É certo, como dissemos, que os monges, particularmente os dominicanos e os franciscanos, estudavam medicina em seus monastérios e tentavam minimamente manter o conhecimento médico da Antiguidade.
Quando Cassiodoro (487-583) descreve o currículo de estudo dos monges, sugere que estudavam a teoria herbal, de Dioscórides, e os trabalhos de Hipócrates, Galeno e outros escritores gregos e latinos. Isso não significa que os monges desejassem ser médicos. Esses textos eram apenas uma pequena parcela de suas funções didáticas, e, de fato, o que importava era elaborar pequenos sumários dos textos, retirando qualquer tema que implicasse especulações teóricas, tornando-os simples, práticos e, principalmente, “cristianizados”.
Thier,17 citando o estudo de Penélope Doob sobre a loucura na Idade Média, considera o título do estudo – Filhos de Nabucodonosor – o mais adequado para retratar a época. Refere-se ao conto bíblico em que Deus, por causa da elevada soberba do rei babilônico Nabucodonosor, torna-o louco (ou transforma-o em lobo, segundo outras versões), e este passa a arrastar-se pelo palácio uivando. Esse exemplo de licantropia (do grego licos, lobo) é emblemático da relação entre o pecado e a loucura, a culpa e o castigo. O tema da licantropia será abordado mais adiante.
Bem, mas quanto à questão das compilações monásticas, provavelmente pouco ficasse do original, talvez apenas o suficiente para oferecer um atendimento mais piedoso do que técnico a pobres camponeses, viajantes e peregrinos que eventualmente visitassem o mosteiro. A ênfase, sem dúvida, era a cura espiritual.
Esses conhecimentos misturavam-se, na prática, a toda espécie de procedimentos mágicos locais e à subserviência à teologia.
O mundo ocidental mergulha, então, em uma nosologia que abandona órgãos e humores e que passa a se basear na culpa, no pecado, nas bruxas e em todas as formas que o demônio pudesse assumir. A medicina como profissão desintegra-se.
Cada doença identificada ou presumida tinha seu santo patrono, ao qual eram dirigidas as preces do paciente, de seus familiares e de amigos.
Lacey e Danzinger18 nos dão um perfil muito interessante do que ocorria, por volta do ano 1000, na Inglaterra dos anglo-saxões (antes da invasão de Guilherme, o Conquistador).
Boa parte desses costumes é conhecida até hoje a partir dos escritos de Beda, o Venerável, ou Baeda (672 ou 673-75), monge de Nortúmbria, considerado o pai da história inglesa em função de sua obra mais popular, a Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum (História eclesiástica do povo inglês), em que descreve a história de seu povo desde a chegada de Júlio César, com seus costumes e inclusive suas práticas de cura (muitas delas milagrosas pelas preces de homens pios).
Deus e o demônio deveriam fazer muita ginástica para exercer o dom da ubiquidade. Das menores regras higiênicas às doenças mentais, preces ao Divino deveriam ter o poder de afastar a imagem e a ação do morfético. Este, porém, estava em toda parte; demônios entravam na mente dos homens e os tornavam loucos, espreitavam o leito dos moribundos para roubar-lhes a alma.19
Se um pedaço de alimento caísse ao chão, o conselho era pegá-lo, fazer o sinal da cruz por cima, temperá-lo bem e comê-lo. O papa Gregório Magno, em seus Diálogos, conta o caso de uma freira que ia à horta do convento colher alfaces e as comia sem as devidas orações. O diabo escondia-se nessas alfaces, e, por isso, a freira se tornou endemoniada .19
Rezar, rezar sempre e adequadamente, afinal, a Bíblia está repleta de exemplos em que Jesus derrotava a doença por meio da fé.
Rezas, rituais e até o uso de trepanações deveriam servir para tentar libertar o corpo dos demônios e dos elfos, seus malignos ajudantes.
Assim, a busca de uma cura no continente europeu, mais precisamente na Europa Ocidental, passa a significar uma peregrinação dolorosa atrás de um milagre divino. É famosa a história de Santa Dymphna, que, na pequena cidade de Gheel, perto de Bruxelas, cura dois doentes mentais exorcizando seus demônios. Gheel passa a ser, mesmo após a morte da monja, um centro de peregrinação em busca da cura, um verdadeiro frenocômio a céu aberto.
O médico medieval é um arremedo mal costurado, herdeiro de alguns conhecimentos greco-latinos, um herbanário (o livro do médico grego do século I, Dioscórides, sobre a ação terapêutica das plantas, foi usado até o século XVII), alquimista, mágico e até astrólogo.
A teoria dos humores, um dos poucos resíduos da medicina clássica, é ainda amplamente aceita, e a sua combinação em porções variadas explicaria, junto com os desígnios do Altíssimo, os diferentes estados emocionais. Quando os “humores” adequados predominam, as pessoas tornam-se alegres, sociáveis, felizes, ágeis, ousadas e ideais.
No entanto, se a bile negra prepondera, os indivíduos ficam sérios, até mesmo tristes e irritáveis.
A retirada desse “sangue ruim” continua incluindo a aplicação de sanguessugas ou até cortes nas veias, em geral acelerando a morte do infeliz.
A astrologia representava um dos instrumentos médicos de maior estudo e trabalho. Um cirurgião ou barbeiro-cirurgião deveria conhecer profundamente os signos do zodíaco que governavam cada parte do corpo, já que seria demasiado perigoso operar um paciente quando uma constelação inadequada fosse dominante no firmamento.20 Médicos estudavam astrologia de maneira provavelmente mais sistemática do que qualquer outra área do conhecimento da época nas universidades medievais.
Na universidade de Bolonha, de grande reputação, por exemplo, estudantes de medicina tinham aulas específicas sobre a influência dos astros sobre o corpo humano.21
A distinção entre médicos e cirurgiões emerge na cultura medieval. Frequentemente os termos eram intercambiáveis até nesse caso. Quando a medicina se tornou um objeto de estudo na universidade, o sujo trabalho do cirurgião permaneceu distante. Médicos eram homens educados nas universidades e que praticavam a medicina interna, ao passo que cirurgiões e barbeiros-cirurgiões eram homens do povo. Cabia a estes últimos não apenas cortar cabelos, mas sangrar as pessoas.
A MELANCOLIA E OS SETE PECADOS CAPITAIS
A partir do século IV, a Igreja passa a usar o termo “acídia”, que, durante toda a Idade Média, foi abundantemente utilizado de maneira diversa, ora com sentido moral, ora com sentido médico.
O termo “acídia”, derivado do grego “falta de cuidado”, foi introduzido pelo monge Ioannes Cassianus, que estudou com São Jerônimo e posteriormente com São João Crisóstomo, em Constantinopla.
Os trabalhos originais de Cassianus colocavam a acídia como um dos pecados, porém, o termo foi empregado de maneira ampla e imprecisa para designar estados variados, como preguiça, apatia, indolência, negligência, desatenção, torpor, perda de força moral ou enfraquecimento geralmente transitório da fé em Deus.22
Alguns medievalistas entendem acídia, porém, mais como um termo medieval para a melancolia, próximo, quase indiferenciável, dos conceitos medievais de tristitia (tristeza) e desperatio (desespero), e resultante de um desequilíbrio dos humores em temperamentos predispostos.23
Outros acreditavam que, não importando o que designasse, a acídia estava inserida na demonologia da época. Caracterizava-se pela diminuição de atenção, perda da capacidade de resistir aos demônios, que, para suas finalidades condenáveis, tentam a todo momento brincar com os pensamentos e as paixões humanas. Acídia seria, assim, simplesmente sinônimo de demônio; para outros, o resultado final da entrega e da rendição.
Para São Tomás de Aquino, a melancolia, condição de acídia, primeiro vitimou monges cristãos solitários e eremitas, levando-os a abandonar o trabalho e suas obrigações e a passar a viver sob o “pecaminoso” descanso indolente. Parece que na época ninguém pensava em ócio produtivo.
São Gregório, o Grande (c. 540-604), inclui a acídia entre os sete pecados capitais, junto com o orgulho, ou soberba, a ira, a inveja, a gula, a luxúria e a avareza.
Estar tomado pela preguiça e pelo tédio é não olhar para a glória de Deus e não reconhecê-lo como senhor do universo.
O texto de São Tomás de Aquino, embora profundamente moralista em sua essência, revela certa tolerância com esses pobres pecadores e sua melancolia desesperada.
As próprias formas de penitência para o pecado da acídia (ou preguiça) eram mais benevolentes com este do que com os demais “pecadores”, resumindo-se, em geral, à mera confissão.
As escrituras sagradas estão repletas de exemplos desse estado misto de preguiça, tristeza e inveja (diferentemente da inveja real, a acídia não deseja bens terrenos, mas tem inveja do bem divino). Jesus Cristo condena a acídia daqueles que, em uma festa, não partilham a oferta de alegria que Deus dá a todos nesse momento e preferem ficar em seus cantos, amuados.
Em resumo, é possível dizer que o termo designava três estados distintos: um estado doentio correspondente a melancolia, preguiça e indolência em relação às obrigações religiosas e a falta de devoção e adoração a Deus.
O conceito de acídia permanece ainda hoje no seio da Igreja Católica como um dos pecados contra a caridade, mas foi paulatinamente desaparecendo de outras fontes.
Ao longo dos séculos, é ainda possível encontrá-lo em Petrarca (que mudou o sentido do termo), Gogol (demônio do meio-dia em Conto dos dois Ivans), Walter Benjamim e em Aldoux Huxley, descrita como uma forma triste e aborrecida de olhar para a futilidade da vida.
A inércia, a acídia e o desânimo intoxicam a existência e conduzem-nos involuntariamente ao desgosto e ao mal.
A. Austregésilo e Rodrigues Lima (1876-1960)Na melancolia banha-se o diabo.São Jerônimo (347-420)
A INQUISIÇÃO MEDIEVAL
Nos séculos iniciais do cristianismo, atitudes e pensamentos divergentes da doutrina oficial eram punidos com a excomunhão, ou seja, apartados da comunidade eclesiástica. Desagradável, porém, ainda nem sempre doloroso.
Quando, no entanto, o cristianismo é instituído por Constantino como religião oficial do Império Romano, e, posteriormente, Teodósio proíbe totalmente os cultos aos antigos deuses pagãos, a religião passa a ser também um fator de coesão e união política, bem como um mecanismo de dominação do papado, tornando qualquer divergência muito perigosa.
Em alguns casos, para assegurar um completo controle, a aliança do poder político com as estruturas inquisitoriais era enorme. Na Espanha, por exemplo, onde o tribunal da Inquisição era totalmente subordinado ao poder monárquico, essa aliança foi vital para que o rei controlasse os seus súditos.
As penas já a partir das primeiras perseguições aos donatistas nos séculos IV e V incluíam, além da excomunhão, o confisco dos bens (para a Igreja, claro) e até mesmo a condenação à morte (já quase cem anos antes passaram a ser comuns os casos de aprisionar e queimar os hereges, particularmente os cátaros e os albigenses).
A Inquisição na Igreja Católica oficialmente começa em 20 de abril de 1233, com o Papa Gregório IX (1145-1241) instituindo os inquisidores papais e escolhendo-os entre os dominicanos (ordem criada por seu antecessor, Honório III), que considerava a ordem mais confiável para a execução dessa “nobre missão”.24
Sucessivos ajustes nos métodos foram sendo introduzidos pelos papas posteriores, como a possibilidade da tortura e da privação alimentar nos interrogatórios (Inocêncio IV, em 1252) até a instituição da Sagrada Congregação da Inquisição Romana e Universal, ou Santo Ofício, pelo Papa Paulo III, em 1542.
De fato, a Inquisição nunca foi uma instituição unitária e homogênea, e sim uma barbárie com características culturais peculiares segundo o local. As diferenciações regionais, na verdade, criaram “Inquisições” em vez de uma única Inquisição. De fato, a Suprema Espanhola foi muito diferente do Santo Ofício Romano, e este, do Conselho Ducal de Munique, por exemplo.
Embora hoje não se condene mais à morte, o espírito inquisitivo está presente na censura atenta que a atual Congregação para a Doutrina da Fé exerce, mas essa é outra história.
Os exemplos históricos de diferentes homens com ideias divergentes, como Galileu Galilei, Giordano Bruno (queimado vivo no Campo dei Fiore, em 1600), Pietro d’Albano e tantos outros, mostram que não se vivia em uma época que estimulasse o pensamento científico.
Aliás, o que ocorreu ao médico e filósofo Pietro d’Albano, menos conhecido que Galileu ou Giordano Bruno, é um bom exemplo de como um referee da época reagia diante de novas ideias.
Pietro d’Albano (1257-1315) foi professor de medicina e filosofia na Universidade de Paris e posteriormente em Pádua. Tornou-se profundo conhecedor e admirador da arte grega e árabe após ter viajado a Constantinopla para estudar, na língua original, os textos de Galeno e Avicena. Seu trabalho mais famoso, Conciliator Differentiarum, é uma tentativa de conciliar as ideias médicas e filosóficas de árabes e gregos.
Pietro d’Albano e seu colega médico e poeta Francesco Simeone (dito Cecco d’Ascoli, 1269-1327) foram queimados porque defendiam, entre outros “desatinos”, a ideia de que a Terra era redonda. Para os inquisidores, a Terra era uma chapa. Admitir a ideia de uma Terra redonda é admitir que a Bíblia e a Igreja estivessem enganadas.
É muito difícil mapear os crimes humanos e intelectuais cometidos pela Inquisição. Antônio Joaquim Moreira, citado por Alberto Dines,25 o primeiro a organizar a documentação do Santo Ofício no século XIX, afirma que “saber tudo quanto praticou a Inquisição é impossível, porque ela mesma o ignora”.
Assim como não se pode receitar a todos os doentes a mesma medicação, também não se pode empregar para heréticos de diferentes seitas o mesmo interrogatório. Há um método particular indicado para cada caso. Por consequência, O Inquisidor, prudente médico de almas, procederá com precaução de acordo com as pessoas que interrogará e a qualidade de quem investiga. (Bernardo Gui, Primeiro manual dos inquisidores, século XIV).26
O pouco conhecimento psiquiátrico e o vasto e asfixiante domínio clerical levaram a uma distinção mínima entre heréticos e doentes mentais, merecendo ambos a mesma punição. De fato, o melhor e mais difundido tratamento psiquiátrico na Idade Média e, mais ainda, na Idade Moderna era a fogueira.
Essa não é apenas uma afirmação jocosa do autor do livro Manual dos inquisidores (Directorium Inquisitorium). A leitura do Manual não deixa dúvidas a respeito da asserção.
Escrito por Nicolau Eymerich, em 1376, e revisado por Francisco de La Peña, em 1578, ambos dominicanos, o Manual dos inquisidores divide-se em três partes: “Jurisdição do inquisidor”, “Prática inquisitorial” e “Questões referentes à prática do Santo Ofício da Inquisição”. Na última parte, um subcapítulo denominado “Os dez truques dos hereges para responder sem confessar” trata da doença mental ou de uma suposta doença mental do pobre candidato a herege. Veja:27
A questão de se fingir de louco merece uma atenção especial. E caso se tratasse, por acaso, de um louco de verdade? Para ficar com a consciência tranquila, tortura-se o louco, tanto o verdadeiro como o falso. Se não for louco, dificilmente poderá continuar a sua comédia sentindo dor. Se houver dúvidas, se não for possível saber se realmente se trata de um louco, de toda maneira, deve-se torturar, pois não há por que temer que o acusado morra durante a tortura (cum nullum hic mortis periculum timeatur). Mas se o herege continuar blasfemando como um louco durante a tortura, mesmo quando for conduzido para execução, não haverá como suspendê-la para fazê-lo arrepender-se, de modo a que perca a vida, sem perder também a alma? Parece-me que sim. Mas é preciso lembrar que a finalidade mais importante do processo e da condenação à morte não é salvar a alma do acusado, mas buscar o bem comum e intimidar o povo (ut alii terreantur). Ora, o bem comum deve estar acima de quaisquer outras considerações sobre a caridade visando ao bem de um indivíduo.
E o que fazer quando o acusado for mesmo louco? Ficará preso enquanto não recobrar a razão: não se pode mandar um louco para a morte, mas também não se pode deixá-lo impune. Quanto aos bens do louco, vão para as mãos de um procurador ou dos herdeiros, porque a loucura, após o crime, pode retardar o castigo físico, mas não o livra da perda dos bens.Defenda-te da amizade de um louco, de um judeu ou de um leproso.(Inscrição na porta de um cemitério parisiense)27
INQUISIÇÃO DA IDADE MODERNA
Realçamos de novo que, diferentemente do que popularmente se imagina, a famosa caça às bruxas, as grandes perseguições e o “império do medo” são produtos de séculos seguidos à Idade Média. A Inquisição moderna – da Idade Moderna – é muito mais agressiva e intensa do que sua origem medieval.
Nesse período, os principais alvos da Inquisição são os protestantes e os cristãos-novos (judeus convertidos). Essa fase agressiva do Santo Ofício se deve ao fato de ser uma resposta à Reforma Protestante. A Igreja Católica vê a necessidade de uma reforma – conhecida como Contrarreforma – de suas doutrinas a partir da perspectiva da intensificação e potencialização da ortodoxia. A partir desse movimento de reformas e da intensa atividade inquisitorial, diversos autos de fé – “espetáculos” públicos da purgação dos condenados – e fogueiras foram frequentes, não só na Europa, mas também em suas colônias, inclusive no Brasil.
Além dos protestantes e cristãos-novos, a Inquisição Moderna também ficou conhecida pela caça às bruxas. É definido no imaginário cristão um estereótipo para as bruxas: mulheres, geralmente velhas, isoladas, adoradoras do diabo, habilidosas na produção de poções e manejo de ervas, envolvidas em orgias e rituais com outras mulheres – bruxas – e praticantes de feitiçarias. Eram normalmente acusadas de bruxarias as viúvas, as mulheres ligadas à tradição de religiões pagãs, párias da comunidade e portadoras de algum tipo de doença mental-neurológica.
Outro grupo que foi alvo da Inquisição foram os clássicos “físicos”: Giordano Bruno, Galileu, Nicolau Copérnico, Johannes Kepler e muitos outros foram perseguidos e, alguns deles, condenados e queimados na fogueira pela Inquisição.
Esses homens trazem, com suas ideias, uma forte característica do Renascimento, o rompimento com o modelo teocêntrico. O modo de pensar e perceber o mundo passa gradativamente a sair da órbita religiosa, em que Deus é o centro do universo e criador de todas as coisas, para a busca de explicações racionais e científicas.
Por tais conjecturas, eram não apenas perseguidos como também censurados em suas obras.
É compreensível a razão da “lenda negra” criada sobre a Inquisição: uma instituição perversa, destinada a queimar aqueles que a contrariarem. No entanto, por mais que, de fato, muitas pessoas tenham sido queimadas vivas pela Inquisição, é um exagero imaginar que a maioria compartilhou desse destino.
Os autos da Inquisição que sobrevivem até hoje nos mostram que uma parcela muito pequena dos condenados foi queimada viva. Apesar de muitos processos inquisitoriais, diversos inocentados e milhares de condenados, grande parte daqueles que caíram nas malhas da inquisição foi punida de formas mais “leves”, como humilhação pública ou confisco dos bens.
O processo realizado pelos inquisidores era extremamente burocrático e longo. No entanto, sua má fama é justificada pelas torturas legitimadas e sistematizadas, a criação de um ambiente e imaginário de medo que permeava e controlava as pessoas por onde o Tribunal do Santo Ofício passava. Com respeito ao destino de pacientes psiquiátricos na mão de inquisidores, Zilboorg,28 Alexander e Slesnick29 e Jackson 23 colocam a bruxaria, a demonologia e a possessão como possíveis acusações que levariam portadores de transtornos psiquiátricos a serem julgados como hereges. Porém, essa posição não é unânime e vem sendo recentemente revista.
Kroll e Bachrach,30 psiquiatra e historiador da Universidade de Minnesota, respectivamente, questionam esse estereótipo. Examinando 57 descrições de doença mental (loucura, possessão, alcoolismo e epilepsia) de crônicas e biografias de santos na era pré-Cruzadas, esses autores encontraram apenas nove casos (16% do total) descritos como resultantes de pecado ou forças sobrenaturais. As fontes medievais consultadas associam a doença mental com desequilíbrio hormonal, dieta inadequada, alterações climáticas, trabalho físico excessivo, luto e abuso de álcool. Os textos medievais são complexos e não retratam a realidade com fidelidade. É perigoso construir uma nosologia em termos modernos, bem como entender o uso das metáforas (ou se de fato o são) e a tradução exata dos termos latinos.
AS BRUXAS
A história das bruxas começa na Antiguidade grega, portanto, muito antes das ideias da Idade Média.
A ideia de “bruxa” parece estar ligada à deusa grega Artemis (ou Diana para os romanos), que assume também outros nomes, como Selene ou Hécate, a soberana da alma dos mortos. Nas noites de luar, a deusa aparece nas encruzilhadas dos caminhos rodeada de almas e de cães horrendos a ladrar medonhamente. Seus adoradores reuniam-se nesses locais com oferendas e sacrifícios, primeiro na região grega da Tessália e, posteriormente, por toda a Grécia e Roma.
Na Grécia ou em Roma, pede-se ajuda à deusa Selene pelos mais diversos motivos. Como está associada à noite, pede-se sua ajuda fazendo sacrifícios à lua (daí lunáticos).
Como citado anteriormente, é difícil fazer uma avaliação precisa da quantidade de vítimas da Inquisição acusadas de bruxaria. No entanto, uma estimativa incluindo as mulheres executadas na França, na Alemanha, na Itália, na Suíça, na Espanha e em colônias do Novo Mundo cita números assombrosos, entre 70 e 300 mil vítimas. Quantas dessas pobres criaturas eram psicóticas, deprimidas, mitômanas, com crises dissociativas ou qualquer outro quadro psiquiátrico é muito difícil ou talvez impossível saber.
E descobri que a mulher é mais amarga que a morte... Quem quiser agradar a Deus escapará dela, mas o pecador nela ficará preso.Sobre o mal e a mulher, Eclisiastes, 25,26
MALLEUS MALEFICARUM
O Malleus Maleficarum, ou Martelo das Bruxas, em português, é um tratado escrito por um clérigo alemão chamado Heinrich Kramer, no fim do século XV, cujo conteúdo é um manual de como identificar, combater e processar uma bruxa. Também apresenta uma definição teológica e explicações acerca da bruxaria. Apesar de escrito por um clérigo, não era um texto oficial da Igreja, porém, foi adotado por diversos de seus membros como um manual a ser seguido. Poucos anos após sua publicação, a Igreja condenou o escrito como falso, mas seu uso e sua leitura continuaram sendo populares na Europa.
A história a seguir é paradigmática.
Countances, uma pequena cidade do noroeste da França, em 1651, presencia um fato corriqueiro: a tortura e o interrogatório cruel de mais uma pobre velhinha sexagenária, acusada de bruxaria.
Não fosse pela longa história repleta de eventos curiosos, Marie Vallés seria a enésima velhinha torturada a ser esquecida.
Sua história começa aos 20 e poucos anos, após dançar com uma jovem em uma festa, tornando-se motivo de comentários maldosos na aldeia. Passa mal, tem crises nervosas... não consegue dormir. Um curandeiro é chamado para examiná-la, dá-lhe de beber um filtro e tenta estuprá-la. Marie luta e consegue, por fim, resistir.
Seu estado progressivamente piora, chora o tempo todo, não consegue dormir, não come, arranca os cabelos desesperada, deseja a morte. Depois de três anos de longo padecimento, o bispo de Countances submete-a a exorcismo e interrogatórios, mas o “diabo”, teimoso, não deixa o corpo dela.
Denunciada como bruxa, é levada a Ruan, que tem a infausta fama de ser a terra de bruxas e demônios (onde as ruas ainda hoje lembram Joana D’Arc).
Novos interrogatórios e novos sofrimentos se sucedem em vão. A partir de 1614, passa a viver reclusa em oração, pede insistentemente a Deus que a puna, que a deixe experimentar todas as penas do inferno e sua própria ira colossal.
A história é um misto de crises convulsivas (?), conversivas (?), êxtases místicos e a certeza de que deve sofrer todos os males do mundo por carregar uma culpa eterna, que não oferece salvação.
Seus biógrafos descrevem um estado que dura longos 12 anos. Passado esse período, aos 43 anos algo acontece: passa a ter visões grandiosas e diz que seus gestos podem destruir todos os pecados e os pecadores. Dizem que se tornou libertina...
Novamente seu comportamento escandaliza a Igreja, e a Santa Inquisição não pode permitir sua devassidão.
Em 1655, aos 65 anos, no final da vida, tem nova transformação. Cessam todas as experiências dolorosas, parece uma criança, brinca, chama a terra de “minha querida mãe”, ri, está ativa e cheia de saúde, apesar de tudo.
A tentação é grande, mas não devemos nos aventurar a fazer diagnósticos com os olhos do presente, até porque nos faltam dados. Se faltam informações, a história, porém, tem indelevelmente o gosto da época.31
Dividido em três seções, o Malleus Maleficarum abrange as mais diversas questões, explicações e formas de conduta perante a bruxaria. Segundo Kramer, a bruxaria necessita de três elementos fundamentais: intenções malignas da bruxa, o pacto com o diabo e a permissão de Deus, sendo esta última um dos mistérios da fé. Diferentemente de concepções anteriores acerca da bruxaria, que era vista como um conceito abrangente e essencialmente pagão, o Malleus compreende as bruxas como agentes antirreligiosos – anticristo – e malignos, como uma oposição direta à Igreja, ao cristianismo e a Deus. Acusadas de infanticídio e canibalismo durante seus encontros – os sabás –, de lançarem feitiços contra os homens, de fazerem pactos com o diabo e manter relações sexuais com ele em orgias banhadas a sangue, as mulheres tidas como bruxas ganham a imagem de algo a ser combatido, sendo dever de um bom cristão denunciá-las e combater.
As pessoas acusadas de bruxaria, em sua grande maioria, eram mulheres. A justificativa para isso era a de que elas são mais suscetíveis às tentações demoníacas por conta da fraqueza natural de seu gênero. Acreditava-se que as mulheres tinham uma fé mais fraca e que cediam aos desejos carnais com mais facilidade do que os homens. Lembremos que estamos falando de um mundo em que a mulher é completamente submissa e, muitas vezes, desprezada pelos homens, um mundo patriarcal, profundamente machista. Qualquer mulher que não se comportasse como o esperado ou ultrapassasse o decoro da época era passível de ser considerada uma bruxa. É importante ressaltar que, apesar dessa visão sobre a mulher, é evidente que existiam mulheres, personagens femininos, de forte personalidade que se desviavam do padrão e se faziam presentes na sociedade. Infelizmente há uma escassa – quase inexistente – documentação sobre tais mulheres durante a Idade Média e o Antigo Regime. Houve, porém, também homens acusados de praticar bruxaria, em uma escala bem menor do que as mulheres. O Malleus Maleficarum condenava e falava também sobre esses homens bruxos.
MAGNUS EXORCISMUS
Não é novidade ou surpresa afirmar que a Idade Média é profundamente marcada por uma mentalidade religiosa e, sobretudo, cristã. A verdade absoluta e incontestável vem da Bíblia e da Igreja; todas as coisas passam pelo circuito da mentalidade religiosa. Estamos falando de uma época e de pessoas cujos objetivos de vida eram voltados a Deus, e cujo maior medo era o medo do inferno. As doenças não ficavam livres do julgo religioso, principalmente as doenças mentais. Não mais como uma punição divina, a loucura na Idade Média é vista como obra do diabo. A epilepsia, os lunáticos, frenéticos, insanos, melancólicos; os personagens da Idade Média aflitos por doenças nervosas e mentais são tratados em um misto de repulsa e tolerância.
Para a cristandade e a Igreja, as obras do diabo devem ser combatidas a qualquer custo. Sendo constantemente tentados ao pecado, os homens às vezes podem ser abatidos por possessões demoníacas e o único remédio são os exorcismos. Assim que os comportamentos “anormais” e “diabólicos” se manifestam – comportamentos esses hoje relacionados a doenças mentais –, os familiares procuram o auxílio da Igreja para combater os diabos.
O Ritual Romano – conjunto de rituais litúrgicos da Igreja Católica – contém as diretrizes, as regras, os modos e os dizeres para o exercício do exorcismo. Como um manual, o exorcista tem etapas a seguir e critérios a atender. Destacamos, a seguir, um trecho retirado do Ritual Romano, reformado por decreto do Concílio Ecumênico Vaticano II e promulgado por autoridade do Papa João Paulo II:32
O exorcista, no caso de se falar de alguma intervenção diabólica, antes de mais proceda necessariamente com a maior circunspecção e prudência. Em primeiro lugar, não creia facilmente que seja possesso do demônio alguém que sofra de alguma doença, especialmente psíquica. Também não aceite imediatamente que haja possessão quando alguém afirma ser de modo peculiar tentado, estar desolado e finalmente ser atormentado; porque qualquer pessoa pode ser iludida pela própria imaginação. Esteja ainda atento, para se não deixar iludir pelas artes e fraudes que o diabo utiliza para enganar o homem, de modo a persuadir o possesso a não se submeter ao exorcismo, sugerindo-lhe que a sua enfermidade é apenas natural ou do foro médico. Examine exatamente, com todos os meios ao seu alcance, se é realmente atormentado pelo demónio quem tal afirma.
Apesar de atualizado no fim do século XX, esse trecho nos serve de ilustração sobre como se deveria desenvolver o ritual do exorcismo. É claro que, durante a Idade Média, sem o advento da medicina, todo sintoma de doença mental era tratado como uma possessão demoníaca.
(Táki Athanássios Cordás, Matheus Schumaker Emilio - História da melancolia)
NOTAS:
17. Thiher A. Revels in madness: insanity in medicine and literature. Ann Arbor: University Michigan Press; 2002.
18. Lacey R, Danziger D. O ano 1000: a vida no final do primeiro milênio. Rio de Janeiro: Campus; 1999.
19. Nogueira CRF. O diabo no imaginário cristão. Bauru: Edusc; 2000.
20. Cantor NF. The Pimlico Encyclopedia of the middle ages. London: Pimlico; 1999.
21. Kieckhefer R. Magic in the middle ages. Cambridge: Cambridge University Press; 2001.
22. Altschule MD. Acedia: its evolution from deadly sin to psychiatric syndrome. Br J Psychiatry. 1965;111:117-9.
23. Jackson SW. Melancholy & depression: from hippocratic times to modern times. New Haven: Yale University Press; 1986.
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25. Dines A. Vínculos de fogo. São Paulo: Scwarcz; 1992.
26. Robinson JH. Conferencias sobre la historia europea. Boston: Ginn; 1905.
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29. Alexander EG, Selesnick S. T História da psiquiatria. São Paulo: Ibrasa; 1966.
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31. Benazzi N, D’Amico M. El libro negro de la Inquisicion. Barcelona: Rabinbook; 2000.
32. Celebração dos exorcismos: ritual romano [Internet]. Conferência Episcopal Portuguesa; [20--?] [capturado em 22 set. 2016]. Disponível em: http://www.liturgia.pt/rituais/Exorcismos.pdf