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DEUS, O DIABO E O MÉDICO

por Thynus, em 26.02.17
 
 
É certo, como dissemos, que os monges, particularmente os dominicanos e os franciscanos, estudavam medicina em seus monastérios e tentavam minimamente manter o conhecimento médico da Antiguidade.
Quando Cassiodoro (487-583) descreve o currículo de estudo dos monges, sugere que estudavam a teoria herbal, de Dioscórides, e os trabalhos de Hipócrates, Galeno e outros escritores gregos e latinos. Isso não significa que os monges desejassem ser médicos. Esses textos eram apenas uma pequena parcela de suas funções didáticas, e, de fato, o que importava era elaborar pequenos sumários dos textos, retirando qualquer tema que implicasse especulações teóricas, tornando-os simples, práticos e, principalmente, “cristianizados”.
Thier,17 citando o estudo de Penélope Doob sobre a loucura na Idade Média, considera o título do estudo – Filhos de Nabucodonosor – o mais adequado para retratar a época. Refere-se ao conto bíblico em que Deus, por causa da elevada soberba do rei babilônico Nabucodonosor, torna-o louco (ou transforma-o em lobo, segundo outras versões), e este passa a arrastar-se pelo palácio uivando. Esse exemplo de licantropia (do grego licos, lobo) é emblemático da relação entre o pecado e a loucura, a culpa e o castigo. O tema da licantropia será abordado mais adiante.
Bem, mas quanto à questão das compilações monásticas, provavelmente pouco ficasse do original, talvez apenas o suficiente para oferecer um atendimento mais piedoso do que técnico a pobres camponeses, viajantes e peregrinos que eventualmente visitassem o mosteiro. A ênfase, sem dúvida, era a cura espiritual.
Esses conhecimentos misturavam-se, na prática, a toda espécie de procedimentos mágicos locais e à subserviência à teologia.
O mundo ocidental mergulha, então, em uma nosologia que abandona órgãos e humores e que passa a se basear na culpa, no pecado, nas bruxas e em todas as formas que o demônio pudesse assumir. A medicina como profissão desintegra-se.
Cada doença identificada ou presumida tinha seu santo patrono, ao qual eram dirigidas as preces do paciente, de seus familiares e de amigos.
Lacey e Danzinger18 nos dão um perfil muito interessante do que ocorria, por volta do ano 1000, na Inglaterra dos anglo-saxões (antes da invasão de Guilherme, o Conquistador).
Boa parte desses costumes é conhecida até hoje a partir dos escritos de Beda, o Venerável, ou Baeda (672 ou 673-75), monge de Nortúmbria, considerado o pai da história inglesa em função de sua obra mais popular, a Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum (História eclesiástica do povo inglês), em que descreve a história de seu povo desde a chegada de Júlio César, com seus costumes e inclusive suas práticas de cura (muitas delas milagrosas pelas preces de homens pios).
Deus e o demônio deveriam fazer muita ginástica para exercer o dom da ubiquidade. Das menores regras higiênicas às doenças mentais, preces ao Divino deveriam ter o poder de afastar a imagem e a ação do morfético. Este, porém, estava em toda parte; demônios entravam na mente dos homens e os tornavam loucos, espreitavam o leito dos moribundos para roubar-lhes a alma.19
Se um pedaço de alimento caísse ao chão, o conselho era pegá-lo, fazer o sinal da cruz por cima, temperá-lo bem e comê-lo. O papa Gregório Magno, em seus Diálogos, conta o caso de uma freira que ia à horta do convento colher alfaces e as comia sem as devidas orações. O diabo escondia-se nessas alfaces, e, por isso, a freira se tornou endemoniada .19
Rezar, rezar sempre e adequadamente, afinal, a Bíblia está repleta de exemplos em que Jesus derrotava a doença por meio da fé.
Rezas, rituais e até o uso de trepanações deveriam servir para tentar libertar o corpo dos demônios e dos elfos, seus malignos ajudantes.
Assim, a busca de uma cura no continente europeu, mais precisamente na Europa Ocidental, passa a significar uma peregrinação dolorosa atrás de um milagre divino. É famosa a história de Santa Dymphna, que, na pequena cidade de Gheel, perto de Bruxelas, cura dois doentes mentais exorcizando seus demônios. Gheel passa a ser, mesmo após a morte da monja, um centro de peregrinação em busca da cura, um verdadeiro frenocômio a céu aberto.
O médico medieval é um arremedo mal costurado, herdeiro de alguns conhecimentos greco-latinos, um herbanário (o livro do médico grego do século I, Dioscórides, sobre a ação terapêutica das plantas, foi usado até o século XVII), alquimista, mágico e até astrólogo.
A teoria dos humores, um dos poucos resíduos da medicina clássica, é ainda amplamente aceita, e a sua combinação em porções variadas explicaria, junto com os desígnios do Altíssimo, os diferentes estados emocionais. Quando os “humores” adequados predominam, as pessoas tornam-se alegres, sociáveis, felizes, ágeis, ousadas e ideais.
No entanto, se a bile negra prepondera, os indivíduos ficam sérios, até mesmo tristes e irritáveis.
A retirada desse “sangue ruim” continua incluindo a aplicação de sanguessugas ou até cortes nas veias, em geral acelerando a morte do infeliz.
A astrologia representava um dos instrumentos médicos de maior estudo e trabalho. Um cirurgião ou barbeiro-cirurgião deveria conhecer profundamente os signos do zodíaco que governavam cada parte do corpo, já que seria demasiado perigoso operar um paciente quando uma constelação inadequada fosse dominante no firmamento.20 Médicos estudavam astrologia de maneira provavelmente mais sistemática do que qualquer outra área do conhecimento da época nas universidades medievais.
Na universidade de Bolonha, de grande reputação, por exemplo, estudantes de medicina tinham aulas específicas sobre a influência dos astros sobre o corpo humano.21
A distinção entre médicos e cirurgiões emerge na cultura medieval. Frequentemente os termos eram intercambiáveis até nesse caso. Quando a medicina se tornou um objeto de estudo na universidade, o sujo trabalho do cirurgião permaneceu distante. Médicos eram homens educados nas universidades e que praticavam a medicina interna, ao passo que cirurgiões e barbeiros-cirurgiões eram homens do povo. Cabia a estes últimos não apenas cortar cabelos, mas sangrar as pessoas.
 
A MELANCOLIA E OS SETE PECADOS CAPITAIS
A partir do século IV, a Igreja passa a usar o termo “acídia”, que, durante toda a Idade Média, foi abundantemente utilizado de maneira diversa, ora com sentido moral, ora com sentido médico.
O termo “acídia”, derivado do grego “falta de cuidado”, foi introduzido pelo monge Ioannes Cassianus, que estudou com São Jerônimo e posteriormente com São João Crisóstomo, em Constantinopla.
Os trabalhos originais de Cassianus colocavam a acídia como um dos pecados, porém, o termo foi empregado de maneira ampla e imprecisa para designar estados variados, como preguiça, apatia, indolência, negligência, desatenção, torpor, perda de força moral ou enfraquecimento geralmente transitório da fé em Deus.22
Alguns medievalistas entendem acídia, porém, mais como um termo medieval para a melancolia, próximo, quase indiferenciável, dos conceitos medievais de tristitia (tristeza) e desperatio (desespero), e resultante de um desequilíbrio dos humores em temperamentos predispostos.23
Outros acreditavam que, não importando o que designasse, a acídia estava inserida na demonologia da época. Caracterizava-se pela diminuição de atenção, perda da capacidade de resistir aos demônios, que, para suas finalidades condenáveis, tentam a todo momento brincar com os pensamentos e as paixões humanas. Acídia seria, assim, simplesmente sinônimo de demônio; para outros, o resultado final da entrega e da rendição.
Para São Tomás de Aquino, a melancolia, condição de acídia, primeiro vitimou monges cristãos solitários e eremitas, levando-os a abandonar o trabalho e suas obrigações e a passar a viver sob o “pecaminoso” descanso indolente. Parece que na época ninguém pensava em ócio produtivo.
São Gregório, o Grande (c. 540-604), inclui a acídia entre os sete pecados capitais, junto com o orgulho, ou soberba, a ira, a inveja, a gula, a luxúria e a avareza.
Estar tomado pela preguiça e pelo tédio é não olhar para a glória de Deus e não reconhecê-lo como senhor do universo.
O texto de São Tomás de Aquino, embora profundamente moralista em sua essência, revela certa tolerância com esses pobres pecadores e sua melancolia desesperada.
As próprias formas de penitência para o pecado da acídia (ou preguiça) eram mais benevolentes com este do que com os demais “pecadores”, resumindo-se, em geral, à mera confissão.
As escrituras sagradas estão repletas de exemplos desse estado misto de preguiça, tristeza e inveja (diferentemente da inveja real, a acídia não deseja bens terrenos, mas tem inveja do bem divino). Jesus Cristo condena a acídia daqueles que, em uma festa, não partilham a oferta de alegria que Deus dá a todos nesse momento e preferem ficar em seus cantos, amuados.
Em resumo, é possível dizer que o termo designava três estados distintos: um estado doentio correspondente a melancolia, preguiça e indolência em relação às obrigações religiosas e a falta de devoção e adoração a Deus.
O conceito de acídia permanece ainda hoje no seio da Igreja Católica como um dos pecados contra a caridade, mas foi paulatinamente desaparecendo de outras fontes.
Ao longo dos séculos, é ainda possível encontrá-lo em Petrarca (que mudou o sentido do termo), Gogol (demônio do meio-dia em Conto dos dois Ivans), Walter Benjamim e em Aldoux Huxley, descrita como uma forma triste e aborrecida de olhar para a futilidade da vida.
A inércia, a acídia e o desânimo intoxicam a existência e conduzem-nos involuntariamente ao desgosto e ao mal.
A. Austregésilo e Rodrigues Lima (1876-1960)
Na melancolia banha-se o diabo.
São Jerônimo (347-420)
A INQUISIÇÃO MEDIEVAL
Nos séculos iniciais do cristianismo, atitudes e pensamentos divergentes da doutrina oficial eram punidos com a excomunhão, ou seja, apartados da comunidade eclesiástica. Desagradável, porém, ainda nem sempre doloroso.
Quando, no entanto, o cristianismo é instituído por Constantino como religião oficial do Império Romano, e, posteriormente, Teodósio proíbe totalmente os cultos aos antigos deuses pagãos, a religião passa a ser também um fator de coesão e união política, bem como um mecanismo de dominação do papado, tornando qualquer divergência muito perigosa.
Em alguns casos, para assegurar um completo controle, a aliança do poder político com as estruturas inquisitoriais era enorme. Na Espanha, por exemplo, onde o tribunal da Inquisição era totalmente subordinado ao poder monárquico, essa aliança foi vital para que o rei controlasse os seus súditos.
As penas já a partir das primeiras perseguições aos donatistas nos séculos IV e V incluíam, além da excomunhão, o confisco dos bens (para a Igreja, claro) e até mesmo a condenação à morte (já quase cem anos antes passaram a ser comuns os casos de aprisionar e queimar os hereges, particularmente os cátaros e os albigenses).
A Inquisição na Igreja Católica oficialmente começa em 20 de abril de 1233, com o Papa Gregório IX (1145-1241) instituindo os inquisidores papais e escolhendo-os entre os dominicanos (ordem criada por seu antecessor, Honório III), que considerava a ordem mais confiável para a execução dessa “nobre missão”.24
Sucessivos ajustes nos métodos foram sendo introduzidos pelos papas posteriores, como a possibilidade da tortura e da privação alimentar nos interrogatórios (Inocêncio IV, em 1252) até a instituição da Sagrada Congregação da Inquisição Romana e Universal, ou Santo Ofício, pelo Papa Paulo III, em 1542.
De fato, a Inquisição nunca foi uma instituição unitária e homogênea, e sim uma barbárie com características culturais peculiares segundo o local. As diferenciações regionais, na verdade, criaram “Inquisições” em vez de uma única Inquisição. De fato, a Suprema Espanhola foi muito diferente do Santo Ofício Romano, e este, do Conselho Ducal de Munique, por exemplo.
Embora hoje não se condene mais à morte, o espírito inquisitivo está presente na censura atenta que a atual Congregação para a Doutrina da Fé exerce, mas essa é outra história.
Os exemplos históricos de diferentes homens com ideias divergentes, como Galileu Galilei, Giordano Bruno (queimado vivo no Campo dei Fiore, em 1600), Pietro d’Albano e tantos outros, mostram que não se vivia em uma época que estimulasse o pensamento científico.
Aliás, o que ocorreu ao médico e filósofo Pietro d’Albano, menos conhecido que Galileu ou Giordano Bruno, é um bom exemplo de como um referee da época reagia diante de novas ideias.
Pietro d’Albano (1257-1315) foi professor de medicina e filosofia na Universidade de Paris e posteriormente em Pádua. Tornou-se profundo conhecedor e admirador da arte grega e árabe após ter viajado a Constantinopla para estudar, na língua original, os textos de Galeno e Avicena. Seu trabalho mais famoso, Conciliator Differentiarum, é uma tentativa de conciliar as ideias médicas e filosóficas de árabes e gregos.
Pietro d’Albano e seu colega médico e poeta Francesco Simeone (dito Cecco d’Ascoli, 1269-1327) foram queimados porque defendiam, entre outros “desatinos”, a ideia de que a Terra era redonda. Para os inquisidores, a Terra era uma chapa. Admitir a ideia de uma Terra redonda é admitir que a Bíblia e a Igreja estivessem enganadas.
É muito difícil mapear os crimes humanos e intelectuais cometidos pela Inquisição. Antônio Joaquim Moreira, citado por Alberto Dines,25 o primeiro a organizar a documentação do Santo Ofício no século XIX, afirma que “saber tudo quanto praticou a Inquisição é impossível, porque ela mesma o ignora”.
Assim como não se pode receitar a todos os doentes a mesma medicação, também não se pode empregar para heréticos de diferentes seitas o mesmo interrogatório. Há um método particular indicado para cada caso. Por consequência, O Inquisidor, prudente médico de almas, procederá com precaução de acordo com as pessoas que interrogará e a qualidade de quem investiga. (Bernardo Gui, Primeiro manual dos inquisidores, século XIV).26
O pouco conhecimento psiquiátrico e o vasto e asfixiante domínio clerical levaram a uma distinção mínima entre heréticos e doentes mentais, merecendo ambos a mesma punição. De fato, o melhor e mais difundido tratamento psiquiátrico na Idade Média e, mais ainda, na Idade Moderna era a fogueira.
Essa não é apenas uma afirmação jocosa do autor do livro Manual dos inquisidores (Directorium Inquisitorium). A leitura do Manual não deixa dúvidas a respeito da asserção.
Escrito por Nicolau Eymerich, em 1376, e revisado por Francisco de La Peña, em 1578, ambos dominicanos, o Manual dos inquisidores divide-se em três partes: “Jurisdição do inquisidor”, “Prática inquisitorial” e “Questões referentes à prática do Santo Ofício da Inquisição”. Na última parte, um subcapítulo denominado “Os dez truques dos hereges para responder sem confessar” trata da doença mental ou de uma suposta doença mental do pobre candidato a herege. Veja:27
A questão de se fingir de louco merece uma atenção especial. E caso se tratasse, por acaso, de um louco de verdade? Para ficar com a consciência tranquila, tortura-se o louco, tanto o verdadeiro como o falso. Se não for louco, dificilmente poderá continuar a sua comédia sentindo dor. Se houver dúvidas, se não for possível saber se realmente se trata de um louco, de toda maneira, deve-se torturar, pois não há por que temer que o acusado morra durante a tortura (cum nullum hic mortis periculum timeatur). Mas se o herege continuar blasfemando como um louco durante a tortura, mesmo quando for conduzido para execução, não haverá como suspendê-la para fazê-lo arrepender-se, de modo a que perca a vida, sem perder também a alma? Parece-me que sim. Mas é preciso lembrar que a finalidade mais importante do processo e da condenação à morte não é salvar a alma do acusado, mas buscar o bem comum e intimidar o povo (ut alii terreantur). Ora, o bem comum deve estar acima de quaisquer outras considerações sobre a caridade visando ao bem de um indivíduo.
E o que fazer quando o acusado for mesmo louco? Ficará preso enquanto não recobrar a razão: não se pode mandar um louco para a morte, mas também não se pode deixá-lo impune. Quanto aos bens do louco, vão para as mãos de um procurador ou dos herdeiros, porque a loucura, após o crime, pode retardar o castigo físico, mas não o livra da perda dos bens.
Defenda-te da amizade de um louco, de um judeu ou de um leproso.
(Inscrição na porta de um cemitério parisiense)27
INQUISIÇÃO DA IDADE MODERNA
Realçamos de novo que, diferentemente do que popularmente se imagina, a famosa caça às bruxas, as grandes perseguições e o “império do medo” são produtos de séculos seguidos à Idade Média. A Inquisição moderna – da Idade Moderna – é muito mais agressiva e intensa do que sua origem medieval.
Nesse período, os principais alvos da Inquisição são os protestantes e os cristãos-novos (judeus convertidos). Essa fase agressiva do Santo Ofício se deve ao fato de ser uma resposta à Reforma Protestante. A Igreja Católica vê a necessidade de uma reforma – conhecida como Contrarreforma – de suas doutrinas a partir da perspectiva da intensificação e potencialização da ortodoxia. A partir desse movimento de reformas e da intensa atividade inquisitorial, diversos autos de fé – “espetáculos” públicos da purgação dos condenados – e fogueiras foram frequentes, não só na Europa, mas também em suas colônias, inclusive no Brasil.
Além dos protestantes e cristãos-novos, a Inquisição Moderna também ficou conhecida pela caça às bruxas. É definido no imaginário cristão um estereótipo para as bruxas: mulheres, geralmente velhas, isoladas, adoradoras do diabo, habilidosas na produção de poções e manejo de ervas, envolvidas em orgias e rituais com outras mulheres – bruxas – e praticantes de feitiçarias. Eram normalmente acusadas de bruxarias as viúvas, as mulheres ligadas à tradição de religiões pagãs, párias da comunidade e portadoras de algum tipo de doença mental-neurológica.
Outro grupo que foi alvo da Inquisição foram os clássicos “físicos”: Giordano Bruno, Galileu, Nicolau Copérnico, Johannes Kepler e muitos outros foram perseguidos e, alguns deles, condenados e queimados na fogueira pela Inquisição.
Esses homens trazem, com suas ideias, uma forte característica do Renascimento, o rompimento com o modelo teocêntrico. O modo de pensar e perceber o mundo passa gradativamente a sair da órbita religiosa, em que Deus é o centro do universo e criador de todas as coisas, para a busca de explicações racionais e científicas.
Por tais conjecturas, eram não apenas perseguidos como também censurados em suas obras.
É compreensível a razão da “lenda negra” criada sobre a Inquisição: uma instituição perversa, destinada a queimar aqueles que a contrariarem. No entanto, por mais que, de fato, muitas pessoas tenham sido queimadas vivas pela Inquisição, é um exagero imaginar que a maioria compartilhou desse destino.
Os autos da Inquisição que sobrevivem até hoje nos mostram que uma parcela muito pequena dos condenados foi queimada viva. Apesar de muitos processos inquisitoriais, diversos inocentados e milhares de condenados, grande parte daqueles que caíram nas malhas da inquisição foi punida de formas mais “leves”, como humilhação pública ou confisco dos bens.
O processo realizado pelos inquisidores era extremamente burocrático e longo. No entanto, sua má fama é justificada pelas torturas legitimadas e sistematizadas, a criação de um ambiente e imaginário de medo que permeava e controlava as pessoas por onde o Tribunal do Santo Ofício passava. Com respeito ao destino de pacientes psiquiátricos na mão de inquisidores, Zilboorg,28 Alexander e Slesnick29 e Jackson 23 colocam a bruxaria, a demonologia e a possessão como possíveis acusações que levariam portadores de transtornos psiquiátricos a serem julgados como hereges. Porém, essa posição não é unânime e vem sendo recentemente revista.
Kroll e Bachrach,30 psiquiatra e historiador da Universidade de Minnesota, respectivamente, questionam esse estereótipo. Examinando 57 descrições de doença mental (loucura, possessão, alcoolismo e epilepsia) de crônicas e biografias de santos na era pré-Cruzadas, esses autores encontraram apenas nove casos (16% do total) descritos como resultantes de pecado ou forças sobrenaturais. As fontes medievais consultadas associam a doença mental com desequilíbrio hormonal, dieta inadequada, alterações climáticas, trabalho físico excessivo, luto e abuso de álcool. Os textos medievais são complexos e não retratam a realidade com fidelidade. É perigoso construir uma nosologia em termos modernos, bem como entender o uso das metáforas (ou se de fato o são) e a tradução exata dos termos latinos.
 
AS BRUXAS
A história das bruxas começa na Antiguidade grega, portanto, muito antes das ideias da Idade Média.
A ideia de “bruxa” parece estar ligada à deusa grega Artemis (ou Diana para os romanos), que assume também outros nomes, como Selene ou Hécate, a soberana da alma dos mortos. Nas noites de luar, a deusa aparece nas encruzilhadas dos caminhos rodeada de almas e de cães horrendos a ladrar medonhamente. Seus adoradores reuniam-se nesses locais com oferendas e sacrifícios, primeiro na região grega da Tessália e, posteriormente, por toda a Grécia e Roma.
Na Grécia ou em Roma, pede-se ajuda à deusa Selene pelos mais diversos motivos. Como está associada à noite, pede-se sua ajuda fazendo sacrifícios à lua (daí lunáticos).
Como citado anteriormente, é difícil fazer uma avaliação precisa da quantidade de vítimas da Inquisição acusadas de bruxaria. No entanto, uma estimativa incluindo as mulheres executadas na França, na Alemanha, na Itália, na Suíça, na Espanha e em colônias do Novo Mundo cita números assombrosos, entre 70 e 300 mil vítimas. Quantas dessas pobres criaturas eram psicóticas, deprimidas, mitômanas, com crises dissociativas ou qualquer outro quadro psiquiátrico é muito difícil ou talvez impossível saber.
E descobri que a mulher é mais amarga que a morte... Quem quiser agradar a Deus escapará dela, mas o pecador nela ficará preso.
Sobre o mal e a mulher, Eclisiastes, 25,26
MALLEUS MALEFICARUM
O Malleus Maleficarum, ou Martelo das Bruxas, em português, é um tratado escrito por um clérigo alemão chamado Heinrich Kramer, no fim do século XV, cujo conteúdo é um manual de como identificar, combater e processar uma bruxa. Também apresenta uma definição teológica e explicações acerca da bruxaria. Apesar de escrito por um clérigo, não era um texto oficial da Igreja, porém, foi adotado por diversos de seus membros como um manual a ser seguido. Poucos anos após sua publicação, a Igreja condenou o escrito como falso, mas seu uso e sua leitura continuaram sendo populares na Europa.
 
A história a seguir é paradigmática.
Countances, uma pequena cidade do noroeste da França, em 1651, presencia um fato corriqueiro: a tortura e o interrogatório cruel de mais uma pobre velhinha sexagenária, acusada de bruxaria.
Não fosse pela longa história repleta de eventos curiosos, Marie Vallés seria a enésima velhinha torturada a ser esquecida.
Sua história começa aos 20 e poucos anos, após dançar com uma jovem em uma festa, tornando-se motivo de comentários maldosos na aldeia. Passa mal, tem crises nervosas... não consegue dormir. Um curandeiro é chamado para examiná-la, dá-lhe de beber um filtro e tenta estuprá-la. Marie luta e consegue, por fim, resistir.
Seu estado progressivamente piora, chora o tempo todo, não consegue dormir, não come, arranca os cabelos desesperada, deseja a morte. Depois de três anos de longo padecimento, o bispo de Countances submete-a a exorcismo e interrogatórios, mas o “diabo”, teimoso, não deixa o corpo dela.
Denunciada como bruxa, é levada a Ruan, que tem a infausta fama de ser a terra de bruxas e demônios (onde as ruas ainda hoje lembram Joana D’Arc).
Novos interrogatórios e novos sofrimentos se sucedem em vão. A partir de 1614, passa a viver reclusa em oração, pede insistentemente a Deus que a puna, que a deixe experimentar todas as penas do inferno e sua própria ira colossal.
A história é um misto de crises convulsivas (?), conversivas (?), êxtases místicos e a certeza de que deve sofrer todos os males do mundo por carregar uma culpa eterna, que não oferece salvação.
Seus biógrafos descrevem um estado que dura longos 12 anos. Passado esse período, aos 43 anos algo acontece: passa a ter visões grandiosas e diz que seus gestos podem destruir todos os pecados e os pecadores. Dizem que se tornou libertina...
Novamente seu comportamento escandaliza a Igreja, e a Santa Inquisição não pode permitir sua devassidão.
Em 1655, aos 65 anos, no final da vida, tem nova transformação. Cessam todas as experiências dolorosas, parece uma criança, brinca, chama a terra de “minha querida mãe”, ri, está ativa e cheia de saúde, apesar de tudo.
A tentação é grande, mas não devemos nos aventurar a fazer diagnósticos com os olhos do presente, até porque nos faltam dados. Se faltam informações, a história, porém, tem indelevelmente o gosto da época.31
 
Dividido em três seções, o Malleus Maleficarum abrange as mais diversas questões, explicações e formas de conduta perante a bruxaria. Segundo Kramer, a bruxaria necessita de três elementos fundamentais: intenções malignas da bruxa, o pacto com o diabo e a permissão de Deus, sendo esta última um dos mistérios da fé. Diferentemente de concepções anteriores acerca da bruxaria, que era vista como um conceito abrangente e essencialmente pagão, o Malleus compreende as bruxas como agentes antirreligiosos – anticristo – e malignos, como uma oposição direta à Igreja, ao cristianismo e a Deus. Acusadas de infanticídio e canibalismo durante seus encontros – os sabás –, de lançarem feitiços contra os homens, de fazerem pactos com o diabo e manter relações sexuais com ele em orgias banhadas a sangue, as mulheres tidas como bruxas ganham a imagem de algo a ser combatido, sendo dever de um bom cristão denunciá-las e combater.
As pessoas acusadas de bruxaria, em sua grande maioria, eram mulheres. A justificativa para isso era a de que elas são mais suscetíveis às tentações demoníacas por conta da fraqueza natural de seu gênero. Acreditava-se que as mulheres tinham uma fé mais fraca e que cediam aos desejos carnais com mais facilidade do que os homens. Lembremos que estamos falando de um mundo em que a mulher é completamente submissa e, muitas vezes, desprezada pelos homens, um mundo patriarcal, profundamente machista. Qualquer mulher que não se comportasse como o esperado ou ultrapassasse o decoro da época era passível de ser considerada uma bruxa. É importante ressaltar que, apesar dessa visão sobre a mulher, é evidente que existiam mulheres, personagens femininos, de forte personalidade que se desviavam do padrão e se faziam presentes na sociedade. Infelizmente há uma escassa – quase inexistente – documentação sobre tais mulheres durante a Idade Média e o Antigo Regime. Houve, porém, também homens acusados de praticar bruxaria, em uma escala bem menor do que as mulheres. O Malleus Maleficarum condenava e falava também sobre esses homens bruxos.
 
MAGNUS EXORCISMUS
Não é novidade ou surpresa afirmar que a Idade Média é profundamente marcada por uma mentalidade religiosa e, sobretudo, cristã. A verdade absoluta e incontestável vem da Bíblia e da Igreja; todas as coisas passam pelo circuito da mentalidade religiosa. Estamos falando de uma época e de pessoas cujos objetivos de vida eram voltados a Deus, e cujo maior medo era o medo do inferno. As doenças não ficavam livres do julgo religioso, principalmente as doenças mentais. Não mais como uma punição divina, a loucura na Idade Média é vista como obra do diabo. A epilepsia, os lunáticos, frenéticos, insanos, melancólicos; os personagens da Idade Média aflitos por doenças nervosas e mentais são tratados em um misto de repulsa e tolerância.
Para a cristandade e a Igreja, as obras do diabo devem ser combatidas a qualquer custo. Sendo constantemente tentados ao pecado, os homens às vezes podem ser abatidos por possessões demoníacas e o único remédio são os exorcismos. Assim que os comportamentos “anormais” e “diabólicos” se manifestam – comportamentos esses hoje relacionados a doenças mentais –, os familiares procuram o auxílio da Igreja para combater os diabos.
O Ritual Romano – conjunto de rituais litúrgicos da Igreja Católica – contém as diretrizes, as regras, os modos e os dizeres para o exercício do exorcismo. Como um manual, o exorcista tem etapas a seguir e critérios a atender. Destacamos, a seguir, um trecho retirado do Ritual Romano, reformado por decreto do Concílio Ecumênico Vaticano II e promulgado por autoridade do Papa João Paulo II:32
O exorcista, no caso de se falar de alguma intervenção diabólica, antes de mais proceda necessariamente com a maior circunspecção e prudência. Em primeiro lugar, não creia facilmente que seja possesso do demônio alguém que sofra de alguma doença, especialmente psíquica. Também não aceite imediatamente que haja possessão quando alguém afirma ser de modo peculiar tentado, estar desolado e finalmente ser atormentado; porque qualquer pessoa pode ser iludida pela própria imaginação. Esteja ainda atento, para se não deixar iludir pelas artes e fraudes que o diabo utiliza para enganar o homem, de modo a persuadir o possesso a não se submeter ao exorcismo, sugerindo-lhe que a sua enfermidade é apenas natural ou do foro médico. Examine exatamente, com todos os meios ao seu alcance, se é realmente atormentado pelo demónio quem tal afirma.
Apesar de atualizado no fim do século XX, esse trecho nos serve de ilustração sobre como se deveria desenvolver o ritual do exorcismo. É claro que, durante a Idade Média, sem o advento da medicina, todo sintoma de doença mental era tratado como uma possessão demoníaca.
 
 (Táki Athanássios Cordás, Matheus Schumaker Emilio - História da melancolia)
 
NOTAS:
17. Thiher A. Revels in madness: insanity in medicine and literature. Ann Arbor: University Michigan Press; 2002.
18. Lacey R, Danziger D. O ano 1000: a vida no final do primeiro milênio. Rio de Janeiro: Campus; 1999.
19. Nogueira CRF. O diabo no imaginário cristão. Bauru: Edusc; 2000.
20. Cantor NF. The Pimlico Encyclopedia of the middle ages. London: Pimlico; 1999.
21. Kieckhefer R. Magic in the middle ages. Cambridge: Cambridge University Press; 2001.
22. Altschule MD. Acedia: its evolution from deadly sin to psychiatric syndrome. Br J Psychiatry. 1965;111:117-9.
23. Jackson SW. Melancholy & depression: from hippocratic times to modern times. New Haven: Yale University Press; 1986.
24. Boff L. Inquisição um espírito que continua a existir. In: Eymerich N, de La Penã F. Diretorium inquiritorum : manual dos inquisidores. São Paulo: Rosa dos Ventos; 1993.
25. Dines A. Vínculos de fogo. São Paulo: Scwarcz; 1992.
26. Robinson JH. Conferencias sobre la historia europea. Boston: Ginn; 1905.
27. Ginzburg C. História noturna: decifrando o sabá. São Paulo: Companhia das Letras; 1989.
28. Zilboorg G. A history of medical psychology. New York: Norton; 1941.
29. Alexander EG, Selesnick S. T História da psiquiatria. São Paulo: Ibrasa; 1966.
30. Kroll J, Bachrach B. Sin and mental illness in the middle ages. Psychol Med. 1984;14(3):507-14.
31. Benazzi N, D’Amico M. El libro negro de la Inquisicion. Barcelona: Rabinbook; 2000.
32. Celebração dos exorcismos: ritual romano [Internet]. Conferência Episcopal Portuguesa; [20--?] [capturado em 22 set. 2016]. Disponível em: http://www.liturgia.pt/rituais/Exorcismos.pdf

publicado às 20:49

 
O marxismo é uma religião?
 
O comunismo foi uma forma de ressentimento. Foi um fundamentalismo político moderno, um engajamento num projeto histórico absoluto. Creio que o volume que surpreende, que capta melhor esta fome de transcendência que está na base da ideologia comunista é Os demônios, de Dostoievski. Igualmente, o romance póstumo confiscado pela Securitate por tantos decênios, de Dinu Pillat teve como fonte de inspiração Os demônios. Asteptând ceasul de apoi [ 3 ] (Editora Humanitas, 2010) constitui uma variante dos Bálcãs, mas contra os Balcânicos. Os pregoeiros de Pillat são, como observa Cosmin Ciotloş na revista România literară, os legionários, mas são também comunistas.
O totalitarismo comunista, como organização social, política, cultural, econômica é caracterizado por três elementos. Em primeiro lugar, pela recusa à memória. A aversão, a hostilidade diante da memória o faz mnemófobo. Ele age, por todas as suas instituições, para a destruição da memória. Em segundo lugar, é uma organização que procura a destruição dos valores, e, neste sentido, é axiófobo. E, não em último lugar, detesta o espírito, portanto é uma organização de tipo noofóbica. Portanto, o comunismo é mnemofóbico, axiofóbico e noofóbico.
Neste contexto, a memória, assim como nos ensinou também Monica Lovinescu, é uma forma de terapia e, em igual medida, uma forma de profilaxia. O passado foi e é ainda falsificado a olhos vistos. Assim como nos opomos às tendências negacionistas e revisionistas, e merecidamente, fazemos em relação ao Holocausto, é nossa obrigação opormo-nos às tendências negacionistas e revisionistas em relação ao que foi o comunismo. O comunismo fez milhões e milhões de vítimas, o comunismo representou o Mal na história. O mal é uma categoria teológica, é uma categoria moral, mas no século XX o Mal passa a ser uma categoria política. No século XX talvez seja a primeira vez em que o Mal é institucionalizado politicamente e passa a ser ideologia que inspira experimentos de engenharia social em massa. Não é qualquer tipo de mal, mas um Mal que falsifica o Bem em nome da felicidade universal. Esta experiência histórica foi soberbamente resumida por Leszek Kolakowski na fórmula “o diabo na história”. Esclareço que esta expressão não é pura e simplesmente uma metáfora, ela é a definição sintética da realidade que marcou fundamentalmente a vida de tantos povos. Dito de maneira simples, trata-se de tragédias resultantes das ambições ilimitadas e inconsideradas de forçar o curso da história em nome de uns ideais abstratos destinados a levar a comunidades políticas desenvolvidas, totalmente não contraditórias.
Escrevi muito no curso dos anos acerca do problema das sombras e dos fantasmas, dos espectros. Na verdade, os fantasmas aparecem no meio da madrugada e nos assolam continuamente. Há espectros que olham para o futuro e os que vêm do passado. O espectro que olha para o futuro é, evidentemente, o encarnado nas primeiras linhas do Manifesto do Partido Comunista. “Um espectro ronda a Europa: o espectro do comunismo”. Assim começa um dos mais famosos livros da história do pensamento político, que Leszek Kolakowski chamou o mais importante panfleto político já escrito. Um documento que continua a inspirar as energias, as paixões, o fanatismo. Outro espectro é o do fascismo, mas ele vem do passado. O Manifesto formulou a substância de uma ideologia cujo escopo principal foi a transformação da sociedade, da economia, da cultura e, não por último, da natureza humana.
O marxismo foi, antes de tudo, um projeto demiúrgico fixado acerca da destruição da sociedade burguesa fundamentada no culto da propriedade privada. Procurou transcender uma sociedade irremediavelmente reificada para preparar as forças sociais revolucionárias para o confronto final que traria consigo “o salto do império da necessidade para o império da liberdade”. Para Marx, a convicção de que a História é governada por leis equivaleu ao fato de estas leis poderem ser conhecidas. Em consequência, a sua Weltanschauung [ 4 ] foi necessariamente científica, não utópica, distinguindo-se assim de qualquer outra forma anterior de socialismo.
Para Marx, a aspiração à revolução tinha o papel de derrubar, de mudar completamente. Tratava-se de uma revolução apocalíptica, um cataclismo. Esta revolução é, segundo escrevia Raymond Aron, mais do que uma explosão social, uma simples substituição de um regime por outro. O escopo é de fato uma completa derrubada dos valores. É uma revolução antropológica e, o que é mais importante, uma renovação da condição humana. A revolução comunista não se ocupa apenas de economia. A ênfase colocada no materialismo é uma que deve mudar mais profundamente a parte das infraestruturas emocionais, sentimentais, psicológicas das necessidades humanas. Por que credes que em regimes comunista se colocava a ênfase no controle sobre o corpo humano? Por que credes que se chegava ao problema da alimentação racional? Ferenc Fehér, Ágnes Heller e Gyögy Márkus enfatizaram corretamente que o cerne da existência no comunismo e a essência deste sistema era a ditadura sobre as necessidades humanas. Não podes construir o homem apenas pela educação, tens de apelar também para a base do homo economicus, que é fundamentada no princípio da propriedade privada.
François Furet, num livro favorito de Monica Lovinescu, O passado de uma ilusão (Editora Humanitas, 1996), afirma que a relação direta entre fascismo e comunismo encontra-se no coração do século XX. O espectro do comunismo olha para o futuro, o espectro do fascismo vem do passado. Um é primordialista, outro é antiprimordialista – uma hipótese de trabalho. Considero, portanto, que o verdadeiro conflito do século XX foi o dentre as democracias liberais e seus rivais totalitários. Esses dois totalitarismos, no fundo da sua experiência histórica simultânea, situaram-se entre uma “intimidade negativa” no contexto europeu de guerra e revolução. Representaram um ataque atroz contra a modernidade liberal e uma alternativa terrível a ela. O comunismo e o fascismo são gênios totalitários, são dois gêmeos totalitários. Não tens como falar do comunismo sem falares do fascismo, e vice-versa. Nasceram um do outro. Se no caso do comunismo dizemos que é uma patologia do universal, o nazismo, o fascismo representam uma patologia do particularismo. Essas duas grandes patologias atraíram seus adeptos à medida que conseguiram produzir o discurso mais contagioso, o mais persuasivo. Não contaram as verdades factuais, inclusive no nível dos nostálgicos.
Todos os grandes temas da religião cristã – a queda, a felicidade original, o reencontro, a expiação, o sujeito messiânico – se reencontram no mito histórico-escatológico do marxismo. É um discurso fundamental da modernidade que contrapõe as assim ditas forças da reação ao barbarismo e ao declínio dos que representam o progresso histórico. Promete a salvação por intermédio da destruição de um sistema percebido como sendo baseado na dominação, na exploração e na alienação. Nesta visão soteriológica, o proletariado é o salvador da humanidade ou, assim como Marx afirmou na sua própria juventude, a classe-Messias da história. O comunismo como religião secular é, portanto, um projeto transcendental. Promete uma mutação cósmica, a transformação da condição humana. Na verdade, uma imagem famosa: o salto do império da necessidade no da liberdade. E ao proletariado cabe a missão de encarnar a figura do herói messiânico. A salvação nasce exatamente desta cesura total, em que ao proletariado volta à missão de encarnar a figura do herói messiânico. A ideologia marxista-leninista constituiu-se com base neste messianismo revolucionário.
O marxismo funda-se no culto da razão da história, ambas sacralizadas, baseia-se na convicção de que pode ser construído como modelo mental que configura, inventa as leis da história. Com base no conhecimento dessas leis, os adeptos do comunismo estão na situação de não errar nunca, porque dominam os princípios da História. O grande historiador americano Martin Mallia afirma: “Qual é a diferença entre os comunistas e os primeiros cristãos: os primeiros cristãos sabiam que criam; os comunistas criam que sabiam”. Isto se traduziria no princípio da inelutabilidade, da infalibilidade epistêmica do comunismo. O comunismo não pode errar. A linha do partido é inevitavelmente a correta, indiferente de quanto oscile. Na verdade, a linha do partido foi sempre uma linha senoidal. Há uma piada famosa dos anos de 1930, que encontramos nas memórias de Arthur Koestler: “P: Quem é que se desvia do partido? R: O que se desvia do partido é um tipo que corre, corre, corre e não olha nunca para trás, para ver se o partido virou à direita ou à esquerda.” O escopo leninista supremo foi a eliminação (a extinção) da política pelo triunfo do partido como personificação de uma vontade geral exclusiva, mesmo eliminacionista/exterminista. Em condições de uma certeza monista, o reconhecimento da falibilidade é o começo da extinção de qualquer fundamentalismo ideológico.
O marxismo fundamenta-se no culto da razão mediata pelo agente messiânico da História. Fundamenta-se no culto da ciência, da tecnologia e do progresso. No caso do comunismo podemos aceitar a posição de François Furet, que chamava o comunismo uma patologia do universalismo. A filosofia marxista postula o papel do proletariado como agente histórico universal. Daqui também a significação do tema internacionalista, respectivamente como revolução de Marx é, tem de ser, e não pode deixar de ser assim do que global. O marxismo nasceu no século XIX, como resposta à crise da modernidade burguesa. Assim como disse Marx, os filósofos, em especial os que se ocupam do drama do político, não aparecem como cogumelos depois da chuva, mas em condições precisas. Marx foi dos primeiros filósofos que se ocuparam do drama do político. A visão central do marxismo foi a de uma comunidade perfeita, destinada a suprimir antes de tudo a “alienação”, tema que vem de Hegel e de toda a filosofia romântica alemã.
A atração exercida pela doutrina marxista depende de uma estrutura metafórica profunda, do que Alvin Gouldner chamou certa vez a matriz paleossimbólica desta filosofia. O que Karl Popper sublinhava então quando falava da tensão entre a dimensão profética, a oracular e a positivista-cientificista do coração do marxismo. O marxismo exprime a revolta contra a moralidade burguesa. O ateísmo encontra-se mesmo no coração deste projeto que diviniza uma humanidade definitivamente emancipada. As religiões seculares são, em suma, antirreligiões. Colocam neste mundo a salvação da humanidade, num futuro mais ou menos distante e sob a forma de uma ordem social que passa a ser inventada. A promessa universalista do comunismo alimentou por decênios a fascinação pela utopia social, portanto, para a soteriologia do marxismo. O século curto que acabou de terminar é uma longa história de descarrilamentos dos que estão em permanente procura da comunidade perfeita, da Sião da humanidade.
Outro ponto de que quero tratar é o problema da mística da revolução, da fraternidade e do fim de qualquer forma de injustiça. Qual é a vocação do comunismo? Como o comunismo chega a convencer? Não creio que resolveremos o problema levantado neste ensaio se afirmarmos pura e simplesmente que foi algo aberrante. O comunismo tem de ser discutido como uma forma de pensamento, uma forma mental. Milhões e milhões de homens não podem compartilhar todos, uma aberração. É mais simples dizeres: é uma aberração, uma demência, e com isso encerramos a discussão. O comunismo foi parte da espiritualidade moderna do Ocidente, da tradição deste nos últimos três séculos. Qual é a idéia-premissa do comunismo? É a luta contra a injustiça, o igualitarismo, que se encontra como outro mito fundamental no coração do projeto socialista. O comunismo é uma utopia coletivista-igualitária que exerceu uma fascinação para o militarismo, especialmente para os intelectuais revolucionários. Por que tantos homens “caíram” no comunismo? O segredo é, diz Aleksander Wat em discussão com Czeslaw Milosz: la fraternité. Em conseqüência, liberté, egalité, mas a mais importante na tríade respectiva é a fraternidade. Gerações inteiras de intelectuais marxistas apressaram-se em aniquilar a própria dignidade e autonomia nesta corrida apocalíptica para a obtenção das certezas últimas. Toda a tradição do racionalismo cético ocidental foi sacrificada no altar da unidade no credo, sob o impacto da iluminação trazida do Kremlin. A época da razão culminou no universo congelado do terror racionalizado.
Igualmente, no coração das religiões seculares encontra-se o maniqueísmo. Vemo-lo também no caso do marxismo, onde é, sem dúvida, muito menos elaborado. É muito mais fácil fazeres uma análise da ideologia nazista, pelo simples fato de que, segundo dizia uma saudosa professora de história da filosofia, Florica Neagoe, numa discussão privada que tivemos em Bucareste no começo dos anos de 1970: “os nazistas não deram nenhum grande filósofo”. Isso em caso de não aceitarmos a aberração de que Heidegger foi um filósofo nazista. Heidegger foi um pensador que, por motivos que podem ser discutíveis aqui e ali, num dado momento, namorou o nacional-socalismo. No caso do marxismo temos que ver com a divinização da humanidade, de um lado, mas também, por outro lado, a divinização da humanidade em frontes opostos: a humanidade boa e a humanidade má. A humanidade má é destinada praticamente do ponto de vista político, e a predestinada, do ponto de vista conceptual. Um papel importante no livro de Ernst Nolte acerca da guerra civil européia é a citação do líder bolchevique da organização de Petrogrado, que haveria de ser executado em 1936, Grigore Zinoviev, que no começo do Terror Vermelho afirmava: “Construiremos o socialismo a qualquer preço. Construiremos o socialismo mesmo se o preço for o extermínio de 10 milhões de pessoas”. Creio que a Rússia, na respectiva época, tinha 100 milhões de pessoas. Lênin lê essa afirmação e fica um pouco horrorizado com ela. Mas acrescenta: “Certamente, mas não anunciemos”. O problema de Lênin era não tornar pública essa questão, o resto era aceitável. Na ideologia bolchevique, uma humanidade foi considerada inferior, obsoleta, ultrapassada pela História. Era formada dos predestinados, levados à condição de vermes, de insetos.
Três elementos explicam o sucesso extraordinário das religiões seculares: o milagre, o mito e a magia. A percepção maniqueísta acerca da humanidade permitiu a santificação da violência. A violência passa a ser o elemento absoluto. O Manifesto do Partido Comunista impõe de fato o culto da violência, celebra a violência, exalta, exulta a violência. A história de todas as sociedades humanas é apresentada exatamente como uma história da luta de classe. Absolutamente falsa do ponto de vista antropológico. Mas a luta de classe passa a ser mito político, e este não precisa ser verdadeiro, funcionando por credibilidade, não por veracidade. A credibilidade do mito político gera a capacidade de utilizar as energias revolucionárias e de fazer os homens sair para a rua. O primado da libertação fez que a violência, santificada como ato libertador, fosse situada no coração do projeto marxista. Mais tarde, o leninismo usou e abusou dessa filosofia do Aufhebung histórico-revolucionário. Impôs o primado do partido de vanguarda, em condições de ausência de um proletariado maduro numa Rússia sub-desenvolvida industrialmente. Como gnose política, a filosofia bolchevique propôs o oposto do que Marx enfatizou em seus escritos de juventude, ou seja, o desenvolvimento espontâneo da consciência de classe. Assim como Lukács, para Marx, a classe revolucionária era a encarnação da totalidade, criando para si, dessa forma, as premissas para chegar à verdade histórica. Mas para Lênin, o partido preenchia tal função. Esta diferenciação foi o ponto de partida para as diferenças essenciais entre o marxismo soviético e o ocidental, do conflito entre Lênin e Rosa Luxemburgo, até o final do século passado.
Que acontece com a tradição de Marx até Lênin e, principalmente, como explicarmos a ideologia sectária do bolchevismo? De modo evidente, o comunismo não foi uma religião explícita. O leninismo provém do encontro entre uma tendência autoritária do marxismo, o voluntarismo marxista, o culto da violência e a hybris histórica do radicalismo revolucionário russo, do qual escreve tão profundamente Dostoievski em Os demônios. Lênin é o asceta revolucionário por excelência, o filho do século XX. Igualmente, o século passado pertenceu a Lênin. Começou com a ruptura entre o bolchevismo e o menchevismo, com o livro célebre Que fazer? que é em si uma réplica tardia do romance homônimo, excepcional documento político, de Tchernicheviski. A pedagogia pressuposta nesta obra antecipa o transformismo antropológico radical de Makarenko. A personagem de Tchernicheviski, Rahmetov, não suporta o enfraquecimento. De modo similar, quando colocam num gramofone a Appassionata para Lênin para escutar, diz ele: “Para, se ouvir mais, enlouqueço!” Não consegue; diante da beleza reage com susto. A beleza tem de ser barrada. Vai para Paris, passa um ano ali, não visita nenhum museu da cidade, a não ser o dos partidários da Comuna de Paris. De um lado, Lênin demonstra um altruísmo exaltado, mas de outro lado, um desejo de culpar a todos os que não se submetem a este gênero de altruísmo.
Assim como mencionei, há duas direções na mensagem de O Manifesto do Partido Comunista que antecipam as elaborações futuras da teoria marxista. De um lado, é a ênfase colocada no desenvolvimento autônomo, orgânico da consciência de classe. De outro lado, temos a glorificação e o culto da violência. A perpetuação de tal dicotomia na história e evolução do marxismo põe em evidência o problema central desta filosofia política: o da moralidade da práxis revolucionária. O Manifesto demonstra a ambivalência letal da emancipação consagrada pela violência: em nome da democracia proletária autêntica, as liberdades formais devem ser suspensas, e mesmo reprimidas. Para atingir um nível alto de moralidade, que transcende a hipocrisia burguesa, a moralidade tradicional deve ser ab-rogada. O marxismo pretende deter os freios do destino da humanidade, porque afirma que tem a solução para as agonias e as ansiedades milenares da sociedade. Não creio que existiu alguma vez outro projeto revolucionário impregnado de uma pretensão profética mais ampla ou de um sentimento mais maciço de predestinação carismático-histórica. Deste ponto de vista, o mito “do partido de tipo novo” de Lênin é um eco fiel do mito de Marx da classe predestinada, que passa a levar a salvação da humanidade para além de suas próprias condições subjetivas.
Em The Road to Terror, afirmam Oleg Naumov e Arch Getty: “Para os bolcheviques, a existência foi um subgrupo da existência da multidão, da existência no quadro do partido, e a vida do partido prevalecia acima da própria vida física. Mesmo o suicídio, o mais pessoal dos atos, tinha uma significação política à parte para os bolcheviques.” Nikolai Bukarin é o caso clássico de vítima que glorifica o torcionário. Pede perdão a Stálin pelos crimes de pensamento que cometera. Stálin manteve em seu escritório pessoal, até o dia de sua morte, as cartas de Bukarin. Encontravam-se entre os poucos objetos preciosos de Stálin. A coleção de cartas do melhor amigo, a quem condenara à morte e executara. Bukarin escreve a Stálin, implorando que lhe poupasse a vida, assegurando-lhe seu devotamento total, glorifica a “paciência angélica” de Stálin. Nisso consta o mecanismo grotesco que se chamou crítica e autocrítica.
Nikolai Bukarin nasceu em 1889, sendo 19 anos mais moço do que Lênin. Provinha de uma família russa de intelectuais, tinha estudos de filosofia. Lênin simpatizava muito com ele. A relação é muito próxima e ele é praticamente o filho de Lênin. Passa a ser, no exílio, o redator-chefe do Pravda. Seus escritos, entre os quais ABC do comunismo, são muito importantes para a tradição filosófica marxista. Houve também polêmicas significativas entre Lênin e Bukarin. Mas depois de 1917, passa a ser membro do Escritório Político, muito próximo de Stálin. Depois de 1926 é nomeado presidente da Internacional Comunista, até 1929, depois do quê, é eliminado como oposicionista desviante de direita. É nomeado redator-chefe de Izvestia e membro suplente do Comitê Central. Foi um dos autores da Constituição stalinista de 1936. É enviado a Paris para localizar o arquivo histórico Marx-Engels. Depois da chegada ao poder dos nazistas na Alemanha, o Partido Social-Democrata Alemão, possuidor do arquivo, decide tirá-lo da França, com a correspondência e tudo. Bukarin recebe pessoalmente de Stálin a missão de recuperar o arquivo. Em Paris encontra-se também com um dos seus amigos. Há discussões muito interessantes, que provam que Stálin é absolutamente demente e que, existe a famosa fórmula, “não é um ser humano, não é um homem como nós”. E, no entanto, porque sua esposa tinha ficado em Moscou – ela era muito mais jovem que ele (sobreviveu juntamente com o filho de Bukarin depois dos anos de Gulag) –, volta e, em 1937, é preso, inquirido e, por fim, confessa. Confessa no terceiro e mais espetaculoso processo de Moscou de 1938. Parcialmente, é a personagem central do romance de Arthur Koestler conhecido como O Zero e o infinito ou Escuridão ao meio-dia. Koestler não tinha como ler as cartas de Bukarin a Stálin. Foram publicadas no período de glasnost e perestroika e foram citadas em The Road to Terror. A confissão de Bukarin é muito interessante, porque ele diz num dado momento: “A história universal é o tribunal supremo”. Em outras palavras, ali veremos quem foi criminoso e quem não foi. E afirma ainda num dado momento: “Somos o estado socialista e saúdo o fato de não seguirmos os métodos da Inquisição medieval”. Esta era uma alusão clara ao princípio de Vischinski conforme o qual a confissão do acusado tem valor documental e probatório. Segue o modelo da Inquisição. Numa carta de 10 de dezembro de 1937, Nikolai Bukarin escreve de sua cela em Lubianka a Stálin: “Preparo-me para partir deste vale de lágrimas e não nutro a teu respeito, do partido e da causa, senão um grande amor infinito”.
Stálin prepara-se para matá-lo, ele sabe que vai morrer, e a última coisa que escreve a Stálin é “um grande amor infinito”. “Adeus para sempre e lembra-te com amor de teu infeliz N. Bukarin”. Se é para tomarmos algures o conceito de religião secular, não creio que possa ser encontrado um texto que apresente melhor o mito, a magia e o milagre e, por que não, o eros da tentação totalitária. É um amor profundo.
O problema aqui não é nem de inteligência, nem de erudição. Nosso problema é como, por que e em que condições se pode chegar a esse estado de êxtase coletivo que não podemos encontrar senão no quadro de algumas formas de experiência religiosa. De oportunismo e compromisso não nasce o sistema de crença comunista. Stálin dizia a Djilas: “Olha o mapa, eles não vão aceitar nunca que é vermelho.” Ele crê até o final que este mapa é vermelho. Ora bem, tratava-se do que se chama um salto para uma crença no momento respectivo. Nisto consta a fenomenologia do radicalismo político do século XX, um século que prendeu György Lukács ou Martin Heidegger, Jean-Paul Sartre ou Ernest Hemingway, para dar apenas alguns exemplos, no que Hannah Arendt chamou “as grandes tempestades ideológicas do século XX”. No comunismo, tudo veio da ideologia. O grupo designado para o extermínio, desclassificação ou para a marginalização tinha obtido seu lugar na sociedade com base numa predestinação histórica pressuposta, identificada pelo agente messiânico, o Partido, que, a seu turno, representava a classe-Messias, o proletariado.
O bolchevismo acrescenta algo novo às mitologias revolucionárias do século XIX: a inclusão do poder num tipo de representação que define o partido como entidade mágica. A glorificação do estatuto predestinado do partido, juntamente com a insistência obsessiva sobre as formas conspiradoras de organização (“as células” revolucionárias) e com um culto de arregimentação fanática geraram uma nova forma de radicalismo político, irreconciliável com a tradição liberal individualista ocidental ou, ao menos a esse respeito, com o socialismo democrático (liberal) anti-autoritário. Iuri Piatakov, um dos favoritos de Lênin da geração jovem da velha guarda bolchevique, exprimiu esta identificação nos termos mais dramáticos: “Sim, considerarei preto algo que senti e considerei branco, uma vez que fora do partido, fora do acordo com o partido, não existe vida para mim.” Foi executado em 1937. O absolutismo ideológico, a sacralização do escopo supremo, a suspensão das faculdades críticas e o culto da linha de partido como expressão perfeita da vontade geral foram incorporados no projeto bolchevique original. A subordinação de todos os critérios morais convencionais diante do escopo supremo de obtenção de uma sociedade sem classe constituiu o principal problema do leninismo. Este compartilhava com o marxismo o que Steven Lukes chamava “a visão emancipada de um mundo em que os princípios que protegem um ser humano de outro já não serão necessários”. Considero que este desmantelar do indivíduo e da moralidade pressuposta pela assunção da autonomia da própria personalidade representa a chave de entendimento do efeito magnético exercido pelas religiões seculares no século XX.
O declínio do marxismo como estratégia de transformação radical da sociedade significou o fim da época do radicalismo. Mas ao mesmo tempo o componente utópico do marxismo mantém a sua relevância e influência. A durabilidade deste último é explicável por intermédio da pretensão cientificista da doutrina. O marxismo subordinou o imperativo ético à sua ambição hiper-racionalista e ultrapositivista. Para Marx, o não reconhecimento da validade de seus postulados foi o mesmo que a cegueira histórica, que a alienação ideológica do sujeito, que “a falsa consciência”. Todos os que não conseguiram interiorizar os axiomas do marxismo passaram a ser advogados do status quo, as vítimas alienadas dos mistificadores ideológicos. O Manifesto do Partido Comunista foi o texto sacro que proclamava a legitimidade moral da revolução total. Neste sentido, prescreve o marxismo como o substituto secular da religião tradicional. O seu milenarismo explica o magnetismo deste texto. Impôs o marxismo como doutrina do novo heroísmo romântico, do coletivismo inflamante. Abre a epopeia do conflito irremediável no quadro da sociedade humana, a fonte justificativa de esperança e de ilusões dos que escolheram o caminho radicalmente transformista. Em última instância, ligado a sua materialização concreta na história, O Manifesto é, também, o ponto de partida da terrível engenharia social extremista do século XX. É o documento em que Marx e Engels proclamaram aos adeptos o caminho imutável em direção ao novo Jardim do Homem. Mas é le livre de chevet [ 5 ] do extremismo de esquerda assolado pelo sonho apocalíptico da libertação universal da humanidade.
Concluindo, para parafrasear Žižek (que a seu turno imita Heidegger, esquecendo, convenientemente, que este último se referia à sua própria afirmação do nazismo no ano de 1933), houve ou não uma grandeza histórica do bolchevismo? Pessoalmente, creio que a grandeza histórica não pode ser separada da ética. Deste ponto de vista, faço parte do grupo, provavelmente anacrônico, daqueles para quem a grandeza dos desfiles nacional-socialistas ou bolcheviques não pôde convencê-los do valor moral do que acontece. O bolchevismo, em qualquer de suas encarnações, procurou a criação de um corpo social perfeitamente homogêneo, a liquidação do cidadão e do espírito cívico. Parafraseando Lênin, o comunismo teve como objetivo a limpeza da terra de todos os insetos danosos. Não creio que o tipo de religião secular que encontrei, o fascismo ou o comunismo, tenham ainda um futuro. Ideologicamente desapareceram, mas não pereceram a recusa de deliberação democrática e o desprezo pelos “valores sentimentais burgueses”.
 
(VLADIMIR TISMĂNEANU - do comunismo,O destino de uma religião política)
 

2 Uma primeira versão deste texto foi apresentada no quadro das conferências “Monica Lovinescu” do Instituto de Investigação dos Crimes do Comunismo e a Memória do Exílio Romeno (IICCMER), no mês de junho de 2010. O autor agradece a Florin Soare pela transcrição e uma primeira edição.
3 Esperando a hora da morte – NT.
4 Em alemão, no original, “visão de mundo” – NT
5 Livro de cabeceira – NT

publicado às 20:18

Filosofia é para todos
 
Quando discutem “cultura”, os filósofos tratam da maneira pela qual a informação é transmitida entre os humanos com métodos que não são genéticos ou epigenéticos (isto é, fatores externos que afetam a genética). Essa ideia inclui os sistemas simbólicos e comportamentais que as pessoas usam para se comunicar umas com as outras.
 
A IDEIA DE CULTURA
O termo cultura nem sempre teve o significado que conhecemos hoje. Embora a palavra exista, pelo menos, desde os dias de Cícero (106-43 a.C.), cultura era originalmente utilizada quando se discutia a filosofia da educação e se referia ao processo de aprendizado de uma pessoa. Assim, a definição de cultura que conhecemos hoje é um conceito muito mais recente.
 
Filosofia da educação
A filosofia da educação é uma tentativa de compreender quais são as ferramentas adequadas para que as pessoas compartilhem uma parte de sua cultura com as outras. Quando as crianças nascem, são iletradas e sem conhecimento; é com a sociedade e com a cultura que elas aprendem a se tornar parte dessa mesma sociedade e cultura. Assim, a educação continua a ser um dos elementos mais importantes dos processos culturais.
 
EXEMPLOS DE INFLUÊNCIA CULTURAL
A cultura possibilita que as pessoas conheçam e acreditem em diferentes coisas e tenham percepções diferentes. Isso levanta a questão: a cultura constrói os fatos normativos ou funciona como uma proteção contra as normas universais? Existem muitos exemplos de cultura com influência sobre nós.
 
Linguagem
A linguagem é cultural (e pode variar de cultura para cultura) e, dessa forma, seus efeitos sobre o pensamento podem ser considerados efeitos culturais.
 
Percepção e pensamento
A linguagem (que é afetada pela cultura) tem grande influência sobre nossos processos de pensamento e, assim, também afeta nossas percepções. As culturas podem se apoiar no individualismo (como aquelas fundadas na América do Norte, na Europa ocidental e nos países de língua inglesa da Australásia) ou no coletivismo (como aquelas fundadas no Oriente Médio, no sul e no leste da Ásia, na América do Sul e no Mediterrâneo).

Definições filosóficas  
COLETIVISMO: os indivíduos veem a si mesmos como parte de um coletivo, e as motivações derivam primariamente das obrigações com a coletividade. INDIVIDUALISMO: os indivíduos são motivados pelas próprias necessidades e preferências e não veem a si mesmos como parte de uma coletividade.
 
Emoções
As emoções não são fundamentais somente para a cultura; são fundamentais para os seres mamíferos (os cães, por exemplo, podem expressar alegria, tristeza e medo). As emoções, portanto, são respostas evoluídas que ajudam os indivíduos a sobreviver e devem integrar a natureza humana. A cultura pode influenciar como as diferentes emoções podem ser encaradas e, por vezes, a mesma ação pode suscitar duas emoções completamente diferentes, dependendo da cultura. A cultura também influencia como as emoções são expressas.
 
Moralidade
A moralidade é claramente modelada pela cultura e a perspectiva moral derivada da cultura de uma pessoa pode ser completamente diferente daquela de um indivíduo de outra cultura. Isso leva à ideia de relativismo cultural.
 
RELATIVISMO CULTURAL
Os sistemas ético e moral são diferentes para cada cultura. De acordo com o relativismo cultural, todos esses sistemas são igualmente válidos e nenhum é melhor do que outro. A base do relativismo cultural é a noção de que, na verdade, não existem padrões para o bem e o mal. Desse modo, o julgamento de que algo é certo ou errado tem por base as crenças de uma sociedade, pois todas as opiniões éticas e morais são influenciadas pela perspectiva cultural de um indivíduo.
No entanto, existe uma contradição inerente ao relativismo cultural. Se alguém assume a ideia de que não há certo ou errado, então, em primeiro lugar, não há como fazer julgamentos. Para lidar com essa contradição, o relativismo cultural criou a “tolerância”. No entanto, com a tolerância chega também a intolerância, e isso significa que a tolerância tem de implicar também um tipo de bem definitivo. Dessa forma, a tolerância vai contra a noção essencial do relativismo cultural e os limites da lógica tornam o relativismo cultural impossível.

(Paul Kleinman - Tudo o que você precisa saber sobre Filosofia)    

publicado às 22:20

 

“Os ‘significados’ não estão na cabeça!”
 
Imagine o seguinte cenário:
Existe um planeta imaginário, conhecido como Terra Gêmea, que é absolutamente idêntico ao planeta Terra nos mínimos detalhes — até mesmo os habitantes dos dois planetas são iguais. Há, porém, uma diferença entre a Terra e a Terra Gêmea: em todo lugar em que há água na Terra, existe uma substância conhecida na Terra Gêmea como XYZ. Para o propósito desta história, estamos na Terra por volta de 1750, antes da descoberta do H2O (a fórmula química que representa a água). Naquele planeta imaginário, em vez da água das chuvas, dos lagos e dos oceanos, existe a substância XYZ. Além disso, XYZ tem propriedades observáveis semelhantes às da água, mas com uma microestrutura diferente. Os habitantes da Terra Gêmea (que se referem ao próprio planeta como Terra) são idênticos aos da Terra, também falam “português” e chamam a substância XYZ de “água”.
Agora, quando Oscar, um habitante da Terra e seu gêmeo, que mora na Terra Gêmea (também chamado Oscar), dizem a palavra água, eles estão dizendo a mesma coisa?
De acordo com o filósofo (e criador do experimento mental da Terra Gêmea) Hilary Putnam, Oscar e seu gêmeo Oscar não estão significando a mesma coisa porque, enquanto Oscar se refere a H2O, seu gêmeo se refere a XYZ. A partir disso, ele conclui que os processos mentais do cérebro podem não ser suficientes para determinar a que um termo se refere. Segundo ele, uma pessoa tem de entender a história causal que conduz ao significado de uma palavra para aprendê-la.
O experimento mental de Putnam, da Terra Gêmea, é um dos exemplos mais populares da sua teoria no campo da filosofia da linguagem, conhecida como “externalismo semântico”.
 
EXTERNALISMO SEMÂNTICO
Hilary Putnam busca compreender como a sintaxe, o arranjo das palavras na frase, ganha significado (semântico). De acordo com o externalismo semântico proposto por ele, o significado de uma palavra é determinado (seja parcial ou inteiramente) por fatores que são externos ao indivíduo falante. Enquanto outras teorias acreditam que o processo de significação é interno (dentro da cabeça), o externalismo semântico de Putnam propõe que isso ocorre fora da mente. Em outras palavras, como ele mesmo diz em sua frase já famosa: “Os ‘significados’ não estão na cabeça!”.
Segundo Putnam, o significado de qualquer termo em uma linguagem é dado por uma sequência de elementos:
1.  O objeto a que o termo se refere (no caso da Terra Gêmea, isso é a substância com a fórmula química H2O).
2.  Os termos típicos (conhecidos como “estereótipos”) que costumam ser frequentemente associados à palavra (como inodora, incolor e hidratante sempre associados à água).
3.  Os indicadores semânticos que categorizam o objeto (como líquido).
4.  Os indicadores sintáticos (por exemplo, um nome de massa — um tipo de substantivo que tem termos que são referidos que não podem ser considerados entidades separadas).
Com base em suas ideias de externalismo semântico, Putnam buscou explicar sua teoria causal da referência. Ele afirma que as palavras conquistam seus referentes como resultado de uma cadeia de causação que termina no referente. Por exemplo, uma pessoa mantém a capacidade de se referir às pirâmides do Egito, mesmo que nunca as tenha visto, porque o conceito do que são as pirâmides do Egito ainda existe. Como pode ser? É porque o termo foi adquirido (aprendido) como resultado da interação com os outros (que, para adquirir esse conhecimento, interagiram com outros, que para adquirir esse conhecimento interagiram com outros etc.). Esse padrão prossegue até que, por fim, alcança uma pessoa que tenha tido uma experiência em primeira mão com o tema em questão. Por causa dessa cadeia de causação, uma pessoa é capaz de falar sobre algo sem nunca ter vivenciado diretamente aquilo.
 
CONTEÚDO MENTAL RESTRITO
O experimento mental da Terra Gêmea proposto por Putnam é parte de um tópico maior de discussão conhecido como “conteúdo amplo”, que se opõe à perspectiva do “conteúdo mental restrito”. A ideia por trás do conteúdo mental restrito é de que o conteúdo mental é interno (ou intrínseco) e, dessa forma, diferente do externalismo semântico de Putnam, é totalmente independente do ambiente em que a pessoa está; então, é uma propriedade intrínseca daquela coisa particular (por exemplo, uma propriedade intrínseca de uma moeda é que ela é redonda, embora uma moeda no bolso de uma pessoa seja uma propriedade extrínseca). O conteúdo restrito que alguém acredita haver em um objeto tem de ser compartilhado por toda duplicata daquele objeto particular.
Aqueles que consideram válido o conteúdo mental restrito afirmam que o conteúdo mental e o comportamento são o resultado de uma consequência causal de nossas crenças e nossos desejos. Outros propõem que as pessoas têm acesso introspectivo a seus pensamentos, ou seja, nós devemos ter a habilidade de determinar se o mesmo conteúdo está contido em dois de nossos pensamentos. De acordo com essa proposta, os dois Oscar, ignorantes da fórmula química de H2O e de XYZ, não têm como saber se seus pensamentos são relacionados a H2O ou a XYZ, porque não estão conscientes nem de que existe outra substância semelhante à água. Para dar sentido a isso, os filósofos criaram a noção de “transição suave”. O que aconteceria se Oscar da Terra mudasse para a Terra Gêmea? De início, ele continuará a ter pensamentos relacionados à água quando vir aquela substância, mas, quanto mais interagir com XYZ e quanto mais ficar longe da água, vai começar a pensar em XYZ e não em H2O. Ao longo do tempo, seus pensamentos relacionados à água terão um conteúdo amplo diferente (e Oscar não teria consciência dessa mudança porque seus pensamentos pareceriam ter o mesmo conteúdo que sempre tiveram). Para ter acesso introspectivo e verificar que esses conteúdos são diferentes, nós precisamos do conteúdo mental restrito e não do amplo.
O conteúdo mental restrito é controverso entre os filósofos; muitos rejeitam esse conceito em favor do conteúdo mental amplo. O experimento da Terra Gêmea, de Putnam, é o exemplo mais famoso de por que o conteúdo mental amplo faz mais sentido. Os dois Oscar têm exatamente as mesmas propriedades intrínsecas; no entanto, eles se referem a substâncias diferentes. Assim, as propriedades intrínsecas não são o bastante para determinar a que se referem. E isso nos traz de volta à famosa frase de Putnam: “Os ‘significados’ não estão na cabeça!”

(Paul Kleinman - Tudo o que você precisa saber sobre Filosofia)   

publicado às 23:33

O estudo filosófico da religião lida com as noções de milagres, preces, a natureza da existência de Deus, como os sistemas de valores se relacionam uns com os outros e a questão do mal. A filosofia da religião não é o mesmo que a teologia, pois não pretende responder à pergunta: “O que é Deus?”, mas aborda os temas e os conceitos relacionados às tradições religiosas.
A questão sobre a possibilidade de conciliar fé e razão deu origem à Filosofia da Religião 

 

LINGUAGEM RELIGIOSA

A linguagem da religião é frequentemente vista como misteriosa, imprecisa e vaga. No século XX, os filósofos começaram a questionar o padrão da linguagem religiosa, rejeitando qualquer afirmativa que não fosse empírica por considerá-la sem significado. Essa escola de pensamento ficou conhecida como positivismo lógico.
De acordo com os filósofos seguidores dessa escola, somente as assertivas que contêm inferências empíricas ou derivadas da matemática e da lógica poderiam ser consideradas com significado. Isso quer dizer que muitas das afirmações religiosas, até mesmo aquelas pertencentes a Deus (como “O Senhor é um Deus compassivo e misericordioso”), não podiam ser verificadas e, portanto, não tinham sentido.
Na segunda metade do século XX, enquanto muitos filósofos começaram a julgar problemáticas algumas posições dessa teoria, e os estudos de linguagem de Ludwig Wittgenstein e o trabalho naturalista de Willard van Orman Quine tornaram-se mais populares, o positivismo lógico entrou em declínio. Por volta de 1970, essa escola de pensamento tinha praticamente desaparecido, abrindo as portas para novas teorias e interpretações da linguagem religiosa.
Depois do positivismo lógico, houve duas escolas de pensamento no campo da linguagem religiosa: o realismo e o antirrealismo. Os seguidores do realismo acreditam que a linguagem corresponde àquilo que realmente acontece; enquanto os antirrealistas consideram que a linguagem não corresponde à realidade (em vez disso, a linguagem religiosa refere-se aos comportamentos e às experiências humanas).

O PROBLEMA DO MAL

O argumento mais significativo contra o teísmo é conhecido como “o problema do mal”, que pode ser colocado de várias maneiras diferentes:

O problema lógico do mal

Primeiramente identificado por Epicuro, o problema lógico do mal talvez seja a mais poderosa objeção à existência de Deus. De acordo com Epicuro, existem quatro possibilidades:
1.  Se Deus deseja prevenir o mal e não é capaz, então, Deus é fraco.
2.  Se Deus é capaz de se livrar do mal, mas não quer, então, Deus é malévolo.
3.  Se Deus não deseja se livrar do mal e não é capaz de prevenir o mal, então, Deus é malévolo e fraco e, então, não é Deus.
4.  Se Deus deseja se livrar do mal e é capaz de evitar o mal, então, por que o mal existe no mundo e por que Deus não se livra dele?
São Tomás de Aquino respondeu ao problema lógico do mal, afirmando não estar claro se a ausência do mal tornaria o mundo um lugar melhor, pois sem o mal, a gentileza, a justiça, a igualdade e o autossacrifício não teriam sentido. Outro argumento contra o problema lógico do mal, conhecido como “defesa do propósito desconhecido”, afirma que, como Deus jamais será verdadeiramente conhecido, os homens têm limitações ao tentar compreender as motivações divinas.

O problema empírico do mal

Criado por David Hume, o problema empírico do mal declara que, se uma pessoa não fosse exposta previamente aos compromissos das convicções religiosas, sua experiência do mal no mundo a levaria a adotar o ateísmo, e a noção de que Deus é a bondade onipotente não existiria.

O argumento probabilístico do mal

É o argumento de que a simples existência do mal é prova de que não há Deus.

TEODICEIA

A teodiceia é um ramo da filosofia que tenta reconciliar a crença em um Deus benevolente, onisciente e onipotente com a existência do mal e do sofrimento. A teodiceia aceita que o mal existe e que Deus é capaz de acabar com ele e busca compreender por que não o faz. Uma das teorias mais bem conhecidas de teodiceia é a de Leibniz, que afirma que, como este mundo foi criado por Deus, que é perfeito, então, este mundo é o melhor e mais equilibrado mundo possível entre todos os outros mundos possíveis.

ARGUMENTOS A FAVOR DA EXISTÊNCIA DE DEUS

Existem três tipos de argumentos favoráveis à existência de Deus: ontológico, cosmológico e teleológico.

Argumentos ontológicos

Os argumentos ontológicos usam um raciocínio abstrato a priori para afirmar que o conceito de Deus e a capacidade de falar em Deus implicam a existência de Deus. Quando falamos sobre Deus, nós nos referimos a um ser perfeito; nada é melhor. Uma vez que seria melhor termos um Deus que existe do que um Deus que não existe e nos referimos a Ele como um ser perfeito, nós implicamos a existência de Deus.
Os argumentos ontológicos são falhos porque podem ser usados para demonstrar a existência de qualquer coisa perfeita. De acordo com Kant, a existência é uma propriedade dos conceitos e não dos objetos.

Argumentos cosmológicos

Os argumentos cosmológicos afirmam que, como o mundo e o universo existem, isso implica que foram trazidos e são mantidos na existência por um ser. É preciso que haja um “primeiro motor”, que é Deus, porque um infinito retrocesso simplesmente não é possível. Existem dois tipos de argumentos cosmológicos:
1.  Modal: afirma que o universo poderia não ter existido e, dessa forma, precisa haver uma explicação para que exista.
2.  Temporal: afirma que deve ter havido um ponto no tempo em que o universo começou a existir e essa existência tem de ter sido causada por algo exterior ao universo, que é Deus.

Argumento teleológico

O argumento teleológico, que também é chamado de design inteligente, afirma que, como há ordem no mundo e no universo, a criação da vida foi realizada por um ser que tinha em mente esse propósito específico.

MILAGRES

Em filosofia da religião existe muita discussão sobre o que pode, ou não, ser considerado um milagre. Ao falar sobre milagres, os filósofos referem-se a eventos inusuais e que não podem ser explicados por causas naturais. De acordo com alguns filósofos, dessa forma, esses eventos têm de ser resultado de uma divindade.
David Hume rejeitava a noção de milagres, chamando-os de “violações das leis da natureza”. Argumentava que a única evidência para apoiar um milagre eram as testemunhas, enquanto as evidências para apoiar as leis da natureza eram colhidas pela experiência uniforme das pessoas ao longo dos tempos. Assim, o testemunho dos milagres precisa ser mais forte do que o apoio às leis da natureza e, como não há evidência para uma comprovação, não é razoável acreditar que esse tipo de violação das leis da natureza possa ocorrer.
Outros levantaram objeção ao argumento de Hume, alegando que os milagres não são violações das leis da natureza. Esses filósofos da religião afirmam que as leis da natureza descrevem o que é mais provável de ocorrer em condições específicas e, assim, os milagres são a exceção nos processos usuais. Argumentam ainda que Hume tinha uma compreensão inadequada de probabilidades e que observar a frequência com que um evento ocorre não é suficiente para determinar a sua probabilidade.

(Paul Kleinman - Tudo o que você precisa saber sobre Filosofia)  

publicado às 21:11


Pouco a pouco - PARADOXO SORITES

por Thynus, em 24.02.17
 
É a vida!
 
O paradoxo sorites é outra famosa criação de Eubulides de Mileto. Esse paradoxo desafia a ideia de imprecisão. A palavra sorites vem do grego, soros, que significa “um monte”. O paradoxo sorites afirma:
Imagine que você tenha um monte de areia. Embora um único grão de areia não faça um monte, muitos grãos, como 1 milhão de grãos, formam um monte de areia.
1.  Se você remover um grão de areia de 1 milhão de grãos, então, ainda terá um monte de areia.
2.  Se você remover outro grão, então, ainda terá um monte de areia.
3.  Se você remover outro grão, então, ainda terá um monte de areia.
Por fim, você pode remover tantos grãos que aquilo não seja mais considerado um monte de areia, mas em que ponto isso acontece? Quinhentos grãos de areia ainda são considerados um monte, mas 499 não?
O paradoxo sorites também está em outro criado por Eubulides: o do homem careca. Esse paradoxo afirma o seguinte:
1.  Se um homem tem um fio de cabelo na cabeça, então, ele é considerado careca.
2.  Se um homem com um fio de cabelo na cabeça é considerado careca, então, um homem com dois fios na cabeça é considerado careca.
3.  Se um homem com dois fios de cabelo na cabeça é considerado careca, então, um homem com três fios é considerado careca.
Dessa forma, um homem com 1 milhão de fios de cabelo na cabeça será considerado careca.
Mesmo que um homem com 1 milhão de fios de cabelo não seja careca, de acordo com a lógica, ele teria de ser considerado assim. Então, em que ponto um homem não é mais considerado careca?
Os filósofos Gottlob Frege e Bertrand Russell argumentavam que a linguagem ideal deveria ser precisa e que a linguagem natural tem um defeito, que é ser vaga. Para nos livrarmos da imprecisão, deveríamos eliminar os termos soríticos,8 assim escapando do paradoxo de sorites.
Mais tarde, o filósofo norte-americano Willard van Orman Quine considerou que a imprecisão poderia ser completamente eliminada da linguagem natural. Embora isso fosse afetar a maneira corriqueira como as pessoas falam, que Quine descrevia de “doce simplicidade”, valeria a pena.

AS SOLUÇÕES PROPOSTAS

Em geral, existem quatro respostas usadas pelos filósofos para explicar o paradoxo de sorites:
1.  Negar que a lógica é aplicável ao paradoxo de sorites.
2.  Negar uma das premissas internas ao paradoxo de sorites.
3.  Negar a validade do paradoxo de sorites.
4.  Aceitar o paradoxo de sorites como consistente.
Vamos analisar cada uma das soluções propostas.

Negar que a lógica é aplicável ao paradoxo de sorites

Esta não parece a melhor solução. Parece que, para a lógica causar algum impacto, deve ser aplicada à linguagem natural e não somente a uma forma ideal de linguagem. Assim, não é possível evitar os termos soríticos e será preciso lidar com eles de outra forma.

Negar uma das premissas

Negar uma das premissas do paradoxo de sorites é a solução mais comum atualmente. Nessas soluções, a lógica pode ser aplicada à linguagem natural; no entanto, há questões relacionadas às premissas que fundamentam o paradoxo de sorites.
A teoria epistêmica
Nessa teoria, uma condicional é assumida como falsa e há um ponto de corte no paradoxo de sorites em que o predicado não se aplica mais (e, em vez disso, a negação se aplica). Vamos usar novamente o paradoxo do careca como exemplo:
1.  Se um homem tem um fio de cabelo na cabeça, então, ele é considerado careca.
2.  Se um homem com um fio de cabelo na cabeça é considerado careca, então, um homem com dois fios na cabeça é considerado careca.
3.  Se um homem com dois fios de cabelo na cabeça é considerado careca, então, um homem com três fios é considerado careca.
Dessa forma, um homem com 1 milhão de fios de cabelo na cabeça será considerado careca.
Imagine agora que rejeitamos uma das premissas, com exceção da primeira. Por exemplo, vamos supor que o ponto de corte seja em 130 fios de cabelo. Isso significa que qualquer um com 129 fios de cabelo na cabeça seria considerado careca, enquanto qualquer um com 130 fios de cabelo na cabeça não seria.
Naturalmente, muitos consideram a teoria epistêmica questionável. Se uma das premissas é falsa, como alguém saberia qual delas é a falsa? Adicionalmente, como alguém descobriria essa informação? Se nós usamos a palavra careca, essa palavra tem sentido pela forma com que a utilizamos. Contudo, como podemos usar a palavra para determinar um padrão quando não sabemos o que é esse padrão?
A teoria da falta de valor-verdade
Outra teoria, a da falta de valor-verdade, afirma que não podemos saber o ponto de corte porque não há ponto específico para isso. A intuição nos diz que existe um grupo de pessoas para as quais dizer que são carecas é simplesmente verdadeiro. E existe um grupo de pessoas para as quais dizer que são carecas é simplesmente falso. No entanto, também existe um grupo de pessoas no meio. Para elas, chamá-las de carecas não é dizer algo verdadeiro ou falso. Para essas pessoas no meio-termo, a palavra careca é indefinida.
De acordo com a teoria da falta de valor-verdade, como as sentenças podem ser indefinidas em vez de verdadeiras, nem todas as premissas são verdadeiras. Entretanto, até mesmo essa teoria enfrenta problemas.
Se você olha para a seguinte frase: “Ou está chovendo ou não está chovendo”, normalmente a consideraria uma verdade lógica. No entanto, pela teoria da falta de valor-verdade, se houver um caso limítrofe de chuva, as duas frases “está chovendo” e “não está chovendo” seriam indefinidas e, portanto, nenhuma seria verdadeira.
Supervalorativismo
O supervalorativismo tenta solucionar o problema do grupo do meio discutido na teoria da falta de valor-verdade. Olhando para o exemplo da calvície, existem casos de homens com pouco cabelo para os quais não seria verdade dizer que são carecas (conforme o que dita as regras de ser “careca”): porém, não seria falso, tampouco, dizer que eles são carecas. Assim, parece que fica sob nossa responsabilidade determinar esses casos.
No supervalorativismo, traçar a linha entre ser careca e não ser careca é chamado de “precisar” o termo careca. Enquanto sentenças simples no que se refere a cenários limítrofes possam ter falta de valor-verdade, os componentes dessas sentenças terão valor-verdade de fato e o supervalorativismo possibilitará que a lógica formal seja mantida (mesmo com a existência de falta de valor-verdade). Com essa ideia de “tornar mais preciso”, o supervalorativismo afirma o seguinte:
  • Uma sentença é verdadeira se e somente se for verdade no que diz respeito a todas as precisões do termo.
  • Uma sentença é falsa se e somente for falsa no que diz respeito a todas as precisões do termo.
  • Uma sentença é indefinida se e somente se for verdade no que se refere a algumas precisões do termo e falsa no que diz respeito a outras precisões.
Portanto, de acordo com o supervalorativismo, as premissas do paradoxo de sorites serão verdadeiras no que diz respeito a algumas precisões, falsas no que diz respeito a outras precisões e, dessa forma, algumas serão indefinidas. Isso possibilita que haja um raciocínio válido com uma conclusão falsa.
Mesmo assim, até mesmo o supervalorativismo tem seus problemas como teoria. O supervalorativismo afirma que “Ou está chovendo ou não está chovendo” é sempre verdadeiro mesmo se nenhum dos eventos for real. Se voltarmos à ideia da calvície, o supervalorativismo diria que a frase “Se você tem 130 fios de cabelo na cabeça, você não é careca, mas, se você tem um a menos, você é careca” é falsa, enquanto também afirmaria que a sentença “Existe um número de cabelos com o qual você não é careca e, se você tiver um a menos, você é careca” é verdadeira. Há uma clara contradição aqui.

Negar a validade do paradoxo de sorites

A terceira opção para tentar solucionar o paradoxo de sorites afirma que alguém pode aceitar todas as premissas, mas negar a conclusão. De acordo com essa opção, as sentenças não são consideradas absolutamente verdadeiras ou falsas, mas são verdadeiras até determinado grau. Dessa forma, cada afirmação deveria ser determinada pelo nível de verdade existente entre as suas próprias partes.

Aceitar o paradoxo de sorites como consistente

A última opção é aderir ao paradoxo de sorites e aceitá-lo como consistente. Nesse caso, então, as versões positivas e negativas também devem ser aceitas. Ninguém é careca e todo mundo é careca. Qualquer número de grãos formará um monte de areia e nenhum número formará um monte. Como não é esse o caso, porém, aderir ao paradoxo de sorites deve ficar mais restrito pela aceitação do raciocínio clássico e a negação de termos como calvície ou montão para que essas palavras se apliquem a nada.

(Paul Kleinman - Tudo o que você precisa saber sobre Filosofia) 

publicado às 19:13

Um dos mais famosos paradoxos que ainda são amplamente debatidos até hoje foi proposto pelo antigo filósofo grego Eubulides de Mileto, no século IV a.C., que propôs o seguinte:
“Um homem afirma que está mentindo. O que ele diz é verdadeiro ou falso?”
Não importa como a pessoa responda a essa pergunta, haverá problemas porque o resultado é sempre uma contradição.
Se afirmarmos que o homem está falando a verdade, isso quer dizer que ele está mentindo, o que, então, significaria que a frase inicial dele é falsa.
Se dissermos que a afirmação inicial dele é falsa, isso quer dizer que ele não está mentindo e, assim, o que ele afirmou é verdadeiro.
No entanto, não é possível haver uma frase que é simultaneamente verdadeira e falsa.

EXPLICAÇÃO DO PARADOXO DO MENTIROSO

O problema do paradoxo do mentiroso vai além da simples situação do homem retratado por Eubulides. Existem aqui implicações bastante reais.
Ao longo dos anos, houve diversos filósofos que teorizaram sobre o significado do paradoxo do mentiroso. Este demonstra que as contradições surgem das crenças comuns em relação à verdade e à falsidade e que a noção de verdade é vaga. Além disso, o paradoxo do mentiroso demonstra a fraqueza da linguagem. Embora seja gramaticalmente consistente e obedeça às regras da semântica, as frases produzidas no paradoxo do mentiroso não têm valor de verdade. Alguns já usaram o paradoxo do mentiroso até para provar que o mundo é incompleto e, dessa forma, que não pode haver algo como um ser onisciente.
Para compreender melhor o paradoxo do mentiroso, é preciso antes entender as diversas formas que ele pode assumir.
 
O paradoxo do mentiroso

A simples falsidade do mentiroso

A forma mais básica do paradoxo do mentiroso é a da simples falsidade, que é a seguinte:
FMentiroso: “Essa sentença é falsa”.
Se FMentiroso diz a verdade, então, isso significa que “Essa sentença é falsa” é verdade e, portanto, o que diz FMentiroso tem de ser falso. Como FMentiroso é simultaneamente verdadeiro e falso, isso cria uma contradição e um paradoxo.
Se FMentiroso diz uma falsidade, então, isso significa que “Essa sentença é falsa” é falsa e, portanto, FMentiroso tem de ser verdadeiro. Como FMentiroso é simultaneamente verdadeiro e falso, isso cria uma contradição e um paradoxo.

A simples inverdade do mentiroso

Essa forma do paradoxo não opera com a falsidade e, em vez disso, constrói-se com base no predicado “é não real”, que é o seguinte:
IMentiroso: “IMentiroso é não real”.
Como no exemplo anterior, se IMentiroso é não real, então, isso é verdadeiro; e, se for real, então isso é não real. Mesmo que IMentiroso não fosse nem verdadeiro nem falso, isso significaria que isso é não real e, como é precisamente isso que ele afirma, IMentiroso é real. Portanto, surge outra contradição.

CICLOS DO MENTIROSO

Até aqui, vimos somente exemplos do paradoxo do mentiroso que são autorreferentes. No entanto, mesmo removendo a natureza autorreferente dos paradoxos, ainda surgem contradições. O ciclo do mentiroso afirma o seguinte:
  • “A próxima sentença é verdade.”
  • “A sentença anterior não é verdade.”
Se a primeira sentença é verdadeira, então, a segunda é verdadeira, o que tornaria a primeira sentença não real, criando uma contradição. Se a primeira sentença não é verdade, então, a segunda é falsa, o que tornaria a primeira sentença verdadeira, criando uma contradição.

POSSÍVEIS SOLUÇÕES DO PARADOXO DO MENTIROSO

O paradoxo do mentiroso tem sido fonte de debates filosóficos e, ao longo dos anos, os filósofos criaram soluções bem conhecidas, que possibilitam escapar das contradições.

A solução de Arthur Prior

O filósofo Arthur Prior afirma que, por fim, o paradoxo do mentiroso não é um paradoxo completo. Para ele, cada sentença já contém uma implicação de sua própria verdade. Desse modo, uma frase como “Essa sentença é falsa” é realmente o mesmo que dizer “Essa sentença é verdadeira e essa sentença é falsa”. Isso cria uma contradição simples e, como não é possível haver algo que seja verdadeiro e falso, tem de ser falso.

A solução de Alfred Tarski

De acordo com o filósofo Alfred Tarski, o paradoxo do mentiroso só pode surgir em uma língua que seja “semanticamente fechada”. Isso se refere a quaisquer línguas com a capacidade de formar frases que afirmem a verdade ou falsidade de si mesmas ou de outras sentenças. Para evitar essas contradições, Tarski acreditava que houvesse níveis de linguagens e que a verdade ou a falsidade só poderiam ser afirmadas por uma língua superior à daquelas sentenças. Ao criar essa hierarquia, ele foi capaz de evitar as contradições autorreferentes. Qualquer língua que seja superior na hierarquia pode se referir a uma inferior; mas não vice-versa.

A solução de Saul Kripke

Segundo Saul Kripke, para ser considerada paradoxal, uma sentença depende dos fatos contingentes. Ele afirmava que, quando o valor de verdade de uma frase está vinculado a um fato do mundo que pode ser avaliado, então, a sentença é “fundamentada”. Contudo, se o valor de verdade não está vinculado a um fato avaliável, então, a afirmação não tem valor. As frases do paradoxo do mentiroso e outras similares não são fundamentadas e, assim, não contêm valor de verdade.

A solução de Jon Barwise e John Etchemendy

Para Barwise e Etchemendy, o paradoxo do mentiroso é ambíguo. Os dois distinguem “desmentir” e “invalidar”. Se o mentiroso afirma “Essa sentença não é real”, então, ele está negando a si mesmo. Se o mentiroso afirma “Não é o caso dessa sentença ser real”, então, ele está desmentindo a si mesmo. De acordo com eles, o mentiroso que nega a si mesmo pode ser falso sem contradição, e o mentiroso que desmente a si mesmo pode ser verdadeiro sem contradição.

A solução de Graham Priest

O filósofo Graham Priest propôs o dialeteísmo, a noção de que existem contradições reais — aquelas que são simultaneamente verdadeiras e falsas. Ao acreditar nisso, o dialeteísmo tem de rejeitar o bastante conhecido e aceito princípio de explosão,6 que afirma que todas as proposições podem ser deduzidas das contradições, a menos que também aceite o trivialismo, a noção de que toda proposição é verdadeira. No entanto, como o trivialismo é instintivamente falso, o princípio de explosão é quase sempre rejeitado por aqueles que são adeptos do dialeteísmo.
 
(Paul Kleinman - Tudo o que você precisa saber sobre Filosofia)

publicado às 19:11


Jean - Paul Sartre

por Thynus, em 24.02.17
Nenhum pensador europeu é mais verdadeiramente representativo da intelligentsia pós-guerra que Jean-Paul Sartre, e nenhum atesta melhor a consciência coletiva desta intelligentsia como uma consciência do Inferno. Ao mesmo tempo, os escritos de Sartre são charmosos, mefistofélicos, seduzindo o leitor com um tipo de graça diabólica em direção ao altar do Nada, onde tudo que é humano é lançado às chamas. Nada vive na prosa de Sartre, exceto a negação, mas esta negação é multiforme, lírica e infinitamente atraente. Ela pode jorrar em lances de surpreendente beleza, ou rosnar ameaçadora; às vezes, é como o clarão de uma bomba atômica sobre toda a humanidade, mas repentinamente se torna obscura, secreta e sem sentido. O espírito literário proteico1 de Sartre move-se por todas as formas literárias, passando pelo diálogo dramático, pela evocação.lírica, pelo argumento metafísico profundo da linguagem de Husserl e pelo sarcasmo político que desafia o sarcasmo de Engels. Não se deve supor que a visão de um tal escritor poderia ser adequadamente resumida ou mesmo julgada em um único capítulo. Ao mesmo tempo, seria impossível concluir esta análise sem prestar contas ao arquidemônio da Nova Esquerda, cujo poder intelectual e cujo dom literário não têm paralelo nos escritos de esquerda, e cujo gênio não é injustamente comparado ao de Marx. E ver um talento tão monumental dar expressão a tamanha falsidade é entender o poder da ideologia esquerdista e também a condição perturbadora que a inspira.
 
O tema maior dos escritos de Sartre é anunciado em sua mais tenra e importante obra - o romance A Náusea, publicado em 1938. O herói de Sartre, Roquetin, está tomado de repulsa pelo mundo das coisas. Ele se sente decaído por sua encarnação, que o vincula flagrante e irreversivelmente a um mundo outro que não ele próprio. Esta experiência de náusea ocorre sempre que a existência perde seu "inofensivo ar de uma categoria abstrata" e torna-se, pelo contrário, "um amontoado de coisas" . Ele vê, então, que "o que existe deve existir até este ponto: ao ponto do apodrecimento, do arrebatamento, da obscenidade" .
 
Esta repulsa – "une éspece d'écoeurement douceâtre" – contrasta com o sentimento de Roquetin de sua própria liberdade interior. Dentro dele, ele sente, reside a capacidade para repudiar o mundo, para refutar seus terrores. Sua repulsa então adquire um foco mais específico, que são as pessoas – e em particular aqueles que ele considera serem "burgueses", cujas faces lhe fitam com uma correção injustificável. Ele contempla a imersão deles na família e no Estado, sua fácil consolação na religião, nos trâmites e papéis sociais – e sua resposta é uma feroz abnegação. Eles são, para Roquetin, o epítome da má-fé, a prova viva de uma liberdade renunciada, o testemunho da autotraição. Não importa o que aconteça, ele não trairá a si mesmo.
 
E a história desta repulsa é a história deste gran rifiuto.
 
Um verdadeiro romancista poderia ver em Roquetin o que ele é: um adolescente moralista que traveste seu vazio em algo sagrado. Um tal romancista teria visto a pequenez humana de Roquetin, e reconheceria nele o pecado capital, e a suprema infelicidade, do orgulho. Mas Sartre partilha do vício de seu herói, e, em vez de se distanciar dele, ele busca, pelo contrário, dignificá-lo com os mais elevados atributos teológicos. Ele deseja trazer para si mesmo a salvação, a partir da substância dura de sua descrença. Esta é a tarefa que Sartre coloca para si mesmo em sua obra principal, O Ser e o Nada (1943), e na famosa conferência O Existencialismo é um Humanismo, que ele proferiu em 1945. Em uma combinação extraordinária de argumento filosófico, observação psicológica e evocação lírica, Sartre propõe-se descrever a provação e a tarefa da consciência, em um mundo que não tem nenhum sentido senão o sentido que eu, através da minha liberdade, posso imprimir nele.
 
Sartre e o Existencialismo
A premissa que inicia o argumento de Sartre é expressada assim: "a existência precede a essência" – um slogan cuja terminologia medieval é, de fato, fundamental para uma obra de teologia cristã invertida. Não há natureza humana, Sartre argumenta, já que não há Deus para haver uma concepção dela. Essências, como construções intelectuais, desaparecem junto da mente que as conceberia. Para nós, então, nossa existência – nossa individualidade impossível de conceptualizar, cuja realidade é a liberdade é a única premissa de toda investigação, e o único ponto seguro de observação em um mundo cujo significado ainda está para ser dado. Nossa existência não é determinada por nenhuma moralidade universal, e não existe nenhum destino pré-dado que poderia conter uma visão de natureza humana. O homem pode fazer sua própria essência, e mesmo sua existência é, em certo sentido, uma aquisição: ele só existe totalmente quando ele é o que ele se propõe a ser.
 
Consciência é "intencional": ela situa um objeto no qual ela vê a si mesma como em um espelho. Objeto e sujeito surgem juntos, em fundamental antagonismo – o antagonismo, como Sartre o coloca, do "em-si" e do "para-si". Ao fundar-se em relação com o possivelmente incognoscível e, de toda forma, com o objeto fundamentalmente "outro", o self (dada a utilização corrente desta palavra no original self na literatura filosófica, psicanalítica e psicológica, especialmente sobre o autor em questão, mantivemos assim o termo, geralmente traduzido como "eu" ou "si-mesmo".) cria uma separação em seu mundo, um tipo de clivagem, na obscura reclusão onde pululam os pesadelos do existencialista. Esta clivagem é néant, ou o Nada, que "habita, cravado no coração do ser, como um verme".
 
A experiência d o Nada, sempre conosco, é elusiva, como o ego é elusivo. Talvez, contudo – em antecipação ou desapontamento –, estejamos cientes de sua soberania e da terrificante dependência mútua entre o Nada e o Ser. Somente uma autoconsciência (um para-si) que poderia trazer este Nada ao mundo. Para o ente meramente senciente a fratura não se abriu entre o sujeito e o objeto. Com a fratura, contudo, vem o desafio existencial. A questão surge: "Como eu poderia preencher este vazio que me separa do mundo? ". A angústia que se alastra sobre o self na busca desta questão é a prova da liberdade. Não pode haver nada mais certo que minha liberdade, já que nada existe para mim – nada é outro - até que esta fratura seja aberta e minha liberdade, exposta.
 
A angústia apresenta-se no sentido em que os objetos não são propriamente distintos uns dos outros, que eles são inertes, indiferenciados, aguardando pela separação. Esta é a origem da náusea, cujo objeto primário é a dissolução do mundo. O mundo torna-se viscoso - o fango originale do Otello de Boito. Sartre conclui O Ser e o Nada com uma descrição extensa do viscoso (le visqueux), evocando a rainha dos pesadelos, que parece erigir-se do fosso do Nada e confrontar-nos com uma negação radical. O viscoso é um derretimento de objetos, uma "sucção úmida e feminina", algo que "vive obscuramente sob meus dedos" e que "sinto como uma tontura". A viscosidade
 
atrai-me até ela como o fundo de um precipício poderia atrair-me [...] Em um certo sentido, é como uma docilidade suprema do possuído, uma fidelidade canina que se dá mesmo quando não se a quer mais; e em outro sentido, sob esta docilidade, há uma sub-reptícia apropriação do possuidor pelo possuído.
 
No viscoso, confrontamos a absorção do "para-si" pelo "em-si": o mundo de objetos funde-se em torno do sujeito e arrasta-o sob si. O viscoso é, então, uma imagem do "sei (em perigo": de uma liberdade perdida para o "decaído" mundo dos objetos. Em reação a tal perigo, no qual a liberdade em si me seduz, posso esconder-me de mim mesmo, enclausurando-me em algum papel predeterminado, contorcendo-me para ajustar-me a um figurino que já estava feito para mim, atravessando o abismo que me divide dos objetos só para tornar-me eu mesmo um objeto. Isto acontece quando adoto uma moralidade, uma religião, um papel social que foi indicado por outros e que tem significação para mim somente à medida que me objetifico nele. O resultado é a "má-fé" – o crime dos bons cidadãos sobre os quais Roquetin derrama seu veemente desprezo. O viscoso me atrai e repele, precisamente porque ele se me apresenta com a doce viscosa promessa da má-fé.
 
A falsa simulação do em-si pelo para-si (do objeto pelo sujeito) deve ser contrastada com o gesto individual autêntico: o livre agir no qual o indivíduo cria si mesmo e o seu mundo, lançando um no outro. Não pergunte como isto é feito, já que o processo não pode ser descrito. Seu ponto final é o que importa, e isto Sartre descreve como compromisso. Mas compromisso com o quê?
 
Não há, é claro, nenhuma resposta para esta questão que não contradiga a premissa da autenticidade. Qualquer adoção de um sistema de valores que seja representado de modo tão objetivamente justificado constitui uma tentativa de transferir minha liberdade para o mundo dos objetos, de forma a perdê-la. O desejo por uma ordem moral objetiva é uma exibição da má-fé e da perda desta liberdade, sem a qual nenhuma ordem moral de qualquer tipo seria concebível. A própria justificação de Sartre de uma moralidade "self-made" é então inerentemente contraditória - um fato que de nenhuma maneira o impede de avançar nos termos mais apaixonados:
 
Eu emerjo só e com pavor no rosto do único e primeiro projeto que constitui meu ser: todas as barreiras, grades, colapsam, aniquiladas pela consciência de minha liberdade; eu não tenho, nem posso ter, recurso a qualquer valor contra o fato que sou eu que mantenho valores no Ser; nada pode assegurar-me contra mim mesmo; arrancar-me do mundo e da minha essência pelo nada que eu sou, eu tenho de imaginar o sentido do mundo e minha essência: eu decido, sozinho, injustificável, e sem desculpa.
 
Compromisso político é, então, um estranho resultado do culto da autenticidade. Para entender sua necessidade para Sartre, devemos vê-lo no contexto de sua visão incessantemente invejosa de toda fonte "objetiva" de valor. Sartre tenta mostrar – usando sua própria versão de um argumento que deriva de Hegel – que todo amor, e toda relação humana, reside em última instância numa contradição. Ele introduz a noção de "ser-para-os-outros", para descrever a posição peculiar em que eu, como ser autoconsciente, necessariamente me encontro. Eu sou, de pronto, um sujeito livre diante de meus olhos, e um objeto determinado aos olhos do outro. Quando outro ente autoconsciente olha para mim, eu sei que ele busca em mim não só o objeto, mas também o sujeito. O olhar de uma criatura autoconsciente tem a peculiar capacidade de penetrar, criar uma demanda. Esta é a demanda na qual eu, como uma subjetividade livre, revelo-me no mundo. Ao mesmo tempo, minha existência como objeto corpóreo cria uma opacidade, uma impenetrável barreira entre minha subjetividade livre e o outro que busca unir-se com ela. Esta opacidade do corpo de alguém é a origem da obscenidade, e meu reconhecimento de que meu corpo coloca-se para o outro assim como o seu para mim é a fonte da vergonha.
 
Se eu desejo outrem, isto não é simplesmente uma questão de prazer em gratificar-me com seu corpo. Se fosse só isto, então qualquer objeto cabível, mesmo um simulacro de um corpo humano, o faria muito bem. Meu desejo, então, me uniria com o mundo dos objetos, como eu estou unido com ele e tragado pela viscosidade. Eu experienciaria a extinção do "para-si" no pesadelo da obscenidade. No verdadeiro desejo, o que eu quero é o outro, ele mesmo. Mas o outro só é real em sua liberdade e é assim falsificado por toda tentativa de representá-lo como um objeto. Portanto, o desejo busca a liberdade do outro, de forma a apropriá-lo como seu. O amante, que deseja possuir o corpo do outro, somente se, e na medida em que, o outro o possui em si mesmo, está, então, preso a uma contradição. Seu desejo cumpre-se somente por compelir o outro a identificar-se com seu corpo – a perder seu para-si no em-si da carne. Mas, então, o que é possuído é precisamente não a liberdade do outro, mas só a casca da liberdade – uma liberdade abjurada. Em uma passagem notável, Sartre descreve o sadismo e o masoquismo como "recifes onde o desejo pode afundar". No sadomasoquismo, uma parte tenta forçar a outra a identificar-se com sua carne sofrida, assim como a possuí-la em seu corpo no preciso ato de atormentá-la. Novamente, contudo, o projeto não chega em lugar nenhum: a liberdade que é oferecida é abjurada na própria oferta. O sádico é reduzido por sua própria ação a um espectador distante da tragédia de outro, separado da liberdade com a qual ele busca se unir pela via obscena da carne torturada.
 
A descrição do desejo sexual não tem comparação na literatura filosófica, e expressa as mais urgentes observações de Sartre. É, ao mesmo tempo, um paradigma de fenomenologia e também uma sincera expressão de horror existencial. Para Sartre não há salvação no amor ou na amizade: todas as relações com os outros são envenenadas pelo corpo – o em-si – que encarcera nossa liberdade. O compromisso, então, não pode ter outro ser humano como seu objeto, a não ser somente... – somente o quê?
 
A resposta correta para tal pergunta – a questão não dita que assombra a paisagem devastada da prosa de Sartre – é: pense novamente. Talvez esta autenticidade que você tanto valoriza, como a liberdade que cria a necessidade para ela, seja uma ilusão. Talvez não haja uma coisa tal como a liberdade transcendental. Ou, se houver, talvez poderia ser como Kant a viu: como o fundamento absoluto de uma moralidade objetiva, que nos vincula aos outros em uma relação de respeito universal e que nos curva em submissão diante da lei moral. Para Sartre, o mundo envenena nossos esforços, ao compelir-nos a nos identificar com o que não nos é próprio. Mas não seria igualmente razoável supor que pertencemos ao mundo, e que nada envenena o mundo tão efetivamente quanto a vã oposição ao nosso pertencimento?
 
Contudo, esta questão leva a outra. O que, pode-se perguntar, é a verdadeira fonte da repulsão de Sartre diante de sua existência encarnada – uma repulsão exibida seja em um sentimento de obscenidade, seja em repugnância ao viscoso e pegajoso, seja mesmo no post coitum triste de um desejo que é nauseado por sua própria culminação? O que é este sentimento que se foca tão especificamente e que também irrompe na esnobe dispensa de Roquetin da normalidade humana e em uma náusea metafísica que corrompe toda a criação?
 
Parece-me que Santo Agostinho apresentou uma resposta melhor para esta questão que a sugerida por Sartre. Para Santo Agostinho, é o sentimento do pecado original que é a causa de nossa repulsa em relação ao mundo. Somos mais e mais envergonhados de nossa encarnação, e sentimos nossa liberdade interior como "contaminada" por seu contato com a carne. Nós nos vemos como exilados no mundo, constantemente sobrepujados pelo mau cheiro da mortalidade. Ademais, Santo Agostinho adicionou, é no ato sexual que o sentimento do pecado original mais completamente nos invade. Pois na excitação sexual estamos cientes de que o corpo é opaco à nossa vontade e à nossa luta contra ela. No sexo o corpo domina e nos controla, esmagando-nos de vergonha da nossa subserviência obscena. É no ato que nos engendra que nossa mortalidade é sentida, e no qual a decomposição, o caráter viscoso da carne, é mais vergonhosamente apresentada à nossa consciência. Se juntarmos as mais poderosas observações de Sartre – exatamente aquelas que cumprem o papel mais importante na fundação de sua metafísica da liberdade – claramente não estaremos distantes do espírito agostiniano: o espírito do eremita cristão que, desafiando os prazeres deste mundo, está ainda incerto se renunciou a eles. E a fria consciência da corrupção que leva o cristão a Deus leva Sartre, que não vê Deus, a seu santuário interno e solitário, onde o sei (é reverenciado em meio a desordenados ícones de seu fútil mundinho
de faz-de-conta.
 
Sartre necessita de seu "compromisso", portanto, para cumprir o que é em essência uma função religiosa. A observação foi muitas vezes feita – não à toa pelo grande amigo de juventude de Sartre, Raymond Aron – de que o marxismo cumpre o espaço deixado vago pela religião. Mas é talvez na obra tardia de Sartre que o sentido desta observação seja mais claramente aparente. De acordo com a metafísica exposta em O Ser e o Nada, a resposta correta para a questão "Com o que eu deveria me comprometer?" teria de ser "Qualquer coisa, contanto que você possa fazer dela algo como uma lei para si mesmo". Mas esta não é a resposta dada por Sartre, cujo "compromisso" é com um ideal que entra em conflito com sua própria filosofia – com a "sociedade justa" do ativista revolucionário. Ele é levado nesta direção, não pela rota da afirmação, mas pelo obscuro e infeliz caminho da negação. Ao liberar o gênio da autenticidade, ele pode, então, fazer sua ordem secreta, e sua ordem é destruição. Nada real pode ser "autêntico" . O autêntico define-se sempre em oposição aos outros - em oposição ao mundo que eles criaram e no qual eles se sentem em casa. Tudo pertencente aos outros é parcial, comprometido e remendado. O autêntico em si busca a solução total para o enigma da existência e aquela que é sua própria criação, não reverenciando nenhuma autoridade, nenhuma legitimidade que esteja contaminada pelo inaceitável mundo do "eles".
 
É exatamente esta postura da negação que conduz o self autêntico a identificar-se com a filosofia revolucionária de Marx. Pois mesmo se esta identificação é supremamente injustificada, ela oferece, no entanto, a mais fácil libertação de uma situação de intolerável dor: a situação de um ser completamente sozinho em um universo sem deuses. Há três características do marxismo que agradam a Sartre. Primeiro, é uma filosofia de oposição, mais e mais saturada por um desprezo pelo mundo que nada mais é senão religioso. Segundo, é total em suas soluções e promete uma nova realidade, obediente a uma perfeita concepção de si. Em outras palavras, o marxismo destrói a realidade em favor de uma ideia. E esta ideia é modelada de acordo com a liberdade transcendental do "para-si". A promessa do comunismo total é uma promessa noumenal, uma fantasmagórica antecipação do Reino dos Fins. Não sabemos nada deste reino, exceto que todos os seus cidadãos são livres e todas as suas leis são autenticamente escolhidas.
 
Finalmente – e para Sartre esta é a mais animadora das promessas de Marx -, a comunidade do futuro será precisamente aquilo que o "para-si" demanda. Ela oferecerá aquela relação permitida da qual a alma autêntica se afasta por sua autenticidade e, ao mesmo tempo, manterá sua autenticidade intacta. O Reino dos Fins combinará, em um vínculo tão incompreensível quanto necessário, a sólida relação do proletariado e a liberdade transcendental da mente solitária. Esta relação permitida estará a salvo de convenções, papéis, rituais – de qualquer forma de "outridade". E ela será também uma relação com a classe sacralizada pela história, cujo calor humano compensará para todos a repulsa que a cruel tarefa da autenticidade exige.
 
Não é acidental que a força emocional do marxismo seja tão naturalmente expressada no idioma de Kant. Pois, como vimos ao considerar as teorias de Lukács (ver capítulo 13), a moralidade marxista traduz a segunda versão do imperativo categórico – a versão que nos convida a tratar a humanidade nunca apenas como um meio, mas sempre como um fim – em uma crítica abrangente do capitalismo moderno. De algum modo, Sartre – que começa sua filosofia a partir da premissa kantiana da liberdade transcendental – parece inexoravelmente atraído pela filosofia que promete que os imperativos noumenais um dia governarão o mundo. O "comunismo total" nada mais é que o Reino kantiano dos Fins, e a promessa de Marx é de uma liberdade transcendental tornada empiricamente real. Esta promessa dá fé para o anti-herói existencialista; é a primeira e única resposta para a angústia de Roquetin, para quem, como Iris Murdoch argumenta:
 
Todos os valores residem no mundo irrealizável da completude inteligível que ele representa para si mesmo em simples termos intelectuais; ele não está enganado (até o fim) imaginando que qualquer forma de esforço humano é adequada para seu anseio de reunir-se à totalidade [...]
 
O anti-herói existencialista que se entrega, seja lá com que tipo de "compromisso", a um programa político no qual outros também podem juntar-se está à primeira vista na "má-fé". Pois ele peca contra o sagrado dos sagrados, que é o self. Mas a expiação deste pecado, nós vimos, é fácil. O anti-herói precisa somente garantir que este "compromisso" se conforme, não à imperfeição fragmentada do real, mas à “totalidade" de uma ideia abstrata.
 
Basta comprometer-se com a "Ideia de Razão" e prontamente sua liberdade se torna real. Ao refutar a qualidade fragmentada do mundo real, o existencialista ganha a única salvação de que ele precisa – aquela do ponto de vista "total" que é obtida em um Reino dos Fins. A menos que esta autenticidade seja questionada, contudo, o anti-herói deve prestar muita atenção à forma. Ele deve garantir que esta aceitação servil da ideologia do outro tenha a aparência de uma rejeição completa. A submissão de Sartre a Marx – seu Islã particular – é apresentada, então, como uma desafiadora crítica da doutrina do profeta. O pretensiosamente intitulado Crítica da Razão Dialética, cujo primeiro volume foi publicado pela primeira vez em 1959, e que nunca foi completado, é lido como um exercício de sadismo intelectual, no qual a amada filosofia é excruciantemente torturada, tal que sua subjetividade poderia ser ofertada e abjurada.
 
Marx nos dá a "totalidade" , mas em formas que ainda precisam ser apropriadas para o uso autêntico. A ambição de Sartre é possuir essa "totalidade", subjugá-la e controlá-la, e incrustá-la com sua própria autenticidade. Mas essa é uma ambição que não pode parecer muito facilmente adquirida: antes de tudo, "outros" estão olhando, e "outros" não podem aprovar. Sartre então se prepara para adorar o altar marxista através de uma inventiva litania de invocações sem sentido, amaldiçoando o tempo todo o Deus que ele conjura, como fazem certas tribos que esperam muitas horas pelas chuvas. O seguinte não é menos típico:
Mas, através da exata reciprocidade de coerções e autonomias, a lei termina por escapar de todos, e nos momentos rotativos de totalização, ela aparece como Razão Dialética, isto é, externa a tudo, porque interna a cada um; e uma totalização desenvolvida, embora sem um totalizador, de todas as totalizações totalizadas e de todas as totalidades destotalizadas.
 
Uma palavra emerge tão particularmente carregada, nesta afirmação, com um peso de inconfessa emoção – a palavra "totalização", que já encontramos nos escritos de Lukács e que atravessa a Crítica da Razão Dialética com uma encantação crucial. Como muitas palavras de significado religioso, ela nunca é definida, somente usada – e usada com tal hipnotizante falta de sentido, de forma a atrair a falange de adoradores preparados a servir ao sacerdócio de tal fé. Novamente, na New Left Review dos anos 1960 e 1970, nossa cultura e nossas instituições são criticadas por sua impermeabilidade à visão de mundo "totalizante". E se a palavra, revestida como está pelos sentimentos ardorosos do ideólogo, parece ameaçadora, não devemos nos enganar: ela é. "Totalização" denota o desafio oferecido pelo radical insatisfeito, cuja visão, por sua exata completude, justifica todo esforço para impô-la. A oposição, que significa somente a perspectiva "serializada”, "parcial", da classe dominante e de seus lacaios é, quando confrontada com a totalização apaixonada do radical, sem direito . É um mero poder, desamparado, inimigo e pronto para
a guilhotina. Assim é que o irreal Reino dos Fins, dotado com o poder "totalizante" de uma mera ideia, triunfa ao avançar sobre cada realidade.
 
Martin Jay argumenta, a favor da Nova Esquerda, que a categoria de totalidade é distintiva do marxismo. Tomada literalmente, tal afirmação é sem sentido. Poderia, antes, pertencer a Weber, que identifica o significado de "revelação profética" em sua capacidade para representar o mundo como uma totalidade ordenada e inteligível, e que vê a função do sacerdote como um mediador entre esta concepção total e a desordenada fragmentariedade do mundo natural. O marxismo divide a categoria da totalidade não somente com a religião tradicional, mas também com seu arqui-inimigo e irmão de sangue, o fascismo, instância política que foi recomendada por Gentil e como uma "concepção total de vida”. Em outro sentido, contudo, Martin Jay tocou numa verdade bastante importante. O neomarxismo é distinto não pela categoria de totalidade, mas pelo ritual sem sentido com o qual esta categoria é cercada e pelo qual suas deficiências litúrgicas são veladas.
 
A retórica da totalidade esconde o lugar vazio no coração do sistema, onde Deus deveria estar. Para Sartre, a totalidade não é nem um estado nem um conceito, mas uma ação. Não reside na natureza das coisas, mas é trazida a elas pela fúria " totalizante " do intelectual. A totalização é concebida em termos existencialistas, como a ação transcendental do self. Mas é também um momento milagroso de unidade, no qual o corte na realidade extingue-se e o mundo é curado. Esta união mística, como a união da lança e do Graal, junta as metades nostálgicas de um mundo clivado. Quando o intelectual chegar a tocar as candentes mãos do proletariado, então a mágica má da ordem " burguesa " será posta de lado e o mundo se completará.
 
Sartre finge rejeitar o marxismo por sua visão parcial e mecânica da condição humana. No entanto, ele toma emprestado as principais categorias marxistas para dar substância a seu "compromisso total". Para Sartre, o mundo ainda está dividido entre burgueses e proletários. Ainda depende das "relações de produção"; e isto ainda significa que – sob o capitalismo – a extração da "mais-valia" do proletariado "alienado" efetuada pela exploração da burguesia conduz à cada vez mais intensa "luta" de classes. E estas categorias marxistas são repetida e acriticamente destacadas nas teorias de Marx. A rejeição da "razão dialética" (que, como se pode notar, é discutivelmente não uma categoria marxista, mas uma vulgarização de Plekhanov e Engels) é inteiramente desprovida de substância intelectual. Sempre que a prosa de Sartre muda da submissão servil para uma pretensa crítica, ela ao mesmo tempo se torna bizarra e sem sentido. " O totalizador" então aperfeiçoa sua própria "totalização" , ao totalizar novamente totalidades destotalizadas, emergindo exatamente onde poderíamos ter sabido que ele emergiria, um advogado impenitente da "práxis totalitária".
 
Ler a Crítica da Razão Dialética é uma experiência cruel. Quase em lugar nenhum a masmorra totalitária é aliviada por uma nesga da luz do sol, e os poucos sopros de ar são aqueles nos quais o espírito de Sartre respira livremente, soando em si mesmo, em exalações líricas, mas insubstanciais. A força do jargão consegue tirar a atenção de tudo que é verdadeiramente questionável na visão marxista e criar um falso conflito em um mundo de sonhos. Em lugar nenhum, as exigências reais do marxismo são confrontadas. Em lugar nenhum, a divisão da sociedade entre "proletários" e "burgueses" é questionada, o mito da "luta de classes", examinado, ou a teoria da "exploração", condenada. Mesmo a linguagem da economia marxista executa seus deveres mistificantes sem os obstáculos de uma observação crítica. Nem esta aceitação velada do dogma marxista é edimida pelo imaginário fenomenológico:
 
A fraude da exploração capitalista é baseada no contrato. E embora este contrato necessariamente transforme o trabalho, ou práxis, em um mercadoria inerte, ele é, formalmente, uma relação recíproca: é um livre câmbio entre dois homens que reconhecem um ao outro em sua liberdade; ocorre somente que um deles finge não notar que o Outro é forçado pelas exigências da necessidade a vender-se como um objeto material.
 
É claro, é sempre como objetos materiais que nos relacionamos uns com os outros, e se O Ser e o Nada é um guia para a condição humana, então nenhuma transição para as "relações socialistas de produção" poderia superar esta incapacidade que nossos corpos mesmos impõem. Em todo caso, já não estamos cansados desta condenação tautológica da realidade capitalista, que define o que pode ser comprado como uma coisa e então diz que o homem que vende seu trabalho, ao tornar-se uma coisa, deixa de ser uma pessoa? De qualquer maneira, deveríamos reconhecer que, de todas as defesas mentirosas oferecidas para a escravidão, esta é de longe a mais perniciosa. Pois o que é trabalho não comprado, se não o trabalho de um escravo? Deveríamos reconhecer o enorme ônus da prova que recai sobre a pessoa que condena o mercado de trabalho, a favor de alguma alternativa intelectual. Quem controla nesta nova situação, e como? Justo o que obtém o trabalho do homem que de outro modo o negaria, e como ele é reconciliado à ausência de recompensa privada? Tais questões são, é claro, precisamente o que não pode ser respondido pelo ponto de vista do Reino dos Fins. Pois elas vêm poluídas pelas "condições empíricas" da natureza humana, para as quais não há réplica transcendental.
 
Sartre se preocupa muito pouco em argumentar com Marx. De incontáveis maneiras – através do vocabulário, de exemplos, de estruturas e, acima de tudo, de seu estilo – a Crítica da Razão Dialética mostra total rejeição das regras da investigação intelectual – um voo determinado da regra da verdade. Supor que o livro poderia realmente cumprir a promessa oferecida pelo seu título é de fato uma impertinência grosseira. O leitor deve aceitar sem questionamentos tudo o que pertence ao compromisso de Sartre: doravante, somente questões irreais podem ser perguntadas:
 
Como pode a práxis em si ser uma experiência de necessidade e de liberdade, já que nenhuma delas, de acordo com a lógica clássica, pode ser alcançada em um processo empírico?
 
Se a racionalidade dialética realmente é uma lógica de totalização, como pode a História – o enxame de destinos individuais – aparecer como um movimento totalizante, e como pode alguém evitar o paradoxo de que, a fim de totalizar, já deve haver um princípio unificado, isto é, que somente totalidades reais podem se totalizar elas mesmas?
 
Um escritor que imagina que aquelas são as questões desafiadoras que o marxismo tem de responder está claramente tramando alguma. Ele está tentando desviar sua atenção, não somente das críticas teóricas reais do marxismo – que deixou a teoria da história, do valor e da classe social em ruínas –, mas também das terríveis consequências práticas para as quais o marxismo conduz, com suas vãs profecias milenares e sua visão "totalizante" de um homem "pós-político".
 
O compromisso que Sartre resolve propor é de fato um marxismo totalmente não reconstruído. Vemos emergir de suas páginas as mesmas destrutivas fantasias, as mesmas falsas esperanças, o mesmo ódio patológico do imperfeito e do normal, que caracterizam todos os seguidores de Marx, de Engels a Mao. Mais uma vez, temos de supor que nosso mundo está sob o controle "burguês", unificado em sua oposição à "práxis comum dos trabalhadores”, e temos de imaginar que esses trabalhadores (“a classe sem propriedade") buscam "socializar" os meios de produção. As relações de mercado não são a expressão da liberdade econômica, mas a concreta sujeição do homem ao diabólico reino do Outro. A outridade envenena todos os benefícios que o capitalismo nos oferece: nossa democracia não é democracia verdadeira, mas meramente a "democracia burguesa", e quando um homem vota sob nosso sistema de governo ele sempre vota como o Outro, e não como ele mesmo. Contra estas mentiras desgastadas, Sartre tenta novamente induzir nossa cumplicidade à percepção marxista da história moderna.
 
A erosão da verdade pela propaganda comunista é vista em sua versão mais efetiva não na Crítica da Razão Dialética, mas nos ensaios posteriores, coligidos em Situations VIII e IX e publicados em inglês como Between Existentialism and Marxism. Nesta obra surpreendente, Sartre repete a desculpa padrão para as crueldades dos bolcheviques (necessárias devido ao "cerco anticomunista") e atribui a culpa pela persistência da crueldade comunista primeiro a Stálin e, posteriormente, ao de fato que o Partido Comunista se tornou uma instituição – em outras palavras, tornou-se um dos pontos centrais da "outridade" (ou "serialidade", como a obra do demônio é agora chamada) que impede a paixão "totalizante" do compromisso radical. Um tal criticismo é extremamente útil em salvar o que se propõe a condenar. O Partido Comunista é mal, mas somente na medida em que os escoteiros, a Sorbonne ou os bombeiros são maus – por exigirem ação coletiva e inautêntica em acordo às normas institucionais. A real obra do Partido de morte e destruição é desimportante diante desta característica, que ele divide com todo esforço social duradouro.
 
Assim, não nos surpreenderíamos com o comentário de Sartre sobre a invasão soviética da Tchecoslováquia. A causa originária do "problema tcheco", ele argumenta, não era o socialismo, mas a imposição de um socialismo que não "cresceu em casa". A linguagem é característica: "As razões pelas quais o povo escolhe o socialismo importam comparativamente pouco; o que é essencial é que eles o construam com suas próprias mãos". A falha da União Soviética foi impedir que este processo ocorresse. É inevitável que um jacobino moderno use a palavra "povo" como Sartre usa – para sugerir uma unidade que poderia realmente "escolher o socialismo" e construí-lo com suas próprias mãos coletivas, ou no mínimo, coletivizadas. E é inevitável que este "povo" fosse visto como uma forma de unanimidade. A alternativa - ação coletiva na ausência do acordo total - se parece muito com uma " instituição " para que Sartre chegue a reconhecê-la pelo que ela é, a saber, o melhor que está à disposição dos homens.
 
No entanto, é um pouco surpreendente, à luz da experiência tcheca, que um intelectual humanista possa ainda fechar sua mente para o fato mais importante: que a maioria de um "povo" pode realmente rejeitar o socialismo, tanto por suas promessas quanto por suas realizações. Um "povo" pode repentinamente se dar conta de que ele não quer a "socialização dos meios de produção" ou a "equidade", ou qualquer das crueldades e injustiças que são perpetradas em seu nome. Para Sartre, as crueldades do socialismo revolucionário advêm das "necessidades do tempo" (mas quem criou estas necessidades?). O erro da União Soviética foi simplesmente compelir os tchecos a adotar um sistema que era apropriado somente para os "camponeses russos de 1920" , e não para os "operários tchecos de 1950" – uma teoria que mostra mais desprezo pelo campesinato russo que respeito pelos tchecos.
 
O movimento de reforma tcheca figura de forma interessante na percepção de Sartre. Este movimento conseguiu, ele argumenta, a tão esperada " unidade dos intelectuais e da classe trabalhadora". Seu objetivo místico era a criação de uma "totalização concreta continuamente destotalizada, contraditória e problemática, nunca fechada em si mesma, nunca completa, e, ainda assim, constituindo uma experiência única". Os operários tchecos não estavam "pedindo um retorno ao liberalismo burguês, mas, já que a verdade é revolucionária, estavam clamando o direito revolucionário de contar a verdade". Com tal linguagem, Sartre fortifica sua fé. Toda verdade, ele conclui, é propriedade do campo revolucionário, e nenhum trabalhador, na hora da verdade, pode fazer nada senão reafirmar seu compromisso revolucionário. A possibilidade de ser um "liberal burguês" , ou simplesmente um "antissocialista", foi finalmente expropriada dele. O velho lamento leninista é agora invertido: aquele com quem estamos não está contra nós, mesmo quando ele luta até a morte contra o que fazemos.
 
O operário, supõe-se, ganha na sua relação com o intelectual. Mas, primordialmente, é o intelectual que se beneficia de uma relação na qual apenas ele dita os termos. O zelo apaixonado do intelectual é baseado em uma necessidade emocional tão vasta e tão urgente que não pode ser tirânica. Se os intelectuais se revelam brutais com os trabalhadores que eles conduzem em sua experiência, é parcialmente porque, vendo o mundo da perspectiva "totalizante" de um Reino dos Fins, eles não podem perceber a real, porém empírica, existência de suas vítimas. O operário é reduzido a mero instrumento, não pela labuta do capitalismo, mas pela retórica ardente do intelectual de esquerda. O operário é um meio para a exultação intelectual, e pode ser abolido sem escrúpulo se não cumprir sua tarefa. É esta aniquilação totalmente intelectual do trabalhador meramente empírico que tornou possível seu extermínio em massa no mundo meramente empírico.
 
O que é notável nos últimos escritos de Sartre – no mínimo, naquela parte que é retomada na iihad do "compromisso" – é o abundante fluxo do blá-blá-blá "totalizante". Somente um assunto parece mobilizar seriamente suas emoções – de forma séria o suficiente, de qualquer maneira, para levá-lo a escrever como se fosse um valor –, qual seja: sua identidade interna com o proletariado. Essa identidade é o resultado final de uma guerra total contra a burguesia. Em seu comentário satânico sobre Genet, Sartre descreveu o bem como uma "mera ilusão", adicionando que o "mal é um nada (néant) que se produz a si mesmo nas ruínas do bem". Este senhor paradoxo, que oferece negações convenientes de todas as nossas impressões vividas, esconde um profundo apego à morale du Mal. Pelo dispositivo místico de equivalências, Sartre implica que nada pode ser dito do bem que não poderia também ser dito do mal, e que a escolha "autêntica" entre esses dois deve mantê-los em equilíbrio. Pela lógica inevitável do desafio, deve lançar o seu lote que destrói a realidade burguesa. Sartre segue o caminho de Baudelaire (outro de seus santos, e, na verdade, aquele a quem ele está mais espiritualmente ligado). Seu caminho é aquele de uma alma que anseia pelo bem, mas cujo orgulho (que aceitará como bem somente o que for criação sua) o força sempre a destruir o bem. O bem vem a ele manchado de "outridade", que, desta forma, ameaça a autenticidade de seu self. Assim, ele deve usar o mal para aniquilar o bem. A identidade distante com o proletariado é um tipo de promessa paradisíaca, a visão de uma inocência muito sagrada para ser descrita, para além do bem e do mal, e vislumbrada somente em raros momentos sagrados, como as barricadas de 1968.
 
Contudo, a almejada identidade não pode ser realmente atingida. Para entrar no Reino dos Fins, o proletariado deve primeiro ser arrancado de suas condições empíricas – que são os aparatos da servidão. Ao fazer isso, todavia, ele deixa de ser um proletário. O encontro do intelectual com seu deus é, então, um episódio puramente interno, uma devoção privada da qual o proletário real, com seu desejo por conforto, propriedade e pelas coisas deste mundo, deve ser permanentemente excluído. É natural, então, que as discussões de Sartre acerca da política moderna possam centrar-se na posição do intelectual e na vergonhosa questão de como ele poderia preparar-se para o rito de passagem ao reino prometido. O intelectual, ele argumenta, deve rejeitar toda "sensibilidade de classe" – e em particular, a sensibilidade de sua própria classe, que é a da petite bourgeoisie em favor de "relações humanas de reciprocidade", nas quais ele e o proletariado s e unirão num vínculo sagrado. O inimigo do intelectual não é o proletário empírico e real – que nada tem a dizer sobre a questão –, mas o "falso intelectual", um "tipo criado pela classe dominante para defender sua ideologia particular através de argumentos que se proclamam produtos rigorosos da razão exata". Com estas palavras, Sartre dispensa escritores não nomeados como Raymond Aron, Alain Besançon e Jean-François Revel, que tentaram atacar as ilusões esquerdistas e que sempre encontraram raiva, desprezo ou a explícita desconsideração.
 
A aventura de Sartre em busca do "compromisso" então completa perfeitamente seu círculo. Ele anseia por uma autenticidade na qual o self é ao mesmo tempo causa sui e primum mobile. Mas ele chega a acreditar, por passos persuasivos, em "sistema", no mundo criado de acordo com uma ideia abstrata. Este mundo "totalizado" é o jardim das delícias de seu matrimônio transcendental. Aqui ele finalmente se une com o proletário de seus sonhos. Mas este paraíso é abstrato, insubstancial e repleto de contradições, e o intelectual
está preso na luta com a pessoa que lhe diz tal coisa. Buscando o proletariado, então, Sartre encontra no fim somente seu velho rival intelectual, com quem ele se une, como sempre, em um tumulto mortal e, ainda, inconclusivo:
 
O verdadeiro intelectual, como pensador radical, não é nem um moralista nem um idealista: ele sabe que a única paz que vale ter no Vietnã custará sangue e lágrimas: ele sabe que a paz somente virá [...] depois da derrota americana. Em outras palavras, a natureza de sua contradição obriga-o a comprometer-se em todos os conflitos de seu tempo, porque todos eles – conflitos de classe, de nações e de raças – são efeitos particulares da opressão sobre os não privilegiados, e porque, em cada um destes conflitos, ele se encontra, como um homem consciente de sua opressão, do lado dos oprimidos.
 
Revel nota a regularidade com que o intelectual de esquerda se coloca, em sua luta contra a opressão, do lado do tirano: é isto o que Sartre entende por "sua própria opressão"? Está ele confessando, afinal, a tirania da qual ele é cúmplice? Antes de tudo, ao reduzir seu "compromisso" a um problema puramente intelectual, um combate com os falsos profetas que o refutam, ele reduz sua vítima para o status indefensável de uma ideia abstrata. O destino de ninguém real jamais poderia ser aperfeiçoado pelos esforços noumenais de Sartre. O caso do Vietnã é somente um exemplo da tendência real de seu "compromisso". Em uma recente antologia, Marc-Antoine Burnier reuniu as muitas manifestações da loucura revolucionária de Sartre.
 
É com uma sombria incredulidade que alguém lê sobre seu apoio a regimes de extermínio que uniram os intelectuais e os trabalhadores somente em lugares de "reeducação", nos quais eles arquejaram as suas últimas horas miseráveis. "Por meio de documentos irrefutáveis, soubemos da existência de campos de concentração na União Soviética" – assim escreveu Sartre. Vinte anos depois, a verdade era senso comum entre aqueles que se importavam em reconhecê-la. E ele ainda poderia nos encorajar a "julgar o comunismo por suas intenções, e não por suas ações". Em todas as atuais campanhas que a União Soviética empreendeu no Ocidente, seja lá com que custo de vidas humanas e de felicidade, Sartre defendeu o lado soviético, ou mesmo criticou a União Soviética, apenas numa linguagem que reitera exatamente suas mentiras favorecedoras. Depois de participar do Congresso dos Povos pela Paz em Viena, em 1954, ele viajou para Moscou, retornando com a impressão de que "há total liberdade para se criticar a URSS" – comentário que talvez seja mais fácil de entender quando lembramos o significado que Sartre atribuía à palavra "total". Ele estava chocado com a intervenção soviética na Hungria, mas não tão chocado que não pudesse continuar elogiando a obra do comunismo por todos os lados - primeiro em Cuba, e então (quando seus olhos estavam abertos) na China, cuja única virtude distinta era ainda ser desconhecida. Somente no fim de sua vida, quando veio a apoiar os refugiados do Vietnã comunista – e publicamente apertou as mãos de Raymond Aron, após anos de estremecimento –, ele parecia ter desistido de sua luta. Mas sua obra já estava pronta.
 
A peregrinação de Sartre é um exemplo soberbo da busca revolucionária. Como Marx, ele estava cativado por um ideal de emancipação absoluta – de relações entre pessoas que não obedecem lei alguma exceto àquelas que são livremente escolhidas. E, como Marx, ele começou a desafiar a realidade demasiado humana, demasiado empírica e demasiado aprisionante dentro da qual a vida humana e a felicidade são encontradas. Ele comprometeu-se com a destruição e, mais ainda, com a destruição da liberdade limitada e imperfeita que ainda podemos atingir – uma liberdade distante, ainda, da "liberdade total" da qual gozam os sujeitos no império soviético. Desejando somente o que é abstrato e "totalizado" , ele condenou o que é real à miséria e à servidão. A totalidade totalizada é, no fim, o que ela parece ser no início: o compromisso total com a "práxis revolucionária".
 
 (Roger Scruton- Pensadores da Nova Esquerda)

publicado às 16:30


EVANGELHO SEGUNDO TOMÉ, O DIDIMO

por Thynus, em 21.02.17
Certos livros, pela sua própria natureza, não se destinam a todos os homens, porque são direcionados especialmente àqueles que ainda não perderam a esperança, os que buscam o sentido da vida, ou melhor, os não-acomodados. Este é um deles.
O Evangelho de Tomé – um Caminho para Deus é como uma seta na encruzilhada, apontando uma estrada segura e confiável para todos os que, à semelhança do filho pródigo, sentem alguma nostalgia, uma angústia metafísica, a saudade de Deus. O Pai nos espera; precisamos voltar à Casa Paterna. Daí, a importância e o peso desta obra, toda ela calcada na fé, ou seja, na fidelidade, harmonia, sintonia ou religação consciencial vivida entre o filho e o Pai, entre a criatura e o seu Criador. De que nos adianta tantas crenças disseminadas pelo mundo, se nos falta a fé, capaz de vivificar a crença, de lhe dar suporte, sentido e finalidade? A fé, que tudo sustenta, alimenta e conduz...
Tomé completa, ou complementa, os evangelhos canônicos e, ao comentá-lo, Nelci Silvério de Oliveira nos revela, de maneira clara e precisa, em linguagem simples, intuitiva e sem rodeios, que ao mundo viemos e cá estamos para conhecer e viver a paternidade única de Deus; consequentemente, a fraternidade cósmica de todas as criaturas. E que, se conseguirmos manter o amor – incondicional ao Pai e desinteressado ao próximo –, esse amor nos libertará de toda a ilusão separatista em relação a Deus, conduzindo-nos, verticalmente, ao Seu reino de eterna luz e perfeita alegria, porque Deus é o único e definitivo porto seguro para o nosso ego errante.
 
Estes são os ensinamentos (logia) ocultos expostos por Jesus, o vivo, que Judas Tomé, o gêmeo, escreveu.

(1) E ele disse: "Quem descobrir o significado interior destes ensinamentos não provará a morte."

(2) Jesus disse: "Aquele que busca continue buscando até encontrar. Quando encontrar, ele se perturbará. Ao se perturbar, ficará maravilhado e reinará sobre o Todo."

(3) Jesus disse: "Se aqueles que vos guiam disserem, ‘Olhem, o reino está no céu,’ então, os pássaros do céu vos precederão, se vos disserem que está no mar, então, os peixes vos precederão. Pois bem, o reino está dentro de vós, e também está em vosso exterior.
Quando conseguirdes conhecer a vós mesmos, então, sereis conhecidos e compreendereis que sois filhos do Pai vivo. Mas, se não vos conhecerdes, vivereis na pobreza e sereis essa pobreza."

(4) Jesus disse: "O homem idoso não hesitará em perguntar a uma criancinha de sete dias sobre o lugar da vida, e ele viverá. Pois muitos dos primeiros serão os últimos e se tornarão um só."

(5) Jesus disse: "Reconheça o que está diante de teus olhos, e o que está oculto a ti será desvelado. Pois não há nada oculto que não venha ser manifestado."
 
(6) Seus discípulos o interrogaram dizendo: "Queres que jejuemos? Como devemos orar? Devemos dar esmolas? Que dieta devemos observar?"
Jesus disse: "Não mintais e não façais aquilo que detestais, pois todas as coisas são desveladas aos olhos do céu. Pois não há nada escondido que não se torne manifesto, e nada oculto que não seja desvelado."

(7) Jesus disse: "Bem-aventurado o leão que se torna homem quando consumido pelo homem; maldito o homem que o leão consome, e o leão torna-se homem."

(8) E ele disse: "O homem é como pescador sábio que lança sua rede ao mar e a retira cheia de peixinhos. O pescador sábio encontra entre eles um peixe grande e excelente. Joga todos os peixinhos de volta ao mar e escolhe o peixe grande sem dificuldade. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça."

(9) Jesus disse: "Eis que o semeador saiu, encheu sua mão e semeou. Algumas sementes caíram na estrada; os pássaros vieram e as recolheram. Algumas caíram sobre rochas, não criaram raízes no solo e não produziram espigas. Outras caíram em meio a um espinheiro, que sufocou as sementes e os vermes as comeram. E outras caíram em solo fértil e produziram bons frutos; renderam sessenta por uma e cento e vinte por uma."

(10) Jesus disse: "Eu lancei fogo sobre o mundo, e eis que estou cuidando dele até que queime."

(11) Jesus disse: "Este céu passará, e aquele acima dele passará. Os mortos não estão vivos e os vivos não morrerão. Nos dias em que consumistes o que estava morto, vós o tornastes vivo. Quando estiverdes morando na luz, o que fareis? No dia em que éreis um vos tornastes dois. Mas quando vos tornardes dois, o que fareis?"

(12) Os discípulos disseram a Jesus: "Sabemos que tu nos deixarás. Quem será nosso líder?"
Jesus disse-lhes: "Não importa onde estiverdes, devereis dirigir-vos a Tiago, o justo, para quem o céu e a terra foram feitos."

(13) Jesus disse a seus discípulos: "Comparai-me com alguém e dizei-me com quem me assemelho."
Simão Pedro disse-lhe: "Tu és semelhante a um anjo justo."
Mateus lhe disse: "Tu te assemelhas a um filósofo sábio."
Tomé lhe disse: "Mestre, minha boca é inteiramente incapaz de dizer com quem te assemelhas."
Jesus disse: "Não sou teu Mestre. Porque bebeste na fonte borbulhante que fiz brotar, tornaste-te ébrio. E, pegando-o, retirou-se e disse-lhe três coisas. Quando Tomé retornou a seus companheiros, eles lhe perguntaram: "O que te disse Jesus?"
Tomé respondeu: "Se eu vos disser uma só das coisas que ele me disse, apanhareis pedras e as atirareis em mim, e um fogo brotará das pedras e vos queimará."

(14) Jesus disse-lhes: "Se jejuardes, gerareis pecado para vós; se orardes, sereis condenados; se derdes esmolas, fareis mal a vossos espíritos. Quando entrardes em qualquer país e caminhardes por qualquer lugar, se fordes recebidos, comei o que vos for oferecido e curai os enfermos entre eles. Pois o que entrar em vossa boca não vos maculará, mas o que sair de vossa boca – é isso que vos maculará."

(15) Jesus disse: "Quando virdes aquele que não foi nascido de uma mulher, prostrai-vos com a face no chão e adorai-o: é ele o vosso Pai."

(16) Jesus disse: "Talvez os homens pensem que vim lançar a paz sobre o mundo. Não sabem que é a discórdia que vim espalhar sobre a Terra: fogo, espada e disputa. Com efeito, havendo cinco numa casa, três estarão contra dois e dois contra três: o pai contra o filho e o filho contra o pai. E eles permanecerão solitários."

(17) Jesus disse: "Eu vos darei o que os olhos não viram, o que os ouvidos não ouviram, o que as mão não tocaram e o que nunca ocorreu à mente do homem."

(18) Os discípulos disseram a Jesus: "Dize-nos como será o nosso fim."
Jesus disse: "Haveis, então, discernido o princípio, para que estejais procurando o fim? Pois onde estiver o princípio ali estará o fim. Feliz daquele que tomar seu lugar no princípio: ele conhecerá o fim e não provará a morte."

(19) Jesus disse: "Feliz o que já era antes de surgir. Se vos tornardes meus discípulos e ouvirdes minhas palavras, estas pedras estarão a vosso serviço. Com efeito, há  cinco árvores para vós no Paraíso que permanecem inalteradas inverno e verão, e cujas  folhas não caem. Aquele que as conhecer não provará a morte."

(20) Os discípulos disseram a Jesus: "Dize-nos a que se assemelha o reino do céu."
Ele lhes disse: "Ele se assemelha a uma semente de mostarda, a menor de todas as sementes. Mas, quando cai em terra cultivada, produz uma grande planta e torna-se um  refúgio para as aves do céu."

(21) Maria disse a Jesus: "A quem se assemelham teus discípulos?"
Ele disse: "Eles se parecem com crianças que se instalaram num campo que não lhes pertence. Quando os donos do campo vierem, dirão: ‘Entregai nosso campo.’ Elas se despirão diante deles para que eles possam receber o campo de volta e para entregá-lo a  eles. Por isso digo: se o dono da casa souber que virá um ladrão, velará antes que ele chegue e não deixará que ele penetre na casa de seu domínio para levar seus bens. Vós, portanto, permanecei atentos contra o mundo. Armai-vos com todo poder para que os ladrões não consigam encontrar um caminho para chegar a vós, pois a dificuldade que temeis certamente ocorrerá. Que possa haver entre vós um homem prudente. Quando a safra estiver madura, ele virá rapidamente com sua foice em mãos para colhe-la. Quem tem
ouvidos para ouvir, ouça."

(22) Jesus viu crianças sendo amamentadas. Ele disse a seus discípulos: "Esses pequeninos que mamam são como aqueles que entram no Reino." Eles lhe disseram: Nós também, como crianças, entraremos no Reino?" Jesus lhes disse: "Quando fizerdes do dois um e quando fizerdes o interior como o exterior, o exterior como o interior, o acima como o embaixo e quando fizerdes do macho e da fêmea uma só coisa, de forma que o macho não seja mais macho nem a fêmea seja mais fêmea, e quando formardes olhos em lugar de um olho, uma mão em lugar de uma mão, um pé em lugar de um pé e uma imagem em lugar de uma imagem, então, entrareis (no Reino).

(23) Jesus disse: Escolherei dentre vós, um entre mil e dois entre dez mil, e eles permanecerão como um só."

(24) Seus discípulos disseram-lhe: "Mostra-nos o lugar onde estás, pois precisamos procurá-lo."
Ele disse-lhes: "Aquele que tem ouvidos, ouça! Há luz no interior do homem de luz e ele ilumina o mundo inteiro. Se ele não brilha, ele é escuridão."

(25) Jesus disse: "Ama teu irmão como à tua alma, protege-o como a pupila de teus olhos."

(26) Jesus disse: "Tu vês o cisco no olho de teu irmão, mas não vês a trave em teu próprio olho. Quando retirares a trave de teu olho, então verás claramente e poderás retirar o cisco do olho de teu irmão."

(27) (Jesus disse:) "Se não jejuardes com relação ao mundo, não encontrareis o Reino. Se não observardes o sábado como um sábado, não vereis o Pai."

(28) Jesus disse: "Assumi meu lugar no mundo e revelei-me a eles na carne. Encontrei todos embriagados. Não encontrei nenhum sedento, e minha alma ficou aflita pelos filhos dos homens, porque estão cegos em seus corações e não têm visão. Pois vazios vieram ao mundo e vazios procuram deixar o mundo. Mas no momento eles estão embriagados. Quando superarem a embriaguez, então mudarão sua maneira de pensar."

(29) Jesus disse: "Seria uma maravilha se a carne tivesse surgido por causa do  espírito. Mas seria a maior das maravilhas se o espírito tivesse surgido por causa do corpo. Estou realmente surpreso pela forma como essa grande riqueza fez morada nessa pobreza."

(30) Jesus disse: "Onde há três deuses, eles são deuses. Onde há dois ou um, estou  com ele."

(31) Jesus disse: "Nenhum profeta é aceito em sua cidade; nenhum médico cura aqueles que o conhecem."

(32) Jesus disse: "Uma cidade construída e fortificada sobre uma montanha elevada não pode cair nem pode ser escondida."

(33) Jesus disse: "Proclamai sobre os telhados aquilo que ouvirdes com vosso próprio ouvido. Pois ninguém acende uma lâmpada e coloca-a debaixo de um cesto, tampouco coloca-a num lugar escondido, mas num candelabro, para que todos que venham  a entrar e sair vejam sua luz."

(34) Jesus disse: "Se um cego guia outro cego, ambos cairão numa vala."

(35) Jesus disse: "Não é possível que alguém entre na casa de um homem forte e tome-a à força, a menos que lhe ate as mãos; então será capaz de saquear sua casa."

(36) Jesus disse: "Não vos preocupeis de manhã até a noite e de noite até a manhã com o que vestireis."

(37) Seus discípulos disseram: "Quando tu te revelarás a nós e quando te veremos?"
Jesus disse: "Quando vos despirdes sem vos envergonhardes e tomardes vossas vestes e, colocando-as sobre vossos pés, pisardes sobre elas como criancinhas, então (vereis) o filho daquele que vive e não tereis medo."

(38) Jesus disse: "Muitas vezes haveis desejado ouvir essas palavras que vos digo, e  não tendes outro de quem ouvi-las. Pois virão dias em que me procurareis e não me encontrareis."

(39) Jesus disse: "Os fariseus e os escribas tomaram as chaves da gnosis. Eles não entraram nem deixaram entrar aqueles que queriam entrar. Vós, no entanto, sede sábios como as serpentes e mansos como as pombas."

(40) Jesus disse: "Uma parreira foi plantada fora do Pai, porém, não sendo saudável, ela será arrancada pela raiz e destruída."

(41) Jesus disse: "Quem tiver algo em sua mão receberá mais, e quem não tiver nada perderá até mesmo o pouco que tem."

(42) Jesus disse: "Tornai-vos passantes."

(43) Seus discípulos disseram-lhe: "Quem és tu para dizer-nos tais coisas?"
[Jesus disse-lhes:] "Não percebeis quem sou eu pelo que vos digo, mas vos tornastes como os judeus! Com efeito, eles amam a árvore e odeiam seus frutos ou amam os frutos, mas odeiam a árvore."

(44) Jesus disse: "Quem blasfemar contra o Pai será perdoado e quem blasfemar contra o Filho será perdoado, mas quem blasfemar contra o Espírito Santo não será perdoado nem na terra nem no céu."

(45) Jesus disse: "Não se colhe uvas dos espinheiros nem figos dos cardos, pois eles não dão frutos. O homem bom retira o bem do seu tesouro; o malvado retira o mal de seu tesouro malévolo, que está em seu coração, e diz maldade. Pois da abundância do coração ele retira coisas más."

(46) Jesus disse: "Dentre os que nasceram da mulher, desde Adão até João, o Batista, não há ninguém superior a João, para que não abaixe os olhos [diante dele]. Mas eu digo, aquele dentre vós que se tornar uma criança conhecerá o Reino e se tornará superior a João."

(47) Jesus disse: "É impossível para um homem montar dois cavalos ou retesar dois arcos. E é impossível que um servo sirva a dois senhores, pois ele honra um e ofende o outro. Ninguém bebe vinho velho e logo em seguida deseja beber vinho novo. E não se coloca vinho novo em odres velhos, para que não arrebentem; nem se coloca vinho velho em odres novos, para que não o estraguem. E não se cose pano velho em veste nova, porque ela está arriscada a rasgar."

(48) Jesus disse: "Se os dois fizerem as pazes nesta casa, eles dirão a montanha: ‘Move-te!’ e ela se moverá."

(49) Jesus disse: "Bem aventurados os solitários e os eleitos, pois encontrareis o Reino. Pois, viestes dele e para ele retornareis."

(50) Jesus disse: "Se vos perguntarem: ‘De onde vindes?’ respondei: ‘Viemos da luz, do lugar onde a luz nasceu dela mesma, estabeleceu-se e tornou-se manifesta por meio de suas imagens’. Se vos perguntarem: ‘Vós sois isto?’ digam: ‘Nós somos seus filhos e somos os eleitos do Pai vivo’. Se vos perguntarem: ‘Qual é o sinal de vosso Pai em vós?’, digam a eles: ‘É movimento e repouso’."

(51) Seus discípulos disseram-lhe: "Quando ocorrerá o repouso dos mortos e quando virá o novo mundo?"
Ele disse-lhes: "Aquilo que esperais já chegou, mas não o reconheceis."

(52) Seus discípulos disseram-lhe: "Vinte e quatro profetas falaram em Israel e todos falaram de ti."
Ele disse-lhes: "Omitistes aquele que vive em vossa presença e falastes dos mortos."

(53) Seus discípulos disseram-lhe: "A circuncisão é benéfica ou não?"
Ele disse-lhes: "Se ela fosse benéfica, os pais gerariam filhos já circuncisos de sua mãe. Mas a verdadeira circuncisão, a espiritual, tornou-se inteiramente proveitosa."

(54) Jesus disse: "Bem-aventurados os pobres, pois vosso é o Reino do céu."

(55) Jesus disse: "Aquele que não odiar seu pai e sua mãe não poderá se tornar meu discípulo. E quem não odiar seus irmãos e irmãs e tomar sua cruz, como eu, não será digno de mim."

(56) Jesus disse: "Aquele que conseguiu compreender o mundo encontrou (somente) um cadáver, e quem encontrou um cadáver é superior ao mundo."

(57) Jesus disse: "O Reino do Pai é semelhante ao homem que tem [boa] semente. Seu inimigo veio durante a noite e semeou joio por cima da boa semente. O homem não deixou que arrancassem o joio, dizendo: ‘temo que acabeis arrancando o joio e também o trigo junto com ele. No dia da colheita as ervas daninhas estarão bem visíveis e serão, então, arrancadas e queimadas."

(58) Jesus disse: "Bem-aventurado o homem que sofreu e encontrou a vida."

(59) Jesus disse: "Prestai atenção àquele que vive enquanto estais vivos, para que, ao morrerdes, não fiqueis procurando vê-lo sem conseguir."

(60) [Eles viram] um samaritano carregando um cordeiro a caminho da Judéia. Ele disse a seus discípulos: "Por que o homem está carregando o cordeiro?"
Eles disseram-lhe: "Para matá-lo e comê-lo."
Ele disse-lhes: "Enquanto o cordeiro estiver vivo, ele não o comerá, mas somente depois que o tiver matado e que o cordeiro se tornar um cadáver."
Eles disseram-lhe: "Ele não poderia fazer de outro modo."
Ele disse-lhes: "Vós, também, buscai um lugar para vós no repouso, a fim de que não vos torneis um cadáver e sejais devorados."

(61) Jesus disse: "Dois repousarão sobre um leito: um morrerá, o outro viverá."
Salomé disse: "Quem és tu homem, que ... te acomodaste em meu divã e comeste à minha mesa?"
Jesus disse-lhe: "Eu sou aquele que existe a partir do indivisível. Recebi algumas das coisas de meu pai."
[ ... ] "Eu sou seu discípulo."
[ ... ] "Por isso digo que, se for destruído, ele estará pleno de luz, mas, se ele estiver dividido, estará pleno de trevas."

(62) Jesus disse: "Eu digo meus mistérios aos [que são dignos de meus] mistérios. Que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua mão direita."

(63) Jesus disse: "Havia um rico que tinha muito dinheiro. Ele disse: ‘Empregarei meu dinheiro para semear, colher, plantar e encher meu celeiro com o fruto da colheita, para que não me venha a faltar nada’. Essas eram suas intenções, mas naquela mesma noite ele morreu. Aquele que tem ouvidos para ouvir, ouça."

(64) Jesus disse: "Um homem tinha convidados. E quando a ceia estava pronta, mandou seu servo chamar os convidados. O servo foi ao primeiro e disse-lhe: ‘Meu mestre te convida’. O outro respondeu: ‘Tenho dinheiro aplicado com alguns comerciantes. Eles virão me procurar esta noite para que eu lhes dê minhas instruções. Apresento minhas desculpas por não ir à ceia. O servo foi até outro e disse: ‘Meu senhor está te convidando’.
Este disse-lhe: ‘Acabo de comprar uma casa e precisam de mim hoje. Não terei tempo’. O servo foi a outro e disse-lhe: ‘Meu senhor está te convidando’. Este disse-lhe: ‘Um amigo vai se casar e coube-me preparar o banquete. Não poderei ir à ceia, peço ser desculpado. O servo foi a outro ainda e disse-lhe: ‘Meu senhor está te convidando’. Este disse-lhe:
‘Acabo de comprar uma fazenda e estou saindo para buscar o rendimento. Não poderei ir, por isso me desculpo’. O servo retornou e disse a seu senhor: ‘Os que convidaste para a ceia mandam pedir desculpas’. O senhor disse ao servo: ‘Vai lá fora pelos caminhos e traze os que encontrares para que possam ceiar. Os homens de negócios e mercadores não entrarão no recinto de meu Pai’."

(65) Ele disse: "Um homem de bem tinha uma vinha. Ele a alugou a camponeses para que cuidassem dela e pagassem-lhe com uma parte da produção. Ele enviou seu servo para que os arrendatários entregassem-lhe o fruto da vinha. Eles pegaram seu servo e o espancaram, deixando-o à beira da morte. O servo voltou e contou a seu senhor o ocorrido.
O senhor disse: ‘Talvez não o tenham reconhecido’. Ele enviou outro servo. Os camponeses também o espancaram. Então o proprietário enviou seu filho e disse: ‘Talvez eles tenham respeito por meu filho’. Como os camponeses sabiam que aquele era o herdeiro da vinha, pegaram-no e mataram-no. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça."

(66) Jesus disse: "Mostrai-me a pedra que os construtores rejeitaram; ela é a pedra angular."

(67) Jesus disse: "Se alguém que conhece o todo ainda sente uma deficiência pessoal, ele é completamente deficiente."

(68) Jesus disse: "Bem-aventurados os que são odiados e perseguidos. Mas os que vos perseguirem não encontrarão lugar."

(69) Jesus disse: "Bem-aventurados aqueles que foram perseguidos em seu interior. São eles que realmente conheceram o pai. Bem-aventurados os famintos, porque se encherá o ventre de quem tem desejo."

(70) Jesus disse: "Aquilo que tendes vos salvará se o manifestardes. Aquilo que não tendes em vosso interior vos matará se não o tiverdes dentro de vós."

(71) Jesus disse: "Destruirei esta casa e ninguém será capaz de reconstruí-la [...]"

(72) [Um homem disse-lhe]: "Dize a meus irmãos para que partilhem os bens de meu pai comigo."
Ele lhe disse: "Ó, homem, quem me institui partilhador?"
Voltando-se para seus discípulos, disse-lhes: "Eu não sou um partilhador, sou?"

(73) Jesus disse: "A colheita é grande mas os operários são poucos. Portanto, implorai ao senhor para que envie operários para a colheita."

(74) Ele disse: "Ó senhor, há muitas pessoas ao redor do bebedouro, mas não há nada na cisterna."

(75) Jesus disse: "Muitos estão aguardando à porta, mas são os solitários que entrarão na câmara nupcial."

(76) O Reino do pai é semelhante ao comerciante que tinha uma consignação de mercadorias e nelas descobriu uma pérola. Esse comerciante era astuto. Ele vendeu as mercadorias e adquiriu a pérola maravilhosa para si. Vós também deveis buscar esse tesouro indestrutível e duradouro, que nenhuma traça pode devorar nem o verme destruir."

(77) Jesus disse: "Eu sou a luz que está sobre todos eles. Eu sou o todo. De mim surgiu o todo e de mim o todo se estendeu. Rachai um pedaço de madeira, e eu estou lá. Levantai a pedra e me encontrareis lá."

(78) Jesus disse: "Por que viestes ao deserto? Para ver um caniço agitado pelo vento? E para ver um homem vestido com roupas finas como vosso rei e vossos homens  importantes? Esses usam roupas finas, mas são incapazes de discernir a verdade."

(79) Uma mulher na multidão disse-lhe: "Bem-aventurado o ventre que te portou e os seios que te nutriram."
Ele disse-lhe: "Bem-aventurados os que ouviram a palavra do Pai e que realmente a guardaram. Pois virão dias em que direis: "Bem-aventurado o ventre que não concebeu, e os seios que não amamentaram."

(80) Jesus disse: "Aquele que reconheceu o mundo encontrou o corpo, mas aquele que encontrou o corpo é superior ao mundo."

(81) Quem enriqueceu, torne-se rei, mas quem tem poder que possa renunciar a ele."

(82) Jesus disse: "Aquele que está perto de mim está perto do fogo, e aquele que está longe de mim está longe do Reino."

(83) Jesus disse: "As imagens manifestam-se ao homem, mas a luz que está nelas permanece oculta na imagem da luz do Pai. Ele tornar-se-á manifesto, mas sua imagem permanecerá velada por sua luz."

(84) Jesus disse: "Quando vedes vossa semelhança, vós vos rejubilais. Mas, quando virdes vossas imagens que surgiram antes de vós, e que não morrem nem se manifestam, quanto tereis de suportar!"

(85) Jesus disse: "Adão surgiu de um grande poder e de uma grande riqueza, mas ele não se tornou digno de vós. Pois, se tivesse sido digno, não teria experimentado a morte."

(86) Jesus disse: "[As raposas têm suas tocas] e as aves têm seus ninhos, mas o filho do homem não tem nenhum lugar para pousar sua cabeça e descansar."

(87) Jesus disse: "Miserável do corpo que depende de um corpo e da alma que depende desses dois."

(88) Jesus disse: "Os anjos e os profetas virão a vós e darão aquelas coisas que já tendes. E dai vós também a eles as coisas que tendes e dizei a vós mesmos: ‘Quando virão tomar o que é deles?’"

(89) Jesus disse: "Por que lavais o exterior da taça? Não compreendeis que aquele que fez o interior é o mesmo que fez o exterior?"

(90) Jesus disse: "Vinde a mim, pois meu jugo é fácil e meu domínio é suave, e encontrareis repouso para vós."

(91) Eles disseram-lhe: "Dize-nos quem tu és, para que possamos crer em ti."
Ele disse-lhes: "Vós decifrastes a face to céu e da terra, mas não reconhecestes aquele que está diante de vós e não soubestes perceber este momento."

(92) Jesus disse: "Buscai e encontrareis. No entanto, aquilo que me perguntastes anteriormente e que não vos respondi então, agora desejo vos dizer mas vós não me perguntais sobre aquilo."

(93) [Jesus disse]: "Não deis aos cães o que é sagrado, para que eles não o joguem no lixo. Não atireis pérolas aos porcos, para que eles ..."

(94) Jesus [disse]: "Quem busca, encontrará, e [quem bate] terá permissão para entrar."

(95) [Jesus disse]: "Se tendes dinheiro, não o empresteis a juro, mas dai-o àquele de quem não o recebereis de volta."

(96) Jesus disse: "O Reino do Pai é como [uma certa] mulher. Ela tomou um pouco de fermento, [escondeu-o] na massa, e fez com ela grandes pães. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça!"

(97) Jesus disse: "O Reino do Pai é como uma certa mulher que estava carregando um cântaro cheio de farinha. Enquanto estava caminhando pela estrada, ainda distante de  casa, a alça do cântaro partiu-se e a farinha foi caindo pelo caminho atrás dela. Ela não se deu conta, pois não tinha percebido o acidente. Quando chegou em casa, colocou o cântaro no chão e percebeu que ele estava vazio."

(98) Jesus disse: "O Reino do Pai é como um certo homem que queria matar um homem poderoso. Em sua própria casa ele desembainhou a espada e enfiou-a na parede para saber se sua mão poderia realizar a tarefa. Então ele matou o homem poderoso."

(99) Os discípulos disseram-lhe: "Teus irmãos e tua mãe estão aguardando lá fora."
Ele disse-lhes: "Estes que estão aqui que fazem a vontade de meu Pai são meus irmãos e minha mãe. São eles que entrarão no Reino de meu Pai."

(100) Eles mostraram uma moeda de ouro a Jesus e disseram-lhe: "Os homens de César exigem-nos tributos."
Ele disse-lhes: "Dai a César o que é de César, dai a Deus o que é de Deus, e dai a mim o que é meu."

(101) [Jesus disse]: "Quem não odeia seu [pai] e sua mãe como eu não pode se tornar meu [discípulo]. E quem não ama seu [pai e] sua mãe como eu não pode se tornar meu [discípulo]. Porque minha mãe [ ... ], mas [minha] verdadeira [mãe] deu-me a vida."

(102) Jesus disse: "Ai dos fariseus, porque eles são como um cachorro dormindo na manjedoura dos bois, pois eles não comem nem permitem que os bois comam."

(103) Jesus disse: "Feliz do homem que sabe por onde os ladrões vão entrar, porque dessa forma [ele] pode se levantar, passar em revista seu domínio e armar-se antes deles invadirem."

(104) Eles disseram a Jesus: "Vem, oremos e jejuemos hoje."
Jesus disse: "Qual foi o pecado que cometi ou em que fui vencido? Porém, quando o noivo deixar a câmara nupcial, então que eles jejuem e orem."

(105) Jesus disse: "Quem conhece o pai e a mãe será chamado filho de prostituta."

(106) Jesus disse: "Quando fizerdes de dois, um, vos tornareis filhos do homem, e quando disserdes: ‘Montanha, move-te!’, ela se moverá."

(107) Jesus disse: "O Reino é como um pastor que tinha cem ovelhas. Uma delas, a maior de todas, extraviou-se. Ele deixou as noventa e nove e foi procurá-la, até encontrá-la.
Depois de ter passado por todo esse incômodo, ele disse à ovelha: ‘Eu me interesso por ti mais do que pelas noventa e nove’."

(108) Jesus disse: "Quem beber de minha boca tornar-se-á como eu. Eu mesmo me tornarei ele, e as coisas que estão ocultas ser-lhe-ão reveladas."

(109) Jesus disse: "O Reino é como o homem que tinha um tesouro [escondido] em seu campo sem saber. Após sua morte, deixou o campo para seu [filho]. O filho não sabia [a respeito do tesouro]. Ele herdou o campo e o vendeu. O comprador ao arar o campo encontrou o tesouro. Começou então a emprestar dinheiro a juros a quem queria."

(110) Jesus disse: "Quem encontrou o mundo e tornou-se rico, que renuncie ao mundo."

(111) Jesus disse: "Os céus e a terra se dobrarão diante de vós. E aquele que vive do Vivo não conhecerá a morte. Jesus não disse: ‘Quem se encontra é superior ao mundo?’"

(112) Jesus disse: "Ai da carne que depende da alma; ai da alma que depende da carne."

(113) Seus discípulos disseram-lhe: "Quando virá o Reino?"
[Jesus disse]: "Ele não virá porque é esperado. Não é uma questão de dizer: ‘eis que ele está aqui’ ou ‘eis que está ali’. Na verdade, o Reino do Pai está espalhado pela terra e os homens não o vêem."

(114) Simão Pedro disse-lhes: "Que Maria saia de nosso meio, pois as mulheres não são dignas da vida."
Jesus disse: "Eu mesmo vou guiá-la para torná-la macho, para que ela também possa tornar-se um espírito vivo semelhante a vós machos. Porque toda mulher que se tornar macho entrará no Reino do Céu."

publicado às 13:43

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Filosofia, Ética e Sociedade

Até hoje existem três “ismos” importantes que integram a maior parte dos sistemas de crenças da maioria dos seres humanos: o dualismo, o monismo material e o monismo idealista.

O mais popular, dualismo, é também o mais antigo. O dualismo é empiricamente “óbvio” em nossa própria experiência, pois tem uma dicotomia interna/externa. Sem dúvida, esta é a razão para sua popularidade. No pensamento religioso, o dualismo existe como um dualismo Deus-mundo: Deus separado do mundo, porém exercendo influências (causação descendente) sobre ele. Esse dualismo dominou a humanidade por milênios, especialmente no Ocidente. No entanto, no século XVI, Descartes formulou uma versão “moderna” do dualismo mente-corpo, sendo a mente o território de Deus, no qual temos livre-arbítrio, e o corpo (ou mundo físico) o território da ciência determinista. Este dualismo cartesiano – uma trégua entre a ciência e a religião – foi bastante influente no pensamento filosófico acadêmico do Ocidente. Ele também definiu a recente era da filosofia ocidental: a modernidade.

Antes desse período, a sociedade ocidental esteve sob o silêncio da idade das trevas, quando a religião (na forma do cristianismo) dominou a sociedade sem qualquer percalço. A modernidade livrou os cientistas das garras da religião. Então, eles saíram para descobrir o significado do mundo material – as leis da natureza – com o objetivo de obter o poder e o controle sobre elas. E o fizeram com tamanha disposição, com tecnologias de virtuosismo inquestionável, que seu espírito invadiu por completo a sociedade ocidental. Em pouco tempo, a hierarquia religiosa e o feudalismo deram lugar à democracia e ao capitalismo, os eventos que coroaram a sociedade moderna.

Pouco depois, em virtude do sucesso da ciência, as pessoas começaram a questionar a necessidade da trégua entre a ciência e a religião. Na verdade, o dualismo não resiste muito a questões óbvias como, por exemplo: de que modo interagem dois corpos, feitos de duas substâncias completamente diferentes? Como Deus, de substância divina, interage com o mundo material? Como uma mente não material interage com o corpo material?

Essa interação é impossível, se dermos espaço apenas para interações locais mediadas por sinais portadores de energia que viajam pelo espaço e pelo tempo, de um corpo para outro. Uma interação entre o material e o não material seria uma violação da sacrossanta lei de conservação de energia da física. Além disso, há uma pergunta incômoda sobre os meios pelos quais essa interação poderia ocorrer, qual seja: do que é feito o sinal do mediador? Parece que precisamos de um mediador feito das duas substâncias, mas não existe nenhum!

Assim, surgiu o monismo material como alternativa ao dualismo. No monismo material, as dificuldades do dualismo são contornadas simplesmente afirmando-se que não são duas substâncias, e sim apenas uma matéria. A consciência, Deus, nossas mentes e todas as nossas experiências internas são o resultado das interações cerebrais. Estas, em última análise, chegam até as interações das partículas elementares (causação ascendente).

Esta filosofia ganhou muita credibilidade recentemente, não apenas por sua simplicidade, como também porque conglomerados de partículas elementares, como os núcleos atômicos, foram confirmados algumas vezes de maneira espetacular (detonações nucleares).

Mas o sucesso do monismo material também amorteceu o espírito modernista do Ocidente e estabeleceu-se um mal-estar pós-moderno. Afinal, se o materialismo for verdadeiro, não podemos conquistar e controlar a natureza como pensávamos que poderíamos na época do modernismo. Na verdade, nós, humanos, como o resto da natureza, somos máquinas determinadas. Não temos livre-arbítrio, a liberdade de buscar o significado quando achamos necessário. Não há significado no universo-máquina. Nessas circunstâncias, o melhor que podemos fazer é acatar a filosofia do existencialismo: nossas vidas não têm significado – cada um de nós, como indivíduos, cria o significado (essência) em sua vida. Afinal, de algum modo nós existimos. Como não podemos negar nossa existência, podemos jogar o jogo da maneira que parece ser esperado de nós. Fingimos que existe um significado, fingimos que existe o amor em um universo que, no mais, é destituído de sentido e de amor.

Esta saída pessimista e existencialista ao niilismo – com efeito, o filósofo Friedrich Nietzsche colocou de maneira perfeita a mensagem, “Deus está morto” – não durou muito. Alguns cientistas reagiram com o holismo, uma nova ideia originada por um político da África do Sul, Jan Smuts, em seu livro Holismo e evolução, de 1926. Originalmente, foi definida como “a tendência da natureza em formar um todo que é maior do que a soma das partes por meio da evolução criativa”. Muitos cientistas se recusavam a abrir completamente mão de Deus e da religião; e, no holismo, viram uma oportunidade para resgatar Deus, de alguma forma.

De determinado modo, em um pensamento primitivo e animista, Deus existe como um Deus imanente, um Deus da natureza. A ideia é que a própria natureza é animada por Deus. Não é preciso procurar Deus fora deste mundo: Deus está aqui. Usando a linguagem holística, isso pode ser transformado em uma filosofia atraente. O todo não pode ser reduzido às suas partes. Partículas elementares formam átomos; mas átomos são um todo, e, assim, não podem ser reduzidos completamente às partes, as partículas elementares. Algo similar acontece quando os átomos formam moléculas; algo novo emerge no todo que não pode ser reduzido ao nível atômico de existência. Quando as moléculas constituem a célula viva, o novo princípio holístico que emerge pode ser identificado como a vida (Maturana & Varella, 1992; Capra, 1996). Quando as células chamadas neurônios formam o cérebro, o novo princípio holístico emergente pode ser identificado como mente. E a totalidade de toda vida e de toda mente, a totalidade da própria natureza, pode ser entendida como Deus. Algumas pessoas a vêem como Gaia, a mãe-terra, conceito idealizado pelo químico James Lovelock (1982) e pela bióloga Lynn Margulis (1993).

Ao mesmo tempo, esse pensamento holístico deu origem ao movimento ecológico – a atenção à preservação da natureza e à filosofia da ecologia profunda (Devall & Sessions, 1985), a transformação espiritual por meio do amor e da apreciação da própria natureza.

No entanto, os cientistas materialistas fazem uma afirmativa válida: a de que a matéria é fundamentalmente reducionista como milhares de experimentos mostram, e que, por isso, o holismo é uma fantasia filosófica.

Contudo, há, desde a antiguidade, mais uma alternativa ao dualismo além do monismo materialista: o monismo idealista. É interessante observar que no pensamento grego (a maior influência sobre a civilização ocidental), o idealismo monista (apresentado por filósofos como Parmênides, Sócrates e Platão) e o monismo material (formulado por Demócrito) possuem quase a mesma idade. O dualismo encontra problemas porque não pode responder à pergunta sobre sinais de mediação, necessários para que os corpos duplos interajam entre si. Suponha que não exista sinal, suponha que a interação é não local. E agora? A imaginação humana e a intuição chegaram a elevadas alturas desde cedo, e formularam o idealismo não dualista ou monista (também chamado filosofia perene). Deus interage com o mundo porque Deus não está dissociado do mundo. Deus é, ao mesmo tempo, transcendente e imanente no mundo.

Para o dualismo mente-corpo, podemos pensar idealmente desta maneira. Nossa experiência interior, a morada da mente, consiste de um sujeito (o experimentador) e objetos mentais internos, como os pensamentos. O sujeito não apenas experimenta os objetos internos, como também os objetos externos do mundo material. Suponha que afirmamos que existe apenas uma entidade e que a chamamos consciência, que, por sua vez, se divide de alguma maneira misteriosa no sujeito e nos objetos de nossa experiência. A consciência transcende tanto objetos materiais como mentais e também é imanente a eles. Deste modo, as linguagens religiosa e filosófica tornam-se idênticas, exceto por pequenos detalhes linguísticos.

Esta filosofia do idealismo monista nunca foi popular porque é difícil compreender a transcendência sem entender o conceito de não localidade, um conceito quântico. Ainda mais obscuras são as sutilezas da filosofia, como na frase “tudo está em Deus, mas Deus não está em todas as coisas”. O sentido da frase é que Deus nunca pode ser completamente imanente, que sempre há um aspecto transcendente de Deus, ou seja: o infinito nunca pode ser plenamente representado pela finitude! Mas tente explicar isso para uma pessoa mediana!

Entretanto, o idealismo monista foi muito influente no Oriente, em especial na Índia, Tibete, China e Japão, na forma de religiões como o hinduísmo, o budismo e o taoísmo. Estas religiões, não sendo hierarquias organizadas, sempre responderam às mensagens dos místicos que, de tempos em tempos, reafirmaram a validade da filosofia com base em sua própria experiência transcendente.

Os místicos também existiram no Ocidente. Jesus foi um grande místico. Além dele, o cristianismo ocidental teve outros grandes místicos que propuseram o idealismo monista, como, por exemplo, Mestre Eckhart, São Francisco de Assis, Santa Teresa de Ávila, Santa Catarina de Gênova etc. Entretanto, a natureza organizada do cristianismo abafou as vozes dos místicos (e, de modo irônico, inclusive a voz de Jesus) e o dualismo predominou no pensamento oficial do reino cristão.

Como você identifica um místico? Místicos são essas pessoas que deram um salto quântico desde seu ego-mente para descobrir diretamente que existem a percepção e a beatitude além do ego, valores muito maiores em potencial do que costumamos experimentar. Contudo, a chegada mística a uma realidade “mais real” não produz nenhuma transformação comportamental imediata (principalmente no domínio das emoções básicas). Portanto, em termos comportamentais, a maioria dos místicos não costuma impressionar mais do que as pessoas comuns. Precisamos aceitar a palavra dos místicos por suas “verdades” e, através dos tempos, cientistas e líderes sociais têm relutado em fazê-lo!

Além disso, há um sério obstáculo às formulações filosóficas tradicionais do idealismo monista. Tudo é Deus ou consciência, e sendo assim, quão real é a matéria, qual sua importância? Neste ponto, a maioria dos filósofos idealistas assume a postura de que o mundo material é irrelevante, ilusório, apenas algo a ser tolerado e transcendido. É verdade que alguns filósofos idealistas enfatizaram a importância do material, alegando que apenas na forma material é possível esgotar o karma, o que a alma deve fazer para se libertar da necessidade de reencarnar sempre na forma física no mundo material. De modo geral, porém, sempre houve uma assimetria na visão dos idealistas no que concerne à consciência e à matéria. A consciência é a realidade de verdade, e a matéria é um epifenômeno, quase trivial. Isso é parecido com o inverso da crença materialista, que diz que consciência, mente e todas as coisas internas de nossa experiência são banais, sem eficácia causal (uma relação entre uma ou mais propriedades de uma coisa e um efeito dessa coisa). Mas, para um estudo completo, integral da consciência, devemos ultrapassar essas atitudes.

Domínios externo e interno da consciência, objetividades forte e fraca

Obviamente, os estudos materialistas da consciência, da neurofisiologia, da ciência cognitiva etc., estão limitados pelo sistema de crenças dos pesquisadores, mas ninguém pode duvidar de que os dados que eles reuniram são úteis. E as teorias materialistas, embora incompletas, também são úteis. De modo similar, os dados e teorias, reunidos por místicos e pesquisadores da meditação por meio da introspecção do interior, que levaram a muitos relatos de estados superiores de consciência (além dos estados comuns), também devem ser considerados significativos e úteis.

Perceba que aquilo que a ciência materialista estuda é o aspecto da consciência na terceira pessoa (efeitos comportamentais), para o qual é fácil se chegar a um consenso. Os dados satisfazem o critério severo da objetividade forte – são bastante independentes do observador. Em contraste, os místicos e os pesquisadores da meditação estudam o aspecto da consciência na primeira pessoa (experiências sentidas). Precisamos verificar que os dados que estes pesquisadores nos apresentam têm semelhanças, e, portanto, levam a um consenso sobre os estados superiores da consciência. Mas precisamos afrouxar o critério de julgar os dados sob uma objetividade forte (independência do observador: não se aceitam dados subjetivos) e começar a utilizar uma objetividade fraca (invariabilidade em função do observador: os dados devem ser similares de um observador/sujeito para outro). Lembre-se de que, normalmente, em experiências em laboratório de psicologia cognitiva, já aceitamos a objetividade fraca como critério para dados sobre estados normais da consciência. Veja ainda que, como disse o físico Bernard D’Espagnat (1983), há muito tempo a natureza probabilística da física quântica é consistente apenas com a objetividade fraca.

A isso, podemos acrescentar mais um quadrante: a experiência intersubjetiva – dados pouco estudados sobre aspectos de relacionamentos experimentados interiormente. E, para fazer com que isso seja simétrico, podemos acrescentar um quarto quadrante, consistente em dados objetivos sobre agrupamentos de pessoas, como em uma comunidade, por exemplo. Deste modo, obtemos o modelo de quatro quadrantes (ver Figura 3.1), graças, em boa parte, ao filósofo Ken Wilber (2000).
 

Figura 3.1 Os quatro quadrantes da consciência segundo Wilber.

Entretanto, na verdade, este golpe fenomenológico pode se parecer com uma abordagem integrada, mas é apenas seu começo. Há dicotomias em cada quadrante; além disso, ainda não se chegou a nenhuma interação real de todos os quadrantes. A posição do filósofo é elitista: não podemos integrar usando a lógica ou a ciência. Para ver a integração, precisamos atingir estados superiores de consciência.

Será possível superar o preconceito do filósofo, segundo o qual a ciência somente se aplica no nível material da realidade e a razão nunca pode se estender aos níveis superiores de consciência? Creio que este preconceito tem sua origem na crença do filósofo em um dualismo oculto de consciência e matéria, realidade interior e realidade exterior. O filósofo procura evitar o problema do interacionismo (como a consciência e a matéria interagem?) afirmando que a ciência se aplica apenas ao exterior (matéria), e não ao interior (consciência), de modo que não precisamos nos incomodar com a interação de ambos.

Quando o verdadeiro significado da física quântica é compreendido, fica claro que a consciência não pode ser um mero fenômeno cerebral. Além disso, não há necessidade de tratar a mente e os outros objetos internos como epifenômenos do cérebro ou do corpo. Em vez disso, a física quântica e todas as ciências devem se basear na filosofia do idealismo monista: a consciência é a base de toda existência, na qual a matéria, a mente e outros objetos internos existem como possibilidades. Mas tampouco há motivo para destratar a matéria. Esta, em sua capacidade de representar estados mentais sutis, é tão importante quanto o sutil (não material) que reflete. Em outras palavras, o pensamento quântico nos permite tratar a mente e a matéria, as experiências internas e externas, de igual para igual, estendendo importância e eficácia causal às duas.

Deste modo, filosófica e cientificamente (com teoria e evidências), resolvemos o problema metafísico de qual “ismo” está correto e válido – o idealismo monista. Contudo, o pensamento materialista criou uma ferida na psique coletiva da humanidade que, sem atenção ou cura, vem piorando. Nossa tarefa primária consiste em ajudar a curar essa ferida, compartilhando as mensagens filosófica e científica que estão emergindo em toda a humanidade.

Como modernos, sabemos da veracidade da mente e daquilo que ela processa: significado. Este conhecimento levou a uma participação muito mais expansiva nas aventuras da exploração de significados. Quando a modernidade deu lugar à moléstia pós-moderna do materialismo sem significado, nossas instituições e seu legado progressivo de democracia, capitalismo e educação liberal ficaram abalados. Suas bases estão sendo minadas para se criar um novo tipo de hierarquia, estabelecendo novos limites à liberdade, nem um pouco melhores do que aqueles antes lançados pela Igreja e pela dominação feudal. Desta vez, porém, a restrição está na ciência materialista e no cientismo.

O idealismo monista pode levar a um novo tipo de modernismo que chamo transmodernismo, acompanhando o filósofo Willis Harman. O modernismo dualista de Descartes baseou-se no lema “Penso, logo existo”. Em outras palavras, se existe um pensamento, deve existir um pensador. Isto libertou a mente pensante para novas explorações, mas especialmente de invenções que visavam à solução de problemas. Invenções exigem criatividade, mas apenas uma versão limitada dela, que chamo criatividade situacional, idealizada para solucionar um problema dentro de um contexto conhecido de pensamentos. A criatividade situacional é importante, mas em termos práticos significa mais daquilo que já existe: é “pensar dentro da caixa”. O transmodernismo se baseia no lema “Escolho, logo existo”. Ele libera o verdadeiro potencial da mente criativa, não apenas da criatividade situacional, como também daquilo que chamo criatividade fundamental: a capacidade de mudar os próprios contextos, nos quais o pensamento se baseia, e de escolher novos contextos.

Sob o modernismo, não recebemos apenas os benefícios da democracia e do capitalismo, mas também os males do modernismo: o pensamento que situa o homem acima da natureza, a dominação do pensamento sobre o sentimento, que chamo mentalização do sentimento. Sim, criamos indústrias e tecnologias úteis, mas também criamos problemas ambientais que não sabemos resolver.

Precisamos resgatar o espírito modernista e a ênfase sobre a exploração mental, mas sem o lado sombrio de atitudes como homem-sobre-a-natureza ou razão-sobre-sentimento; sem a dependência quase total de hierarquias simples e o isolamento do ego do indivíduo solitário. A nova era do transmodernismo começa com um salto quântico em nossa atitude – do homem sobre a natureza para o homem na natureza, da razão sobre sentimento para a razão integrada ao sentimento, de hierarquias simples para hierarquias entrelaçadas, de separação egóica para ações integradas de ego e consciência quântica/Deus. Apenas assim, estaremos realmente no caminho para o surgimento de uma nova era de vida ética.

Velha e nova ciências: mudança de paradigma

Apresentei o conceito de mudança de paradigma na ciência no Capítulo 1. A antiga ciência se baseia na supremacia da matéria, o monismo material, com seu reducionismo e causação ascendente. O novo paradigma holístico não abre mão do monismo material: tudo é matéria. Mas, no entanto, abre mão da ideia do reducionismo e opta pela filosofia do holismo – o todo é maior do que as partes e não se reduz às partes. Aqui, Deus e a espiritualidade se recuperam no sentido de um Deus imanente – Deus ou uma “consciência Gaia” inseparável à Terra como um todo, com todos os seus organismos. (A teoria ou hipótese Gaia, desenvolvida por James Lovelock, representa tudo o que existe sobre a Terra, coisas vivas ou não, como um complexo sistema de interações que pode ser considerado um único organismo.) Há ainda algo como uma causação descendente, uma autonomia causal de entidades holísticas emergentes em cada nível da organização, que não podem ser reduzidas às partes. Isso é uma causalidade artificial, pois, no final, ela também é determinada por interações materiais, isto é, por uma causação ascendente.

A nova ciência, a ciência dentro da consciência, baseia-se na física quântica e no primado da consciência (idealismo monista) e inclui o antigo paradigma redutivo. Na ciência dentro da consciência, Deus é um agente real, e causalmente eficaz, intervindo por meio da causação descendente. Na ciência dentro da consciência, podemos até tratar corpos sutis sem os problemas usuais do dualismo da interação; podemos falar cientificamente da evolução da natureza divina, a que as religiões aspiram. Contudo, a antiga ciência permanece válida – em seu próprio domínio. No domínio material da experiência consciente, a consciência escolhe o evento da realidade manifestada entre as possibilidades quânticas determinadas pela causação ascendente, a partir do substrato material. E, como os efeitos quânticos são relativamente silenciados na matéria densa, o comportamento dessa matéria é aproximadamente determinista.

Na verdade, até os materialistas reducionistas abrem espaço para Deus. Em um livro chamado Why God won’t go away, Andrew Newberg e Eugene D’Aquili (2001) citaram recentes trabalhos em neurofisiologia para sugerir que Deus e experiências espirituais podem ser explicados simplesmente como fenômenos cerebrais.

De modo similar, os holistas afirmam que Deus e espiritualidade podem ser compreendidos e explorados como fenômenos holísticos emergentes da própria matéria; até o livre-arbítrio e a causação descendente podem ser entendidos como uma aparente autonomia emergente de níveis mais elevados de organização da matéria.

O paradigma explorado e endossado neste livro é muito mais radical do que qualquer uma destas duas abordagens de Deus. Eu postulo que a base da existência é a consciência e não a matéria. Eu postulo que não apenas a matéria, mas também um corpo energético vital mais sutil, um corpo mental ainda mais sutil e um corpo supramental mais sutil ainda, existem como possibilidades quânticas da consciência. Elas se desenvolvem com o tempo, a partir de interações causais em seu domínio respectivo. Também postulo que, por meio da evolução, rumamos para estados manifestados de consciência que são manifestações cada vez maiores da divindade – as qualidades de Deus, os arquétipos supramentais. O preço que pagamos pela inclusão do sutil em nossa ciência é o multiculturalismo da teoria e a objetividade fraca na seleção de dados.

Preciso enfatizar, uma vez mais, que o Deus para o qual apresento dados científicos é o mesmo Deus vislumbrado pelos místicos e fundadores de todas as grandes tradições religiosas mundiais, embora os ensinamentos das grandes religiões tenham sido diluídos nas representações populares.

No final do século XIX, Friedrich Nietzsche proclamou, por meio de um de seus personagens fictícios, que “Deus está morto”. Isso refletia a preocupação dele com a pouca eficácia do cristianismo popular e ingênuo na sustentação da ética e da moralidade, diante da visão materialista de mundo que a ciência estava rapidamente conseguindo espalhar pelo Ocidente. Em outras palavras, Nietzsche percebeu que o Deus cristão, dualista e popular, está morto. Demonstro neste livro, com o emergente paradigma da ciência baseada no primado da consciência e na física quântica, que Deus vive eternamente como agente de causação descendente, em um papel que se mostraria satisfatório tanto para cientistas quanto para religiosos.

Hoje, independentemente da imagem de Deus que mais o satisfaz, espero que você faça uma avaliação justa das evidências e teorias apresentadas aqui. Afinal, Deus tem sido uma preocupação milenar dos seres humanos, uma preocupação que, segundo suspeito, tem afetado você, ao menos um pouco. Peço-lhe apenas que suspenda seus julgamentos e descrença durante a leitura das partes 2, 3 e 4, onde apresento as evidências.

(Amit Goswami - Deus não está morto,evidências científicas da existência divina)

publicado às 00:15

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