Tudo que uma pessoa pode imaginar, outras podem tornar real.
(Julio Verne).
É preciso ser um realista para descobrir a realidade. É preciso ser um romântico para criá-la.
(Fernando Pessoa)
REALIDADE É TUDO o que existe. Parece claro, não? Só que não é. Há vários problemas. O que dizer dos dinossauros, que não existem mais? E das estrelas, tão distantes que quando sua luz finalmente chega até nós e conseguimos vê-las podem já ter se extinguido?
Trataremos dos dinossauros e das estrelas daqui a pouco. Mas, afinal, como sabemos que as coisas existem, mesmo no presente? Para começar, nossos cinco sentidos — visão, olfato, tato, audição e paladar — fazem um trabalho razoável para nos convencer de que muitas coisas são reais: pedras e camelos, grama recém-cortada e café moído na hora, lixa e veludo, cachoeiras e campainhas, açúcar e sal. Mas dizemos que algo é "real" só quando podemos detectá-lo diretamente com nossos cinco sentidos?
E quanto a uma galáxia, tão distante que não pode ser vista a olho nu? E uma bactéria, tão pequena que só pode ser vista com um microscópio? Devemos dizer que essas coisas não existem porque não as enxergamos? Não. É claro que podemos intensificar nossos sentidos com instrumentos especiais: telescópios para as galáxias, microscópios para as bactérias. Entendemos os telescópios e microscópios, sabemos como funcionam, por isso podemos usá-los para aumentar o alcance dos sentidos — da visão, nesses casos. E o que esses instrumentos nos permitem ver nos convence de que galáxias e bactérias existem.
E quanto às ondas de rádio? Existem? Os olhos não podem detectá-las, nem as orelhas, mas, também nesse caso, instrumentos especiais, como a televisão, convertem essas ondas em sinais que podemos ver e ouvir. Portanto, embora não possamos ver nem ouvir as ondas de rádio, sabemos que são parte da realidade. Entendemos o funcionamento do rádio e da televisão, que ajudam nossos sentidos a construir uma imagem do que existe: o mundo real, a realidade. Radiotelescópios (e telescópios de raios X) nos mostram estrelas e galáxias através de outro tipo de olho — são mais um modo de expandir a nossa visão.
De volta aos dinossauros. Como sabemos que um dia andaram pela Terra? Nunca vimos nem ouvimos um dinossauro, muito menos corremos de algum. Infelizmente, não temos uma máquina do tempo para vê-los. Mas, nesse caso, nossos sentidos contam com um tipo diferente de ajuda: temos os fósseis, que podemos ver a olho nu. Fósseis não correm nem pulam, mas, porque entendemos como se formam, podem dizer algo sobre o que aconteceu milhões de anos atrás. Entendemos que a água, contendo minerais dissolvidos, infiltra-se em corpos enterrados sob camadas de lama e rocha. Entendemos que os minerais se cristalizam nela e substituem a matéria de que é feito o corpo, átomo por átomo, deixando vestígios da forma original do animal impressos na pedra. Por isso, embora não possamos ver dinosssauros diretamente com nossos sentidos, podemos concluir que sem dúvida existiram, usando evidências indiretas detectadas pelos nossos sentidos: vemos e tocamos os vestígios de vida passada gravados na pedra. De certo modo, um telescópio pode funcionar como uma espécie de máquina do tempo. O que vemos quando olhamos qualquer coisa é, na verdade, luz, e a luz leva tempo para ir de um lugar a outro. Mesmo quando você olha para o rosto de um amigo, o que vê é passado, pois a luz vinda do rosto dele demora uma minúscula fração de segundo para chegar até seus olhos. O som viaja muito mais devagar, e é por isso que vemos um rojão brilhar no céu pouco antes de ouvir a explosão. Se você olha um homem cortando uma árvore ao longe, ouvirá com um curioso atraso o som dos golpes do machado.
A luz viaja tão depressa que em geral pressupomos que as coisas acontecem no instante em que as vemos. Mas com as estrelas é diferente. Até o Sol está a oito minutos-luz de distância. Se ele explodisse, esse evento catastrófico só faria parte da nossa realidade oito minutos depois. E seria o nosso fim! Depois do Sol, a estrela mais próxima de nós é a Próxima Centauri. Se você olhar para ela em 2011, verá o que estava acontecendo em 2007. As galáxias são imensos agrupamentos de estrelas, e nós estamos na Via, Láctea. Quando você olha para a vizinha mais próxima dela, Andrómeda, seu telescópio é uma máquina do tempo que o leva a 2,5 milhões de anos atrás. Existe um grupo de cinco galáxias chamado Quinteto de Stephan, que vemos pelo telescópio Hubble, e elas colidem espetacularmente urnas contra as outras. Mas as colisões que vemos aconteceram há 280 milhões de anos. Se numa dessas galáxias houver extraterrestres com telescópios que possam nos ver, o que eles estão vendo na Terra agora são os ancestrais mais remotos dos dinossauros. Existem alienígenas no espaço cósmico? Nunca vimos nem ouvimos nenhum. Eles são parte da realidade? Ninguém sabe. Mas sabemos que tipo de coisa nos ajudaria a identificá-los. Se algum dia chegarmos perto de um extraterrestre, nossos sentidos poderão nos alertar. Talvez um dia alguém na Terra invente um telescópio potente o bastante para detectar vida em outros planetas. Talvez nossos radiotelescópios captem mensagens que só poderíam vir de inteligência alienígena. A realidade não consiste apenas nas coisas que já conhecemos. Ela inclui o que existe mas ainda ignoramos — e que só viremos a conhecer no futuro, talvez quando tivermos construído instrumentos melhores para auxiliar nossos cinco sentidos.
Sempre existiram átomos, mas só recentemente tivemos certeza disso, e é provável que nossos descendentes saibam muitas outras coisas que hoje desconhecemos. É o fascínio e o prazer da ciência: ela revela coisas continuamente. Isso não quer dizer que devemos acreditar em tudo que se possa imaginar. Há inúmeras coisas que podemos imaginar cuja existência é improvável demais para ser real: fadas, duendes, hipogrifos. Devemos ter sempre a mente aberta, mas a única razão para acreditar que algo existe é ter evidências reais dessa existência.
Modelos: imaginação à prova
Há um recurso menos conhecido que os cientistas usam quando nossos sentidos não conseguem decidir o que é real. Eles criam um "modelo” do que podería estar acontecendo, depois o testam. Imaginamos — você poderia dizer que tentamos adivinhar — qual seria a situação. Em seguida, calculamos (normalmente pela matemática) o que deveriamos ver, ouvir etc. se o modelo fosse verdadeiro (em geral com ajuda de instrumentos de medição). Verificamos se foi isso mesmo o que vimos na realidade. O modelo pode ser de vários tipos: uma maquete feita de madeira ou plástico, uma série de cálculos matemáticos no papel ou uma simulação por computador. Examinamos atentamente o modelo e predizemos o que teríamos de ver (ouvir etc.) com os nossos sentidos (auxiliados talvez por instrumentos) se o modelo fosse correto. Por fim, averiguamos se as predições estão certas ou erradas. Se estiverem certas, isso aumenta nossa confiança de que o modelo representa mesmo a realidade; passamos então a criar novos experimentos, talvez refinando o modelo, para testar novamente as conclusões e confirmá-las. Se nossas predições estiverem erradas, rejeitamos o modelo, ou o modificamos e fazemos uma nova tentativa.
Vejamos um exemplo. Hoje, sabemos que os genes, as unidades da hereditariedade, são feitos de uma substância chamada DNA. Temos bons conhecimentos sobre o DNA e como ele funciona. Mas não podemos ver detalhadamente como ele é, nem mesmo com um microscópio. Quase tudo o que sabemos sobre o dna provém, indiretamente, de modelos que foram imaginados e testados.
Na verdade, muito antes que alguém tivesse ouvido falar em dna, os cientistas já tinham descoberto várias coisas sobre os genes testando predições de modelos. No século XIX, um monge austríaco, Gregor Mendel, fez experimentos na horta de seu mosteiro, cruzando ervilhas em grandes quantidades. Ao longo de gerações dessas plantas, ele contou quantas tinham flores de várias cores e quantas tinham grãos enrugados ou lisos. Mendel nunca viu ou tocou um gene. Viu apenas ervilhas e flores, e usou seus olhos para contar os diversos tipos. Ele inventou um modelo que envolvia, o que nos dias de hoje chamamos de genes (embora Mendel não usasse esse termo), e calculou que, se o modelo fosse correto, em dado experimento de cruzamento deveríam nascer três vezes mais ervilhas lisas que enrugadas. E foi isso mesmo que ele viu ao fazer a contagem. Deixando de lado os detalhes, o importante é que os “genes” de Mendel foram produto de sua imaginação: ele não os via, nem mesmo ao microscópio, mas via ervilhas lisas e enrugadas, e pela contagem delas encontrou evidências indiretas de que seu modelo de hereditariedade era uma boa representação de algo no mundo real. Tempos depois, cientistas usaram uma modificação do método de Mendel, trabalhando com outros seres vivos, como drosófilas, em vez de ervilhas, para mostrar que os genes se encadeiam em uma ordem definida ao longo de filamentos chamados cromossomos (nós, humanos, temos 46 deles; as drosófilas têm oito). Foi possível até calcular, testando modelos, a ordem exata na qual os genes se dispunham. Tudo isso foi feito muito antes de sabermos que os genes eram feitos de DNA.
Hoje temos esse conhecimento, e sabemos exatamente como o dna funciona, graças a James Watson e Francis Crick, além de muitos outros cientistas que vieram depois deles. Watson e Crick não puderam ver o dna a olho nu — também fizeram suas descobertas imaginando modelos e testando-os. Eles construíram modelos de papelão e metal representando uma possível estrutura do DNA e calcularam quais teriam de ser as medidas se tais modelos fossem corretos. As predições de um dos modelos, chamado de dupla hélice, corresponderam exatamente às medições feitas por Rosalind Franklin e Maurice Wilkins usando instrumentos especiais que projetavam raios X em cristais de d n a purificado. Watson e Crick também perceberam imediatamente que seu modelo da estrutura do dna produziria exatamente o tipo de resultados encontrado por Gregor Mendel na horta de seu mosteiro.
Portanto, temos três modos de saber o que é real. Podemos detectar diretamente com nossos cinco sentidos; indiretamente, com instrumentos especiais como telescópios e microscópios auxiliando nossos sentidos; ou ainda mais indiretamente, criando modelos do que poderia ser real e fazendo uma série de testes para ver se eles predizem corretamente o que podemos ver (ouvir etc.), com ou sem a ajuda de instrumentos. Em última análise, de um modo ou de outro tudo será confirmado por nossos sentidos.
Isso quer dizer que a realidade contém apenas coisas que podem ser detectadas, direta ou indiretamente, pelos nossos sentidos e pelos métodos da ciência? Mas e coisas como ciúme e prazer, felicidade e amor? Não são também reais?
Sim, são reais. Mas para existir dependem do cérebro: do cérebro humano, com certeza, e provavelmente também do cérebro de outras espécies animais avançadas, como chimpanzés, cães e baleias. Pedras não sentem alegria nem ciúme, montanhas não amam. Essas emoções são intensamente reais para quem as sente, mas não existiam antes de o cérebro existir. É possível que emoções desse tipo — e talvez outras com as quais nem sonhamos — existam em outros planetas, mas apenas naqueles que contenham cérebros, ou algo equivalente a eles, pois quem sabe que estrambóticos órgãos pensantes ou máquinas providas de sentimentos podem existir em outras partes do universo?
A ciência e o sobrenatural: a explicação e seu inimigo
Então essa é a realidade, e é assim que podemos saber se uma coisa é ou não real. Cada capítulo deste livro tratará de um aspecto específico da realidade — o Sol, os terremotos, o arco-íris ou os muitos tipos de animais. Agora quero falar sobre a outra palavra-chave do meu título: magia. É uma palavra ardilosa. Costumamos usá-la em três sentidos diferentes, e a primeira coisa que preciso fazer é distingui-los. Chamarei o primeiro de “magia sobrenatural”, o segundo de “magia de palco” e o terceiro (que é o meu sentido favorito e o que eu tinha em mente no meu título) de “magia poética”.
Magia sobrenatural é aquela descrita nos mitos e contos de fadas. (E também nos “milagres”, mas deixarei estes para examinar no último capítulo.) É a magia da lâmpada de Aladim, dos feitiços de bruxa, das histórias dos irmãos Grimm, de Hans Christian Andersen e de J. K. Rowling. É a magia ficcional da bruxa que transforma um príncipe num sapo, ou da fada madrinha que faz uma abóbora virar uma luxuosa carruagem. Essas são histórias da nossa infância que recordamos com ternura, e muitos de nós ainda apreciam quando são representadas em um espetáculo de Natal. Mas todos sabemos que esse tipo de magia é apenas ficção e não acontece na realidade.
A magia de palco, em contraste, realmente acontece e pode ser muito divertida. Ou, pelo menos, alguma coisa realmente acontece, embora não seja o que a platéia está pensando. Um homem num palco (costuma ser um homem, não sei por quê, então usarei “ele”; mas você pode trocar por “ela”, se preferir) nos ilude, fazendo-nos pensar que algo espantoso (talvez até sobrenatural) aconteceu, quando o que realmente houve foi uma coisa bem diferente. Lenços de seda não podem ser transformados em coelhos, do mesmo modo que sapos não podem virar príncipes. O que vemos no palco é apenas um truque. Nossos olhos nos enganam — ou melhor, o mágico se empenha em iludir nossos olhos, às vezes usando palavras com astúcia para nos distrair do que ele está fazendo com as mãos.
Alguns mágicos são honestos e fazem ques tão de que a platéia saiba que eles simplesmente executaram um truque. Estou falando de pessoas como James “o Incrível” Randi, Penn e Teller, ou Derren Brown. Embora esses admiráveis artistas não costumem explicar exatamente como fizeram um truque (até porque poderiam ser expulsos do Círculo Mágico, o clube dos mágicos), eles asseguram ao público que nenhuma magia sobrenatural aconteceu. Outros não dizem com todas as letras que tudo não passa de um truque, porém não ficam alardeando o que não fizeram; simplesmente deixam a platéia com a prazerosa sensação de que algo misterioso aconteceu, sem mentir. Infelizmente, existem alguns mágicos que são desonestos de propósito e fingem possuir poderes “sobrenaturais” ou “paranormais”; por exemplo, dizem que são capazes de entortar metais ou parar relógios apenas pelo poder do pensamento. Alguns desses farsantes (“charlatães” é um bom adjetivo para eles) recebem altas remunerações de companhias mineradoras ou petroleiras porque se dizem capazes de descobrir, usando “poderes psíquicos”, onde estão os bons lugares para fazer sondagem. Outros homens desse tipo exploram pessoas que vivem o luto dizendo-se capazes de entrar em contato com os mortos. Quando essas coisas acontecem, não se trata de divertir ou entreter, mas de abusar da credulidade ou do desespero das pessoas. Sejamos justos: é possível que nem todos esses indivíduos sejam charlatães. Alguns talvez acreditem sinceramente que são capazes de falar com os mortos.
O terceiro significado de magia é aquele que tenho em mente no título: a magia poética. Uma música bonita pode nos comover até as lágrimas, e por vezes dizemos que uma apresentação foi “mágica”. Fitamos as estrelas numa noite escura sem lua, longe das luzes da cidade, e, deslumbrados, dizemos que é uma visão de “pura magia”. Poderiamos usar essa mesma palavra para desçrever um maravilhoso pôr do sol, uma paisagem dos Alpes ou um arco-íris no céu. Nesse sentido, “mágico” significa profundamente comovente, estimulante, algo que nos deixa arrepiados e nos az sentir plenamente vivos. O que espero mostrar a você neste livro é que a realidade — os fatos do mundo real como são compreendidos através dos métodos da ciência — é mágica nesse terceiro sentido, o sentido poético, o sentido de que é bom estar vivo.
Agora quero voltar à ideia do sobrenatural e explicar por que ela nunca pode nos oferecer uma explicação verdadeira para as coisas que vemos neste planeta e no universo que nos cerca. Dar uma explicação sobrenatural para alguma coisa não explica nada e, pior ainda, exclui qualquer possibilidade de essa coisa vir a ser explicada no futuro. Por que digo isso? Porque, por definição, uma coisa “sobrenatural” tem de estar fora do alcance de uma explicação natural. Tem de estar fora do alcance da ciência e do método muito bem estabelecido, testado e aprovado que tem sido responsável pelos imensos avanços no conhecimento que nos beneficiam há cerca de quatrocentos anos. Dizer que algo sobrenatural aconteceu não é apenas dizer “não entendemos isso”, mas afirmar “nunca entenderemos, por isso nem tente”.
A ciência faz exatamente o contrário. Quando encontra alguma coisa que não sabe explicar, aproveita e faz perguntas, cria modelos possíveis e os testa; e assim vamos avançando, aos poucos, em direção à verdade. Se acontece alguma coisa que contraria a noção que temos da realidade, os cientistas veem isso como uma refutação do modelo que eles mesmos criaram, sendo então preciso abandoná-lo ou alterá-lo. É por meio desses ajustes e testes subsequentes que nos aproximamos cada vez mais da verdade.
O que você pensaria de um detetive que, não conseguindo explicar um assassinato, tem preguiça de tentar desvendar o mistério e apela para a simples explicação de que é um caso “sobrenatural”? Toda a história da ciência mostra que muito do que já foi atribuído ao sobrenatural — causado por deuses (felizes ou zangados), demônios, bruxas, espíritos, maldições e feitiços — na verdade tem explicações naturais, explicações que podemos compreender e testar até considerar confiáveis. Não existe nenhuma razão para acreditar que as coisas para as quais a ciência ainda não tem uma explicação natural são sobrenaturais, do mesmo modo que os vulcões, terremotos e doenças não são causados por deuses furiosos, como antes se acreditava.
É claro que ninguém acredita realmente que seria possível transformar uma abóbora numa carruagem ou um sapo num príncipe. (Ou será um príncipe num sapo? Nunca consigo me lembrar.) Mas alguma vez você já parou para pensar por que coisas assim seriam impossíveis? Há várias maneiras de responder a essa pergunta. Eis a minha favorita.
Sapos e carruagens são coisas complexas, com inúmeras partes que precisam ser reunidas de um modo específico, segundo um padrão que não se forma por acaso (ou por um movimento de varinha mágica). É isso que significa “complexo”. É dificílimo produzir algo complexo como um sapo ou uma carruagem. Para fazer uma carruagem, é necessário montar todas as partes do modo exato. É preciso ter a habilidade de um carpinteiro e outros artesãos. Carruagens não surgem por acaso, nem se você estalar os dedos ou disser “abracadabra”. Uma carruagem tem estrutura, complexidade, diversas partes com funções específicas — rodas e eixos, janelas e portas, molas e assentos acolchoados. Seria relativamente fácil transformar algo complexo como uma carruagem em algo simples como cinzas, por exemplo. A fada madrinha só precisaria de um bom maçarico. Quase qualquer coisa pode facilmente ser transformada em cinzas. Mas ninguém é capaz de pegar um monte de cinzas — ou uma abóbora — e transformar numa carruagem, porque se trata de algo muito complexo, até em um sentido utilitário: uma carruagem tem a finalidade de transportar pessoas.
Facilitemos as coisas para a fada madrinha. Suponhamos que, em vez de recorrer a uma abóbora, ela tivesse todas as partes necessárias para montar uma carruagem misturadas dentro de uma caixa, como naqueles kits para montar modelos de aviões. O kit para fazer uma carruagem consiste em centenas de tábuas, painéis de vidro, hastes e barras de aço, espumas, pedaços de couro, além de pregos, parafusos e cola para unir tudo. Agora suponhamos que, em vez de ler as instruções e unir as partes na sequência correta, ela simplesmente ponha tudo dentro de um grande saco e o chacoalhe. Qual a chance de que as partes venham a se unir do modo certo para montar uma carruagem? A resposta é: praticamente nenhuma. E parte da razão é o número imenso de modos possíveis em que os pedaços poderiam se combinar sem produzir uma carruagem ou qualquer coisa útil.
Se você pegar inúmeras partes e sacudidas de qualquer jeito, é possível que em algum momento elas venham a se juntar de um modo que tenha alguma utilidade ou que possamos reconhecer como especial. Mas a probabilidade de isso acontecer é irrisória, insignificante se comparada aos inúmeros modos em que a mistura apenas produzirá um monte de lixo. Há milhões de modos de misturar e remisturar uma porção de pedaços avulsos: milhões de modos de transformá-los em... outro monte de pedaços avulsos. Toda vez que você os mistura, obtém uma pilha de lixo única, nunca vista antes — mas só uma ínfima minoria desses milhões de pilhas possíveis será útil para alguma coisa (por exemplo, para levar a moça ao baile) ou será digna de nota por qualquer outra razão.
Às vezes, podemos contar quantas maneiras existem de organizar uma série de partes — como em um baralho, considerando cada carta uma “parte”.
Suponhamos que alguém embaralhe as cartas e as distribua para quatro jogadores, treze cartas para cada. Pego as minhas e tenho uma grande surpresa: recebi a série de espadas completa!
Estou tão perplexo que nem consigo jogar e mostro minhas cartas aos outros, achando que também vão ficar espantados.
Mas então todos poem cartas na mesa, e o espanto aumenta. Cada jogador tem uma mão “perfeita”: uma com treze cartas de copas, outra com treze de ouros e a última com treze de paus.
Isso seria magia sobrenatural? Poderiamos ficar tentados a achar que sim. Os matemáticos sabem calcular a probabilidade de que essa combinação aconteça por puro acaso. É infinitamente pequena: 1 em 536 447 737 765 488 792 839 237 440 000. Acho que eu nem saberia como dizer esse número! Se você se sentasse e jogasse cartas durante um trilhão de anos, receberia uma mão perfeita como a do nosso exemplo em uma ocasião. Só que — e aí está o X da questão — essa mão não é mais improvável do que qualquer outra mão de cartas que já tenha sido distribuída! A chance de qualquer mão específica de 52 cartas é 1 em 536 447 737 765 488 792 839 237 440 000, porque esse é o número de todas as combinações possíveis. Acontece, simplesmente, que não notamos nenhum padrão específico na imensa maioria de mãos distribuídas e por isso elas não nos parecem fora do comum. Reparamos apenas quando por acaso uma mão se destaca de alguma forma.
Há bilhões de coisas em que você poderia transformar um príncipe se fosse brutal a ponto de montar os pedaços dele em bilhões de combinações aleatórias. Mas a maioria dessas combinações resultaria numa tremenda confusão — como aqueles bilhões de mãos de cartas sem nexo, aleatórias, que foram distribuídas. Apenas uma irrisória minoria dessas possíveis combinações de pedaços de príncipe embaralhados produziria algo reconhecível ou bom para alguma coisa, e ainda mais dificilmente produziria um sapo.
Príncipes não viram sapos e abóboras não viram carruagens porque sapos e carruagens são coisas complexas cujas partes poderiam ter se combinado em um número quase infinito de pilhas de lixo. No entanto, sabemos que cada ser vivo — pessoa, crocodilo, pardal, árvore ou alface — evoluiu de outras formas, originalmente mais simples. Mas então isso não é um processo fortuito ou algum tipo de magia? Não! Absolutamente não! Esse é um equívoco muito comum, e por isso quero explicar agora mesmo porque aquilo que vemos na vida real não é resultado de acaso, sorte ou qualquer coisa que seja mesmo que remotamente “mágica” (exceto, é claro, naquele sentido estritamente poético das coisas que nos enchem de assombro e deleite).
A lenta magia da evolução
Transformar um organismo complexo em outro organismo complexo em uma única etapa — como num conto de fadas está fora dos limites do que é realisticamente possível. Contudo, organismos complexos existem. Como surgiram? Como vieram a existir coisas complexas como sapos e leões, babuínos e figueiras, príncipes e abóboras, você e eu? Durante a maior parte da história, essa foi uma questão desnorteante que ninguém conseguia responder apropriadamente. Então foram inventadas anedotas. Mas, um dia, a questão foi respondida, e brilhantemente. Isso aconteceu no século XIX, graças a um dos maiores cientistas que já viveram, Charles Darwin. Usarei o resto do capítulo para explicar brevemente sua resposta, em palavras diferentes das dele.
A resposta é: os organismos complexos (humanos, crocodilos, alfaces) não surgiram de repente, de uma vez só, e sim gradualmente, passo a passo. E o que surgia a cada novo passo era só um tantinho diferente daquilo que já existia. Imagine que você quer criar um sapo de pernas compridas.
Seria vantajoso começar com algo que já fosse um pouco parecido com aquilo que você quer obter: um sapo de pernas curtas, por exemplo. Você podería pegar um conjunto de sapos de pernas curtas e medir as pernas de todos. Poderia escolher alguns sapos e sapas que possuíssem pernas um pouco mais compridas do que a maioria e deixar que eles cruzassem, enquanto impedia que seus colegas de pernas mais curtas se reproduzissem. Os machos e as fêmeas de pernas longas produziríam girinos, que por fim ganhariam pernas e se tornariam sapos. Você mediria essa nova geração, escolhería os machos e as fêmeas de pernas mais longas e os poria juntos para se reproduzir.
Depois de fazer isso por umas dez gerações, você poderia começar a notar uma coisa interessante. O comprimento médio das pernas da sua população de sapos seria agora visivelmente maior do que o comprimento médio das pernas da população inicial. Você talvez até concluísse que todos os sapos da décima geração têm pernas mais longas do que qualquer sapo da primeira geração. Ou, talvez, dez gerações não sejam suficientes para obter esse resultado. Quem sabe você precise de vinte gerações, ou até mais. No entanto, um belo dia finalmente você poderá dizer com orgulho: “Obtive um novo tipo de sapo com pernas mais compridas do que o antigo”.
Não foi preciso varinha mágica. Nenhum tipo de magia. O que aconteceu foi um processo chamado reprodução seletiva, baseado no fato de que os tipos de sapo variam e essas variações tendem a ser herdadas, ou seja, transmitidas dos pais aos filhos através dos genes. Simplesmente escolhendo quais sapos vão se reproduzir e quais não vão, podemos obter um novo tipo de sapo.
Simples, não? Mas conseguir pernas mais compridas não é muito impressionante. Afinal, já começamos com sapos. Eles só tinham pernas mais curtas. Suponha que você começasse não com um tipo de sapo de pernas mais curtas, mas com um animal diferente — por exemplo, com um tipo de salamandra. A salamandra possui pernas traseiras bem mais curtas que as do sapo e as usa não para saltar, mas para andar. A salamandra tem cauda longa, o sapo não tem cauda. Além disso, em geral as salamandras têm o corpo mais comprido e estreito do que a maioria dos sapos. Mas acho que você consegue perceber que, ao longo de milhares de gerações, seria possível transformar uma população de salamandras numa população de sapos simplesmente escolhendo com paciência, em cada uma dessas gerações, salamandras machos e fêmeas que fossem apenas um tantinho mais parecidas com sapos e deixar que cruzassem, impedindo ao mesmo tempo o cruzamento de seus colegas menos parecidos com sapos. Em nenhuma etapa isolada desse processo você veria uma mudança drástica. Cada geração seria bem parecida com a anterior, mas ainda assim, depois de um número suficiente de gerações, você começaria a notar que o comprimento médio da cauda diminuiu ligeiramente e que o comprimento médio das pernas traseiras aumentou um pouquinho. Depois de muitas gerações, talvez os indivíduos de pernas mais compridas e cauda mais curta começassem a achar mais fácil usar as pernas para saltar em vez de rastejar. E assim por diante.
Evidentemente, na situação que acabei de descrever, nos imaginamos como diretores da reprodução, escolhendo machos e fêmeas que vão cruzar, tendo em vista um resultado final que nós escolhemos. Os agricultores usam essa técnica há milhares de anos para obter animais e plantas mais produtivos ou resistentes a doenças. Darwin foi a primeira pessoa a compreender que isso funciona mesmo quando não há ninguém fazendo a escolha. Ele percebeu que tudo acontece naturalmente, sem interferência, pela simples razão de que alguns indivíduos sobrevivem por tempo suficente para se reproduzir enquanto outros não, e que os que sobrevivem são mais bem equipados para sobreviver do que os outros. Assim, seus filhos herdam os genes que ajudaram os pais a viver mais. Sejam salamandras ou sapos, ouriços ou margaridas, sempre haverá indivíduos que têm mais condições de sobreviver do que outros. Se pernas compridas ajudarem (o sapo ou gafanhoto a saltar e fugir de um perigo, por exemplo, um guepardo caçar gazelas ou uma gazela fugir dos guepardos), os indivíduos com pernas mais longas terão menor probabilidade de morrer. E maior probabilidade de viver tempo suficiente para se reproduzir. Além disso, um número maior dos indivíduos disponíveis para ele se acasalar terá pernas compridas. Desse modo, em cada geração haverá maior probabilidade de os genes para pernas mais compridas serem transmitidos à geração seguinte. Com o tempo, veremos que cada vez mais indivíduos dessa população possui genes para pernas mais compridas. Portanto, o efeito será exatamente o mesmo que veriamos caso um criador inteligente — um humano que gerenciasse essa reprodução, por exemplo — escolhesse os indivíduos de pernas compridas para se reproduzir. Só que esse criador não é necessário: tudo acontece por conta própria, naturalmente, como consequência automática de quais indivíduos sobrevivem o suficiente para se reproduzir e quais não. Por isso, o processo é chamado de seleção natural.
Depois de certo número de gerações, ancestrais que se pareciam com salamandras podem ter descendentes que se parecem com sapos. Depois de ainda mais gerações, ancestrais parecidos com peixes podem originar descendentes parecidos com macacos. Depois de ainda mais gerações, ancestrais parecidos com bactérias podem originar descendentes parecidos com humanos. E foi exatamente isso que aconteceu na história de cada animal e planta que existe ou existiu neste planeta. O número de gerações necessárias é maior do que podemos imaginar, mas o mundo tem bilhões de anos de existência, e sabemos pelos fósseis que a vida começou há mais de 3,5 bilhões de anos, tempo suficiente para a evolução ocorrer.
Essa foi a grande ideia de Darwin, conhecida como evolução pela seleção natural. É uma das mais importantes conclusões saídas de uma mente humana e explica quase tudo o que sabemos sobre a vida na Terra. Por ser tão importante, voltarei a ela em outros capítulos. Por enquanto, basta entender que a evolução é muito lenta e gradual. Aliás, é essa qualidade gradual que permite o surgimento de coisas complexas como sapos e príncipes. Uma transformação mágica de um sapo num príncipe não seria gradual, mas súbita, e é isso que a exclui da realidade. A evolução é uma explicação real e indivíduos de pernas compridas para se reproduzir. Só que esse criador não é necessário: tudo acontece por conta própria, naturalmente, como consequência automática de quais indivíduos sobrevivem o suficiente para se reproduzir e quais não. Por isso, o processo é chamado de seleção natural.
Depois de certo número de gerações, ancestrais que se pareciam com salamandras podem ter descendentes que se parecem com sapos. Depois de ainda mais gerações, ancestrais parecidos com peixes podem originar descendentes parecidos com macacos. Depois de ainda mais gerações, ancestrais parecidos com bactérias podem originar descendentes parecidos com humanos. E foi exatamente isso que aconteceu na história de cada animal e planta que existe ou existiu neste planeta. O número de gerações necessárias é maior do que podemos imaginar, mas o mundo tem bilhões de anos de existência, e sabemos pelos fósseis que a vida começou há mais de 3,5 bilhões de anos, tempo suficiente para a evolução ocorrer.
Essa foi a grande ideia de Darwin, conhecida como evolução pela seleção natural. É uma das mais importantes conclusões saídas de uma mente humana e explica quase tudo o que sabemos sobre a vida na Terra. Por ser tão importante, voltarei a ela em outros capítulos. Por enquanto, basta entender que a evolução é muito lenta e gradual. Aliás, é essa qualidade gradual que permite o surgimento de coisas complexas como sapos e príncipes. Uma transformação mágica de um sapo num príncipe não seria gradual, mas súbita, e é isso que a exclui da realidade. A evolução é uma explicação real e pode ser demonstrada por evidências reais; qualquer sugestão de que formas de vida complexas apareceram de repente (sem evoluir gradualmente, passo a passo) é pura invenção, como a magia ficcional da fada madrinha.
Quanto a abóboras que viram carruagens, os encantamentos mágicos também estão excluídos, do mesmo modo que para os sapos e príncipes. Carruagens não evoluem — pelo menos não naturalmente. Mas, tanto quanto aviões e enxadas, computadores e pontas de flecha, as carruagens são fabricadas por humanos, e eles evoluem. O cérebro e as mãos humanas evoluíram pela seleção natural, tão seguramente como a cauda da salamandra e as pernas do sapo. E o cérebro humano agora é capaz de projetar e criar carruagens e carros, tesouras e sinfonias, máquinas de lavar e relógios. Sem mágica. Sem truques. Explicando tudo, de um modo belo e simples.
No resto do livro, quero mostrar a você que o mundo real, como é entendido cientificamente, tem sua própria magia. Eu a chamo de magia poética, uma beleza inspiradora que é ainda mais mágica porque é real e podemos compreender como funciona. Em comparação à verdadeira beleza e magia do mundo real, o sobrenatural e os truques de palco parecem vulgares e sem graça. A magia da realidade não é sobrenatural, não é um truque.
É absolutamente fascinante. Fascinante e real. Fascinante porque é real.
(Dawkins, Richard - A magia da realidade : como sabemos o que é verdade)