

Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
De tudo e de nada, discorrendo com divagações pessoais ou reflexões de autores consagrados. Este deverá ser considerado um ficheiro divagante, sem preconceitos ou falsos pudores, sobre os assuntos mais variados, desmi(s)tificando verdades ou dogmas.
![]() |
![]() |
La crucifixión, Pablo Picasso |
![]() |
Cristo crucificado vivo (Michelangelo) |
![]() |
Tudo o que você pensa e sofre, dentro de um abraço se dissolve |
"O primeiro ato de liberdade do homem é um ato de desobediência, e através dêle o homem transcende sua união original com a Natureza, adquire consciência de si e de seu próximo e de sua condição de estranhos. No processo histórico, o homem se cria. Cresce até à autoconsciência, ao amor, à justiça e quando atinge a finalidade da compreensão plena do mundo, pelo seu poder da razão e do amor, torna-se uno novamente, desfaz o “pecado” original, volta ao Paraíso, mas no nôvo nível da individualização e da independência humana. Embora o homem tenha “pecado” no ato de desobediência, seu pecado se justifica no processo histórico. Não sofre uma corrupção de sua substância, mas seu pecado mesmo é o comêço de um processo dialético que termina com sua autocriação e auto-salvação."
(Erich Fromm – O Dogma de Cristo e outros dogmas)
«O homem nasce livre e por todo o lado está acorrentado. Mesmo quem se julga senhor dos outros; esse ainda é mais escravo do que eles. Como se fez esta transformação? Não sei.»
Jean-Jacques Rousseau fez esta pergunta há duzentos anos, no início do seu Contrato Social. A menos que a resposta para esta questão básica seja encontrada, não é muito útil elaborar novos contratos sociais. Há algo que acontece, desde há muito tempo, no interior da sociedade humana, que torna impotente qualquer tentativa que vise esclarecer este grande enigma, bem conhecido de todos os grandes líderes da humanidade ao longo de milênios: o homem nasce livre, mas vive a sua vida como escravo.
Nenhuma resposta foi encontrada até hoje. Deve haver, no interior da sociedade humana, alguma coisa que actua de modo a impedir que se coloque a questão correcta de maneira a chegar-se à resposta correcta. Toda a filosofia humana é permeada pelo horrível pesadelo de que toda a procura é vã.
Alguma coisa, bem escondida, actua de forma a não permitir que se coloque a questão correcta. Portanto, há algo que actua, contínua e eficazmente, desviando a atenção das vias, cuidadosamente camufladas, que levam até onde a atenção se deveria focalizar. O instrumento usado por esse algo bem camuflado para desviar a atenção do enigma fundamental é a EVASIVA de todo o ser humano em relação à Vida viva. O elemento escondido é a PESTE EMOCIONAL DO HOMEM.
É da formulação adequada do problema que dependerá a focalização apropriada da atenção, e disto dependerá chegar-se à descoberta da resposta correcta à questão de como é possível que o homem, nascido livre, se encontre sempre e por todo o lado reduzido ao estado de escravo.
É evidente que os contratos sociais, quando visam honestamente salvaguardar a vida na sociedade humana, têm uma função crucial. Mas nenhum contrato social resolverá jamais o problema da angústia humana. Na melhor das hipóteses, o contrato social poderá ser um paliativo para manter a vida. Até agora, nunca foi capaz de acabar com a angústia da vida.
Vejamos então os termos deste grande enigma:
Os homens são iguais ao nascer, mas não crescem iguais.
O homem elaborou grandes doutrinas, mas cada uma delas foi o instrumento da sua escravidão.
O homem é o «Filho de Deus», criado à Sua imagem; mas o homem é «pecador», exposto aos ataques do «Demônio». Como pode haver Demônio e Pecado, se Deus é o único criador de todos os seres?
A humanidade nunca conseguiu responder à pergunta de como pode existir o MAL, se um DEUS perfeito criou e governa o mundo e os homens.
A humanidade tem sido incapaz de estabelecer uma vida moral que esteja de acordo com o seu criador.
A humanidade foi devastada por guerras e assassinatos de todo o tipo, desde o início da história escrita. Todos os esforços feitos para suprimir esta peste fracassaram.
A humanidade desenvolveu muitos tipos de religiões. Todas as religiões se revelaram, sem excepção, instrumentos de opressão e miséria.
A humanidade imaginou muitos sistemas de pensamento para enfrentar a Natureza. Mas a Natureza, sendo de facto funcional e não mecânica, sempre se lhe escapou por entre os dedos.
A humanidade correu sempre atrás de cada ínfima parcela de esperança e de conhecimento. Mas depois de três milênios de pesquisas, de tormentos, de sofrimentos, de assassinatos punindo heresias, de perseguições por faltas aparentes, ela não conseguiu mais do que algum conforto para uma minoria, sob a forma de automóveis, aviões, frigoríficos e aparelhos de rádio.
Depois de ter meditado durante milênios sobre os mistérios da natureza humana, a humanidade encontra-se exactamente no ponto de partida: tem de admitir a sua ignorância total. A mãe ainda fica sem saber o que fazer diante de um pesadelo que apavora o seu filho. O médico ainda não sabe o que fazer diante de algo tão simples como um defluxo nasal.
Geralmente, admite-se que a ciência não revela nenhuma verdade permanente. O universo mecânico de Newton não se coaduna com o verdadeiro universo, que não é mecânico, mas sim funcional. A representação que Copérnico faz de um mundo constituído por círculos «perfeitos» é errada. As órbitas planetárias e elípticas de Kepler não existem. A matemática não conseguiu ser aquilo que, com tanta certeza, prometia ser. O espaço não é vazio; ninguém jamais viu os átomos ou os germes aéreos das amibas. Não é verdade que a química possa interpretar os factos da matéria viva, e as hormonas também não cumpriram as suas promessas. O inconsciente reprimido, supostamente a última palavra em psicologia, revelou-se uma criação artificial de um breve período da civilização, de tipo mecânico-místico. O espírito e o corpo, funcionando num único e mesmo organismo, estão ainda dissociados no pensamento humano. Uma física perfeitamente exacta não é tão exacta assim, do mesmo modo que os homens santos não são assim tão santos. De nada adianta a descoberta de novas estrelas, cometas ou galáxias. Novas fórmulas matemáticas também de nada adiantarão. É inútil filosofar sobre o sentido da Vida, se ignoramos o que é Vida. E, como «Deus» é Vida, o que todos os homens sabem, de nada serve procurar ou servir a Deus, já que ignoramos a quem servimos.
Tudo parece então convergir para um único facto: Há algo basicamente e essencialmente errado em todo o processo pelo qual o homem aprende a conhecer-se a si próprio. A visão mecánico-racionalista do mundo faliu completamente.
Locke, Hume, Kant, Hegel, Marx, Spencer, Spengler, Freud e todos os outros foram, sem dúvida, grandes pensadores, mas de certa forma não preencheram o vazio, e a imensa maioria dos homens não foi tocada pela pesquisa filosófica. Enunciar a verdade com modéstia não altera o problema. Freqüentemente, isso nada mais é do que um subterfúgio para nos esquivarmos à questão essencial. Aristóteles, cujas idéias foram lei durante séculos, estava errado; a sabedoria de um Platão, ou a de um Sócrates, não servem para muita coisa. Epicuro também não teve sucesso, nem nenhum santo.
É grande a tentação de aderir ao ponto de vista católico, após os desastrosos resultados da última grande tentativa da humanidade, feita na Rússia, de tomar nas mãos o seu próprio destino. Os efeitos catastróficos de todas as iniciativas desse tipo explodiram aos olhos de todos. Para onde quer que olhemos, vemos o homem a correr em círculos, como se, preso numa armadilha, tentasse em vão escapar da sua prisão e do seu desespero.
É possível escapar da armadilha. Mas para alguém sair de uma prisão, precisa primeiro de saber que está numa prisão. A armadilha é a estrutura emocional do homem, a sua estrutura de carácter. Pouco adianta elaborar sistemas de pensamento sobre a natureza da armadilha, quando a única coisa que importa é encontrar a saída. Tudo o resto é inútil: é inútil cantar hinos sobre o sofrimento na prisão ({No original, in the trap, isto é, na armadilha. Traduzimos trap por prisão sempre que isso se tomou necessário para a clareza da frase, pois o termo prisão, em português, não supõe necessariamente a idéia de instituição, condenação, local físico, que Reich certamente quis evitar}) como fazem os escravos negros; é inútil compor poemas sobre a beleza da liberdade fora da prisão, tal como sonhamos com ela de dentro da prisão; é inútil prometer uma vida fora da prisão, após a morte, como faz o Catolicismo às suas congregações; é inútil confessar, como os filósofos da resignação, um semper ignorabimus; é inútil elaborar um sistema filosófico em torno do desespero de viver na prisão, como fez Schopenhauer; é inútil sonhar com um super-homem totalmente diferente do homem cativo, como fez Nietzsche, que, ao acabar preso num asilo de loucos, finalmente escreveu − muito tarde − a verdade sobre si mesmo...
A primeira coisa a fazer é procurar a saída da prisão.
A natureza da armadilha só apresenta interesse na medida em que ajude a responder a esta única questão crucial: ONDE FICA A SAÍDA?
Pode-se enfeitar a prisão a fim de a tomar mais habitável. Isto fazem-no os Miguel Ângelos, os Shakespeares, os Goethes. Podem-se inventar artifícios para prolongar a vida na prisão. Isto fazem-no os grandes cientistas e médicos, os Meyers, os Pasteurs e os Flemings. Pode aparecer alguém muito hábil em tornar a soldar os ossos quebrados dos que caem na armadilha.
Mas o essencial ainda é: encontrar a saída da prisão.
ONDE FICA A SAÍDA QUE CONDUZ AO INFINITO ESPAÇO ABERTO?
A saída continua escondida. Este é o maior enigma. Mas vejamos a situação mais ridícula e, ao mesmo tempo, mais trágica:
A SAÍDA É CLARAMENTE VISÍVEL PARA TODOS OS QUE ESTÃO PRESOS NA ARMADILHA ({No original, trapped in the hole}). MAS NINGUÉM PARECE VÊ-LA. TODOS SABEM ONDE FICA A SAÍDA. MAS NINGUÉM SE MOVE EM DIRECÇÃO A ELA; PIOR AINDA, QUEM QUER QUE FAÇA QUALQUER MOVIMENTO EM DIRECÇÃO À SAÍDA, QUEM QUER QUE A INDIQUE, É DECLARADO LOUCO, CRIMINOSO, PECADOR DIGNO DAS CHAMAS DO INFERNO.
No fim de contas o problema não está na armadilha, nem mesmo em descobrir a saída. O problema está NOS PRISIONEIROS.
Visto de fora da prisão, tudo parece incompreensível para uma mente simples. Há mesmo qualquer coisa de insano. Porque é que os prisioneiros não vêem a saída tão nitidamente visível, porque é que não se dirigem para ela? Logo que chegam perto, começam a gritar e a fugir. Se algum deles tenta sair, os outros matam-no. Muito poucos conseguem escapulir-se durante a noite, quando todos dormem.
Esta era a situação na qual se encontrava Jesus Cristo. Este foi também o comportamento dos prisioneiros que intentavam matá-lo.
A função da Vida viva está à nossa volta, está em nós, nos nossos sentidos, mesmo à frente do nariz, nitidamente visível em cada animal, em cada árvore, em cada flor. Sentimo-la no nosso corpo e no nosso sangue. Mas para os prisioneiros ela continua a ser o maior, o mais impenetrável dos enigmas.
No entanto, a Vida não era um enigma. O enigma está em como isto pôde permanecer insolúvel durante tanto tempo. O grande problema da biogénese e da bioenergia é facilmente acessível pela observação directa. O grande problema da Vida e da origem da Vida é um problema psiquiátrico; é um problema da estrutura de carácter do Homem, que durante tanto tempo conseguiu evitar a sua solução. O flagelo do cancro não é o grande problema que parece ser. O grande problema é a estrutura de caracter dos cancerologistas, que o ofuscaram tão eficazmente.
O verdadeiro problema do homem é A EVASÃO BÁSICA DO ESSENCIAL. Esta evasão e fuga fazem parte da estrutura profunda do homem. Fugir da saída da prisão é o resultado dessa estrutura do homem. O homem teme e detesta a saída da prisão. Ele resguarda-se acirradamente contra qualquer tentativa para encontrar essa saída. É este o grande enigma.
Tudo isso parece certamente insano aos seres vivos encerrados na prisão. Um homem que, de dentro da prisão, falasse dessas coisas loucas, estaria destinado à morte; estaria condenado à morte se fosse membro de uma academia das ciências que consagrasse muito tempo e dinheiro ao estudo detalhado dos muros da prisão. Ou se fosse membro de uma dessas congregações religiosas que oram, resignadas ou cheias de esperança, para sair da prisão. Ou se fosse um desses pais de família preocupados em não deixar os seus morrerem de fome na prisão. Ou se fosse empregado de uma dessas indústrias que se esforçam para tomar a vida na prisão o mais confortável possível. De uma forma ou de outra, ele estaria condenado à morte: pelo ostracismo, pelo aprisionamento por ter transgredido alguma lei ou, em certos casos, pela cadeira eléctrica. O criminoso é uma pessoa que achou a saída e por ali se precipita, violentando os seus companheiros de prisão. Os loucos que apodrecem nos asilos e que se contorcem, como as feiticeiras da Idade Média, sob o efeito de choques eléctricos, também são prisioneiros que viram a saída da prisão e não conseguiram superar o pavor comum de se aproximar dela.
Fora da prisão, muito perto, descortina-se a Vida viva, em tudo o que se alcança com a visão, a audição, o olfacto. Para os prisioneiros é uma agonia eterna, um suplício de Tántalo. Vêem-na, sentem-na, tocam-lhe, desejam-na sem cessar, mas sair tomou-se uma impossibilidade. Só é possível consegui-lo em sonhos, em poemas, na música, na pintura, mas já não está ao seu alcance. As chaves para sair da prisão estão cimentadas na armadura do nosso carácter e na rigidez mecânica do corpo e da alma.
Essa é a grande tragédia. E Cristo conhecia-a.
Se vivermos durante muito tempo no fundo de uma cave escura, acabaremos por detestar a luz do Sol. É mesmo possível que os nossos olhos acabem por perder a capacidade de tolerar a luz. Eis porque se acaba por odiar a luz do Sol.
Para habituar os seus descendentes à vida na prisão, os detidos desenvolvem técnicas elaboradas, destinadas a manter a vida num nível limitado e baixo. Na prisão não há espaço suficiente para grandes lances de pensamento e de acção. Cada movimento é restringido por todos os lados. Isso teve como efeito, no decorrer do tempo, a atrofia dos próprios órgãos da Vida viva; as criaturas encerradas no fundo da prisão perderam o sentido da plenitude da Vida.
Restou uma nostalgia intensa de uma vida de felicidade e a lembrança de uma Vida feliz, de há muito tempo antes do aprisionamento. Mas a nostalgia e a lembrança não podem ser vividas na vida real. A conseqüência dessa opressão é então o ódio à Vida.
Sob o título de «o ASSASSINATO DE CRISTO», reuniremos todas as manifestações desse ódio ao Vivo. Com efeito; Cristo foi vítima do ódio ao Vivo por parte dos seus contemporâneos. O seu destino trágico oferece-se como lição sobre o que as gerações futuras enfrentarão quando quiserem restabelecer as leis da Vida. A sua tarefa principal consistirá em resistir à maldade dos homens («Pecado»). Explorando o futuro e as possibilidades − boas ou más − que ele nos oferece, veremos a história de Cristo em toda a sua trágica significação.
O segredo do porquê da morte de Jesus Cristo permanece indecifrado. A tragédia que se desenrolou há dois mil anos, e cujo impacte sobre a humanidade foi imenso, aparece-nos como um requisito lógico intrínseco ao homem couraçado. A verdadeira questão do assassinato de Cristo permaneceu intocada ao longo de dois mil anos, apesar dos inúmeros livros, estudos, pesquisas e investigações sobre esse assassinato. O enigma do assassinato de Cristo permaneceu num domínio inacessível ao olhar e ao pensamento de muitos homens e mulheres estudiosos; e esse próprio facto faz parte do segredo. O assassinato de Cristo é um enigma que atormentou a existência humana durante pelo menos todo o período da história escrita. É o problema da estrutura do carácter humano couraçado, e não somente de Cristo. Cristo foi vítima dessa estrutura de carácter humano, porque mostrou qualidades e maneiras de comportamento que têm, sobre um carácter couraçado, o mesmo efeito que um objecto vermelho sobre o sistema emocional de um touro selvagem. Nesse sentido, podemos dizer que Cristo representa o princípio da Vida em si. A forma foi determinada pela época da cultura judaica sob domínio romano. Pouco importa que o assassinato de Cristo tenha ocorrido no ano 3000 a. C. ou no ano 2000 d.C. Cristo teria sido certamente assassinado em qualquer época e em qualquer cultura em que as condições do conflito entre o princípio da vida (OR) e a peste emocional (EP) fossem, no plano social, as mesmas que eram na Palestina no tempo de Cristo.
Uma das características básicas do assassinato do Vivo pelo animal humano couraçado é a de ser camuflado de várias maneiras e sob várias formas. A superstrutura da existência social do homem, tal como o sistema económico, as acções guerreiras, os movimentos políticos irracionais e as organizações sociais ao serviço da supressão da Vida, abafa a tragédia básica que assedia o animal humano numa torrente de racionalizações, de disfarces e de evasões da questão essencial; além disso, a superstrutura defende-se com uma racionalidade perfeitamente lógica e coerente, mas que só é válida dentro de um sistema que opõe a lei ao crime, o Estado ao povo, a moral ao sexo, a civilização à natureza, a polícia ao criminoso, e assim por diante, percorrendo todo o rol de misérias humanas. Não há nenhuma possibilidade, seja ela qual for, de conseguir transpor esse lodaçal, a não ser que a pessoa se coloque fora do holocausto, e não se deixe atingir pelo escândalo. Apressamo-nos a assegurar ao leitor que não consideramos esse escândalo e essa agitação vazia como sendo meramente irracionais, como simples actividade desprovida de finalidade e significação. Uma característica crucial da tragédia é o facto de que esse nonsense é válido, significativo e necessário se o considerarmos no domínio que lhe é próprio e sob determinadas condições do comportamento humano. Mas aqui a irracionalidade da peste apoia-se era rochedo sólido. Mesmo o silêncio que, há milênios, envolvia a função do orgasmo, a função da vida, o assassinato de Cristo ê outras questões cruciais da existência humana, parece perfeitamente sensato aos olhos do prudente estudioso do comportamento humano.
A raça humana enfrentaria o pior, o mais devastador dos desastres se, de repente, chegasse, de uma só vez, a ter pleno conhecimento da função da Vida, da função do orgasmo e dos segredos do assassinato de Cristo. Há boas e justas razões para que a raça humana se tenha recusado a conhecer a profundidade e a verdadeira dinâmica da sua miséria crónica. Uma tal erupção repentina de conhecimentos paralisaria e destruiria tudo o que, de certa forma, mantém a sociedade em funcionamento, a despeito das guerras, da fome, dos massacres emocionais, da miséria das crianças, etc.
Seria quase loucura iniciar grandes projectos tais como «Crianças do Futuro» ou «Cidadania do Mundo», sem ter compreendido como foi possível que toda essa desgraça se mantivesse inexoravelmente, durante milênios, sem ser reconhecida e combatida; que nenhuma das muitas tentativas brilhantes de esclarecimento e libertação tenha sido bem-sucedida; que cada passo para a realização do grande sonho tenha sido acompanhado por mais abjecção e miséria; que nenhuma religião, apesar das suas boas intenções, tenha conseguido realizar os seus objectivos; que cada grande feito se tenha transformado numa ameaça para a humanidade, como, por exemplo, o socialismo e a fraternidade, que se tornaram estatismo e opressão da pior espécie. Enfim, seria criminoso pensar em projectos tão importantes, sem antes olhar em volta, tentando compreender o que matou a humanidade durante séculos. Isso só acrescentaria mais desgraça àquela que já existe. No ponto em que estão as coisas, é bem mais importante esclarecer o assassinato de Cristo do que educar as mais lindas crianças. Toda a esperança de acabar com a decadência da educação actual estaria perdida para sempre, irremediavelmente, se esta nova e promissora tentativa para chegar a um novo tipo de educação se malograsse e se transformasse no seu oposto, como sempre foi o caso de todas as iniciativas tomadas pela alma humana. Não nos enganemos: a reestruturação do carácter humano através de uma transformação radical, sob todos os aspectos, da nossa maneira de educar as crianças tem a ver com a própria Vida. As emoções mais profundas a que o animal humano pode chegar ultrapassam de longe todas as funções da existência, pela sua envergadura, profundidade e fatalidade. Assim, os males que o fracasso ou o desvio dessa tentativa decisiva trariam, seriam bem mais profundos e maiores. Não há nada mais destrutivo do que a Vida anulada e contrariada por esperanças frustradas. Jamais nos esqueçamos disto.
Não nos é possível lidar com este problema de uma maneira perfeita, académica, detalhada. Tudo o que podemos fazer é sondar o território para ver onde estão escondidos os tesouros que, futuramente, nos poderão servir, onde há animais selvagens percorrendo montes e vales, onde estão escondidas as armadilhas para matar o invasor, e como tudo isto funciona. Não nos queremos atolar na nossa própria impaciência, na nossa rotina diária, ou mesmo em certos interesses que nada têm a ver com o problema da educação. Numa reunião de educadores orgonómicos que houve há alguns anos, foi dito que a educação continuará a ser Um problema por mais alguns séculos. É mais do que provável que as próximas gerações das Crianças do Futuro não sejam capazes de resistir aos múltiplos impactes da peste emocional. Elas terão certamente de se submeter; não sabemos exactamente como. Mas há esperança de que, pouco a pouco, uma consciência geral da Vida se desenvolva nesse novo tipo de crianças, difundindo-se por toda a comunidade humana. O educador que considera a educação como um negócio rendoso nunca se interessaria pela educação se acreditasse nisso. Devemos ter cuidado com essa espécie de educadores.
O educador do futuro fará sistematicamente (e não mecanicamente) o que todo o autêntico e bom educador já faz hoje: sentirá as qualidades da Vida viva em cada criança, reconhecerá as qualidades específicas e fará tudo para que elas possam desenvolver-se plenamente. Enquanto se conservar, com a mesmo tenacidade, a tendência social actual, isto é, enquanto esta "estiver dirigida contra essas qualidades inatas da expressão emocional viva, o educador autêntico deverá assumir uma dupla tarefa: a de conhecer as expressões emocionais naturais que variam de uma criança para outra, e a de aprender a lidar com o meio social, restrito e amplo, na medida em que este se opõe a essas qualidades vivas. Só num futuro distante, quando uma educação consciente tiver eliminado a forte contradição entre civilização e natureza, quando a vida bioenergética e a vida social do homem não mais se opuserem uma à outra, mas, ao contrário, se apoiarem e se complementarem, deixará esta tarefa de ser perigosa. Devemos estar preparados, pois esse processo será lento, penoso e exigirá muito sacrifício. Muitas serão as vitimas da peste emocional.
A nossa tarefa seguinte será a de esboçar as características básicas do conflito entre as expressões emocionais inatas e intensamente variáveis da criança e as características próprias da estrutura mecanizada e couraçada do homem, a qual irá odiar e combater de maneira geral e específica aquelas qualidades.
A despeito das inumeráveis variações do comportamento humano, a análise do carácter conseguiu, até aqui, esboçar os padrões gerais e as leis das seqüências nas reacções humanas. Ela fê-lo amplamente no que diz respeito às neuroses e psicoses. Não tentaremos fazer o mesmo com respeito à dinâmica típica da peste emocional. Descrições específicas das reacções individuais à peste deverão ser realizadas de modo a fornecer aos educadores e aos médicos o necessário conhecimento detalhado.
No mundo cristão e nas culturas directa ou indirectamente influenciadas pelo Cristianismo, existe um pronunciado antagonismo entre «o homem pecador» e o seu «Deus». O homem foi feito à «imagem de Deus»! Ele é encorajado a «tornar-se semelhante a Deus». Mas ele é «pecador». Como é possível que o «pecado» tenha surgido neste mundo, se este foi criado por «Deus»? No seu comportamento real, o homem é, ao mesmo tempo, semelhante a Deus e pecador. No princípio, o homem «assemelhava-se a Deus»; depois, o «pecado» irrompeu na sua vida. O conflito entre o ideal de Deus e a realidade do pecado é a conseqüência de uma catástrofe que transformou o divino em demoníaco. Isto é verdade, tanto para a história da sociedade como para o desenvolvimento de cada criança, desde que uma civilização mecânico-mística começou a sufocar os atributos «divinos» do homem. O homem tem a sua origem no paraíso, e continua a desejar ardentemente o paraíso. O homem, de certa forma, emergiu do universo e anseia por retornar a ele. Essas são realidades incontestáveis para quem aprende a interpretar a linguagem das expressões emocionais do homem. O homem é basicamente bom, mas é também um bruto. A transformação da bondade em «brutalidade» opera-se em cada criança. Deus está, então, DENTRO do homem, e não deve ser procurado só fora. O Reino dos Céus é o Reino da graça e da bondade interiores, e não o místico «além» povoado de anjos e demônios em que o bruto que há no animal humano transformou o seu paraíso perdido.
O cruel perseguidor e assassino de Cristo, Saulo de Tarso, distinguira claramente, mas em vão, o «CORPO», dádiva divina e boa, e a «CARNE», possuída pelo demônio e má, a ser queimada mil anos mais tarde, na fogueira, quando ele se tomou Paulo, o edificador da Igreja. A distinção estabelecida pelo Cristianismo primitivo entre o «corpo» e a «carne» anunciou a actual distinção orgonómica entre os impulsos «primários» inatos, dados pela natureza («Deus»), e os impulsos «secundários», perversos e maus («Demônio», «Pecado»). Assim, a humanidade sempre teve consciência, de algum modo, da sua desafortunada condição biológica, dos seus atributos naturais e da sua degeneração biológica. Na ideologia cristã, a oposição marcada entre «DEUS» (O corpo espiritualizado) e o «DEMÔNIO» (O corpo degenerado em carne) é van facto trágico perfeitamente conhecido e formulado. Para o homem actual, o abraço genital, «dádiva de Deus», deu lugar à noção pornográfica de foda, para designar a relação sexual entre o homem e a mulher.
Na serpente, Satã apareceu primeiro como um anjo de luz. A serpente é então o símbolo da Vida, o falus masculino
O pecado original − um mistério
A vida é plástica; ela adapta-se − com ou sem protestos, com ou sem deformações, com ou sem revoltas − a todas as condições da existência. Essa plasticidade da Vida viva, que é um dos seus maiores trunfos, será também um dos seus grilhões, quando a Peste Emocional a utilizar para chegar aos seus fins. A mesma Vida surgirá de modo diferente ao manifestar-se no fundo dos oceanos ou no cume de uma alta montanha. É diferente na caverna sombria, e diferente ainda num vaso sanguíneo. Ela não era, no Jardim do Éden, a mesma que é na armadilha que apanhou a humanidade. No Jardim do Éden, a Vida não conhece armadilhas; ela vive simplesmente o paraíso, inocentemente, alegremente, sem noção de outro tipo de vida. Recusar-se-ia a ouvir o relato da vida na prisão; e se alguma vez tivesse ouvido, tê-lo-ia compreendido com o «cérebro» e não com o coração. A Vida no paraíso é perfeitamente adaptada às condições do paraíso.
Dentro da prisão, a Vida vive a vida das almas prisioneiras. Adapta-se rápida e completamente à Vida na prisão. Essa adaptação vai tão longe que, uma vez encerrada na prisão, só lhe fica na memória uma ligeira lembrança da vida no paraíso. A agitação, a pressa, o nervosismo, a lembrança de um sonho distante − mas de certa maneira presente − serão considerados como naturais. A tranqüilidade da alma dos cativos não será perturbada pela idéia de que esses sentimentos possam ser sinais de uma vaga lembrança da Vida passada outrora no paraíso. A adaptação é completa. Ela atinge um grau que vai além dos limites da razão.
A Vida na prisão cedo se tornará auto-absorvente, como se supõe que aconteça na prisão. Assistiremos à formação de certos tipos de personagens peculiares à Vida na prisão, personagens que não teriam sentido se a Vida circulasse livremente pelo mundo. Esses tipos de caracteres moldados pela Vida contida na prisão diferirão grandemente entre si. Opor-se-ão e combaterão entre si. Cada um proclamará a seu modo a verdade absoluta. Terão em comum apenas UM traço: unir-se-ão para matar quem ousar colocar a questão fundamental: «COMO É QUE, EM NOME DE UM DEUS MISERICORDIOSO, PUDEMOS CHEGAR A ESTA SITUAÇÃO TERRÍVEL, A ESTE PESADELO DE PRISÃO???»
PORQUE É QUE O HOMEM PERDEU O PARAÍSO? O QUE PERDEU ELE, NA VERDADE, QUANDO FOI VÍTIMA DO PECADO?
O homem aprisionado produziu, ao longo de milênios, um grande livro, a BÍBLIA. É a história das suas lutas e angústias, das glórias e esperanças, dos seus anseios, sofrimentos e pecados no cativeiro. Esses temas foram pensados e escritos em muitas línguas, por muitos e diferentes povos. Alguns dos seus aspectos fundamentais encontram-se em fontes muito distantes umas das outras, na memória escrita ou não escrita do homem. Todos os relatos de um passado distante contam que as coisas foram bem diferentes, que noutros tempos o homem cedeu, de certa forma, ao demônio, ao pecado e à maldade.
As bíblias do mundo contam a história da luta do homem contra o pecado do homem.
A Bíblia fala muito da vida na prisão, mas pouco da maneira pela qual o homem caiu na armadilha. É evidente que a porta de saída da prisão é exactamente a mesma por onde o homem entrou, quando foi expulso do paraíso. Porque é que ninguém diz nada sobre isso, excepto em alguns parágrafos que representam um milionésimo da Bíblia, e numa linguagem velada, utilizada para esconder a significação das palavras?
A queda de Adão e Eva deveu-se, sem dúvida, a alguma transgressão das Leis de Deus na esfera genital:
Ora, Adão e sua mulher estavam nus e não se envergonhavam.
(Génesis, 2:25)
Este texto mostra que o homem e a mulher não tinham consciência nem vergonha da sua nudez, e que esta era a vontade de Deus e a maneira de Viver. E que aconteceu? A Bíblia explica-nos:
Mas a serpente era o mais astuto de todos os animais da terra, que o Senhor Deus tinha feito. E ela disse à mulher: Porque vos mandou Deus que não comêsseis do fruto de todas as árvores do paraíso? Respondeu-lhe a mulher: Nós comemos do fruto das árvores que há no paraíso. Mas do fruto da árvore que está no meio do paraíso. Deus mandou que não comêssemos, nem o tocássemos, sob pena de morrermos. Mas a serpente disse à mulher: Bem podeis estar seguros que não haveis de morrer. Mas Deus sabe que, em qualquer dia que comerdes desse fruto, se abrirão vossos olhos, e vós sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal.
A mulher, pois, vendo que o fruto daquela árvore era bom para comer, e formoso aos olhos e de aspecto agradável, tomou dele, e comeu; e deu a seu marido, que comeu do mesmo fruto. E abriram-se-lhes os olhos; e, vendo que estavam nus, coseram folhas de figueira, e fizeram delas cinturas.
Como tivessem ouvido a voz do Senhor Deus, que andava pelo paraíso ao cair da tarde, Adão e Eva esconderam-se entre as árvores. E o Senhor Deus chamou por Adão, e disse-lhe: Onde estás? Respondeu-lhe Adão: Como ouvi a tua voz no paraíso, tive medo, pois estava nu, e escondi-me. Disse-lhe Deus: Como soubeste que estavas nu, senão porque comeste do fruto da árvore, de que eu tinha ordenado que não comesses? Respondeu Adão: A mulher, que tu me deste como companheira, deu-me desse fruto, e comi. E o Senhor Deus disse para a mulher: Porque fizeste isto? Respondeu ela: A serpente enganou-me e comi.
E o Senhor Deus disse à serpente: Pois que assim o fizeste, serás maldita entre todos os animais e bestas da terra; andarás de rastos sobre o teu ventre e comerás terra todos os dias da tua vida. Porei inimizades entre ti e a mulher; entre a tua posteridade e a dela. Ela te pisará a cabeça e tu procurarás mordê-la no calcanhar.
Disse também à mulher: Multiplicarei os trabalhos do teu parto. Tu parirás os teus filhos em dor, e estarás debaixo do poder do teu marido, e ele te dominará. A Adão disse: Pois que tu deste ouvidos à voz da tua mulher, e comeste do fruto da árvore, de que eu te tinha ordenado que não comesses, a terra será maldita por causa da tua obra; tirarás dela o teu sustento à força de trabalhos penosos. Ela te produzirá espinhos e abrolhos e tu comerás as ervas da terra. Comerás o pão com o suor do teu rosto, até que tornes à terra, de que foste formado; porque tu és pó, e em pó te hás-de tomar. E Adão pôs à sua mulher o nome de Eva, porque ela havia de ser mãe de todos os viventes.
Fez também o Senhor Deus a Adão, e a sua mulher, túnicas de peles, e os vestiu. E disse: Eis aqui Adão como um de nós, conhecendo o bem e o mal; agora, para que não suceda que ele lance a mão, e tome do fruto da árvore da vida, e coma dele, e viva eternamente, o Senhor Deus expulsou-o do paraíso das delícias para que cultivasse a terra, de que tinha sido formado. E depois de o ter expulso do paraíso, pôs diante deste lugar de delicias um. querubim com uma espada cintilante, para guardar o caminho da árvore da vida.
(Génesis, 3:1-24)
Havia então no paraíso uma serpente «que era o mais astuto de todos os animais que Deus havia criado». O comentador cristão não vê na serpente, na sua forma paradisíaca, um réptil que desliza pelo chão. No começo, a serpente era «a mais subtil e a mais bela de todas as criaturas». E apesar da maldição, conservou traços dessa beleza. Cada movimento da serpente é gracioso e muitas espécies destacam-se pela beleza das cores. Na serpente, Satã apareceu primeiro como um anjo de luz. A serpente é então o símbolo da Vida, o falus masculino.
E de repente, vinda não se sabe de onde, a catástrofe aparece. Ninguém sabe, nem soube ou jamais saberá como é que o acontecimento se deu: a mais bela serpente, o «Anjo da Luz», a «mais subtil das criaturas», «inferior ao homem», é maldita e torna-se «na demonstração feita por Deus na natureza dos efeitos do pecado»: transforma-se de «a mais bela e mais subtil das criaturas num réptil repugnante».
E, como se um conselho se tivesse reunido especialmente para esconder o acontecimento mais dramático, mais diabólico, mais desastroso de toda a história da raça humana, para o subtrair para sempre à compreensão da inteligência ou do coração − a catástrofe toma-se misteriosa e intocável; ela é parte integrante do grande mistério do cativeiro do homem; ela detém sem dúvida a solução deste enigma: porque é que o homem se recusa a deixar a sua prisão saindo simplesmente pela porta por onde entrou? O exegeta da Bíblia observa a este respeito: «O mistério mais profundo da redenção está inserido aqui», quer dizer, na transformação da serpente da «mais bela e mais subtil das criaturas num réptil repugnante».
E porquê tudo isto? Escutemos.
Havia no Jardim do Éden uma árvore peculiar, e Deus disse ao homem: «Não comerás de todas as árvores do jardim.»
A mulher respondeu à serpente: Nós comemos do fruto das árvores que M no paraíso. Mas do fruto da árvore que está no meio do paraíso, Deus mandou que não comêssemos, nem o tocássemos, sob pena de morrermos.
(Génesis, 3:2,3)
Conseguiu alguém, ao longo destes seis milênios, elucidar o mistério desta árvore? Não. E porquê? Esse mistério é parte do mistério do cativeiro do homem. A solução do mistério da árvore proibida forneceria, sem dúvida, uma indicação da entrada da prisão, que, usada em sentido inverso, poderia também servir de saída. Ora, nunca ninguém tentou esclarecer o enigma da árvore proibida; durante milênios, todos os prisioneiros se ocuparam em escolasticizar, talmudizar, exorcizar, servindo-se de milhões de livras e de miríades de palavras com o único fim de impedir a solução do enigma da árvore proibida.
A serpente, ainda bela e subtil, conhecia melhor as coisas: «Mas a serpente disse à mulher: Bem podeis estar seguros de que não haveis de morrer. Mas Deus sabe que, no dia em que comerdes desse fruto, abrir-se-ão os vossos olhos, e sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal.»
Foi então esta bela serpente que provocou a queda do homem; mas que significa tudo isto à luz do bom senso?
Se o homem, vivendo feliz no paraíso segundo a vontade de Deus, come de uma certa árvore, ele será como Deus, e os seus olhos abrir-se-ão e «ele conhecerá o bem e o mal». Para começar, como é possível que uma árvore tão diabólica possa existir no jardim de Deus?
E por que razão, ao comer o fruto do conhecimento que o faz um ser igual a Deus, deve alguém perder o paraíso? A Bíblia, tanto quanto eu sei, não o diz. E pode-se duvidar que alguém já tenha colocado a questão. O relato parece desprovido de sentido: se a árvore em questão é a árvore do conhecimento, permitindo ver a diferença entre o bem e o mal, que mal há em comer os seus frutos? Se alguém comer os seus frutos, estará mais e não menos apto a seguir os caminhos de Deus. Ainda não se vê o sentido disto tudo.
Ou é proibido conhecer Deus e assemelhar-se a Deus, o que quer dizer, viver segundo a sua vontade, mesmo no paraíso?
Ou será que tudo isto é produto da imaginação do homem cativo, lembrando-se vagamente de uma vida passada, fora da prisão? Isto não tem sentido. O homem, através dos séculos, nunca deixou de ser atormentado pelo desejo de conhecer Deus, de trilhar os caminhos de Deus, de viver o amor e a vida de Deus; e quando ele começa a fazê-lo seriamente comendo da árvore do conhecimento, é punido, expulso do paraíso e condenado ao sofrimento eterno. Tudo isto não tem sentido e lamentamos que nenhum representante de Deus na Terra tenha levantado a questão ou ousado pensar nessa direcção.
A mulher, pois, vendo que o fruto daquela árvore era bom para comer, e formoso aos olhos e de aspecto agradável, tomou dele, e comeu; e deu a seu marido, que comeu do mesmo fruto. E abrira-se-lhes os olhos; e, vendo que estavam nus, coseram folhas de figueira, e fizeram delas cinturas.
(Génesis, 3:6,7)
Quando o homem se viu assim preso pela primeira vez, a confusão tomou conta do seu espírito. Não compreendeu porque estava cativo. Teve a impressão de ter feito algo errado, mas não sabia que erro havia cometido. Não tinha vergonha da sua nudez e de repente teve vergonha dos seus órgãos genitais. Havia comido da árvore do «conhecimento» proibido, o que quer dizer, em linguagem bíblica, que ele havia «conhecido» Eva, que a tinha abraçado genitalmente. Eis porque Deus o havia expulso do Jardim do éden. A mais bela serpente de Deus, que lhe pertencia em exclusivo, tinha-os seduzido; o símbolo da Vida vibrante e viva e do órgão sexual masculino havia-os seduzido.
Um grande abismo de pensamento separa esta vida da vida cativa. Para se adaptar à vida na prisão, a Vida foi obrigada a desenvolver novas formas e novos meios de existência; formas e meios desnecessários no Jardim do Éden, mas indispensáveis na prisão.
A massa humana, silenciosa, dolorida, perdida nos seus sonhos e nos seus trabalhos penosos, afastada da Vida de Deus, oferecia um terreno propício aos padres e aos profetas que lutam contra os padres; aos reis e aos rebeldes que lutam contra os reis; aos curandeiros da miséria humana dentro da prisão, a toda a corte de charlatães e de «sumidades» médicas, de taumaturgos e de ocultistas. Com os imperadores, vieram os vendedores ambulantes da liberdade; com os organizadores da humanidade cativa nasceram os prostitutos da política, os Barrabases, a canalha dissimulada de oportunistas; Pecado e Crime contra a lei, e os juizes do Pecado e do Crime e seus carrascos; a supressão das liberdades incompatíveis com a vida na prisão e as Associações para as Liberdades Civis na prisão. Além disso, a partir desse pântano formaram-se grandes corporações políticas chamadas «partidos», alguns dos quais defendem o que chamaram statu quo na prisão, os chamados «conservadores» (que se esforçaram por manter as leis e os regulamentos que tornavam possível a vida na prisão) e, opondo-se-lhes, os chamados «progressistas», que combateram, sofreram e morreram nas galeras por terem preconizado mais liberdade na prisão. Aqui e ali, os progressistas conseguiram destituir os conservadores e começaram a estabelecer «Liberdade da Prisão» ou «PÃO E LIBERDADE na Prisão». Mas como ninguém podia «dar» ao imenso rebanho humano o pão e a liberdade, pois era preciso trabalhar duro para os obter, os progressistas rapidamente se transformaram em conservadores para manter a ordem e a legalidade, como os conservadores haviam feito antes deles. Mais tarde, um novo partido propôs-se permitir que as massas humanas sofredoras dirigissem as suas próprias Vidas, em lugar de obedecer aos reis, aos padres ou aos duques. Esse novo partido fez grandes esforços para agitar as massas e encorajá-las a agir, mas, exceptuando alguns assassinatos e a destruição de algumas mansões de ricos, as mudanças foram mínimas. As massas humanas repetiam o que lhes tinha sido ensinado durante milênios, e tudo ficou como antes; a miséria agravou-se quando um partido, particularmente esperto, prometeu a todos a «LIBERDADE DO POVO NA PRISÃO», espalhando-se por toda a parte, recorrendo a todos os slogans velhos e ultrapassados, utilizados outrora pelos reis, pelos duques e pelos tiranos. O partido da liberdade do povo teve, no início, um franco sucesso, até que as suas verdadeiras intenções foram conhecidas. O seu slogan da liberdade «DO POVO» na prisão, liberdade considerada como sendo diferente das outras liberdades na prisão, o emprego dos velhos métodos dos antigos reis, não deixaram de impressionar as pessoas, pois os chefes desse partido, eles mesmos saídos do rebanho dos cativos, transformaram-se em vendedores da liberdade e, assim que puderam estabelecer o seu poder sobre um pequeno território, espantaram-se ao descobrir como era fácil apertar alguns botões e ver a polícia, os exércitos, diplomatas, juizes, cientistas académicos, representantes das potências estrangeiras agirem de acordo com as ordens de simples botões. Os pequenos vendedores da liberdade gostaram tanto desse jogo de exercer o poder apertando botões que esqueceram a «LIBERDADE DO POVO NA PRISÃO» e passaram a divertir-se apertando botões sempre que podiam, nos palácios dos antigos dirigentes que eles haviam massacrado. A embriaguez do poder tomou conta deles enquanto apertavam os botões do vasto painel de comando. Mas não ficaram muito tempo, e foram substituídos por homens experientes no comando dos botões, bravos conservadores que guardavam, no fundo das suas almas, um pouco de decência e rectidão, reminiscencia longínqua do paraíso.
Todos se combatiam e altercavam uns com os outros, empurrando-se e matando os seus adversários de maneira legal ou ilegal; enfim, davam uma idéia precisa do Pecado da humanidade e do cumprimento da maldição do Jardim do Éden. A massa humana prisioneira não tomou parte activa no massacre da Vida pestilenta na Prisão. Somente alguns milhares dentre os dois biliões de almas humanas tomaram parte no tumulto. Os outros contentavam-se em sofrer, em sonhar, em esperar... o QUÊ? O redentor ou um acontecimento inédito capaz de os libertar; a libertação das suas almas da prisão chamada corpo; a reunião com a grande alma cósmica ou o inferno. Sonhar, sofrer, esperar foram as ocupações principais do vasto rebanho humano que evoluía longe de toda a agitação política. Muitos morreram nas grandes guerras da prisão, e os inimigos mudavam de ano para ano, como os caixas dos bancos. Pouco importava, o sofrimento era o mesmo. A massa humana sofredora esperava durante esse tempo a sua libertação desta vida de pecado, e os poucos agitadores de nada valiam, do ponto de vista da Vida ou de «Deus» no Universo.
E a Vida de Deus surgia em biliões de crianças nascidas na prisão, mas era logo extinta pelos prisioneiros que não reconheciam a Vida de Deus nos seus filhos, ou ficavam mortalmente apavorados ao perceber a Vida simples, viva, decente, ingênua. E assim o homem perpetuou o seu cativeiro. As crianças, se tivessem sido abandonadas à sua própria sorte, tal como Deus as criou, teriam, sem dúvida, encontrado a saída da prisão. Mas não se permitiu que isso acontecesse. Isso era mesmo estritamente proibido durante o período da liberdade «DO POVO» na prisão. Era preciso mostrar-se leal para com a prisão e não para com os bebés, sob pena de ser punido de morte pelo «Grande Chefe e Amigo de Todos os Prisioneiros».
(Wilhelm Reich - O Assassinato de Cristo)
Viajar? Para viajar basta existir. Vou de dia para dia, como de estação para estação, no comboio do meu corpo, ou do meu destino, debruçado sobre as ruas e as praças, sobre os gestos e os rostos, sempre iguais e sempre diferentes, como, afinal, as paisagens são.
Se imagino, vejo. Que mais faço eu se viajo? Só a fraqueza extrema da imaginação justifica que se tenha que deslocar para sentir.
"Qualquer estrada, esta mesma estrada de Entepfuhl, te levará até ao fim do mundo." Mas o fim do mundo, desde que o mundo se consumou dando-lhe a volta, é o mesmo Entepfuhl de onde se partiu. Na realidade, o fim do mundo, como o princípio, é o nosso conceito do mundo. É em nós que as paisagens têm paisagem. Por isso, se as imagino, as crio; se as crio, são; se são, vejo-as como às outras. Para quê viajar? Em Madrid, em Berlim, na Pérsia, na China, nos Pólos ambos, onde estaria eu senão em mim mesmo, e no tipo e género das minhas sensações?
A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos.
(Fernando Pessoa - Livro do Desassossego)
.
Se alguma coisa há que esta vida tem para nós, e, salvo a mesma vida, tenhamos que agradecer aos Deuses, é o dom de nos desconhecermos: de nos desconhecermos a nós mesmos e de nos desconhecermos uns aos outros. A alma humana é um abismo obscuro e viscoso, um poço que se não usa na superfície do mundo. Ninguém se amaria a si mesmo se deveras se conhecesse e assim, não havendo a vaidade, que é o sangue da vida espiritual, morreríamos na alma de anemia . Ninguém conhece outro, e ainda bem que o não conhece, e, se o conhecesse, conheceria nele, ainda que mãe, mulher ou filho, o íntimo, metafísico inimigo. Entendemo-nos porque nos ignoramos. Que seria de tantos cônjuges felizes se pudessem ver um na alma do outro, se pudessem compreender-se, como dizem os românticos, que não sabem o perigo — se bem que o perigo fútil — do que dizem. Todos os casados do mundo são mal casados, porque cada um guarda consigo, nos secretos onde a alma é do Diabo, a imagem subtil do homem desejado que não é aquele, a figura volúvel da mulher sublime que aquela não realizou. Os mais felizes ignoram em si mesmos estas suas disposições frustradas; os menos felizes não as ignoram, mas não as conhecem, e só um ou outro arranco fruste, uma ou outra aspereza no trato, evoca, na superfície casual dos gestos e das palavras, o Demónio oculto, a Eva antiga, o Cavaleiro e a Sílfide. A vida que se vive é um desentendimento fluido, uma média alegre entre a grandeza que não há e a felicidade que não pode haver. Somos contentes porque, até ao pensar e ao sentir, somos capazes de não acreditar na existência da alma. No baile de máscaras que vivemos, basta-nos o agrado do traje, que no baile é tudo. Somos servos das luzes e das cores, vamos na dança como na verdade, nem há para nós — salvo se, desertos, não dançamos — conhecimento do grande frio do alto da noite externa, do corpo mortal por baixo dos trapos que lhe sobrevivem, de tudo quanto, a sós, julgamos que é essencialmente nós, mas afinal não é senão a paródia íntima da verdade do que nos supomos. Tudo quanto fazemos ou dizemos, tudo quanto pensamos ou sentimos, traz a mesma máscara e o mesmo dominó. Por mais que dispamos o que vestimos, nunca chegamos à nudez, pois a nudez é um fenómeno da alma e não de tirar fato. Assim, vestidos de corpo e alma, com os nossos múltiplos trajes tão pegados a nós como as penas das aves, vivemos felizes ou infelizes, ou nem até sabendo o que somos, o breve espaço que nos dão os deuses para os divertirmos, como crianças que brincam a jogos sérios .
Um ou outro de nós, liberto ou maldito, vê de repente — mas até esse raras vezes vê — que tudo quanto somos é o que não somos, que nos enganamos no que está certo e não temos razão no que concluímos justo. E esse, que, num breve momento, vê o universo despido, cria uma filosofia, ou sonha uma religião; e a filosofia espalha-se e a religião propaga-se e os que creem na filosofia passam a usá-la como veste que não veem, e os que creem na religião passam a pô-la como máscara de que se esquecem.
E sempre, desconhecendo-nos a nós e aos outros, e por isso entendendo-nos alegremente, passamos nas volutas da dança ou nas conversas do descanso, humanos, fiteis, a sério, ao som da grande orquestra dos astros, sob os olhares desdenhosos e alheios dos organizadores do espetáculo.
Só eles sabem que nós somos presas da ilusão que nos criaram. Mas qual é a razão dessa ilusão, e porque é que há essa, ou qualquer, ilusão, ou porque e que eles, ilusos também, nos deram que tivéssemos a ilusão que nos deram — isso, por certo, eles mesmos não sabem.
(Fernando Pessoas - Livro do Desassossego)
![]() |
Remédios não curam doenças da alma |
![]() |