube que de suas entranhas provém a encarnação do homem, que por sua vez não pode pensar sem a carne que o constitui – a mesma carne que a mulher alimenta em seu ventre, cresce e se desenvolve em meio à violenta fluidez do real. Por saber sentir mais do que o homem a dor dessa concepção mortal, a mulher conhece a diabólica natureza insensata do devir e sempre soube mais que o homem acerca da completa falta de sentido em que o real existe no eterno conflito.
Todo vir a ser se faz da guerra entre os opostos: as qualidades definidas, que a nós parecem persistentes, expressam apenas a preponderância momentânea de um dos combatentes, mas a guerra não termina com isso; a contenda continua pela eternidade. Tudo ocorre conforme a luta, e é ela mesma que explicita a justiça eterna. (NIETZSCHE, 2013, p. 28)
Pelo fato de sua natureza biológica lhe permitir gerar uma vida geneticamente diversa de seu próprio corpo, faz da mulher um campo de batalha entre corpos que se atraem e se misturam para, em seguida, se distanciarem e se estranharem. Essa natureza diametral e diabólica faz do pensamento feminino uma cognição estética. Desde sempre, a psiché feminina acostumou-se à inescrutável criação da vida e do efêmero. A mulher, portanto, possui a única subjetividade fendida, capaz de enxergar esteticamente tanto os conceitos abstratos da razão, quanto o fenômeno sensível de um mundo, cuja inferência só é possível a quem experimenta a paixão de um afeto que atinge sua carne cognoscente. A mulher pensa na encruzilhada diabólica entre a lógica e a estética.
Se a filosofia não se renovar agora, para recepcionar o pensamento não-verbal, feminino e estético, ampliando seu modo de entender o mundo, a reflexão filosófica será definitivamente superada pela explicação tecnocientífica dos fenômenos, que vem se tornando bem mais eficiente ao justificar a dinâmica dos novos processos de apresentação e representação do real, na cultura contemporânea.

(Marcos H. Camargo - Formas diabólicas: ensaios sobre cognição estética)
As mulheres na Filosofia

 
 

publicado às 23:39


Estética e ciência

por Thynus, em 01.05.17
[..] pessoas superficiais não
julgam pelas aparências. O
verdadeiro mistério do mundo
está no visível e não no invisível.

(Oscar Wilde, em
O Retrato de Dorian Gray.)
Ciencia com conciencia y conciencia de la ciencia
 
Assim como nasceu a mulher da costela de Adão, segundo o mito bíblico, a ciência também emergiu das entranhas da filosofia geral, quando seu campo de estudos deixou de se denominar “filosofia natural” para se transformar em um novo sistema de conhecimento. Embora traços genéticos da reflexão filosófica ainda podem ser identificados na ciência, especialmente no que se refere à busca pela verdade e a elaboração de conceitos.
A tradição filosófica que ainda predomina na ciência conduziu- a pelos caminhos do pensamento idealista, que sempre buscou pela verdade fora do “mundo aparente”. Por isso, ainda hoje, tal como procede a tradição filosófica, a ciência desconfia das aparências e dos fenômenos, preferindo perseguir a verdade junto ao mundo invisível das leis universais.
Depois de quatro séculos de ciência das causas, a modernidade se embriagou com seu idealismo cientificista, convencendo-se daquilo que Antoine de Saint-Exupéry escreveu em seu famoso livro – citado atrás –, acerca da invisibilidade do essencial. Não deixa de ser uma deliciosa ironia a anedota, segundo a qual, na tentativa de superar o materialismo pragmático de O Príncipe, de Maquiavel, o idealismo do senso comum não conseguiu produzir nada melhor do que um pequeno príncipe.
Obviamente, seria estultícia imaginar que o mundo só é composto de coisas “visíveis”, principalmente se as traduzirmos por “sensíveis”. Desde os estoicos já se sabe que o fenômeno, por exemplo, aparece na superfície das coisas como resultado de ações entre os corpos (sensíveis); é desse movimento superficial que surge o incorporal, como efeito de ações entre as coisas, que não se resumem às suas corporeidades. Deleuze chama a isso de “acontecimento”, cuja realidade é virtualmente invisível – o que se vê são geralmente os seus resultados.
Os estoicos criaram uma filosofia dos acontecimentos, em parte retomada pelo pensamento contemporâneo, em que o evento, o movimento e a ação modificadora se tornam elementos centrais dessa filosofia. A dinâmica dos acontecimentos (incorporais) embaralha toda relação clássica de causa e efeito, de modo que uma coisa não se parece com o resultado de outra, mas sim com a relação entre corpos que, tensionados entre si, provocam o surgimento de um terceiro elemento, que surge como incorporal.
No entanto, os incorporais não pertencem à metafísica, pois são elementos invisíveis da physis que produzem, tanto quanto são produzidos por acontecimentos entre os corpos. Os incorporais são as forças invisíveis da natureza que causam os (mas também são causados pelos) corpos visíveis (sensíveis). Eles podem ser percebidos na medida em que se observam os efeitos de ordens naturais sobre as coisas. Não se tratam de habitantes de um mundo suprassensível por detrás do mundo realmente existente. Abstrações, conceitos e ideias também podem, de algum modo, ser arrolados entre incorporais, de vez que induzem, tanto quanto são induzidos por acontecimentos. Mas esses também não pertencem a outro mundo, pois são produto da mente e da cultura humanas.
É óbvio que não se pode flagrar conceitos abstratos perambulando pelas ruas – pelo simples fato de que eles são incorporais –, nem tão pouco fotografar leis universais exercendo suas determinações em praças públicas, embora tenhamos ciência da realidade de forças e ordens existentes no mundo. Mas, daí a dizer que o essencial é invisível aos olhos vai uma longa distância, que beira a ingenuidade idealista, ao considerar as essências como dados de realidade, quando elas não passam de criações da gramática.
Deve-se confessá-lo, a vida não seria possível sem toda uma engrenagem de apreciações e de aparências, e se se suprimisse o “mundo aparente”, com toda a indignação voltada contra ele por certos filósofos, supondo-se que isso fosse possível, nada restaria tampouco de nossa “verdade”. [...] O filósofo não tem razão de declarar-se rebelde contra a confiança cega concedida à gramática? (NIETZSCHE, 1977, p. 55) 
Por essas e outras, alguma coisa mudou desde o fim da modernidade. E essa transformação pode ser percebida na frase de Paul Valery, que Gillles Deleuze tanto apreciava: “o mais profundo é a pele”.
As linguagens da cultura, dentre elas a verbal e a matemática, são também aparências de realidade, na medida em que representam apenas algumas partes do mundo real para o entendimento humano, na forma de ideias abstratas. A gramática, por exemplo, só é compreensível cognitivamente quando a observamos agir em uma superfície diáfana (tanto da voz, como das letras), que serve de veículo de comunicação para nossas mentes representarem o real na forma de imagens codificadas. A tão desejada verdade que os pensadores buscam em suas reflexões, mais não é do que uma eficiente interpretação inscrita em textos, cuja sintaxe visa simular certas qualidades do real.
A verdade é uma aparência de realidade.
O dano colateral causado pela crença na verdade como propriedade de uma coisa é a ilusão acerca da existência de um significado e um sentido imanentes ao real, que poderia ser capturado pela linguagem verbal. O ser humano não tem como enxergar o real de outro ponto de vista, a não ser por meio de seu próprio antropocentrismo. A humanidade de nossas interpretações não permite encontrar uma verdade neutra, própria, única, mas somente verdades provisórias, quando damos um sentido humano ao mundo. O real é sempre apenas o real, sem significado, nem sentido; completamente absurdo e idiota.
Lembremo-nos de que o termo ‘idiota’, antes de ser interpretado como enfermidade pela medicina, era definido originalmente pelo conceito de ‘particular’, ‘único’ e ‘individual’, isto é, idiossincrático – aquilo que é insubordinável e que tem governo próprio. Em outras palavras, o real jamais será reduzido à compreensão humana, e a alternativa está em conhecê-lo sempre melhor para entendermos que somos nós que lhe emprestamos sentido, quando olhamos para ele com nossos olhos humanos.
Esta idiotia da realidade é, aliás, um fato reconhecido desde sempre pelos metafísicos, que repetem que o “sentido” do real não poderia ser encontrado aqui, mas sim em outro lugar. A dialética metafísica é fundamentalmente uma dialética do aqui e do alhures, de um aqui do qual se duvida ou que se recusa e de um alhures do qual se espera a salvação.(ROSSET, 2008, p. 54) 
Apesar de a metafísica analisar corretamente acerca do estado de idiotia do mundo real, ela se engana ao pensar que o homem seria capaz de encontrar ou prover-lhe algum sentido buscando-o em outro mundo. Ao homem não nos foi dado o poder de significar o mundo, mas apenas constituir sentido para nossas próprias ideias acerca do real. O mundo inteligível (o ‘alhures’ da metafísica) é uma duplicata fantasmagórica do real atada às linguagens lógicas, que se imagina independente da idiotia do mundo concreto.
Se ao menos por instantes conseguíssemos nos afastar de nosso antropocentrismo, poderíamos seguir em direção a outra experiência cognitiva do real e de sua idiotia, pois nosso corpo desde sempre pertence ao devir e, de algum modo, também é idiota – por que nosso próprio ego é incomunicável. Ao contrário, porém, “os filósofos são caracterizados por seu ‘egipticismo’, visto que não manipulam senão ‘múmias conceituais’ e impõem à vida do devir categorias e identidades que não são mais do que os pressupostos metafísicos da linguagem”. (LEFRANC, 2011, p. 297)
Essa disputa é antiga, e a ciência a herdou da filosofia.
Os métodos e instrumentos científicos são medidas de garantia contra as aparências dos fenômenos e meios para alcançar suas essências que, ao serem comunicadas pelos pesquisadores, ganham existência nas linguagens da cultura. Essa operação de semantização (doação de sentidos) dos fenômenos, segundo os métodos científicos, garante às verdades a impressão de que o homem pode, sim, tocar a realidade dos fatos, distinguindo sistematicamente a essência, da aparência das coisas. Essa distinção já foi traçada pela primeira vez no poema de Parmênides, em que a cognição divina (noein) e a verdade são contrastadas com as opiniões dos mortais (doxai) ‘nas quais não há verdadeira confiança’ (pistis).
Mas antes de Parmênides, e mesmo antes de Heráclito, Xenófanes já havia negado que um homem pudesse ter uma visão clara ou um conhecimento certo sobre as coisas mais importantes, insistindo em que deveríamos nos satisfazer com conjecturas (dokos) ou opiniões próximas da verdade (dedoxastho). Assim dokien invoca a noção de uma espécie de cognição tipicamente humana e tipicamente falível. (KAHN, 2009, p. 326) 
Na atualidade, quando finalmente nos rendemos à crua evidência de que o real está em fluxo e que o conhecimento humano só pode ser histórico (narrativas de transformações), a verdade (noein) volta a ser uma opinião (doxai) válida, enquanto eficaz, enquanto transitória. Desse modo, ao participar da historialização do real, a verdade científica não tem como significar uma essência atemporal; ela perde sua fixidez e deixa de se opor à aparência. A aparência (a pele das coisas) deixa de ser oposição à verdade, para participar dos modos de apreensão do real.
Sob o termo “aparência”, [o filósofo alemão Martin] Seel reúne as condições com as quais o mundo nos é dado e apresentado aos sentidos humanos (outra palavra que ele usa no mesmo contexto é Wahrnehmung, “percepção”). Como é óbvio, uma estética da aparência é uma tentativa de nos devolver, à consciência e ao corpo, a coisidade do mundo. [...] Não por acaso, portanto, Seel repetidamente associa a aparência à presença – o que quer que “apareça” está “presente” porque se oferece aos sentidos do ser humano.(GUMBRETCH, 2010, p. 88)
 A aparência não é a mera ilusão dos sentidos, que o pensador cartesiano deveria evitar a todo custo na busca pela verdade essencial. Ela é o sintoma da presença das coisas diante da sensibilidade do corpo humano. A aparência não é movediça pela insuficiência de verdade em sua manifestação. Pelo contrário, a fluidez da aparência desvela ao homem o devir, de modo muito mais eficiente do que a exatidão de conceito poderia formular.
A qualidade da “exatidão”, com que a ciência se define, na verdade é uma ilusão verbal que esconde a real incapacidade de apreender a natureza em conceitos. Proveniente do latim, a palavra exactus (exato) compõe-se da partícula ex (fora, ausência, negação) e do particípio passado do verbo agere: actus (ação, movimento). Etimologicamente, a ‘exatidão’ das ciências implica um conhecimento formado na ausência do movimento do mundo. De fato, somente quando a ciência consegue se evadir da assimetria, da irregularidade, obscuridade e vagueza do real pode apresentar resultados “exatos” e matematicamente perfeitos, produzidos a partir de equações simétricas e harmônicas, obedientes a regras apriorísticas antecipadas pela ordem lógica do pensamento abstrato. O curioso é saber que a ciência só é exata quando não corresponde ao mundo real, que é fluído – como diz a anedota popular: “o papel aceita tudo!”
Linguagem e ciência – ao mesmo tempo em que são considerados os filósofos que definiram o campo da ciência como conhecimento autônomo, Descartes, como também Galileu, Bacon, Pascal, Leibniz e seus contemporâneos, foram os responsáveis pelo início da matematização da filosofia.
Se, por um lado, a filosofia moderna ganha mais racionalidade com a forma matemática de pensar a verdade, por outro, aumenta ainda mais seu grau de abstracionismo e de idealismo. E por mais importante que seja para a cultura humana, a matemática não é a forma do real capturada imediatamente pelo intelecto, visto que também se trata de uma linguagem de representação de ideias humanas acerca do real.
O poder (mas também a fragilidade) da linguagem matemática reside no fato de que seus conceitos são aplicados de modo universal, não se levando em conta a particularidade do fenômeno a ser mensurado. Um círculo e sua equação são os mesmos aqui e em Júpiter; a equação da parábola se aplica tanto na Lua como no Tajiquistão. Devido a axiomas e equações que independem de contexto, história ou lugar, cujas regras resultam em provas sempre idênticas e previsíveis, o pensamento matemático empresta uma grande sensação de confiança naquele que busca por verdades permanentes. Daí, até extrapolar a matemática como a própria engrenagem do mundo, basta um pequeno alento da vaidade intelectual.
Como qualquer linguagem, a matemática assemelha-se a um jogo, do tipo que Wittgenstein atribuiu à gramática. Apesar das regras rígidas e códigos estáveis, a matemática permite inúmeras formas de “jogo” – cálculos aplicáveis a um sem-número de situações conhecidas, além daquelas que a criatividade possa inventar. Essas regras e abstrações matemáticas fazem parte da cultura humana, elas são invenções do homem, como ferramenta cognitiva adaptada para lidar com o real de maneira vantajosa para nossa sobrevivência e sucesso biológico. A matemática não é a essência do mundo que se mostra para nós, mas o nosso próprio modo antropológico de pensar e ver o mundo em que vivemos.
Embora a lógica interna às regras matemáticas busque mimetizar a ordem que o homem percebe na natureza, como ferramenta de compreensão do mundo, a matemática jamais emula completamente a realidade em suas equações, de vez que toda linguagem é mapa, sempre menor e mais simplificado do que o território que representa.
Ao longo dos séculos modernos a matemática abandonou aquela cautela que os gregos se impuseram em sua relação com a realidade e se tornou a linguagem de representação das ciências, o que permitiu avanços impressionantes que conduziram a civilização humana a níveis de desenvolvimento jamais imaginados. Porém, o idealismo das formas matemáticas também trouxe aos cientistas a mesma soberba dos filósofos – a caprichosa pretensão de extrapolar matematicamente o mundo, pretendendo que os fenômenos naturais respondam universalmente às cadeias categoriais e classificatórias antecipadamente definidas pelos matemáticos.
Fazer matemática, para o grego, significa captar tudo o que a natureza (phýsis) oferece à visão (ideîn) e não comprimir a natureza numa série de hipóteses aprioristicamente construídas pelo homem. Na Grécia, portanto, havia a matemática, mas não o matematicismo, ou seja, a absorção da natureza num sistema conceitual abstrato e pré-constituído pelo homem, em que os elementos sensíveis e visualizáveis cessam de ter relevância em si, para adquirir uma relevância proporcional à sua tradutibilidade em entidades matemáticas não sensíveis e não visualizáveis. (GALIMBERTI, 2006, p. 338)
Como linguagem, a matemática é um sistema de representação do real, que utilizamos para entendê-lo. Dizer que a matemática tem o poder de colocar o real em equações, é se esquecer de que as figuras abstratas (calculáveis pela matemática) são aproximações sintéticas das formas reais.
[A] partir daí a matemática dá um grande salto e simplifica as coisas, aproximando as assimetrias dos objetos do mundo por formas simétricas, que são mais facilmente manipuláveis por nossas mentes. [...] O poder da matemática vem de sua liberdade, de não estar necessariamente ligada à realidade física, tentando “explicar” o mundo.(GLEISER, 2014, p. 289)
Ao contrário do que pensa o senso comum, a desenvoltura com que a matemática projeta cenários com seus cálculos não se refere à intimidade que ela desfruta com o real, mas se deve à sua liberdade com relação ao mundo. Os desenvolvimentos mais avançados da matemática não se vinculam com experimentos ou fatos realmente existentes, mas a resultados extraordinários derivados de suas próprias regras. Apenas alguns desses experimentos abstratos encontram utilidade na vida prática.
[A] maioria das construções matemáticas habitam um mundo abstrato, desvinculado da realidade em que vivemos. Este transplante de ideias, abstraindo formas e números da Natureza para uma melhor manipulação conceitual, explica por que a matemática, mesmo quando aplicada ao mundo, é sempre uma aproximação da realidade, não a realidade em si. (GLEISER, 2014, p. 289)
A arbitrariedade dos conceitos matemáticos permite a seus usuários constituir fantásticos universos teóricos, cuja perfeição e simetria fascinam seus operadores, a ponto de fazê- los crer terem alcançado algum nicho misterioso da realidade. Há os que chegam a crer que as abstrações matemáticas constituem o DNA da realidade em si mesma, de onde podem sacar frutos da mítica árvore do conhecimento que se situaria no centro do mundo dos números.
A crença em um domínio matemático habitado por verdades que a mente humana pode captar com maior ou menor eficiência – dependendo da imaginação e habilidade do indivíduo – tem todos os ingredientes de uma fantasia religiosa: um mundo imaginário, que existe em uma realidade paralela à nossa, onde se ocultam verdades eternas, acessíveis apenas àqueles que, como profetas, têm a habilidade de enxergar mais longe do que os outros e que podem, então, traduzir para o deleite e sabedoria do homem comum. (GLEISER, 2014, pp. 290/291)
Como consequência dessa visão platônico-religiosa, que alguns ainda guardam da matemática, provém uma extrapolação, igualmente platônica, entre verdade e beleza. Ao julgar o mundo como uma projeção imperfeita da realidade, os platônicos e judaico-cristãos buscaram elevar o conceito de belo para as alturas abstratas do pensamento, fazendo crer que a beleza “real” só pode ocorrer como uma qualidade da “verdade eterna”. O que encanta os platônicos e judaico-cristãos, de fato, são as simetrias perfeitas, a pacificação eterna dos conflitos e a identificação completa do mundo ao pensamento humano. No entanto, para que esse mundo fantástico sobreviva em suas mentes, é preciso sonegar o fato de que as equações matemáticas são, por certo, aproximações abstratas ao fluxo inconstante do real.
[...] a noção de que “a verdade é bela e a beleza é verdade”, ou seja, de que existe uma estética de beleza na matemática que se espelha na Natureza, é falaciosa. [...] a maioria das simetrias é fruto de aproximações e todos os objetos reais são essencialmente assimétricos, mesmo que alguns apenas de forma sutil. [...] o poder criativo da Natureza emerge principalmente das imperfeições, não de simetrias e perfeições. (GLEISER, 2014, pp. 293/294/296)
O mundo real depende fortemente dos desequilíbrios, assimetrias e desproporções entre os sistemas e os elementos naturais, para criar o movimento que faz fluir a vida. Platônicos e judaico-cristãos só veem a ordem e se maravilham com ela. Mal admitem, no entanto, que aquilo que define a ordem é a desordem que tudo envolve. É um engano afirmar que fazer ciência é apenas buscar pela ordem e definir generalizações, visto que o conhecimento do mundo demanda considerar em maior proporção o caos que alimenta as assimetrias e da ipseidade das coisas.
A Natureza precisa do desequilíbrio para criar. Benoît Mandelbrot, o inventor dos fractais, expressou isso de forma bem clara: “Nuvens não são esferas, montanhas não são cones, as costas dos países não são círculos, os troncos das árvores não são lisos e os relâmpagos não viajam em linha reta.” A riqueza que identificamos na Natureza não vem de isolarmos a ordem acima de tudo, mas ao contrastarmos ordem e desordem, simetria e assimetria, como aspectos complementares de nossa descrição do mundo natural. [...] O perigo (e aqui identificamos a origem da falácia platônica) é considerar as simetrias uma característica essencial da Natureza quando na verdade são ferramentas conceituais que usamos para descrever o que vemos e medimos no mundo. (GLEISER, 2014, pp. 293/294/296)
Como, então, superar uma ideia de ciência que ainda se pratica, com seus cacoetes neoplatônicos, que buscam tão somente pela ordem e pelo padrão? É preciso considerar que a ordem em si mesma não é suficiente para explicar o real. A ordem, isto é, a regularidade que o cientista encontra (ou fabrica!) não é suficiente para esgotar o conhecimento de um dado sistema, visto que tais padrões são formações sobre um fundo de desordem e caos. Enxergar apenas o padrão, significa tropeçar inevitavelmente em seus limites, além dos quais o caos reina soberano.
A primeira pergunta que o cientista tradicional faz refere- se a como conhecer cientificamente o caos, quando toda maquinaria intelectual da ciência está voltada apenas para recepcionar a ordem em seus cálculos. Obviamente, não será com essa tradição científica que seremos capazes de abordar a realidade das assimetrias. A entropia é incalculável. Nem todo conhecimento provém de cálculos racionais e metodológicos. A cognição experimental, pela qual o cérebro investe a maior parte de sua energia, tem capacidade plena de conhecer esteticamente o real. A cognição estética é a forma de conhecimento mais apta a realizar a passagem entre as formas simbólicas da cultura e as formas diabólicas do real, permitindo ao pesquisador experimentar a assimetria entre a ordem e a desordem do mundo.
O conhecimento humano não deve se limitar apenas a contabilizar sistemas e subsistemas ordenados, simétricos e proporcionais, com os quais se pretendem representar o mundo. O conhecimento precisa expandir suas fronteiras incluindo modos de cognição estética que permitam inclusive validar a metodologia utilizada pela ciência.
Considere, portanto, que a totalidade de nosso conhecimento acumulado constitua uma ilha, que eu chamo de “Ilha do Conhecimento” [...] cercada por um vasto oceano, o inexplorado Oceano do Desconhecido, onde, inevitavelmente, ocultam-se inúmeros mistérios. [...] O crescimento da Ilha do Conhecimento tem uma consequência tão surpreendente quanto essencial [...] vemos que, quando a Ilha do Conhecimento cresce, nossa ignorância também cresce, delimitada pelo perímetro da Ilha, a fronteira entre o conhecido e o desconhecido: aprender mais sobre o mundo não nos aproxima de um destino final [...] mas, sim, leva a novas perguntas e mistérios. Quanto mais sabemos, melhor entendemos a vastidão de nossa ignorância... (GLEISER, 2014, pp. 22/23)
Prestemos atenção a isto: o senso comum se engana ao imaginar que há um fim (uma finalidade) para o conhecimento, alcançável pelo esforço humano, no intuito de atingir a verdade plena sobre as coisas. Ledo engano! A metáfora da “ilha do conhecimento”, utilizada pelo autor citado, é bem útil para percebermos que, na medida em que a ilha cresce, expande seu litoral, da mesma maneira aumenta o contato com o mar da ignorância. Toda vez que o conhecimento humano se amplia não chega mais perto de sua realização, mas entra em relação com mais mistérios a serem superados e, assim, sucessivamente, quanto mais sabemos, mais entendemos não ser possível tudo conhecer.
Por essas e outras, não devemos nos limitar a um só modo inteligível de conhecer, visando apenas a ordem e os sistemas. Precisamos acrescentar ao infindável esforço de entender o mundo os modos perceptivos, experimentais, afetivos e estéticos da cognição, como prática de uma pesquisa mais aberta, que considere todos os aspectos do conhecimento acessíveis à cognoscência humana.
A “ciência é uma criatura dos olhos. Surgiu como uma tecnologia para ver melhor. Esse é o sentido da palavra ‘teoria’: no grego ela quer dizer ‘contemplar’. Saber é ver” (ALVES, 2011, p. 62). Mas, a maioria dos filósofos e cientistas prefere ver somente a ordem que determina os fenômenos, evitando o convívio com as coisas. O mito da objetividade filosófica e científica persiste na crença de que o olhar crítico do pensador/cientista não implica qualquer participação subjetiva no exame do objeto recortado. Contudo, qualquer recorte realizado pelo pensador/ cientista, para pesquisar uma parcela do continuum real, conduz a uma opção antropocêntrica e subjetiva. Por causa da humanidade dos cientistas, a ciência não caminha por si mesma, para realizar objetivamente suas metas universais; muito pelo contrário, a ciência é o conjunto desarticulado das mais variadas pesquisas, aleatoriamente distribuídas segundo interesses, por vezes, muito pouco racionais e até contraditórios.
O impulso natural pela sobrevivência e prosperidade é uma necessidade vital que empurra as espécies para uma angustiosa e permanente investigação sobre as mutações e as permanências características do ambiente em que vivem. Encontrar as regularidades que determinam o atual e o futuro comportamento de um ambiente faz a diferença entre a vida e a morte. Por isso, a ordem sempre fascinou o homem, porque ela permite que se façam previsões. “Esse espanto perante a ordem é a primeira inspiração da ciência. Quando o cientista enuncia uma lei ou uma teoria, ele está contando como se processa a ordem, está oferecendo um modelo da ordem”. (ALVES, 2009, pp. 28-29)
A ordem é incorporal, no sentido de que tais leis não residem nas coisas, mas as determinam de fora. Para a filosofia, tanto quanto para a ciência, as coisas são meras provas e fatos produzidos pela atuação das leis invisíveis que regem o mundo. Entretanto, só se pode tomar conhecimento da ordem invisível a partir da percepção aguçada de seus efeitos sobre as coisas particulares que habitam a realidade sensível – o que implica uma percepção e sensibilidade educadas para distinguir as simetrias e assimetrias que se manifestam na aparência das coisas.
Os cientistas facilmente se esquecem de que lidam com modelos explicativos das ordens fornecidos pelas linguagens da cultura, enquanto o real continua a fluir em absoluta idiotia. Prova disso são os inúmeros fracassos experimentados por aqueles que aplicam com rigor os modelos científicos diretamente sobre a realidade natural e/ou social. O que lhes falta a considerar, para o sucesso de suas adaptações, é a leitura das assimetrias do real que abarcam toda e qualquer manifestação de caráter material, individual e singular.
[A ciência] nos dá apenas modelos hipotéticos e provisórios. Modelos: o que é isso? Miniatura de um original? Talvez. Um aeromodelo é uma miniatura. Como se faz para construir um aeromodelo? Antes de mais nada é necessário conhecer o original. A partir do original constrói-se uma réplica, em escala reduzida. Quando dizemos que um modelo é bom? Quando, comparando-o com o original, verifica-se que ele está reproduzido, copiado, de forma precisa. Ora, isso só é possível se conheço o original. (ALVES, 2009, p. 47)
Contrariamente à ingênua crença nas ideias inatas, construir um conceito, um modelo explicativo de algum fenômeno real, depende exclusivamente do melhor conhecimento possível da coisa sob análise. Ou seja, antes de qualquer teoria é preciso experimentar o fenômeno com todos os órgãos dos sentidos disponíveis, fazendo-se da relação coisa-coisa (corpo humano-fenômeno real) a primeira atitude cognitiva, cuja memória agirá como juíza da fidelidade do modelo a ser estabelecido pela linguagem.
A ciência é máquina semantizadora, derivada das linguagens da cultura, que nos oferece modelos replicantes do real. Aparelho de significação do mundo, a ciência demanda uma forma de explicação para conhecer o real, que os cientistas denominam método. Entretanto, todo método é uma rede de captura ajustada para identificar apenas a ordem previamente deduzida na teoria ou na hipótese antecipatória. Não há método científico que revele ordens desconhecidas ou singularidades originais, pois todos os métodos são – antes de tudo – apriorísticos e antropomórficos. Assim como o próprio olho não se vê, o homem não pensa fora de sua humanidade.
Talvez, se pudéssemos extrapolar nosso antropocentrismo por um pouco, quem sabe entenderíamos a verdade comunicada por este fragmento de Heráclito: “A mais bela ordem do mundo é extensão amontoada varrida ao acaso”. (KAHN, 2004, p. 106) Esta descrição milenar acerca da natureza do real parece nos dizer que não devemos enxergar apenas a ordem, quando olhamos para o mundo. A ordem não provém de outra ordem anterior ou superior, mas da desordem primordial, advém do caos. Além disso, a ciência já sabe através da segunda lei da termodinâmica que tudo está a caminho do caos, da entropia. A ordem, portanto, está em fluxo. Houve um tempo em que ela não existia e noutro tempo irá desaparecer.
Um dos principais modos de auferir conhecimento é ordenar e reduzir parte do universo apreensível ao mundo conhecido por nós, através de nossas faculdades sensíveis e intelectuais. “O conhecido, o familiar, é a rede com que nos aventuramos a pescar no mar do ignorado. Compreensivelmente – e não poderia ser de outra forma – a gente só pesca o que cabe nessa rede (isso não quer dizer que, de vez em quando, a rede não sofra alterações)” (ALVES, 2009, p. 50).
Ao desprezar as faculdades sensíveis da cognição humana, a ciência tem sofrido dificuldades para expandir suas fronteiras, na medida em que se constrange à busca pela ordem, ignorando a miríade de singularidades que habita o real. Atada ao pressuposto da generalidade, a ciência ainda persegue apenas os fundamentos da ordem que causa as coisas, enquanto menospreza o testemunho sensível que as coisas reais oferecem como provas dos efeitos da ordem e do caos.
Devido à ortodoxia, a ciência se prende às suas próprias idealizações, quando enxerga as coisas no mundo real com os óculos do método que abraça, ao invés de experimentar as coisas tal como se manifestam no mundo.
Uma dessas idealizações científicas responde pela crença de que a especialização contínua faria surgir uma orquestra de disciplinas e campos de pesquisa capazes de compor em conjunto uma sinfonia metodológica unificada e coerente. Ledo engano! – O todo não é melhor que a soma das partes. “O que ocorre, frequentemente, é que cada músico é surdo para o que os outros estão tocando. Físicos não entendem os sociólogos, que não sabem traduzir as afirmações dos biólogos, que por sua vez não compreendem a linguagem da economia, e assim por diante”. (ALVES, 2009, p. 11)
A visão romântica de uma ciência ordenada e progressiva se deve ao viés idealista do conhecimento, herdado da tradição filosófica. Por isso, é preciso que a ciência (ou, quem sabe, a epistemologia) recomponha-se a partir de sua própria história, que um dia se baseou na dúvida metódica. “O grande lance é a hesitância, é a dúvida. O não-saber produz o saber. Em outras palavras, a ciência se funda na pergunta, e não nas respostas”. (PINTO, 2002, p. 14). A ciência não deve se esquecer de duvidar de seus processos e, nesse gesto, garantir o próprio avanço, a invenção de novos métodos, novas “redes” para capturar dados ainda não observados.
Como disse Bacon, scientia est potentia. Vale dizer, então, que há muito se sabe que a ciência acumula a humanidade de poder, que se traduz em liberdade, quando a sociedade emprega a ciência para fortalecer os direitos humanos.
Se por liberdade entendemos o exercício da livre escolha a partir das condições existentes, devemos dizer que as sociedades tecnologicamente avançadas oferecem um espaço de liberdade decididamente superior àquele concedido pelas sociedades pouco diferenciadas, nas quais, como vimos, a qualidade dos laços e a homogeneidade social reduzem a margem de liberdade ao elementar da obediência ou da desobediência.(GALIMBERTI, 2006, p. 664) 
Atualmente, a fronteira da ciência está se movendo para além dos limites da tradicional noção de distinção e clareza, inclusive no âmbito das ciências ditas exatas. “O que é certo e que a actual ‘nova ciência’ está fortemente a redescobrir é a virtude do quase [grifo meu]. [...] O universo do impreciso, do indefinido, do vago mostra-se pois rico de sedução para a mentalidade contemporânea”. (CALABRASE, 1999, p. 171)
Ao adentrar pelo mundo da vagueza, do incomensurável e da obscuridade inerentes ao fluxo do real – campo do analogon rationis da estética –, a ciência tem de incorporar em seus métodos e procedimentos as ferramentas da cognição sensível. A estética cognitiva, entendida aqui como uma teoria da percepção cognoscente, dispõe das trilhas sensitivas capazes de conduzir o cientista em direção das singularidades dos corpos habitantes do fluxo do real e de suas inter-relações indefiníveis.
Trata-se de fazer enxergar aquilo que era considerado não-científico, como possível contribuição ao conhecimento efetivo. “A questão continua a ser, porém, como pensar esse ‘outro’ da razão científica quando o pensamento, e em especial o pensamento por meio de conceitos, é visto como uma redução do ‘outro’ ao mesmo”. (STEUERMAN, 2003, p. 17)
A virtude do método é separar aquilo que é, daquilo que não é cientificamente adequado, embora nenhum método seja capaz de identificar o novo fenômeno ou uma nova ordem, porque seus procedimentos são previamente definidos para capturar tudo aquilo que o cientista desconfia já existir, segundo hipóteses logicamente elaboradas de antemão. Por isso mesmo, quando algo realmente novo aparece é identificado apenas como uma variação heteróclita de algo que já existe, reduzindo a real estranheza da novidade a uma variável esquisita do conhecido.
Se a ciência não pode prescindir de seus métodos, ela mesma não tem como julgar sua eficiência por meio de juízos internos aos mesmos métodos que pretende testar. Seria “razoável” submeter a razão ao tribunal da própria razão? Não seria paradoxal, bizarro até, exigir que um instrumento critique sua própria natureza e sua própria competência, fazendo o reconhecimento de seus próprios limites? Não é a mesma ciência que diz ser necessário um parâmetro externo para julgar algo de maneira objetiva?
Toda vez que o cientista vai a “campo” testar sua teoria, ele coloca seu experimento em contato com o devir, onde predomina o ambiente estético e diabólico do real. O que, de fato, julga a simetria da hipótese do cientista são os elementos físicos que constituem o fluxo do real. É a empiria do “campo” que autoriza ou rejeita a hipótese em teste.
Esse juízo se forma em uma instância externa à ciência. Este parâmetro estrangeiro é que julga a efetividade do conhecimento científico. A ciência – e mesmo a filosofia – deveria considerar a estética cognitiva como instrumento judicativo capaz de validar seus limites, métodos, procedimentos e resultados. Somente a ciência do singular – a estética – pode oferecer os contornos que definem de fora as ciências do geral.

(Marcos H. Camargo - Formas diabólicas: ensaios sobre cognição estética)

publicado às 04:48


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