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Salvação Individual e social

por Thynus, em 13.09.16
Um dos defeitos da religião tradicional é o seu individualismo, e esse defeito pertence também à moralidade a ele associada. Tradicio­nalmente, a vida religiosa consistia, por assim dizer, num diálogo entre a alma e Deus. Obedecer à vontade de Deus constituía uma virtude – e isso era possível ao indivíduo não obstante a situação da comunidade. Seitas protestantes desenvolveram a ideia de “encontrar a salvação”, coisa que, no entanto, sempre esteve presente nos ensinamentos cristãos. Esse individualismo de uma alma isolada teve seu valor em certos períodos da história, mas, no mundo moderno, necessitamos de uma concepção de bem-estar mais social que individual. Desejo considerar, nesta seção, de que modo isso afeta nossa concepção de uma vida virtuosa.

O cristianismo nasceu no Império Romano entre populações inteiramente destituídas de poder político, cujos estados nacionais ha­viam sido destruídos e fundidos numa massa humana vasta e impessoal. Durante os três primeiros séculos da era cristã, os indivíduos que adotavam o cristianismo não podiam modificar as instituições sociais e políticas sob as quais viviam, mesmo que estivessem profundamente convencidos de suas deficiências. Sob tais cir­cuns­tâncias, era natural que adotassem a crença de que era possível a um indivíduo ser perfeito num mundo imperfeito e que uma vida de bem nada tem a ver com este mundo. Aquilo a que me refiro talvez se torne evidente pela comparação com a República de Platão. Platão, quando quis descrever uma vida virtuosa, descreveu toda uma comunidade, e não um único indivíduo; ele o fez para definir a justiça, que é um conceito essencialmente social. Estava acostumado à cidadania de uma república e tomava a responsabilidade política como algo sólido. À perda da liberdade dos gregos segue-se o surgimento do estoicismo, que – à semelhança do cristianismo e à diferença de Platão – tinha da vida virtuosa uma concepção individualista.

Nós, que pertencemos a grandes democracias, encontraríamos uma moralidade mais apropriada na livre Atenas do que na despótica Roma imperial. Na Índia, onde as condições políticas em muito se assemelham às da Judeia do tempo de Cristo, encontramos Gandhi a pregar uma moralidade muito similar à de Cristo e por ela ser punido pelos sucessores cris­tia­nizados de Pôncio Pilatos. No entanto, os na­cio­nalistas hindus mais radicais não estão contentes com a salvação individual: querem a salvação na­cional. Nisso adotaram o ponto de vista das democracias do Ocidente. Desejo sugerir alguns aspec­tos sob os quais esse ponto de vista, devido à influência cristã, ainda não é suficientemente ousado nem autoconsciente, mas se acha ainda embargado pela crença na salvação individual.

A vida virtuosa tal como a concebemos demanda um grande número de condições so­ciais, sem as quais não pode realizar-se. Como já dissemos, ela é uma vida inspirada pelo amor e guiada pelo conhecimento. O conhecimento necessário só poderá existir se os governos ou os milionários dedicarem-se à sua descoberta e difusão. A disseminação do câncer, por exemplo, é um fato alarmante – e nós, o que devemos fazer a esse respeito? No momento, por falta de conhecimento, ninguém pode responder a essa questão – e é pouco provável que tal conhecimento se desenvolva, a não ser com pesquisas subsidiadas. Além do mais, o conhecimento em ciência, história, literatura e arte deveria estar ao alcance de todos aqueles que o desejassem; isso requer arranjos cuidadosos por parte das autoridades públicas e não deve ser alcançado por meio da conversão religiosa. Há ainda o comércio exterior, sem o qual metade dos habitantes da Grã-Bretanha estaria passando fome; e, se acaso estivéssemos passando fome, pouquíssimos dentre nós teriam condições de viver uma vida plena. Desnecessário fornecer mais exemplos. O ponto importante é que, a despeito de tudo o que distingue uma vida boa de uma vida má, o mundo é uma unidade, e o homem que finge viver de maneira independente não passa de um parasita consciente ou inconsciente.

A ideia da salvação individual, com a qual os primeiros cristãos consolavam-se em decorrência de sua sujeição política, torna-se impossível tão logo nos libertamos da concepção muito estrita do que seria uma vida plena. Na concepção cristã ortodoxa, a vida plena é a vida virtuosa, e a virtude consiste em obedecer à vontade de Deus, sendo esta revelada a cada indivíduo mediante a voz da consciência. Toda essa concepção consiste na sujeição dos homens a um despotismo exterior. Uma vida plena envolve muitas coisas além da virtude – a inteligência, por exemplo. E a consciência é um guia extremamente falacioso, uma vez que consiste de vagas reminiscências dos preceitos ouvidos na mocidade, de sorte que jamais supera em sabedoria o preceptor ou a mãe daquele que a possui. Para viver uma vida plena em seu mais amplo sentido, um homem deve contar com uma boa educação, amigos, amor, filhos (se os desejar), uma renda suficiente para manter-se a salvo da pobreza e de graves apreensões, uma boa saúde e um trabalho que não lhe seja desin­teressante. Todas essas coisas, em diferentes medidas, dependem da comunidade, podendo ser beneficiadas ou obstruídas pelos acontecimentos políticos. Uma vida de bem deve ser vivida em uma sociedade de bem; do contrário, ela não se faz plenamente possível.

Eis o defeito fundamental do ideal aris­tocrático. Algumas coisas boas, como a arte, a ciência e a amizade, podem muito bem prosperar numa sociedade aristocrática. Na Grécia, existiam com base na escravidão; entre nós, existem com base na exploração. Mas o amor, sob a forma de simpatia ou de benevolência, não pode existir livremente em uma sociedade aristocrática. O aristocrata precisa persuadir a si próprio de que o escravo, o proletário ou o homem de cor provêm de um barro inferior e de que seus sofrimentos não têm importância. No presente momento, refinados cavalheiros ingleses fustigam africanos tão severamente que estes morrem após horas de uma inexprimível agonia. Ainda que tais cavalheiros sejam bem-educados, dotados de natureza artística e admiráveis conversadores, não posso admitir que vivam uma vida virtuosa. A natureza humana impõe certa limitação à simpatia, mas não a esse ponto. Numa sociedade democraticamente consciente, só um maníaco procederia dessa forma. A limitação à simpatia contida no ideal aristocrático é a sua própria condenação. A salvação constitui um ideal aristocrático porque é individualista. Por tal razão, também, a ideia da salvação pessoal, por mais que interpretada e expandida, não pode servir como definição de uma vida de bem.

Outra característica da salvação é que ela resulta de uma mudança catastrófica, como a conversão de São Paulo. A poesia de Shelley fornece uma ilustração desse conceito aplicado às sociedades; chega o momento em que, quando todos estão convertidos, os “anarcas” fogem, e “uma grande era do mundo mais uma vez se inicia”. Pode-se dizer que o poeta é alguém de­sim­por­tante, cujas ideias não têm qualquer consequência. No entanto, estou convencido de que uma proporção considerável de líderes revo­lucio­nários teve ideias extremamente similares às de Shelley. Tais líderes pensaram que a miséria, a crueldade e a degradação se deviam à ação de tiranos, padres ou capitalistas, ou dos alemães, e que, derrotadas essas fontes do mal, haveria uma transformação geral em todos os corações e, a partir daí, viveríamos todos uma vida feliz. De posse dessas crenças, mostraram-se dispostos a travar uma “guerra para pôr fim à guerra”. Comparativamente afortunados foram aqueles que experimentaram a derrota ou a morte; os que tiveram o infortúnio de se saírem vitoriosos foram reduzidos ao cinismo e ao desespero, pelo malogro de todas as suas ardentes esperanças. A fonte derradeira de tais esperanças, como caminho que levaria à sal­vação, era a doutrina cristã da conversão ca­tastrófica.

Não desejo com isso alegar que as revoluções sejam jamais necessárias, mas é meu intento sugerir que não constituem o caminho mais curto para o milênio. Não há atalhos para uma vida virtuosa, seja ela individual ou social. Para construir uma vida virtuosa, precisamos erigir a inteligência, o autocontrole e a solidarie­dade. Trata-se de uma questão quantitativa, uma questão de progresso gradual, de formação inicial, de experimentos educacionais. Somente a impaciência inspira acreditar na possi­bi­lidade de um progresso repentino. O progresso gradual possível e os métodos pelos quais ele pode ser alcançado constituem um problema que compete à ciência do futuro resolver. Mas algo, no entanto, pode ser dito agora. E parte do que pode ser dito tentarei apresentar na seção final deste livro.

(Bertrand Russell - No Que Acredito)

publicado às 14:18


Ciência e felicidade

por Thynus, em 12.09.16
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A felicidade é um problema individual. Aqui, nenhum conselho é válido. 
Cada um deve procurar, por si, tornar-se feliz.
 
O homem superior distingue-se do homem inferior pela intrepidez e desafio à infelicidade.
(Simão de Paula - NIETZSCHE, Seus Provérbios e Pensamentos
 
 

O que a Ciência já sabe sobre essa tal Felicidade
 
O propósito do moralista é melhorar a condu­ta dos homens. Trata-se de uma ambição louvável, visto que tal conduta, na maioria dos casos, é deplorável. Mas não posso louvar o moralista nem pelos progressos particulares que deseja, nem pelos métodos que adota para alcançá-los. Seu método ostensivo é a exortação moral; seu método verdadeiro (se ele for ortodoxo), um econômico sistema de recompensas e punições. O primeiro nada produz de permanente ou importante; a influência dos pregadores, de Savonarola em diante, sempre foi muito transitória. O segundo – as recompensas e punições – exerce um efeito sobremodo considerável. Ambos fazem com que o homem, por exemplo, prefira prostitutas ocasionais a uma amante quase permanente, pois é necessário adotar o método que se possa mais facilmente encobrir. Desse modo, eles conservam o enorme contingente praticante de uma profissão extremamente perigosa e asseguram a prevalência das doenças venéreas. Não são esses os objetivos desejados pelo moralista, que, no entanto, é por demais desprovido de espírito científico para perceber que são exatamente esses os objetivos que ele alcança.

Existe, então, um melhor substituto para essa mistura pouco científica de sermão e suborno? Creio que sim.

As ações dos homens são danosas quer pela ignorância, quer pelos maus desejos. Os “maus” desejos, quando falamos do ponto de vista social, podem ser definidos como os que tendem a frustrar os desejos alheios, ou, mais exatamente, como aqueles que mais frustram os desejos alheios do que se realizam. Desneces­sário enfatizar o mal gerado pela ignorância; nesse caso, tudo o que se deseja é um maior conhecimento, donde o caminho para o progresso reside em mais pesquisa e mais educação. Mas o mal proveniente dos maus desejos constitui uma questão mais complexa.

Nos homens e nas mulheres comuns, veri­fica-se certa dose de malevolência ativa – tanto uma animosidade dirigida a inimigos particulares como um prazer geral e impessoal experimentado nos infortúnios alheios. É costume encobrir esse sentimento com belas frases: cerca de metade da moralidade convencional constitui uma maneira de disfarçá-lo. No entanto, é preciso enfrentá-lo para que o objetivo dos moralistas de melhorar nossa conduta seja alcan­çado. A malevolência ativa se revela de mil maneiras, mais e menos graves: no júbilo com que as pessoas repetem e se fiam nos escândalos, no tratamento cruel dispensado aos criminosos, apesar da clara evidência de que um melhor tratamento seria mais eficaz em regenerá-los, na incrível crueldade com que todas as raças brancas tratam os negros e no gosto com que as velhas senhoras e os clérigos salientavam aos jovens rapazes o dever de prestar o serviço militar durante a guerra. Mesmo as crianças podem ser objeto de temerária cruel­dade: David Copperfield e Oliver Twist de forma alguma são personagens imaginários. Essa malevolência ativa constitui o pior aspecto da natureza humana e aquela que mais necessita ser modificada para que o mundo possa ser mais feliz. É possível que essa única causa tenha mais a ver com a guerra do que todas as causas econômicas e políticas juntas.

Admitido o problema referente à prevenção da malevolência, de que modo devemos lidar com ele? A princípio, tentemos entender suas causas. São elas, creio eu, em parte so­ciais, em parte fisiológicas. O mundo, não menos hoje que em qualquer época passada, baseia-se numa competição de vida e morte: a questão em pauta durante a guerra era saber se as crianças alemãs ou aliadas deveriam morrer de miséria ou de fome. (À parte a malevolência de ambos os lados, não havia a menor razão para que tanto umas como as outras não devessem sobreviver.) As pessoas trazem, no fundo de suas mentes, um medo aterrorizante da ruína; isso se veri­fica especialmente em quem tem filhos. Os ricos temem que os bolcheviques confisquem seus investimentos; os pobres temem perder seus empregos ou a saúde. Todos se acham empenhados na busca frenética de “segurança” e imaginam que ela deva ser alcan­ça­da mantendo-se sob sujeição os inimigos poten­ciais. É nos momentos de pânico que a cruel­dade se torna mais ampla e mais atroz. Rea­cionários de todas as partes apelam ao medo: na Inglaterra, ao medo do bolchevismo; na França, ao medo da Alemanha; na Alemanha, ao medo da França. E, no entanto, a única conse­quência de seus apelos é o recrudesci­mento do perigo contra o qual desejam estar protegidos.

Combater o medo, portanto, deve ser uma das preocupações primordiais do moralista dotado de postura científica. Pode-se fazê-lo de duas maneiras: aumentando a segurança e cultivando a coragem. Refiro-me ao medo como uma paixão irracional, e não como previsão racio­nal de possíveis infortúnios. Quando um teatro é tomado por um incêndio, o homem racional prevê o desastre tão claramente quanto o homem tomado de pânico, mas adota métodos prováveis de reduzir o desastre, ao passo que o homem tomado de pânico o agrava. A Europa, desde 1914, vem-se afigurando como uma audiência tomada de pânico, em meio a um teatro em chamas; necessita-se é de calma, de instruções peremptórias quanto à maneira de nos salvarmos do fogo, sem que, nesse processo, nos despedacemos pisoteando uns aos outros. A era vitoriana, a despeito de todas as suas mistificações, constituiu um período de rápido progresso, na medida em que os homens eram dominados mais pela esperança que pelo medo. Para que uma vez mais possamos progredir, precisamos uma vez mais nos deixar dominar pela esperança.

Tudo o que aumenta a segurança geral tende a diminuir a crueldade. Isso se aplica à prevenção da guerra, seja por meio do auxílio da Liga das Nações, seja por meio diverso; à prevenção da pobreza; a uma melhor saúde com melhorias na medicina, na higiene e no saneamento; e a todos os métodos que tenham por objetivo aplacar os terrores que espreitam nos abismos da mente humana e irrompem como pesadelos quando os homens dormem. Mas nada se poderá conseguir procurando garantir a segurança de uma parte da humanidade à custa de outra – dos franceses à custa dos alemães, dos capitalistas à custa dos assalariados, dos brancos à custa dos amarelos, e assim por diante. Métodos como esses só farão aumentar o terror dentro do grupo dominante, receoso de que o ressentimento leve os oprimidos a rebelar-se. Somente a justiça pode conferir segurança; e por “justiça” me refiro ao reconhecimento da igualdade de direitos entre todos os seres humanos.

A par das mudanças sociais destinadas a proporcionar segurança, há ainda um outro meio, mais direto, de diminuir o medo, isto é, um regime destinado a aumentar a coragem. Devido à importância da coragem nas batalhas, desde cedo os homens descobriram meios de elevá-la, mediante a educação e a dieta – comer carne humana, por exemplo, supunha-se útil. Mas a coragem militar devia ser prerrogativa da casta dominante: logo, os espartanos deveriam ter mais coragem que os hilotas; os oficiais britânicos, mais que os soldados hindus; os homens, mais que as mulheres; e assim por diante. Durante séculos, supunha-se que a coragem fosse privilégio da aristocracia. Todo aumento de coragem verificado na casta dominante era usado para aumentar as obrigações dos oprimidos; portanto, para aumentar os fundamentos do medo entre os opressores e manter numerosas as causas da crueldade. A coragem deve ser democratizada antes que possa tornar os homens humanos.

Em grande parte, a coragem já foi democratizada pelos acontecimentos recentes. As sufragistas demostraram ter tanta coragem quanto os homens mais bravos; tal demonstração foi essencial para granjear-lhes o direito de voto. Na guerra, o soldado raso necessitava de tanta coragem quanto um capitão ou tenente, e muito mais do que um general; isso muito teve a ver com sua ausência de espírito servil após a desmobilização. Os bolcheviques, que se proclamam os defensores do proletariado, não demonstram carecer de coragem, diga-se deles o que se quiser. Seu histórico pré-revolucionário é prova disso. No Japão, onde outrora o samurai detinha o monopólio do ardor mar­cial, o recrutamento para o serviço militar obrigatório levou a coragem a se fazer necessária junto a toda a população masculina. Assim, entre todas as Grandes Potências muito se fez, durante o último meio século, no sentido de tornar a coragem não mais um monopólio aristocrá­tico: não houvesse sido assim, a ameaça à democracia seria muito maior do que é.

Mas a coragem em combate de modo algum constitui a única forma de coragem – sequer, talvez, a mais importante. Há coragem no enfrentamento da pobreza, no enfrentamento do escárnio, no enfrentamento da hostilidade de nosso próprio rebanho. Nesses casos, os mais bravos soldados são, muitas vezes, lamentavelmente deficientes. Há, também e acima de tudo, a coragem de se pensar calma e racionalmente diante do perigo e de se reprimir o impulso do medo-pânico e do ódio-pânico. São essas coisas que certamente a educação pode ajudar a proporcionar. E o ensino de todas as formas de coragem torna-se mais fácil quando se pode contar com boa saúde, a mente sã, uma alimentação adequada e a liberdade para exercer os impulsos fundamentais. Talvez fosse possível descobrir as fontes fisiológicas da coragem comparando-se o sangue de um gato com o de um coelho. Ao que tudo indica, não há limite para o que a ciência poderia fazer no sentido de aumentar a coragem – mediante, por exemplo, a experiência do perigo, uma vida atlética e uma dieta adequada. De todas essas coisas gozam em grande medida nossos rapazes da classe alta, mas até o momento são elas essencialmente uma prerrogativa dos ricos. A coragem estimulada nos segmentos mais pobres da comunidade não é senão uma coragem subserviente, não o tipo que envolve iniciativa e liderança. Quando as qualidades que hoje conferem liderança se tor­na­rem universais, já não haverá líderes e se­guidores, e a democracia por fim terá sido concretizada.

Mas o medo não é a única fonte de mal­dade; a inveja e as desilusões têm também a sua cota. A inveja de aleijados e corcundas é proverbial como fonte de perversidade, mas outros infortúnios além desses produzem resultados similares. Um homem ou uma mulher frustrados sexualmente tendem a mostrar-se repletos de inveja; geralmente isso se expressa na forma de condenação moral aos mais afortunados. Muito da força motriz contida nos movi­mentos revolucionários se deve à inveja aos ricos. O ciú­me é, naturalmente, uma forma especial de inveja – a inveja do amor. Os velhos não raro inve­jam os jovens; quando o fazem, tendem a tratá-los com crueldade.

Não há, até onde sei, maneira pela qual se possa lidar com a inveja, senão tornando mais feliz e plena a vida dos invejosos e acalentando nos jovens a ideia de empreendimentos coletivos, em lugar da competição. As piores espé­cies de inveja se manifestam naqueles que não têm uma vida plena no tocante a casamento, filhos ou carreira. Na maioria dos casos, esses infortúnios poderiam ser evitados com instituições sociais mais eficientes. Todavia, deve-se admitir que um resíduo de inveja tende a persistir. Há, na história, muitos exemplos de gene­rais tão ciumentos uns dos outros que, a realçar a reputação alheia, preferiram a derrota. Dois políticos do mesmo partido ou dois artistas da mesma escola quase que invariavelmente sentem ciúme um do outro. Em tais casos, ao que parece, não há nada a ser feito, exceto providenciar, na medida do possível, para que cada competidor não tenha condições de prejudicar o outro e que vença por maior mérito. O ciúme de um artista por seu rival geralmente acarreta pouco dano, já que a única maneira eficaz de ceder a isso é pintar quadros melhores que os do rival, pois que não lhe é dado destruí-los. Onde a inveja for inevitável, devemos utilizá-la como estímulo para nossos próprios esforços, e não para frustrar os esforços de nossos rivais.

As possibilidades da ciência no sentido de aumentar a felicidade dos homens não se restrin­gem à redução daqueles aspectos da natureza humana que levam à derrota mútua e pelos quais somos classificados como “maus”. Não há, provavelmente, limite para o que a ciên­cia pode fazer no sentido de aumentar a excelência positiva. A saúde pública, por exemplo, já foi bastante melhorada; apesar das lamú­rias dos que idealizam o passado, vivemos mais tempo e somos acometidos de menos enfermidades do que qualquer classe social ou nação do século XVIII. Se aplicarmos um pouco mais o conhecimento de que já dispomos, poderemos ser muito mais saudáveis do que somos hoje. Além do mais, as descobertas futuras tendem a acelerar esse processo consideravelmente.

Até agora, foi a ciência física a que mais efeitos produziu sobre nossas vidas, mas, no futuro, é provável que a fisiologia e a psicologia venham a ser muito mais poderosas. Quando descobrirmos de que modo o caráter depende de condições fisiológicas, seremos capazes, caso escolhamos, de produzir um número muito maior do tipo de ser humano que admiramos. Inteligência, capacidade artística, benevolência – não há dúvida de que todas essas coisas poderiam ser ampliadas com a ciência. Ao que parece, não há qualquer limite para o que poderá ser feito no sentido de produzir um mundo satisfatório, caso os homens sabiamente se utilizem da ciência. Em outra ocasião, expressei meu receio quanto à possibilidade de que os homens não façam um uso prudente do poder que obtêm com a ciência.(1) Neste momento, estou interessado no bem que os homens pode­riam fazer se quisessem, e não se, em vez disso, preferirão fazer o mal.

Há uma certa atitude, no tocante à aplicação da ciência à vida humana, pela qual tenho alguma simpatia, ainda que, em última análise, não concorde com ela. Trata-se da atitude dos que temem aquilo que é “antinatural”. Rousseau, evidentemente, é o grande defensor desse ponto de vista na Europa. Na Ásia, Lao-Tse o expôs de maneira ainda mais persuasiva – e isso 2.400 anos antes. Creio haver uma mescla de verdade e falsidade na admiração da “natureza”, da qual é importante que nos desvinculemos. Para começar, o que é “natural”? Grosso modo, tudo aquilo com que o falante estava acostumado na infância. Lao-Tse opõe-se a estradas, carruagens e barcos, coisas que eram provavelmente desconhecidas na aldeia em que ele nasceu. Rousseau, por sua parte, estava acostumado com elas e não as considerava contrárias à natureza. Mas não há dúvida de que teria amaldiçoado as estradas de ferro se tivesse vivido para vê-las nascer. As roupas e a culinária são dema­siado antigas para que as denunciem os apóstolos da natureza, não obstante todos eles se oponham às novas modas que ambas adotam. O controle de natalidade é tido como perverso por aqueles que toleram o celibato, haja vista que o primeiro constitui uma nova violação da natureza, ao passo que o segundo, uma velha violação. Aqueles que pregam em favor da “natureza” são inconsistentes sob todos esses aspectos, de sorte que nos sentimos tentados a considerá-los meros conservadores.

Entretanto, há algo a dizer em seu favor: tomemos como exemplo as vitaminas, cuja descoberta produziu uma reação favorável aos alimentos “naturais”. Parece, contudo, que as vitaminas podem ser supridas pelo óleo de fígado de bacalhau e pela luz elétrica, que por certo não fazem parte da dieta “natural” de um ser humano. Esse caso ilustra que, na ausência de conhecimento, um mal inesperado pode ser provocado por um novo afastamento da natureza; mas, no momento em que se passa a compreender esse mal, normalmente se pode remediá-lo com alguma nova artificialidade. No que diz respeito a nosso ambiente físico e aos meios físicos de satisfazermos a nossos desejos, não creio que a doutrina da “natureza” justi­fique algo mais do que uma certa cautela na adoção de novas experiências. O uso de roupas, por exemplo, constitui uma prática contrária à natureza e precisa ser suplementada por uma outra prática “antinatural”, isto é, sua lava­gem, se não quisermos que provoquem doenças. Mas as duas práticas juntas tornam o homem mais saudável do que o selvagem que se abstém de ambas.

Há mais a ser dito em prol da “natureza” no campo dos desejos humanos. Impor a um homem, a uma mulher ou a uma criança uma vida que frustre seus impulsos mais intensos é tanto cruel como perigoso; nesse sentido, uma vida em conformidade com a natureza deve ser recomendada, sob certas condições. Nada poderia ser mais artificial do que uma ferrovia elétrica subterrânea, e nem por isso é violentada a natureza de uma criança por ter de viajar nela; pelo contrário, quase todas as crianças consideram a experiência encantadora. As artifi­cialidades que satisfazem aos desejos dos seres humanos comuns são boas. Mas não há nada a dizer em defesa de formas de vida que são artificiais no sentido de que são impostas por uma autoridade ou por necessidade econômica. Não há dúvida de que tais formas de vida sejam, em certa medida, necessárias atualmente; as viagens oceânicas se tornariam muito complicadas caso não hou­vesse foguistas nos vapores. Mas necessidades dessa espécie são lamentáveis, donde deveríamos buscar maneiras de evitá-las. Uma certa dose de trabalho não é algo de que possamos nos queixar; na verdade, de nove em dez casos ela torna o homem mais feliz do que o ócio total. Mas a quantidade e o tipo de trabalho que a maioria das pessoas tem de exercer atualmente constitui em um grave mal: particu­larmente nociva é a sujeição à rotina ao longo de toda uma existência. A vida não deveria ser tão rigorosamente controlada nem tão metó­dica. Nossos impulsos, quando não fossem efetivamente destrutivos ou danosos aos outros, deveriam, se possível, ter curso livre; deveria haver espaço para a aventura. Deveríamos res­pei­tar a natureza humana, na medida em que nossos impulsos e desejos constituem o ma­terial do qual deve ser feita a nossa felicidade. É inútil dar aos homens algo abstratamente considerado como “bom”; devemos dar-lhes algo que desejem ou de que necessitem, se quisermos contribuir para sua felicidade. Com o tempo, talvez a ciência aprenda a moldar nossos desejos de modo que não contrastem com os desejos dos outros na mesma medida em que contrastam hoje; esta­remos aptos, pois, a satisfazer a uma proporção muito maior de desejos do que atual­mente. Nesse sentido, mas somente nesse senti­do, nossos desejos terão se tornado “melhores”. Um simples desejo, considerado isoladamente, não é melhor nem pior do que qualquer outro; mas um grupo de desejos será melhor do que um outro se todos os desejos que o compõem se realizarem simultaneamente, ao passo que, no outro grupo, forem incompatíveis entre si. Eis por que o amor é melhor do que o ódio.

O respeito à natureza física é pura tolice; a natureza física deve ser estudada no intuito de se fazer com que sirva, tanto quanto possível, aos propósitos humanos, ainda que, do ponto de vista ético, ela permaneça nem boa, nem má. E quando a natureza física e a natureza hu­mana interagem, como na questão popu­lacional, não há necessidade de que juntemos as mãos numa atitude de passiva adoração e aceitemos a guerra, a epidemia e a fome como os únicos meios de lidar com o excesso de fertilidade. Dizem os clérigos: é pecaminoso, nessa questão, aplicar a ciência ao lado físico do problema; devemos (dizem eles) aplicar a moralidade ao lado humano e praticar a abstinência. À parte o fato de que todos, inclusive os clérigos, sabem que seu conselho não será seguido, por que motivo deveria ser pecami­noso solucionar a questão populacional com a adoção de meios físicos para prevenir a concepção? Nenhuma resposta surgirá, salvo aquela ba­seada em dogmas antiquados. E, por certo, a violência contra a natureza defendida pelos clérigos é no mínimo tão grande quanto a contida no controle de natalidade. Os clérigos preferem a violência contra a natureza humana, violência que, quando praticada com êxito, acarreta a infelicidade, a inveja, uma tendência à perseguição e não raro a loucura. Prefiro a “vio­lência” contra a natureza física, que é da mesma espécie que aquela referente à máquina a vapor ou mesmo ao uso do guarda-chuva. Esse exemplo mostra quão ambígua e incerta é a aplicação do princípio de que deveríamos seguir a “natureza”.

A natureza, mesmo a natureza humana, cada vez mais deixará de ser um dado absoluto; há de tornar-se, cada vez mais, o resultado da manipulação científica. Poderá a ciência, caso queira, permitir que nossos netos vivam uma vida plena, ao proporcionar-lhes conheci­mento, autocontrole e atributos que produzam harmonia, em vez de discórdia. No momento, ela está ensinando nossos filhos a matarem uns aos outros, visto que muitos homens de ciência estão dispostos a sacrificar o futuro da humanidade em troca de sua momentânea prosperidade. Mas essa fase passará quando os homens tiverem adquirido sobre suas paixões o mesmo domínio que já possuem sobre as forças do mundo exterior. Finalmente, então, teremos conquistado nossa liberdade.

(Bertrand Russell - No Que Acredito)

NOTA:
(1) - Ver Icarus, Bertrand Russell

publicado às 10:03

O Banquete (Symposion) é o diálogo platônico sobre o Amor (Eros); de estilo fortemente teatral e poético, consiste em uma série de discursos em que o Amor é apresentado sob diferentes aspectos. A passagem aqui selecionada, uma das mais célebres dos diálogos de Platão, é a apresentação por Sócrates de um discurso de Diotima, sacerdotisa de Mantineia, sobre o Amor como desejo — de beleza, de imortalidade, de sabedoria —, como processo de elevação da alma em busca da perfeição...

Ou como Penia (penúria) e Poros (deus da riqueza) se tornam pais do Amor (Eros)   
 
"[…] É uma longa história, disse ela, mas mesmo assim vou lhe contar. Quando Afrodite nasceu, os deuses fizeram uma grande festa e entre os convivas estava Poros, o deus da Riqueza, filho do Engenho (Metis). No final do banquete, veio a Penúria (Penia) mendigar, como sempre faz quando há alegria, e ficou perto da porta. Então, embriagado de néctar — pois vinho não existia ainda —, Poros, o deus da Riqueza, entrou no jardim de Zeus e ali, vencido pelo torpor, adormeceu. Então Penúria, tão sem recurso de seu, arquitetou o plano de ter um filho de Poros e, deitando-se ao seu lado, concebeu Amor. Assim sucedeu que desde o início Amor serviu e assistiu Afrodite, por ter sido gerado no dia em que ela nasceu e ser, além disso, por natureza, um amante do belo, e bela é Afrodite. Ora, como filho de Poros e da Penúria, Amor está numa situação peculiar. Primeiro, é sempre pobre e está longe da suavidade e beleza que muitos lhe supõem: ao contrário, é duro e seco, descalço e sem teto; sempre se deita no chão nu, sem lençol, e descansa nos degraus das portas ou à margem dos caminhos, ao ar livre; fiel à natureza da mãe, vive na penúria. Mas herdou do pai os esquemas de conquista de tudo o que é belo e bom; porque é bravo, impetuoso, muito sensível, caçador emérito, sempre tramando algum estratagema; desejoso e capaz de sabedoria, a vida toda perseguindo a verdade; um mestre do malabarismo, do feitiço e do discurso envolvente. Nem imortal nem mortal de nascimento, no mesmíssimo dia está cheio de vida quando a sorte lhe sorri, para logo ficar moribundo e em seguida renascer de novo por força da natureza paterna: mas os recursos que obtém sempre se perdem; de modo que Amor nunca é pobre ou rico e, além disso, está sempre a meio caminho da sabedoria e da ignorância. A questão é que nenhum deus persegue a sabedoria ou deseja tornar-se sábio, pois já o é; e ninguém mais que seja sábio persegue a sabedoria. Nem o ignorante persegue a sabedoria ou deseja ser sábio; nisso, aliás, a ignorância é confrangedora: estar satisfeita consigo mesma sem ser uma pessoa esclarecida nem inteligente. O homem que não se sente deficiente não deseja aquilo de que não sente deficiência.
Quem, então, Diotima, perguntei, são os seguidores da sabedoria, se não são nem os sábios nem os ignorantes?
Ora, a esta altura uma criança mesmo poderia dizer, replicou ela, que são as pessoas de tipo intermediário, entre as quais se inclui Amor. Porque a sabedoria diz respeito às coisas mais belas e Amor é o amor do belo; de modo que a necessidade de Amor tem que ser amiga da sabedoria e, como tal, deve situar-se entre o sábio e o ignorante. Pelo que, também, deve agradecer sua origem: pois se teve um pai sábio e rico, sua mãe é tola e pobre. Tal, meu bom Sócrates, é a natureza desse espírito. Que você tenha formado outro conceito de Amor não é surpreendente. Você supôs, a julgar por suas próprias palavras, que Amor fosse o amado e não o amante. O que o levou, imagino, a afirmar que o Amor é tão belo. O amável, com efeito, é realmente belo, suave, perfeito e abençoado; mas o amante é diferente, como mostra o relato que fiz.
Ao que observei: Então muito bem, senhora, tem razão. Mas se Amor é assim como descreve, que utilidade tem para o ser humano?
Essa é a questão seguinte, Sócrates, retrucou, que tentarei esclarecer. Se Amor é de natureza e origem tais como relatei, é também inspirado pelas coisas belas, como diz. Agora, suponha que alguém nos perguntasse: Sócrates e Diotima, em que sentido Amor é o amor do belo? Mas deixe-me colocar a questão de forma mais clara: o que é o amor do amante do belo? […] Nesses assuntos de amor até você, Sócrates, poderia eventualmente ser iniciado, mas não sei se entenderia os ritos e revelações dos quais eles não passam de introito para os verdadeiramente instruídos. No entanto, vou lhe falar deles, disse ela, e não pouparei os meus melhores esforços. Apenas faça o possível da sua parte para acompanhar. Aquele que bem procede nesse campo deve não somente começar por frequentar belos corpos na juventude. Em primeiro lugar, de fato, se for bem orientado, deve amar um corpo em particular e engendrar uma bela conversa; mas em seguida vai notar como a beleza desse ou daquele corpo é semelhante à de qualquer outro e que, se pretende buscar a ideia da beleza, é rematada tolice não encarar como uma só coisa a beleza que pertence a todos. Tendo percebido essa verdade, deve tornar-se amante de todos os belos corpos e arrefecer o seu sentimento por um único, desprezando isso como uma bobagem. Seu próximo passo será dar um valor maior à beleza das almas do que à do corpo, de forma que, por menor que seja a graça de qualquer alma promissora, bastará para o seu amor e cuidado e para despertar e pedir um discurso que sirva à formação dos jovens. E por último pode ser levado a contemplar o belo que existe em nossos costumes e leis e observar que tudo isso tem afinidade, assim concluindo que a beleza do corpo é questão menor. Dos costumes pode passar aos ramos do conhecimento e aí também encontrar uma província da beleza. Vendo assim a beleza no geral, poderá escapar da mesquinha e miúda escravidão de um único exemplo em que concentre como um servo todo o seu cuidado, como a beleza de um jovem, de um homem ou de uma prática. Dessa forma voltando-se para o oceano maior da beleza, pode pela contemplação despertar em todo o seu esplendor muitos e belos frutos do discurso e da meditação, numa rica colheita filosófica; até que, com a força e ascensão assim obtidas, vislumbra o conhecimento específico de uma beleza ainda não revelada. E agora peço que preste a maior atenção, disse ela.
Quando um homem foi assim instruído no conhecimento do amor, passando em revista coisas belas uma após outra, numa ascensão gradual e segura, de repente terá a revelação, ao se aproximar do fim de suas investigações do amor, de uma visão maravilhosa, bela por natureza; e esse, Sócrates, é o objetivo final de todo o afã anterior. Antes de mais nada, ela é eterna e nunca nasce ou morre, envelhece ou diminui; depois, não é parcialmente bela e parcialmente feia, nem é assim num momento e assado em outro, nem em certos aspectos bela e em outros feia, nem afetada pela posição de modo a parecer bela para alguns e feia para outros. Nem achará o nosso iniciado essa beleza na aparência de um rosto ou de mãos ou de qualquer outra parte do corpo, nem numa descrição específica ou num determinado conhecimento, nem existente em algum lugar em outra substância, seja um animal, a terra, o céu ou outra coisa qualquer, mas existente sempre de forma singular, independente, por si mesma, enquanto toda a multiplicidade de coisas belas dela participam de tal modo que, embora todas nasçam e morram, ela não aumenta nem diminui e não é afetada por coisa alguma. Assim, quando um homem, pelo método correto do amor dos jovens, ascende desses particulares e começa a divisar aquela beleza, é quase capaz de captar o segredo final. Essa é a abordagem ou indução correta dos assuntos do amor. Começando pelas belezas óbvias, ele deve, pelo bem da mais elevada beleza, ascender sempre, como nos degraus de uma escada, do primeiro para o segundo e daí para todos os corpos belos; da beleza pessoal chega aos belos costumes, dos costumes ao belo aprendizado e do aprendizado, por fim, àquele estudo particular que se ocupa da própria beleza e apenas dela; de forma que finalmente vem a conhecer a essência mesma da beleza. Nessa condição de vida acima de todas as outras, meu caro Sócrates, disse a mulher de Mantineia, um homem percebe realmente que vale a pena viver ao contemplar a beleza essencial. Esta, uma vez contemplada, superará em brilho o seu ouro e as suas vestes, os seus belos rapazes e garotos cuja aparência agora tanto o perturba e o torna disposto, como muitos outros à simples visão e companhia dos seus favoritos, a passar mesmo sem comida e bebida, se isso fosse de algum modo possível, apenas para poder olhá-los e desfrutar de sua presença. Mas diga-me o que aconteceria se um de vocês tivesse a sorte de contemplar a beleza essencial inteira, pura e genuína, não contaminada pela carne e a cor da humanidade e todo esse refugo mortal. E se pudessem divisar a própria beleza divina em sua forma única? Acha que é uma vida lamentável para um homem — ver as coisas dessa maneira, adquirir essa visão pelos meios adequados e tê-la sempre consigo? Apenas considere, disse ela, que isso fará somente com que, ao ver a beleza através daquilo que a torna visível, não alimente ilusões mas exemplos de virtude, porquanto seu contato não é com a ilusão mas com a verdade. Assim, quando adquirir uma verdadeira virtude e desenvolvê-la, estará destinado a conquistar a amizade do Céu. Este, acima de todos, é um homem imortal. Foi isso, Fedro e demais companheiros, o que Diotima me disse e do que estou convencido; e tento, de minha parte, persuadir os vizinhos de que para alcançar essa visão a melhor ajuda que a natureza humana pode esperar é do Amor. Por isso digo-lhes agora que todo homem deve reverenciar o Amor, como eu de minha parte reverencio com especial devoção todas as questões do amor e exorto todos os outros homens a fazer o mesmo. Agora e sempre glorifico ao máximo o poder e o valor do Amor. Assim eu lhe peço, Fedro, que tenha a bondade de considerar este relato um elogio do Amor ou chame-o como melhor lhe aprouver. […]"

(Danilo Marcondes - Textos Básicos de Filosofia)

 

publicado às 03:38

O Banquete (Symposion) é o diálogo platônico sobre o Amor (Eros); de estilo fortemente teatral e poético, consiste em uma série de discursos em que o Amor é apresentado sob diferentes aspectos. A passagem aqui selecionada, uma das mais célebres dos diálogos de Platão, é a apresentação por Sócrates de um discurso de Diotima, sacerdotisa de Mantineia, sobre o Amor como desejo — de beleza, de imortalidade, de sabedoria —, como processo de elevação da alma em busca da perfeição...

Ou como Penia (penúria) e Poros (deus da riqueza) se tornam pais do Amor (Eros)   
 
"[…] É uma longa história, disse ela, mas mesmo assim vou lhe contar. Quando Afrodite nasceu, os deuses fizeram uma grande festa e entre os convivas estava Poros, o deus da Riqueza, filho do Engenho (Metis). No final do banquete, veio a Penúria (Penia) mendigar, como sempre faz quando há alegria, e ficou perto da porta. Então, embriagado de néctar — pois vinho não existia ainda —, Poros, o deus da Riqueza, entrou no jardim de Zeus e ali, vencido pelo torpor, adormeceu. Então Penúria, tão sem recurso de seu, arquitetou o plano de ter um filho de Poros e, deitando-se ao seu lado, concebeu Amor. Assim sucedeu que desde o início Amor serviu e assistiu Afrodite, por ter sido gerado no dia em que ela nasceu e ser, além disso, por natureza, um amante do belo, e bela é Afrodite. Ora, como filho de Poros e da Penúria, Amor está numa situação peculiar. Primeiro, é sempre pobre e está longe da suavidade e beleza que muitos lhe supõem: ao contrário, é duro e seco, descalço e sem teto; sempre se deita no chão nu, sem lençol, e descansa nos degraus das portas ou à margem dos caminhos, ao ar livre; fiel à natureza da mãe, vive na penúria. Mas herdou do pai os esquemas de conquista de tudo o que é belo e bom; porque é bravo, impetuoso, muito sensível, caçador emérito, sempre tramando algum estratagema; desejoso e capaz de sabedoria, a vida toda perseguindo a verdade; um mestre do malabarismo, do feitiço e do discurso envolvente. Nem imortal nem mortal de nascimento, no mesmíssimo dia está cheio de vida quando a sorte lhe sorri, para logo ficar moribundo e em seguida renascer de novo por força da natureza paterna: mas os recursos que obtém sempre se perdem; de modo que Amor nunca é pobre ou rico e, além disso, está sempre a meio caminho da sabedoria e da ignorância. A questão é que nenhum deus persegue a sabedoria ou deseja tornar-se sábio, pois já o é; e ninguém mais que seja sábio persegue a sabedoria. Nem o ignorante persegue a sabedoria ou deseja ser sábio; nisso, aliás, a ignorância é confrangedora: estar satisfeita consigo mesma sem ser uma pessoa esclarecida nem inteligente. O homem que não se sente deficiente não deseja aquilo de que não sente deficiência.
Quem, então, Diotima, perguntei, são os seguidores da sabedoria, se não são nem os sábios nem os ignorantes?
Ora, a esta altura uma criança mesmo poderia dizer, replicou ela, que são as pessoas de tipo intermediário, entre as quais se inclui Amor. Porque a sabedoria diz respeito às coisas mais belas e Amor é o amor do belo; de modo que a necessidade de Amor tem que ser amiga da sabedoria e, como tal, deve situar-se entre o sábio e o ignorante. Pelo que, também, deve agradecer sua origem: pois se teve um pai sábio e rico, sua mãe é tola e pobre. Tal, meu bom Sócrates, é a natureza desse espírito. Que você tenha formado outro conceito de Amor não é surpreendente. Você supôs, a julgar por suas próprias palavras, que Amor fosse o amado e não o amante. O que o levou, imagino, a afirmar que o Amor é tão belo. O amável, com efeito, é realmente belo, suave, perfeito e abençoado; mas o amante é diferente, como mostra o relato que fiz.
Ao que observei: Então muito bem, senhora, tem razão. Mas se Amor é assim como descreve, que utilidade tem para o ser humano?
Essa é a questão seguinte, Sócrates, retrucou, que tentarei esclarecer. Se Amor é de natureza e origem tais como relatei, é também inspirado pelas coisas belas, como diz. Agora, suponha que alguém nos perguntasse: Sócrates e Diotima, em que sentido Amor é o amor do belo? Mas deixe-me colocar a questão de forma mais clara: o que é o amor do amante do belo? […] Nesses assuntos de amor até você, Sócrates, poderia eventualmente ser iniciado, mas não sei se entenderia os ritos e revelações dos quais eles não passam de introito para os verdadeiramente instruídos. No entanto, vou lhe falar deles, disse ela, e não pouparei os meus melhores esforços. Apenas faça o possível da sua parte para acompanhar. Aquele que bem procede nesse campo deve não somente começar por frequentar belos corpos na juventude. Em primeiro lugar, de fato, se for bem orientado, deve amar um corpo em particular e engendrar uma bela conversa; mas em seguida vai notar como a beleza desse ou daquele corpo é semelhante à de qualquer outro e que, se pretende buscar a ideia da beleza, é rematada tolice não encarar como uma só coisa a beleza que pertence a todos. Tendo percebido essa verdade, deve tornar-se amante de todos os belos corpos e arrefecer o seu sentimento por um único, desprezando isso como uma bobagem. Seu próximo passo será dar um valor maior à beleza das almas do que à do corpo, de forma que, por menor que seja a graça de qualquer alma promissora, bastará para o seu amor e cuidado e para despertar e pedir um discurso que sirva à formação dos jovens. E por último pode ser levado a contemplar o belo que existe em nossos costumes e leis e observar que tudo isso tem afinidade, assim concluindo que a beleza do corpo é questão menor. Dos costumes pode passar aos ramos do conhecimento e aí também encontrar uma província da beleza. Vendo assim a beleza no geral, poderá escapar da mesquinha e miúda escravidão de um único exemplo em que concentre como um servo todo o seu cuidado, como a beleza de um jovem, de um homem ou de uma prática. Dessa forma voltando-se para o oceano maior da beleza, pode pela contemplação despertar em todo o seu esplendor muitos e belos frutos do discurso e da meditação, numa rica colheita filosófica; até que, com a força e ascensão assim obtidas, vislumbra o conhecimento específico de uma beleza ainda não revelada. E agora peço que preste a maior atenção, disse ela.
Quando um homem foi assim instruído no conhecimento do amor, passando em revista coisas belas uma após outra, numa ascensão gradual e segura, de repente terá a revelação, ao se aproximar do fim de suas investigações do amor, de uma visão maravilhosa, bela por natureza; e esse, Sócrates, é o objetivo final de todo o afã anterior. Antes de mais nada, ela é eterna e nunca nasce ou morre, envelhece ou diminui; depois, não é parcialmente bela e parcialmente feia, nem é assim num momento e assado em outro, nem em certos aspectos bela e em outros feia, nem afetada pela posição de modo a parecer bela para alguns e feia para outros. Nem achará o nosso iniciado essa beleza na aparência de um rosto ou de mãos ou de qualquer outra parte do corpo, nem numa descrição específica ou num determinado conhecimento, nem existente em algum lugar em outra substância, seja um animal, a terra, o céu ou outra coisa qualquer, mas existente sempre de forma singular, independente, por si mesma, enquanto toda a multiplicidade de coisas belas dela participam de tal modo que, embora todas nasçam e morram, ela não aumenta nem diminui e não é afetada por coisa alguma. Assim, quando um homem, pelo método correto do amor dos jovens, ascende desses particulares e começa a divisar aquela beleza, é quase capaz de captar o segredo final. Essa é a abordagem ou indução correta dos assuntos do amor. Começando pelas belezas óbvias, ele deve, pelo bem da mais elevada beleza, ascender sempre, como nos degraus de uma escada, do primeiro para o segundo e daí para todos os corpos belos; da beleza pessoal chega aos belos costumes, dos costumes ao belo aprendizado e do aprendizado, por fim, àquele estudo particular que se ocupa da própria beleza e apenas dela; de forma que finalmente vem a conhecer a essência mesma da beleza. Nessa condição de vida acima de todas as outras, meu caro Sócrates, disse a mulher de Mantineia, um homem percebe realmente que vale a pena viver ao contemplar a beleza essencial. Esta, uma vez contemplada, superará em brilho o seu ouro e as suas vestes, os seus belos rapazes e garotos cuja aparência agora tanto o perturba e o torna disposto, como muitos outros à simples visão e companhia dos seus favoritos, a passar mesmo sem comida e bebida, se isso fosse de algum modo possível, apenas para poder olhá-los e desfrutar de sua presença. Mas diga-me o que aconteceria se um de vocês tivesse a sorte de contemplar a beleza essencial inteira, pura e genuína, não contaminada pela carne e a cor da humanidade e todo esse refugo mortal. E se pudessem divisar a própria beleza divina em sua forma única? Acha que é uma vida lamentável para um homem — ver as coisas dessa maneira, adquirir essa visão pelos meios adequados e tê-la sempre consigo? Apenas considere, disse ela, que isso fará somente com que, ao ver a beleza através daquilo que a torna visível, não alimente ilusões mas exemplos de virtude, porquanto seu contato não é com a ilusão mas com a verdade. Assim, quando adquirir uma verdadeira virtude e desenvolvê-la, estará destinado a conquistar a amizade do Céu. Este, acima de todos, é um homem imortal. Foi isso, Fedro e demais companheiros, o que Diotima me disse e do que estou convencido; e tento, de minha parte, persuadir os vizinhos de que para alcançar essa visão a melhor ajuda que a natureza humana pode esperar é do Amor. Por isso digo-lhes agora que todo homem deve reverenciar o Amor, como eu de minha parte reverencio com especial devoção todas as questões do amor e exorto todos os outros homens a fazer o mesmo. Agora e sempre glorifico ao máximo o poder e o valor do Amor. Assim eu lhe peço, Fedro, que tenha a bondade de considerar este relato um elogio do Amor ou chame-o como melhor lhe aprouver. […]"

(Danilo Marcondes - Textos Básicos de Filosofia)

publicado às 23:46


No prefácio a Assim falou Zaratustra (1883), Nietzsche usa o estilo profético de seu personagem Zaratustra, inspirado na tradição persa do zoroastrismo, em um texto de caráter bastante poético, para formular algumas de suas mais famosas imagens — por exemplo, a do homem como “uma corda sobre um abismo”, uma visão ao mesmo tempo trágica e heroica.
Essa obra, em suas múltiplas significações, pode ser vista como um contraponto ao cristianismo, à sua concepção de virtude e à sua ética do sofrimento e da submissão, em grande parte responsáveis, segundo Nietzsche, pela decadência da civilização ocidental.

"IV. Mas Zaratustra contemplava, admirado, a multidão e lhe falou assim:
“O homem é uma corda estendida entre o animal e o super-homem — uma corda sobre o abismo.
Perigosa travessia, perigoso percurso, perigoso olhar para trás, perigoso tremor e paralisação.
A grandeza do homem está em ser ponte e não meta: o que nele se pode amar é o fato de ser ao mesmo tempo transição e declínio.
Amo os que só sabem viver em declínio; pois são os que transpõem.
Amo os que desprezam com intensidade, pois sabem venerar intensamente, e são flechas lançadas pelo anseio-da-outra-margem.
Amo os que não se satisfazem em procurar além das estrelas uma razão para serem declínio e oferenda, mas que, ao contrário, se sacrificam à terra para que esta um dia se torne a terra do super-homem.
Amo o que vive para conhecer, e quer conhecer para que um dia o super-homem viva. E quer assim o seu próprio declínio.
Amo o que trabalha e inventa para construir a morada do super-homem, e prepara para ele a terra, os animais e as plantas. Pois assim quer o seu declínio.
Amo o que ama a sua própria virtude, pois que a virtude é vontade de declínio e flecha do desejo.
Amo o que não guarda para si nem uma só gota de seu espírito mas quer ser inteiramente o espírito de sua própria virtude. É dessa forma que ele, como espírito, atravessa a ponte.
Amo o que faz da virtude inclinação e destino, pois ele, por amor à sua virtude, quer viver ainda e não mais viver.
Amo o que não quer virtudes em demasia. Uma única virtude é mais virtude do que duas, pois ela é o nó mais forte onde se ata o destino.
Amo o que prodigaliza sua alma, e que, ao fazer isso, não visa à gratidão nem ao pagamento; pois sempre dá e nada quer em troca.
Amo o que se envergonha quando o dado cai a seu favor, e então pergunta: serei um trapaceiro? Pois é para sua ruína que ele quer se encaminhar.
Amo o que antecede com palavras de ouro os seus atos e sempre cumpre mais do que promete; pois ele quer o seu declínio.
Amo o que justifica os que serão e resgata os que foram; pois quer perecer por aqueles que são.
Amo aquele que pune seu Deus porque o ama; porquanto só poderá perecer pela cólera de seu Deus.
A mo o que, mesmo ferido, tem a alma profunda, e que um simples acaso pode fazer perecer. Assim, ele atravessa de bom grado a ponte.
Amo aquele cuja alma transborda e a tal ponto se esquece de si que todas as coisas nele encontram lugar. Assim, todas as coisas se tornam seu declínio.
Amo o que tem o espírito livre e livre o coração. Assim, sua cabeça não passa de vísceras para seu coração; mas o coração o empurra para o declínio.
Amo todos aqueles que são como pesadas gotas caindo uma a uma da negra nuvem que paira sobre os homens; anunciam a chegada do raio e perecem como anunciadores.
Vede; sou o anunciador do raio, uma gota pesada dessa nuvem. Mas o raio se chama super-homem.”

(Danilo Macondes - Texos Básicos de Filosofia)

publicado às 22:27

Neste capítulo inicial de Além do bem e do mal (1886), Nietzsche retoma algumas das questões discutidas em “Sobre a verdade e a mentira em um sentido extramoral”, usando seu estilo iconoclasta contra alguns dos conceitos tradicionais da filosofia introduzidos pelos “grandes filósofos” como Descartes (o cogito) e Kant (os juízos sintéticos a priori). Ao ironizar a importância desses conceitos nos sistemas desses filósofos, procura mostrar que não resistiriam a um questionamento mais agudo, consistindo, no fundo, em meros postulados e não em verdades profundas sobre o ser humano ou a natureza do pensamento.

"2. Como poderia algo nascer do seu oposto? Por exemplo, a verdade do erro? Ou a vontade de verdade da vontade de engano? Ou a ação desinteressada do egoísmo ou a pura e radiante contemplação do sábio da concupiscência? Semelhante gênese é impossível; quem com ela sonha é um tolo, ou algo pior; as coisas de valor mais elevado devem ter uma origem que seja outra, própria — não podem derivar desse fugaz, enganador, sedutor, mesquinho mundo, desse turbilhão de insânia e cobiça! Devem vir do seio do ser, do intransitório, do deus oculto, da ‘coisa em si’ — nisso, e em nada mais, deve estar sua causa!” — Este modo de julgar constitui o típico preconceito pelo qual podem ser reconhecidos os metafísicos de todos os tempos; tal espécie de valoração está por trás de todos os seus procedimentos lógicos; é a partir desta sua “crença” que eles procuram alcançar seu “saber”, alcançar algo que no fim é batizado solenemente de “verdade”. A crença fundamental dos metafísicos é a crença nas oposições de valores. Nem aos mais cuidadosos dentre eles ocorreu duvidar aqui, no limiar, onde mais era necessário: mesmo quando haviam jurado para si próprios de omnibus dubitandum [de tudo duvidar]. Pois pode-se duvidar, primeiro, que existam absolutamente opostos; segundo, que as valorações e oposições de valor populares, nas quais os metafísicos imprimiram seu selo, sejam mais que avaliações-de-fachada, perspectivas provisórias, talvez inclusive vistas de um ângulo, de baixo para cima talvez, “perspectivas de rã”, para usar uma expressão familiar aos pintores. Com todo o valor que possa merecer o que é verdadeiro, veraz, desinteressado: é possível que se deva atribuir à aparência, à vontade de engano, ao egoísmo e à cobiça um valor mais alto e mais fundamental para a vida. É até mesmo possível que aquilo que constitui o valor dessas coisas boas e honradas consista exatamente em serem insidiosamente aparentadas, atadas, unidas, e talvez até essencialmente iguais, a essas coisas ruins e aparentemente opostas. Talvez! — Mas quem se mostra disposto a ocupar-se de tais perigosos “talvez”? Para isso será preciso esperar o advento de uma nova espécie de filósofos, que tenham gosto e pendor diversos, contrários aos daqueles que até agora existiam — filósofos do perigoso “talvez” a todo custo. — E, falando com toda a seriedade: eu vejo esses filósofos surgirem.
4. A falsidade de um juízo não chega a constituir, para nós, uma objeção contra ele; é talvez nesse ponto que a nossa nova linguagem soa mais estranha. A questão é em que medida ele promove ou conserva a vida, conserva ou até mesmo cultiva a espécie; e a nossa inclinação básica é afirmar que os juízos mais falsos (entre os quais os juízos sintéticos a priori) nos são os mais indispensáveis, que, sem permitir a vigência das ficções lógicas, sem medir a realidade com o mundo puramente inventado do absoluto, do igual a si mesmo, o homem não poderia viver — que renunciar aos juízos falsos equivale a renunciar à vida, negar a vida. Reconhecer a inverdade como condição de vida: isto significa, sem dúvida, enfrentar de maneira perigosa os habituais sentimentos de valor; e uma filosofia que se atreve a fazê-lo se coloca, apenas por isso, além do bem e do mal."

(Danilo Macondes - Textos Básicos de Filosofia)

publicado às 22:10

Esse texto, de 1873, é um dos momentos privilegiados em que Nietzsche inicia sua revisão de conceitos tradicionais da filosofia, como o de verdade. Seu objetivo é desmistificar a “verdade”, revelando-a como um conceito fabricado, isto é, criado histórica e socialmente. Entretanto, tal conceito tem sua origem ocultada, aparecendo como objetivo, definitivo, científico. Por meio da consideração da linguagem, através da qual conceitos como o de verdade são criados e entram em circulação, pode-se revelar a origem e o caráter metafórico desses conceitos.
 

"Em algum recanto distante do universo espalhado na cintilação de inúmeros sistemas solares, havia certa vez uma estrela onde animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais soberbo e mentiroso da “história universal”: mas foi somente um minuto. Após alguns suspiros da natureza a estrela congelou, e os inteligentes animais acabaram morrendo. — Assim alguém poderia inventar uma fábula, e não ilustraria suficientemente de que maneira lamentável, vaga e fugidia, de que maneira vã e gratuita se constitui o intelecto humano dentro da natureza. Houve eternidades nas quais ele não esteve; quando novamente for passado, nada terá existido. Pois para aquele intelecto não há uma missão mais ampla que ultrapasse a vida humana. Mas ele é humano, e somente seu possuidor e produtor pode tomá-lo tão pateticamente, como se os eixos do mundo girassem nele. Mas se pudéssemos entendermo-nos com a mosca, então perceberíamos que ela também paira pelo ar com esse pathos e sente voar em si o centro desse mundo. Não há na natureza nada tão condenável e insignificante que, através de um pequeno sopro daquela força do conhecimento, logo não transborde como um odre; e assim como todo carregador quer ter seu admirador, o homem mais orgulhoso, o filósofo, afirma ver por todos os lados os olhos do universo com um telescópio dirigido à sua ação e pensamento.
É notável que o intelecto seja capaz disso, justamente ele, que foi dado apenas como auxílio aos seres mais infelizes, delicados e efêmeros, a fim de mantê-los um minuto na existência, da qual, sem esse suplemento, eles teriam todo motivo para fugir tão rapidamente quanto o filho de Lessing. Aquela altivez ligada ao conhecer e ao sentir, nevoeiro ofuscante pousado sobre os olhos e o sentido dos homens, engana-os portanto sobre o valor da existência na medida em que traz em si mesma a mais lisonjeira avaliação sobre o próprio conhecer. Seu efeito mais geral é o engano — mas mesmo os efeitos mais particulares trazem em si algo do mesmo caráter.
O intelecto, como um meio para a conservação do indivíduo, desenvolve suas forças principais na dissimulação; pois esta é o meio através do qual se conservam os indivíduos mais fracos, menos robustos, aos quais foi negado travar uma luta pela existência com os cornos ou a mordida afiada de uma fera. No ser humano essa arte da dissimulação atinge o seu auge: aqui o engano, a lisonja, mentiras e ilusões, o falar-por-trás, o representar, o viver do brilho alheio, o estar mascarado, a convenção velada, o jogo de cena diante dos outros e de si mesmo, em suma: o constante esvoaçar em torno de uma chama de vaidade são tanto a regra e a lei segundo as quais quase nada é mais incompreensível do que o surgimento entre os homens de um impulso honesto e puro para a verdade. Eles estão profundamente mergulhados em ilusões e visões, seus olhos deslizam somente pela superfície das coisas e veem “formas”, em lugar nenhum sua sensação leva à verdade, contentando-se em receber estímulos e como que dedilhando um teclado nas costas das coisas. Além disso, durante toda uma vida o homem se deixa enganar à noite, no sonho, sem que jamais seu sentimento moral tenha procurado impedi-lo, enquanto devem existir homens que, com força de vontade, conseguiram parar de roncar. O que, em verdade, sabe o homem sobre si mesmo? Algum dia poderia ele perceber-se inteiramente, exposto como numa vitrine iluminada? A natureza não lhe ocultaria o que há de mais geral, mesmo sobre seu corpo, a fim de desterrá-lo e encerrá-lo, afastado das circunvoluções do intestino, do rápido fluxo da corrente sanguínea, das vibrações complicadas de suas fibras, numa consciência orgulhosa e charlatã? Ela jogou fora a chave: e ai da fatal curiosidade, que gostaria de olhar para fora e longe, através de uma fresta do quarto da consciência, e que agora pressente que o homem repousa sobre o que é impiedoso, ávido, insaciável, assassino, na indiferença de sua ignorância, e como que em sonhos pendurado nas costas de um tigre. De onde, em todo o mundo, surgiria nessa constelação o impulso à verdade!
Na medida em que o indivíduo, em oposição a outros indivíduos, quer conservar-se, num estado natural das coisas ele utiliza o intelecto na maioria das vezes somente para a dissimulação: mas porque ao mesmo tempo o homem, por necessidade e tédio, quer existir social e gregariamente, ele precisa de um tratado de paz e almeja que pelo menos o mais rude bellum omnium contra omnes [guerra de todos contra todos] desapareça de seu mundo. Esse tratado de paz implica algo que lembra o primeiro passo daquele enigmático impulso à verdade. Agora é fixado aquilo que a partir de então deve ser “verdade”, quer dizer, é inventada uma designação das coisas igualmente válida e obrigatória, e a legislação da linguagem institui também as primeiras leis da verdade: pois surge aqui, pela primeira vez, o contraste entre verdade e mentira. O mentiroso utiliza as denominações válidas, as palavras, para fazer parecer o irreal como real; ele diz, por exemplo: “sou rico”, enquanto a designação correta para o seu estado seria justamente “pobre”. Ele abusa das convenções estabelecidas através de trocas quaisquer ou mesmo inversões de nomes. Se faz isso de maneira egoísta e prejudicial, a sociedade não mais confiará nele e o excluirá de si. Nisso, os homens não evitam tanto ser enganados quanto serem prejudicados pelo engano: também nesse nível, eles basicamente não odeiam o engano, mas as consequências graves e hostis de certos tipos de engano. É num sentido semelhante e restrito que o homem quer somente a verdade: ele ambiciona as agradáveis consequências da verdade, que conservam a vida; e é indiferente ao conhecimento puro, sem consequências, se indispõe até mesmo de modo hostil às verdades talvez prejudiciais e destrutivas. E além disso: o que fazer com aquelas convenções da linguagem? Serão elas talvez produtos do conhecimento, do sentido de verdade, coincidirão as designações e as coisas? Será a linguagem a expressão adequada de todas as realidades? Somente através do esquecimento o homem pode chegar a presumir que possui uma “verdade” no grau há pouco designado. Se ele não quer se contentar com a verdade na forma da tautologia, ou seja, com estojos vazios, então comprará eternamente ilusões por verdades. O que é uma palavra? A representação de um estímulo nervoso em sons. Mas concluir sobre um estímulo nervoso uma causa exterior a nós é já o resultado de uma aplicação falsa e injustificada do princípio da razão. Como poderíamos, se só a verdade tivesse sido decisiva na gênese da linguagem, o ponto de vista da certeza nas designações, como poderíamos dizer: a pedra é dura — como se “dura” nos fosse conhecida de outra maneira e não apenas como um estímulo inteiramente subjetivo! Dividimos as coisas de acordo com os sexos, designamos a árvore como feminina, o vegetal como masculino: que transposições arbitrárias! Como nos distanciamos do cânone da certeza! Falamos de uma “cobra”: a designação não se refere ao contorcer-se, portanto também poderia convir ao verme. Que delimitações arbitrárias, que preferências unilaterais ora de uma ora de outra qualidade das coisas! As diversas línguas, colocadas lado a lado, mostram que nunca se chega à verdade com as palavras, nunca a uma expressão adequada: pois senão não haveria tantas línguas. A “coisa em si” (seria justamente a verdade pura e sem consequências) é, mesmo para quem forma a língua, completamente incompreensível e não vale absolutamente o esforço para tal. Ele designa somente as relações das coisas para com os homens, e para a sua expressão toma como auxílio as mais audazes metáforas. Um estímulo nervoso, primeiramente transposto numa imagem! Primeira metáfora. A imagem é novamente transformada num som! Segunda metáfora. E a cada vez um salto completo da esfera para dentro de outra completamente diferente e nova. Pode-se imaginar uma pessoa totalmente surda e que nunca experimentou a sensação do som e da música: de como esta se admira, por exemplo, com as figuras acústicas de Chladni na areia, encontra suas causas na vibração das cordas e então jurará que agora deverá saber o que os homens chamam de “som” — e assim acontece a todos nós com a linguagem. Acreditamos saber algo das próprias coisas quando falamos de árvores, cores, neve e flores, e nada possuímos além de metáforas das coisas, que não correspondem absolutamente às entidades originais. Assim como o som convertido em figura de areia, o enigmático X da coisa em si se comporta primeiro como estímulo nervoso, depois como imagem e finalmente como som. De qualquer forma, não se procede logicamente no surgimento da linguagem, e todo o material no qual e com o qual mais tarde o homem da verdade, o pesquisador, o filósofo, trabalha e constrói, se origina, quando não do lar nas nuvens dos cucos, então de qualquer forma não da essência das coisas. Pensemos especialmente na formação dos conceitos. Cada palavra se torna imediatamente conceito por não dever servir justamente para a experiência primordial única e absolutamente individualizada, à qual deve seu surgimento, por exemplo como lembrança, mas deve servir ao mesmo tempo para experiências inumeráveis, mais ou menos parecidas, quer dizer, estritamente falando jamais a mesma, e convir a casos absolutamente díspares. Todo conceito surge com a identificação do não idêntico. Com a mesma certeza de que uma folha nunca será igual à outra, o conceito de folha é formado pelo abandono dessas diversidades individuais, pelo esquecimento da diferenciação, e então desperta a representação, como se na natureza além das folhas houvesse algo que seria “folha”, algo como uma forma primordial, a partir da qual todas as folhas seriam tecidas, desenhadas, circundadas, coloridas, encrespadas, pintadas, mas por mãos pouco hábeis, de modo que nenhum exemplar pareceria correto e fidedigno, uma cópia fiel da forma original. Chamamos uma pessoa de “honesta”; por que hoje ela agiu tão honestamente?, perguntamos. Nossa resposta costuma ser: por causa de sua honestidade. A honestidade! Isto significa novamente: a folha é a causa das folhas. Nada sabemos sobre uma qualidade essencial que se chamaria “honestidade”, mas sim das ações numerosas e individualizadas e com isso diferentes, que com o abandono do diferente agora designamos ações honestas; por último, a partir delas formulamos uma qualitas oculta com o nome: “a honestidade”. A omissão do aspecto individual e real dá-nos o conceito, assim como também nos dá a forma, e a natureza, ao contrário, não conhece formas e conceitos, portanto não conhece gêneros, mas somente um X para nós inacessível e indefinível. Pois nossa antítese de indivíduo e gênero também é antropomórfica e não se origina da essência das coisas, mesmo que também não ousemos dizer que ela não lhe corresponde: o que seria uma afirmação dogmática e, como tal, tão improvável quanto o seu contrário.
Portanto, o que é verdade? Uma multidão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim: uma soma de relações humanas poética e retoricamente potencializadas, transpostas e ornadas e que, depois de longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, sobre as quais se esqueceu tratar-se de metáforas que se tornaram usadas e sem força sensível, moedas que perderam sua impressão e agora são consideradas apenas metal, não mais moedas."

(Danilo Macondes - Textos Básicos de Filosofia)

publicado às 21:44


PÓS-MODERNIDADE

por Thynus, em 07.09.16
Antes de tudo, precisamos frisar que o requisito fundamental para o entendimento da pós-modernidade é a compreensão da modernidade. Assim, propomos que antes da leitura deste verbete o leitor se dirija ao verbete sobre modernidade, pois ambos os conceitos são complementares de tal forma que a pós-modernidade não pode ser explicada sem a frequente menção às características modernas. Inclusive, a única definição consensual de pós-modernidade que parece haver na multiplicidade de ideias e conceitos discordantes presentes nesse “movimento” é aquela que explica a pós-modernidade como a contestação da modernidade.
O termo pós-modernidade hoje é tão amplamente utilizado que, para alguns, tudo o que se produziu nos últimos trinta anos é pós-moderno. Outros consideram que isso é um exagero. Há grande multiplicidade de conceitos sobre a pós-modernidade, muitas vezes contraditórios, mas podemos encontrar algumas definições pragmáticas. Jair Ferreira dos Santos, por exemplo, define pós-modernidade como o conjunto de mudanças das sociedades avançadas ocorridas nas Artes e ciências desde 1950, quando para alguns o modernismo teria se encerrado. Já para pensadores como Sergio Paulo Rouanet, a modernidade não se encerrou realmente. Há mesmo quem defenda que ela surgiu em 1870 ou, como o historiador Arnold Toynbee, depois da Segunda Guerra Mundial. Toynbee já usava o termo para se referir à perda de valores do Ocidente. Mas enquanto nas Artes os pós-modernos identificam o início de seu movimento em 1972,com a derrubada do edifício Pruitt-Igoe em Saint Louis, nos Estados Unidos, símbolo da decadência dos parâmetros modernistas na arquitetura, na Filosofia e nas ciências humanas muitos localizam seu surgimento a partir da década de 1960, na França,com a influência do estruturalismo linguístico sobre outras ciências e com a obra de pensadores considerados os “pais” do pós-modernismo, como Jean Baudrillard,Michel Foucault, Derrida e Deleuze. Para o historiador marxista Perry Anderson, no entanto, a pós-modernidade nasceu na década de 1930, no modernismo artístico surgido na década de 1920. Tudo isso nos mostra, no mínimo, a falta de consenso na definição desse conceito.
A pós-modernidade é assunto multidisciplinar: artistas, cientistas, filósofos, entre outros, refletem sobre esse tema. Mas para alguns desses pensadores o termo exprime coisas tão diferentes que explica, na verdade, muito pouco. No entanto,mesmo seus mais ferrenhos críticos parecem concordar com a existência de algumas características presentes em todos os discursos que se dizem pós-modernos. A principal delas é a crítica aos valores da sociedade ocidental, oriundos do Iluminismo, do racionalismo e da Revolução Industrial.
Para Jair Santos, a pós-modernidade nasceu com seu equivalente artístico, o pós-modernismo da arte pop em 1960, e se desenvolveu com a Filosofia e a crítica aos valores ocidentais em 1970. O pensamento pós-moderno seria, assim, típico das sociedades pós-industriais baseadas na informação, como os eua, o Japão e a Europa ocidental, e se caracterizaria, entre outras coisas, pela sociedade de consumo e a valorização mais dos aspectos simbólicos da vida do que da realidade. E, nesse contexto, a mídia e os meios de comunicação têm importante papel.
Essa interpretação da pós-modernidade tem sua origem na Linguística, na Semiótica e na Teoria da Comunicação, disciplinas que se preocupam com o estudo do signo, ou seja, do símbolo, e sua relação com a realidade. Para Jair Santos, a pósmodernidade é a recriação do mundo por meio de signos. Nela a realidade perde sua substância, um fenômeno conhecido como a desreferenciação e a dessubstanciação do real, em que a realidade perde o sentido e a linguagem toma seu espaço. Um exemplo desse fenômeno é a propaganda, que na sociedade pós-industrial toma o lugar da coisa real. Nessa definição, a pós-modernidade é uma mistura eclética de coisas bastante diversas, fruto da sociedade consumidora de serviços, despolitizada e individualista. Mas como muitas são as abordagens pós-modernas, essa perda do sentido da realidade não se encontra em todas. Para o teórico da cultura Homi Bhabha, por exemplo, se a pós-modernidade for apenas a crítica da modernidade – esta entendida como o discurso racional iluminista –, ela é inútil. Para Bhabha, a crítica pós-moderna precisa ultrapassar a simples desconstrução dos valores da modernidade e incorporar novas formas de saber, como o fim das ideias etnocêntricas e a possibilidade de se escutar outras vozes e histórias, principalmente dos grupos minoritários. Bhabha valoriza, assim, o pós-colonialismo, que discorda das ideias modernas que legitimavam as desigualdades entre raças e Nações. Os pensadores póscolonialistas procuram valorizar as diferenças culturais e criticam o colonialismo do Ocidente. Bhabha tenta rever o pós-moderno a partir do pós-colonialismo, sem pregar o fracasso do pensamento racional como um todo, mas movido pelas histórias das margens da modernidade. Existem, dessa forma, muitos tipos de pensadores pós-modernos, desde os que tentam, como Bhabha, fazer uma revisão racional dos preceitos da modernidade, mas incorporando novas visões de mundo de fora do Ocidente, até aqueles, como Michel Paty, que afirmam que tudo que existe na vida é a forma como ela é comunicada. Ou seja, que a realidade é apenas discurso. Por outro lado, não são poucos os críticos da pós-modernidade: pensadores que discordam que o atual momento histórico tenha superado a modernidade. Entre esses está o filósofo Sergio Paulo Rouanet. Para Rouanet, os pós-modernos afirmam que a modernidade não existe mais e estão baseados nos seguintes argumentos: a industrialização foi substituída pelo setor terciário no domínio da economia; a política dos partidos e do Estado também pereceu, estando hoje o poder em todo lugar, em particular com grupos minoritários; culturalmente a modernidade decaiu nas ciências, na Arte e na Filosofia. Nas ciências, que era baseada em discursos que pregavam o progresso social pelo conhecimento, hoje é pragmática, não mais acreditando nas utopias. Na Arte, extinguiram-se as fronteiras entre o popular e o erudito e a busca pela inovação. Essas seriam as principais características, segundo Rouanet, que os pensadores pósmodernos atribuem à pós-modernidade. Mas, para ele, todas essas ditas tendências pós-modernas já existiam na modernidade: A sociedade pós-industrial que teria tornado a indústria secundária já estava embrionária no próprio desenvolvimento do Capitalismo. Além disso, se o setor industrial diminuiu, o sistema industrial aumentou com o desenvolvimento da tecnologia. Já do ponto de vista político, o aparecimento de movimentos fora dos partidos e do Estado é também um dos fundamentos do liberalismo. Com relação à ciência, mudam as teorias, mas as regras para seu entendimento ainda são as mesmas do tempo de Galileu. No entanto, Rouanet admite que há uma consciência da pós-modernidade, pois muitos querem abandonar a modernidade, considerando-a uma construção deformada, destrutiva. De acordo com ele, entretanto, a única forma de combater as características negativas da modernidade é com a própria modernidade, pois só ela permite a crítica racional ao que quer que seja, inclusive a si própria. Rouanet enfatiza o fato de que não há um único conjunto de ideias na definição da pós-modernidade. Para uns a pós-modernidade só diz respeito às Artes, para outros abarca toda a esfera cultural, e para outros, a economia, a política e a sociedade. Enquanto uns acreditam que ela é bastante recente, outros defendem seu surgimento nos anos de 1950. Em algumas definições ela é um salto para frente, em outras é fuga para o passado. Para ele, essa multiplicidade não obedece às regras básicas nem da lógica nem da identidade, na qual uma coisa não pode ser ao mesmo tempo tudo e seu contrário. Mas, por outro lado, essa indefinição é um sintoma de que a pósmodernidade é um estado de espírito e não uma realidade. O único consenso nessas definições de pós-modernidade é a afirmação de que a modernidade envelheceu. Já o cientista político Michel Zaidan considera que a pós-modernidade tem grande influência sobre as concepções irracionalistas da História, influenciadas por Michel Foucault ou Walter Benjamin, ou ainda pela Nova História francesa. Essa produção seria irracionalista por não acreditar que se pode explicar a realidade e permanecer estudando apenas os discursos produzidos na História. Para a historiografia pós-moderna, dessa forma, não haveria realidade, tudo seria simulação da realidade, imagem e representação. Todo o conhecimento histórico é resumido a ser um texto sobre outro texto, e nunca sobre a realidade. O próprio conceito de História muda, tornando-se um “discurso verossímil” e não uma ciência. Há o perigo do relativismo absoluto, no qual não há realidade, tudo é versão, tudo é verdade. Com a grande visibilidade dos discursos sobre pós-modernidade em diferentes campos do conhecimento, dificilmente o professor de História pode escapar de se defrontar com esse problema atual: o que é a pós-modernidade? Como não há uma resposta fácil para essa questão, é importante que o educador busque as diferentes formas nas quais aparece esse discurso pós-moderno, inclusive a crítica à existência de uma pós-modernidade. Mas mesmo os críticos admitem que existe pelo menos uma vontade de que a modernidade tenha acabado. Essa vontade teria gerado grande produção artística e filosófica. O professor hoje depara com estudantes que nasceram e são criados sob o constante bombardeio de discursos e produções que apresentam uma linguagem pós-moderna. O sucesso mundial da trilogia cinematográfica Matrix, por exemplo (grande representante do pensamento pós-moderno que se quer eclético e ao mesmo tempo é construído pela mídia), se deu sobretudo sobre os jovens. As histórias em quadrinhos deixaram de ser um entretenimento juvenil para produzir também obras de arte para adultos, em um estilo de linguagem dos mais representativos da Arte pós-moderna. Assim, ainda que não esteja familiarizado com a obra de Lyotard ou Saussure, o professor está constantemente em contato com diversas linguagens pós-modernas, razão pela qual se faz necessário que ele reflita sobre elas, para melhor trabalhar com determinadas linguagens em sala de aula, desde a já usual linguagem cinematográfica até as histórias em quadrinhos.

(Kalina Vanderlei Silva, Maciel Henrique Silva - "Dicionário de conceitos históricos")

publicado às 22:33


MORAL COMO ANTINATUREZA

por Thynus, em 06.09.16

O cristão, em especial o cristão sacerdote, é um critério de valores. — — Ainda preciso dizer que em todo o Novo Testamento aparece uma única figura digna de respeito? Pilatos, o governador romano. Levar a sério uma questão entre judeus — ele não se persuade a fazer isso. Um judeu a mais ou a menos — que importa?... O nobre escárnio de um romano, ante o qual se comete um impudente abuso da palavra “verdade”, enriqueceu o Novo Testamento com a única frase que tem valor — que é sua crítica, até mesmo sua aniquilação: “que é a verdade?”... [João, 18, 38]

 
Todas as paixões têm um período em que são meramente funestas, em que levam para baixo suas vítimas com o peso da estupidez — e um período posterior, bem posterior, em que se casam com o espírito, se “espiritualizam”. Antes, devido à estupidez na paixão, fazia-se guerra à paixão mesma: conspirava-se para aniquilá-la — todos os velhos monstros da moral são unânimes nisso: “il faut tuer les passions” [é preciso matar as paixões]. A mais célebre formulação disso está no Novo Testamento, naquele Sermão da Montanha em que, diga-se de passagem, as coisas não são observadas do alto. Lá se diz, por exemplo, referindo-se à sexualidade: “se teu olho te escandaliza, arranca-o de ti”;39 felizmente, nenhum cristão age conforme esse preceito. Aniquilar as paixões e os desejos apenas para evitar sua estupidez e as desagradáveis conseqüências de sua estupidez, isso nos parece, hoje, apenas uma forma aguda de estupidez. Já não admiramos os dentistas que extraem os dentes para que eles não doam mais... Com alguma eqüidade se deve admitir, por outro lado, que o conceito de “espiritualização da paixão” não podia absolutamente ser concebido no solo do qual brotou o cristianismo. A Igreja primitiva lutou, como se sabe, contra os “inteligentes”, em favor dos “pobres de espírito”: como se poderia dela esperar uma guerra inteligente contra a paixão? — A Igreja combate a paixão com a extirpação em todo sentido: sua prática, sua “cura” é o castracionismo. Ela jamais pergunta: “Como espiritualizar, embelezar, divinizar um desejo?” — em todas as épocas, ao disciplinar, ela pôs a ênfase na erradicação (da sensualidade, do orgulho, da avidez de domínio, da cupidez, da ânsia de vingança). — Mas atacar as paixões pela raiz significa atacar a vida pela raiz: a prática da Igreja é hostil à vida...
 
O mesmo recurso, a mutilação, a erradicação, é instintivamente escolhido, na luta contra um desejo, por aqueles que são muito fracos de vontade, muito degenerados para poder impor-se moderação nele: por aquelas naturezas que têm necessidade de La Trappe,40 falando por metáfora (e sem metáfora —), de alguma definitiva declaração de hostilidade, de um abismo entre si mesmas e uma paixão. Os meios radicais são indispensáveis somente para os degenerados; a fraqueza da vontade ou, mais exatamente, a incapacidade de não reagir a um estímulo, é ela mesma apenas outra forma de degenerescência. A hostilidade radical, a inimizade mortal à sensualidade é um sintoma que faz pensar: justifica especulações sobre o estado geral de alguém tão excessivo. — Aliás, essa hostilidade, esse ódio atinge seu auge apenas quando tais naturezas já não têm firmeza bastante sequer para a cura radical, para a renúncia ao seu “diabo”. Observe-se a história inteira dos sacerdotes e filósofos, incluindo os artistas: as coisas mais venenosas para os sentidos não foram ditas pelos impotentes, tampouco pelos ascetas, mas pelos ascetas impossíveis, por aqueles que teriam tido necessidade de ser ascetas...
 
A espiritualização da sensualidade chama-se amor: ela é um grande triunfo sobre o cristianismo. Um outro triunfo é nossa espiritualização da inimizade. Consiste em compreender profundamente o valor de possuir inimigos: numa palavra, em agir e concluir de modo inverso àquele como antes se agia e se concluía. Em todos os tempos a Igreja quis a destruição de seus inimigos: nós, imoralistas e anticristos, vemos como vantagem nossa o fato de a Igreja subsistir... Também na política a inimizade se tornou agora mais espiritual — muito mais sagaz, pensativa, moderada. Quase todo partido vê que está no interesse de sua autoconservação que o partido oposto não esgote a força; o mesmo vale para a grande política. Sobretudo uma nova criação, o novo Reich, por exemplo, tem mais necessidade de inimigos que de amigos: apenas no antagonismo ele se sente necessário, apenas no antagonismo ele se torna necessário... Não agimos de modo diferente em relação ao inimigo “interior”: também aí espiritualizamos a inimizade, também aí compreendemos o seu valor. Somos fecundos apenas ao preço de sermos ricos em antagonismos; permanecemos jovens apenas sob a condição de que a alma não relaxe, não busque a paz... Nada se tornou mais estranho a nós do que aquele desiderato de antigamente, o da “paz de espírito”, o desiderato cristão; nada nos causa menos inveja do que a vaca moral e a gorda satisfação da boa consciência. Renunciamos à vida grande, ao renunciar à guerra... Em muitos casos, é certo, a “paz de espírito” é apenas um mal-entendido — outra coisa, que não sabe denominar-se mais honestamente. Eis alguns casos, sem rodeios e sem preconceito. “Paz de espírito” pode ser, por exemplo, a suave emanação de uma rica animalidade para o âmbito moral (ou religioso). Ou o começo da fadiga, a primeira sombra que a noite, que toda espécie de noite lança. Ou um sinal de que o ar está úmido, de que ventos meridionais se aproximam. Ou a gratidão, sem o saber, por uma digestão bem-sucedida (às vezes chamada de “amor aos homens”). Ou o acalmar-se do convalescente para quem tudo tem novo sabor e que aguarda... Ou o estado que sucede a uma forte satisfação da paixão que nos domina, o bem-estar de uma rara saciedade. Ou a caducidade de nossa vontade, de nossos desejos, de nossos vícios. Ou a preguiça, que a vaidade convence a adornar-se moralmente. Ou a chegada de uma certeza, até de uma certeza terrível, após uma prolongada tensão e tortura pela incerteza. Ou a expressão de maturidade e maestria em 
meio ao agir, criar, fazer, querer, o tranqüilo respirar, a atingida “liberdade da vontade”... Crepúsculo dos ídolos: quem sabe? Talvez também apenas uma “paz de espírito”...
 
Darei formulação a um princípio. Todo naturalismo na moral, ou seja, toda moral sadia, é dominado por um instinto da vida — algum mandamento da vida é preenchido por determinado cânon de “deves” e “não deves”, algum impedimento e hostilidade no caminho da vida é assim afastado. A moral antinatural, ou seja, quase toda moral até hoje ensinada, venerada e pregada, volta-se, pelo contrário, justamente contra os instintos da vida — é uma condenação, ora secreta, ora ruidosa e insolente, desses instintos. Quando diz que “Deus vê nos corações”,41 ela diz Não aos mais baixos e mais elevados desejos da vida, e toma Deus como inimigo da vida... O santo no qual Deus se compraz é o castrado ideal... A vida acaba onde o “Reino de Deus” começa...
 
Dado que se tenha compreendido o caráter hediondo dessa revolta contra a vida, que se tornou quase sacrossanta na moral cristã, compreendeu-se também, felizmente, uma outra coisa: o que há de inútil, aparente, absurdo, mentiroso numa tal revolta. Uma condenação da vida por parte do vivente é, afinal, apenas o sintoma de uma determinada espécie de vida: se tal condenação é justificada ou não, eis uma questão que não chega a ser levantada. Seria preciso estar numa posição fora da vida e, por outro lado, conhecê-la como alguém, como muitos, como todos os que a viveram, para poder sequer tocar no problema do valor da vida: razões bastantes para compreender que este é, para nós, um problema inacessível. Ao falar de valores, falamos sob a inspiração, sob a ótica da vida: a vida mesma nos força a estabelecer valores, ela mesma valora através de nós, ao estabelecermos valores... Disto se segue que também essa antinatureza de moral, que concebe Deus como antítese e condenação da vida, é apenas um juízo de valor da vida — de qual vida? de qual espécie de vida? — Já dei a resposta: da vida declinante, enfraquecida, cansada, condenada. A moral, tal como foi até hoje entendida — tal como formulada também por Schopenhauer enfim, como “negação da vontade de vida” —, é o instinto de décadence mesmo, que se converte em imperativo: ela diz: “pereça!” — ela é o juízo dos condenados...
 
Consideremos ainda, por fim, que ingenuidade é dizer “assim e assim deveria ser o homem!”. A realidade nos mostra uma fascinante riqueza de tipos, a opulência de um pródigo jogo e
alternância de formas: e algum pobre e vadio moralista vem e diz: “Não! o ser humano deveria ser outro!”... Ele sabe até como este deveria ser, esse mandrião e santarrão;42 ele desenha a si próprio no muro e diz “ecce homo!”...43 Mas, mesmo quando o moralista se volta apenas para o indivíduo e lhe diz: “você deveria ser assim e assim!”, ele não deixa de se tornar ridículo. O indivíduo é, de cima a baixo, uma parcela de fatum [fado, destino], uma lei mais, uma necessidade mais para tudo o que virá e será. Dizer-lhe “mude!” significa exigir que tudo mude, até mesmo o que ficou para trás... E, de fato, houve moralistas conseqüentes, que queriam o ser humano de outra forma, isto é, virtuoso, queriam-no à sua imagem, isto é, santarrão: para isso negaram eles o mundo! Tolice nada pequena! Imodéstia nada modesta!... A moral, na medida em que condena em si, não por atenções, considerações, intenções da vida, é um erro específico do qual não se deve ter compaixão, uma idiossincrasia de degenerados que causou dano incomensurável!... Nós, imoralistas, pelo contrário, abrimos nosso coração a toda espécie de entendimento, compreensão, abonação. Nós não negamos facilmente, buscamos nossa distinção em sermos afirmadores. Cada vez mais nossos olhos atentaram para essa economia que necessita e sabe aproveitar tudo o que é rejeitado pelo santo desatino do sacerdote, a doente razão do sacerdote, para essa economia que há na lei da vida, que mesmo das repugnantes espécies do santarrão, do sacerdote, do virtuoso tira sua vantagem — qual vantagem? — Mas nós mesmos, imoralistas, somos aqui a resposta...
 
(Friedrich Nietzsche - Crepúsculo do Ídolos ou como se filosofa com o martelo) 
 
NOTAS:
39. Cf. Mateus, 5, 29 (“o olho direito”, diz-se ali); cf. também Mateus, 18, 9, e Marcos, 9, 47; pouco adiante, “pobres de espírito” é outra referência ao Sermão da Montanha.
40. La Trappe: monastério francês (em Soligny, na Normandia) onde foi fundada, em 1664, a ordem dos monges trapistas, conhecida pelo rigor de suas normas.
41. “Deus vê nos corações”: citação de Lucas, 16, 15; logo em seguida, “no qual Deus se compraz”: cf. Mateus, 12, 18.
42. “esse mandrião e santarrão”: dieser Schlucker und Mucker, no original — nas outras versões: “este biltre e hipócrita”, “este fanfarrão e este beato”, ese mentecapto y mojigato, questo smunto bacchettone, ce pauvre diable de cagot, this wretched bigot and prig, this bigoted wretch, this maundering miseryguts.
43. “ecce homo”: “eis o homem” — palavras de Pilatos quando mostrou Jesus Cristo à multidão (João, 19, 5); Nietzsche usou a expressão como título de um poema, no “Prelúdio em rimas alemãs” de A gaia ciência, e como título do seu volume autobiográfico.

publicado às 05:47


O QUE É REALIDADE? O QUE É MAGIA?

por Thynus, em 04.09.16
Tudo que uma pessoa pode imaginar, outras podem tornar real.
(Julio Verne).

É preciso ser um realista para descobrir a realidade. É preciso ser um romântico para criá-la.
(Fernando Pessoa)
 

Magia do amor
REALIDADE  É  TUDO  o que existe. Parece claro, não? Só que não é. Há vários problemas. O que dizer dos dinossauros, que não existem mais? E das estrelas, tão distantes que quando sua luz finalmente chega até nós e conseguimos vê-las podem já ter se extinguido?
Trataremos dos dinossauros e das estrelas daqui a pouco. Mas, afinal, como sabemos que as coisas existem, mesmo no presente? Para começar, nossos cinco sentidos — visão, olfato, tato, audição e paladar — fazem um trabalho razoável para nos convencer de que muitas coisas são reais: pedras e camelos, grama recém-cortada e café moído na hora, lixa e veludo, cachoeiras e campainhas, açúcar e sal. Mas dizemos que algo é "real" só quando podemos detectá-lo diretamente com nossos cinco sentidos?
E quanto a uma galáxia, tão distante que não pode ser vista a olho nu? E uma bactéria, tão pequena que só pode ser vista com um microscópio? Devemos dizer que essas coisas não existem porque não as enxergamos? Não. É claro que podemos intensificar nossos sentidos com instrumentos especiais: telescópios para as galáxias, microscópios para as bactérias. Entendemos os telescópios e microscópios, sabemos como funcionam, por isso podemos usá-los para aumentar o alcance dos sentidos — da visão, nesses casos. E o que esses instrumentos nos permitem ver nos convence de que galáxias e bactérias existem.
E quanto às ondas de rádio? Existem? Os olhos não podem detectá-las, nem as orelhas, mas, também nesse caso, instrumentos especiais, como a televisão, convertem essas ondas em sinais que podemos ver e ouvir. Portanto, embora não possamos ver nem ouvir as ondas de rádio, sabemos que são parte da realidade. Entendemos o funcionamento do rádio e da televisão, que ajudam nossos sentidos a construir uma imagem do que existe: o mundo real, a realidade. Radiotelescópios (e telescópios de raios X) nos mostram estrelas e galáxias através de outro tipo de olho — são mais um modo de expandir a nossa visão.
De volta aos dinossauros. Como sabemos que um dia andaram pela Terra? Nunca vimos nem ouvimos um dinossauro, muito menos corremos de algum. Infelizmente, não temos uma máquina do tempo para vê-los. Mas, nesse caso, nossos sentidos contam com um tipo diferente de ajuda: temos os fósseis, que podemos ver a olho nu. Fósseis não correm nem pulam, mas, porque entendemos como se formam, podem dizer algo sobre o que aconteceu milhões de anos atrás. Entendemos que a água, contendo minerais dissolvidos, infiltra-se em corpos enterrados sob camadas de lama e rocha. Entendemos que os minerais se cristalizam nela e substituem a matéria de que é feito o corpo, átomo por átomo, deixando vestígios da forma original do animal impressos na pedra. Por isso, embora não possamos ver dinosssauros diretamente com nossos sentidos, podemos concluir que sem dúvida existiram, usando evidências indiretas detectadas pelos nossos sentidos: vemos e tocamos os vestígios de vida passada gravados na pedra. De certo modo, um telescópio pode funcionar como uma espécie de máquina do tempo. O que vemos quando olhamos qualquer coisa é, na verdade, luz, e a luz leva tempo para ir de um lugar a outro. Mesmo quando você olha para o rosto de um amigo, o que vê é passado, pois a luz vinda do rosto dele demora uma minúscula fração de segundo para chegar até seus olhos. O som viaja muito mais devagar, e é por isso que vemos um rojão brilhar no céu pouco antes de ouvir a explosão. Se você olha um homem cortando uma árvore ao longe, ouvirá com um curioso atraso o som dos golpes do machado.
A luz viaja tão depressa que em geral pressupomos que as coisas acontecem no instante em que as vemos. Mas com as estrelas é diferente. Até o Sol está a oito minutos-luz de distância. Se ele explodisse, esse evento catastrófico só faria parte da nossa realidade oito minutos depois. E seria o nosso fim! Depois do Sol, a estrela mais próxima de nós é a Próxima Centauri. Se você olhar para ela em 2011, verá o que estava acontecendo em 2007. As galáxias são imensos agrupamentos de estrelas, e nós estamos na Via, Láctea. Quando você olha para a vizinha mais próxima dela, Andrómeda, seu telescópio é uma máquina do tempo que o leva a 2,5 milhões de anos atrás. Existe um grupo de cinco galáxias chamado Quinteto de Stephan, que vemos pelo telescópio Hubble, e elas colidem espetacularmente urnas contra as outras. Mas as colisões que vemos aconteceram há 280 milhões de anos. Se numa dessas galáxias houver extraterrestres com telescópios que possam nos ver, o que eles estão vendo na Terra agora são os ancestrais mais remotos dos dinossauros. Existem alienígenas no espaço cósmico? Nunca vimos nem ouvimos nenhum. Eles são parte da realidade? Ninguém sabe. Mas sabemos que tipo de coisa nos ajudaria a identificá-los. Se algum dia chegarmos perto de um extraterrestre, nossos sentidos poderão nos alertar. Talvez um dia alguém na Terra invente um telescópio potente o bastante para detectar vida em outros planetas. Talvez nossos radiotelescópios captem mensagens que só poderíam vir de inteligência alienígena. A realidade não consiste apenas nas coisas que já conhecemos. Ela inclui o que existe mas ainda ignoramos — e que só viremos a conhecer no futuro, talvez quando tivermos construído instrumentos melhores para auxiliar nossos cinco sentidos.
Sempre existiram átomos, mas só recentemente tivemos certeza disso, e é provável que nossos descendentes saibam muitas outras coisas que hoje desconhecemos. É o fascínio e o prazer da ciência: ela revela coisas continuamente. Isso não quer dizer que devemos acreditar em tudo que se possa imaginar. Há inúmeras coisas que podemos imaginar cuja existência é improvável demais para ser real: fadas, duendes, hipogrifos. Devemos ter sempre a mente aberta, mas a única razão para acreditar que algo existe é ter evidências reais dessa existência.
 
Modelos: imaginação à prova
Há um recurso menos conhecido que os cientistas usam quando nossos sentidos não conseguem decidir o que é real. Eles criam um "modelo” do que podería estar acontecendo, depois o testam. Imaginamos — você poderia dizer que tentamos adivinhar — qual seria a situação. Em seguida, calculamos (normalmente pela matemática) o que deveriamos ver, ouvir etc. se o modelo fosse verdadeiro (em geral com ajuda de instrumentos de medição). Verificamos se foi isso mesmo o que vimos na realidade. O modelo pode ser de vários tipos: uma maquete feita de madeira ou plástico, uma série de cálculos matemáticos no papel ou uma simulação por computador. Examinamos atentamente o modelo e predizemos o que teríamos de ver (ouvir etc.) com os nossos sentidos (auxiliados talvez por instrumentos) se o modelo fosse correto. Por fim, averiguamos se as predições estão certas ou erradas. Se estiverem certas, isso aumenta nossa confiança de que o modelo representa mesmo a realidade; passamos então a criar novos experimentos, talvez refinando o modelo, para testar novamente as conclusões e confirmá-las. Se nossas predições estiverem erradas, rejeitamos o modelo, ou o modificamos e fazemos uma nova tentativa.
Vejamos um exemplo. Hoje, sabemos que os genes, as unidades da hereditariedade, são feitos de uma substância chamada DNA. Temos bons conhecimentos sobre o DNA e como ele funciona. Mas não podemos ver detalhadamente como ele é, nem mesmo com um microscópio. Quase tudo o que sabemos sobre o dna provém, indiretamente, de modelos que foram imaginados e testados.
Na verdade, muito antes que alguém tivesse ouvido falar em  dna, os cientistas  já  tinham descoberto várias coisas sobre os genes testando predições de modelos. No século XIX, um monge austríaco, Gregor Mendel, fez experimentos na horta de seu mosteiro, cruzando ervilhas em grandes quantidades. Ao longo de gerações dessas plantas, ele contou quantas tinham flores de várias cores e quantas tinham grãos enrugados ou lisos. Mendel nunca viu ou tocou um gene. Viu apenas ervilhas e flores, e usou seus olhos para contar os diversos tipos. Ele inventou um modelo que envolvia, o que nos dias de hoje chamamos de genes (embora Mendel não usasse esse termo), e calculou que, se o modelo fosse correto, em dado experimento de cruzamento deveríam nascer três vezes mais ervilhas lisas que enrugadas. E foi isso mesmo que ele viu ao fazer a contagem. Deixando de lado os detalhes, o importante é que os “genes” de Mendel foram produto de sua imaginação: ele não os via, nem mesmo ao microscópio, mas via ervilhas lisas e enrugadas, e pela contagem delas encontrou evidências indiretas de que seu modelo de hereditariedade era uma boa representação de algo no mundo real. Tempos depois, cientistas usaram uma modificação do método de Mendel, trabalhando com outros seres vivos, como drosófilas, em vez de ervilhas, para mostrar que os genes se encadeiam em uma ordem definida ao longo de filamentos chamados cromossomos (nós, humanos, temos 46 deles; as drosófilas têm oito). Foi possível até calcular, testando modelos, a ordem exata na qual os genes se dispunham. Tudo isso foi feito muito antes de sabermos que os genes eram feitos de DNA.
Hoje temos esse conhecimento, e sabemos exatamente como o dna funciona, graças a James Watson e Francis Crick, além de muitos outros cientistas que vieram depois deles. Watson e Crick não puderam ver o dna a olho nu — também fizeram suas descobertas imaginando modelos e testando-os. Eles construíram modelos de papelão e metal representando uma possível estrutura do DNA e calcularam quais teriam de ser as medidas se tais modelos fossem corretos. As predições de um dos modelos, chamado de dupla hélice, corresponderam exatamente às medições feitas por Rosalind Franklin e Maurice Wilkins usando instrumentos especiais que projetavam raios X em cristais de  d n a purificado. Watson e Crick também perceberam imediatamente que seu modelo da estrutura do dna produziria exatamente o tipo de resultados encontrado por Gregor Mendel na horta de seu mosteiro.
Portanto, temos três modos de saber o que é real. Podemos detectar diretamente com nossos cinco sentidos; indiretamente, com instrumentos especiais como telescópios e microscópios auxiliando nossos sentidos; ou ainda mais indiretamente, criando modelos do que poderia ser real e fazendo uma série de testes para ver se eles predizem corretamente o que podemos ver (ouvir etc.), com ou sem a ajuda de instrumentos. Em última análise, de um modo ou de outro tudo será confirmado por nossos sentidos.
Isso quer dizer que a realidade contém apenas coisas que podem ser detectadas, direta ou indiretamente, pelos nossos sentidos e pelos métodos da ciência? Mas e coisas como ciúme e prazer, felicidade e amor? Não são também reais?
Sim, são reais. Mas para existir dependem do cérebro: do cérebro humano, com certeza, e provavelmente também do cérebro de outras espécies animais avançadas, como chimpanzés, cães e baleias. Pedras não sentem alegria nem ciúme, montanhas não amam. Essas emoções são intensamente reais para quem as sente, mas não existiam antes de o cérebro existir. É possível que emoções desse tipo — e talvez outras com as quais nem sonhamos — existam em outros planetas, mas apenas naqueles que contenham cérebros, ou algo equivalente a eles, pois quem sabe que estrambóticos órgãos pensantes ou máquinas providas de sentimentos podem existir em outras partes do universo?
 
A ciência e o sobrenatural: a explicação e seu inimigo
Então essa é a realidade, e é assim que podemos saber se uma coisa é ou não real. Cada capítulo deste livro tratará de um aspecto específico da realidade — o Sol, os terremotos, o arco-íris ou os muitos tipos de animais. Agora quero falar sobre a outra palavra-chave do meu título: magia. É uma palavra ardilosa. Costumamos usá-la em três sentidos diferentes, e a primeira coisa que preciso fazer é distingui-los. Chamarei o primeiro de “magia sobrenatural”, o segundo de “magia de palco” e o terceiro (que é o meu sentido favorito e o que eu tinha em mente no meu título) de “magia poética”.
Magia sobrenatural é aquela descrita nos mitos e contos de fadas. (E também nos “milagres”, mas deixarei estes para examinar no último capítulo.) É a magia da lâmpada de Aladim, dos feitiços de bruxa, das histórias dos irmãos Grimm, de Hans Christian Andersen e de J. K. Rowling. É a magia ficcional da bruxa que transforma um príncipe num sapo, ou da fada madrinha que faz uma abóbora virar uma luxuosa carruagem. Essas são histórias da nossa infância que recordamos com ternura, e muitos de nós ainda apreciam quando são representadas em um espetáculo de Natal. Mas todos sabemos que esse tipo de magia é apenas ficção e não acontece na realidade.
A magia de palco, em contraste, realmente acontece e pode ser muito divertida. Ou, pelo menos, alguma coisa realmente acontece, embora não seja o que a platéia está pensando. Um homem num palco (costuma ser um homem, não sei por quê, então usarei “ele”; mas você pode trocar por “ela”, se preferir) nos ilude, fazendo-nos pensar que algo espantoso (talvez até sobrenatural) aconteceu, quando o que realmente houve foi uma coisa bem diferente. Lenços de seda não podem ser transformados em coelhos, do mesmo modo que sapos não podem virar príncipes. O que vemos no palco é apenas um truque. Nossos olhos nos enganam — ou melhor, o mágico se empenha em iludir nossos olhos, às vezes usando palavras com astúcia para nos distrair do que ele está fazendo com as mãos.
Alguns mágicos são honestos e fazem ques tão de que a platéia saiba que eles simplesmente executaram um truque. Estou falando de pessoas como James “o Incrível” Randi, Penn e Teller, ou Derren Brown. Embora esses admiráveis artistas não costumem explicar exatamente como fizeram um truque (até porque poderiam ser expulsos do Círculo Mágico, o clube dos mágicos), eles asseguram ao público que nenhuma magia sobrenatural aconteceu. Outros não dizem com todas as letras que tudo não passa de um truque, porém não ficam alardeando o que não fizeram; simplesmente deixam a platéia com a prazerosa sensação de que algo misterioso aconteceu, sem mentir. Infelizmente, existem alguns mágicos que são desonestos de propósito e fingem possuir poderes “sobrenaturais” ou “paranormais”; por exemplo, dizem que são capazes de entortar metais ou parar relógios apenas pelo poder do pensamento. Alguns desses farsantes (“charlatães” é um bom adjetivo para eles) recebem altas remunerações de companhias mineradoras ou petroleiras porque se dizem capazes de descobrir, usando “poderes psíquicos”, onde estão os bons lugares para fazer sondagem. Outros homens desse tipo exploram pessoas que vivem o luto dizendo-se capazes de entrar em contato com os mortos. Quando essas coisas acontecem, não se trata de divertir ou entreter, mas de abusar da credulidade ou do desespero das pessoas. Sejamos justos: é possível que nem todos esses indivíduos sejam charlatães. Alguns talvez acreditem sinceramente que são capazes de falar com os mortos.
O terceiro significado de magia é aquele que tenho em mente no título: a magia poética. Uma música bonita pode nos comover até as lágrimas, e por vezes dizemos que uma apresentação foi “mágica”. Fitamos as estrelas numa noite escura sem lua, longe das luzes da cidade, e, deslumbrados, dizemos que é uma visão de “pura magia”. Poderiamos usar essa mesma palavra para desçrever um maravilhoso pôr do sol, uma paisagem dos Alpes ou um arco-íris no céu. Nesse sentido, “mágico” significa profundamente comovente, estimulante, algo que nos deixa arrepiados e nos az sentir plenamente vivos. O que espero mostrar a você neste livro é que a realidade — os fatos do mundo real como são compreendidos através dos métodos da ciência — é mágica nesse terceiro sentido, o sentido poético, o sentido de que é bom estar vivo.
Agora quero voltar à ideia do sobrenatural e explicar por que ela nunca pode nos oferecer uma explicação verdadeira para as coisas que vemos neste planeta e no universo que nos cerca. Dar uma explicação sobrenatural para alguma coisa não explica nada e, pior ainda, exclui qualquer possibilidade de essa coisa vir a ser explicada no futuro. Por que digo isso? Porque, por definição, uma coisa “sobrenatural” tem de estar fora do alcance de uma explicação natural. Tem de estar fora do alcance da ciência e do método muito bem estabelecido, testado e aprovado que tem sido responsável pelos imensos avanços no conhecimento que nos beneficiam há cerca de quatrocentos anos. Dizer que algo sobrenatural aconteceu não é apenas dizer “não entendemos isso”, mas afirmar “nunca entenderemos, por isso nem tente”.
A ciência faz exatamente o contrário. Quando encontra alguma coisa que não sabe explicar, aproveita e faz perguntas, cria modelos possíveis e os testa; e assim vamos avançando, aos poucos, em direção à verdade. Se acontece alguma coisa que contraria a noção que temos da realidade, os cientistas veem isso como uma refutação do modelo que eles mesmos criaram, sendo então preciso abandoná-lo ou alterá-lo. É por meio desses ajustes e testes subsequentes que nos aproximamos cada vez mais da verdade.
O que você pensaria de um detetive que, não conseguindo explicar um assassinato, tem preguiça de tentar desvendar o mistério e apela para a simples explicação de que é um caso “sobrenatural”? Toda a história da ciência mostra que muito do que já foi atribuído ao sobrenatural — causado por deuses (felizes ou zangados), demônios, bruxas, espíritos, maldições e feitiços — na verdade tem explicações naturais, explicações que podemos compreender e testar até considerar confiáveis. Não existe nenhuma razão para acreditar que as coisas para as quais a ciência ainda não tem uma explicação natural são sobrenaturais, do mesmo modo que os vulcões, terremotos e doenças não são causados por deuses furiosos, como antes se acreditava.
É claro que ninguém acredita realmente que seria possível transformar uma abóbora numa carruagem ou um sapo num príncipe. (Ou será um príncipe num sapo? Nunca consigo me lembrar.) Mas alguma vez você já parou para pensar por que coisas assim seriam impossíveis? Há várias maneiras de responder a essa pergunta. Eis a minha favorita.
Sapos e carruagens são coisas complexas, com inúmeras partes que precisam ser reunidas de um modo específico, segundo um padrão que não se forma por acaso (ou por um movimento de varinha mágica). É isso que significa “complexo”. É dificílimo produzir algo complexo como um sapo ou uma carruagem. Para fazer uma carruagem, é necessário montar todas as partes do modo exato. É preciso ter a habilidade de um carpinteiro e outros artesãos. Carruagens não surgem por acaso, nem se você estalar os dedos ou disser “abracadabra”. Uma carruagem tem estrutura, complexidade, diversas partes com funções específicas — rodas e eixos, janelas e portas, molas e assentos acolchoados. Seria relativamente fácil transformar algo complexo como uma carruagem em algo simples como cinzas, por exemplo. A fada madrinha só precisaria de um bom maçarico. Quase qualquer coisa pode facilmente ser transformada em cinzas. Mas ninguém é capaz de pegar um monte de cinzas — ou uma abóbora — e transformar numa carruagem, porque se trata de algo muito complexo, até em um sentido utilitário: uma carruagem tem a finalidade de transportar pessoas.
Facilitemos as coisas para a fada madrinha. Suponhamos que, em vez de recorrer a uma abóbora, ela tivesse todas as partes necessárias para montar uma carruagem misturadas dentro de uma caixa, como naqueles kits para montar modelos de aviões. O kit para fazer uma carruagem consiste em centenas de tábuas, painéis de vidro, hastes e barras de aço, espumas, pedaços de couro, além de pregos, parafusos e cola para unir tudo. Agora suponhamos que, em vez de ler as instruções e unir as partes na sequência correta, ela simplesmente ponha tudo dentro de um grande saco e o chacoalhe. Qual a chance de que as partes venham a se unir do modo certo para montar uma carruagem? A resposta é: praticamente nenhuma. E parte da razão é o número imenso de modos possíveis em que os pedaços poderiam se combinar sem produzir uma carruagem ou qualquer coisa útil.
Se você pegar inúmeras partes e sacudidas de qualquer jeito, é possível que em algum momento elas venham a se juntar de um modo que tenha alguma utilidade ou que possamos reconhecer como especial. Mas a probabilidade de isso acontecer é irrisória, insignificante se comparada aos inúmeros modos em que a mistura apenas produzirá um monte de lixo. Há milhões de modos de misturar e remisturar uma porção de pedaços avulsos: milhões de modos de transformá-los em... outro monte de pedaços avulsos. Toda vez que você os mistura, obtém uma pilha de lixo única, nunca vista antes — mas só uma ínfima minoria desses milhões de pilhas possíveis será útil para alguma coisa (por exemplo, para levar a moça ao baile) ou será digna de nota por qualquer outra razão.
Às vezes, podemos contar quantas maneiras existem de organizar uma série de partes — como em um baralho, considerando cada carta uma “parte”.
Suponhamos que alguém embaralhe as cartas e as distribua para quatro jogadores, treze cartas para cada. Pego as minhas e tenho uma grande surpresa: recebi a série de espadas completa!
Estou tão perplexo que nem consigo jogar e mostro minhas cartas aos outros, achando que também vão ficar espantados.
Mas então todos poem cartas na mesa, e o espanto aumenta. Cada jogador tem uma mão “perfeita”: uma com treze cartas de copas, outra com treze de ouros e a última com treze de paus.
Isso seria magia sobrenatural? Poderiamos ficar tentados a achar que sim. Os matemáticos sabem calcular a probabilidade de que essa combinação aconteça por puro acaso. É infinitamente pequena: 1 em 536 447 737 765 488 792 839 237 440 000. Acho que eu nem saberia como dizer esse número! Se você se sentasse e jogasse cartas durante um trilhão de anos, receberia uma mão perfeita como a do nosso exemplo em uma ocasião. Só que — e aí está o X da questão — essa mão não é mais improvável do que qualquer outra mão de cartas que já tenha sido distribuída! A chance de qualquer mão específica de 52 cartas é 1 em 536 447 737 765 488 792 839 237 440 000, porque esse é o número de todas as combinações possíveis. Acontece, simplesmente, que não notamos nenhum padrão específico na imensa maioria de mãos distribuídas e por isso elas não nos parecem fora do comum. Reparamos apenas quando por acaso uma mão se destaca de alguma forma.
Há bilhões de coisas em que você poderia transformar um príncipe se fosse brutal a ponto de montar os pedaços dele em bilhões de combinações aleatórias. Mas a maioria dessas combinações resultaria numa tremenda confusão — como aqueles bilhões de mãos de cartas sem nexo, aleatórias, que foram distribuídas. Apenas uma irrisória minoria dessas possíveis combinações de pedaços de príncipe embaralhados produziria algo reconhecível ou bom para alguma coisa, e ainda mais dificilmente produziria um sapo.
Príncipes não viram sapos e abóboras não viram carruagens porque sapos e carruagens são coisas complexas cujas partes poderiam ter se combinado em um número quase infinito de pilhas de lixo. No entanto, sabemos que cada ser vivo — pessoa, crocodilo, pardal, árvore ou alface — evoluiu de outras formas, originalmente mais simples. Mas então isso não é um processo fortuito ou algum tipo de magia? Não! Absolutamente não! Esse é um equívoco muito comum, e por isso quero explicar agora mesmo porque aquilo que vemos na vida real não é resultado de acaso, sorte ou qualquer coisa que seja mesmo que remotamente “mágica” (exceto, é claro, naquele sentido estritamente poético das coisas que nos enchem de assombro e deleite).

A lenta magia da evolução
Transformar um organismo complexo em outro organismo complexo em uma única etapa — como num conto de fadas está fora dos limites do que é realisticamente possível. Contudo, organismos complexos existem. Como surgiram? Como vieram a existir coisas complexas como sapos e leões, babuínos e figueiras, príncipes e abóboras, você e eu? Durante a maior parte da história, essa foi uma questão desnorteante que ninguém conseguia responder apropriadamente. Então foram inventadas anedotas. Mas, um dia, a questão foi respondida, e brilhantemente. Isso aconteceu no século XIX, graças a um dos maiores cientistas que já viveram, Charles Darwin. Usarei o resto do capítulo para explicar brevemente sua resposta, em palavras diferentes das dele.
A resposta é: os organismos complexos (humanos, crocodilos, alfaces) não surgiram de repente, de uma vez só, e sim gradualmente, passo a passo. E o que surgia a cada novo passo era só um tantinho diferente daquilo que já existia. Imagine que você quer criar um sapo de pernas compridas.
Seria vantajoso começar com algo que já fosse um pouco parecido com aquilo que você quer obter: um sapo de pernas curtas, por exemplo. Você podería pegar um conjunto de sapos de pernas curtas e medir as pernas de todos. Poderia escolher alguns sapos e sapas que possuíssem pernas um pouco mais compridas do que a maioria e deixar que eles cruzassem, enquanto impedia que seus colegas de pernas mais curtas se reproduzissem. Os machos e as fêmeas de pernas longas produziríam girinos, que por fim ganhariam pernas e se tornariam sapos. Você mediria essa nova geração, escolhería os machos e as fêmeas de pernas mais longas e os poria juntos para se reproduzir.
Depois de fazer isso por umas dez gerações, você poderia começar a notar uma coisa interessante. O comprimento médio das pernas da sua população de sapos seria agora visivelmente maior do que o comprimento médio das pernas da população inicial. Você talvez até concluísse que todos os sapos da décima geração têm pernas mais longas do que qualquer sapo da primeira geração. Ou, talvez, dez gerações não sejam suficientes para obter esse resultado. Quem sabe você precise de vinte gerações, ou até mais. No entanto, um belo dia finalmente você poderá dizer com orgulho: “Obtive um novo tipo de sapo com pernas mais compridas do que o antigo”.
Não foi preciso varinha mágica. Nenhum tipo de magia. O que aconteceu foi um processo chamado reprodução seletiva, baseado no fato de que os tipos de sapo variam e essas variações tendem a ser herdadas, ou seja, transmitidas dos pais aos filhos através dos genes. Simplesmente escolhendo quais sapos vão se reproduzir e quais não vão, podemos obter um novo tipo de sapo.
Simples, não? Mas conseguir pernas mais compridas não é muito impressionante. Afinal, já começamos com sapos. Eles só tinham pernas mais curtas. Suponha que você começasse não com um tipo de sapo de pernas mais curtas, mas com um animal diferente — por exemplo, com um tipo de salamandra. A salamandra possui pernas traseiras bem mais curtas que as do sapo e as usa não para saltar, mas para andar. A salamandra tem cauda longa, o sapo não tem cauda. Além disso, em geral as salamandras têm o corpo mais comprido e estreito do que a maioria dos sapos. Mas acho que você consegue perceber que, ao longo de milhares de gerações, seria possível transformar uma população de salamandras numa população de sapos simplesmente escolhendo com paciência, em cada uma dessas gerações, salamandras machos e fêmeas que fossem apenas um tantinho mais parecidas com sapos e deixar que cruzassem, impedindo ao mesmo tempo o cruzamento de seus colegas menos parecidos com sapos. Em nenhuma etapa isolada desse processo você veria uma mudança drástica. Cada geração seria bem parecida com a anterior, mas ainda assim, depois de um número suficiente de gerações, você começaria a notar que o comprimento médio da cauda diminuiu ligeiramente e que o comprimento médio das pernas traseiras aumentou um pouquinho. Depois de muitas gerações, talvez os indivíduos de pernas mais compridas e cauda mais curta começassem a achar mais fácil usar as pernas para saltar em vez de rastejar. E assim por diante.
Evidentemente, na situação que acabei de descrever, nos imaginamos como diretores da reprodução, escolhendo machos e fêmeas que vão cruzar, tendo em vista um resultado final que nós escolhemos. Os agricultores usam essa técnica há milhares de anos para obter animais e plantas mais produtivos ou resistentes a doenças. Darwin foi a primeira pessoa a compreender que isso funciona mesmo quando não há ninguém fazendo a escolha. Ele percebeu que tudo acontece naturalmente, sem interferência, pela simples razão de que alguns indivíduos sobrevivem por tempo suficente para se reproduzir enquanto outros não, e que os que sobrevivem são mais bem equipados para sobreviver do que os outros. Assim, seus filhos herdam os genes que ajudaram os pais a viver mais. Sejam salamandras ou sapos, ouriços ou margaridas, sempre haverá indivíduos que têm mais condições de sobreviver do que outros. Se pernas compridas ajudarem (o sapo ou gafanhoto a saltar e fugir de um perigo, por exemplo, um guepardo caçar gazelas ou uma gazela fugir dos guepardos), os indivíduos com pernas mais longas terão menor probabilidade de morrer. E maior probabilidade de viver tempo suficiente para se reproduzir. Além disso, um número maior dos indivíduos disponíveis para ele se acasalar terá pernas compridas. Desse modo, em cada geração haverá maior probabilidade de os genes para pernas mais compridas serem transmitidos à geração seguinte. Com o tempo, veremos que cada vez mais indivíduos dessa população possui genes para pernas mais compridas. Portanto, o efeito será exatamente o mesmo que veriamos caso um criador inteligente — um humano que gerenciasse essa reprodução, por exemplo — escolhesse os indivíduos de pernas compridas para se reproduzir. Só que esse criador não é necessário: tudo acontece por conta própria, naturalmente, como consequência automática de quais indivíduos sobrevivem o suficiente para se reproduzir e quais não. Por isso, o processo é chamado de seleção natural.
Depois de certo número de gerações, ancestrais que se pareciam com salamandras podem ter descendentes que se parecem com sapos. Depois de ainda mais gerações, ancestrais parecidos com peixes podem originar descendentes parecidos com macacos. Depois de ainda mais gerações, ancestrais parecidos com bactérias podem originar descendentes parecidos com humanos. E foi exatamente isso que aconteceu na história de cada animal e planta que existe ou existiu neste planeta. O número de gerações necessárias é maior do que podemos imaginar, mas o mundo tem bilhões de anos de existência, e sabemos pelos fósseis que a vida começou há mais de 3,5 bilhões de anos, tempo suficiente para a evolução ocorrer.
Essa foi a grande ideia de Darwin, conhecida como evolução pela seleção natural. É uma das mais importantes conclusões saídas de uma mente humana e explica quase tudo o que sabemos sobre a vida na Terra. Por ser tão importante, voltarei a ela em outros capítulos. Por enquanto, basta entender que a evolução é muito lenta e gradual. Aliás, é essa qualidade gradual que permite o surgimento de coisas complexas como sapos e príncipes. Uma transformação mágica de um sapo num príncipe não seria gradual, mas súbita, e é isso que a exclui da realidade. A evolução é uma explicação real e indivíduos de pernas compridas para se reproduzir. Só que esse criador não é necessário: tudo acontece por conta própria, naturalmente, como consequência automática de quais indivíduos sobrevivem o suficiente para se reproduzir e quais não. Por isso, o processo é chamado de seleção natural.
Depois de certo número de gerações, ancestrais que se pareciam com salamandras podem ter descendentes que se parecem com sapos. Depois de ainda mais gerações, ancestrais parecidos com peixes podem originar descendentes parecidos com macacos. Depois de ainda mais gerações, ancestrais parecidos com bactérias podem originar descendentes parecidos com humanos. E foi exatamente isso que aconteceu na história de cada animal e planta que existe ou existiu neste planeta. O número de gerações necessárias é maior do que podemos imaginar, mas o mundo tem bilhões de anos de existência, e sabemos pelos fósseis que a vida começou há mais de 3,5 bilhões de anos, tempo suficiente para a evolução ocorrer.
Essa foi a grande ideia de Darwin, conhecida como evolução pela seleção natural. É uma das mais importantes conclusões saídas de uma mente humana e explica quase tudo o que sabemos sobre a vida na Terra. Por ser tão importante, voltarei a ela em outros capítulos. Por enquanto, basta entender que a evolução é muito lenta e gradual. Aliás, é essa qualidade gradual que permite o surgimento de coisas complexas como sapos e príncipes. Uma transformação mágica de um sapo num príncipe não seria gradual, mas súbita, e é isso que a exclui da realidade. A evolução é uma explicação real e pode ser demonstrada por evidências reais; qualquer sugestão de que formas de vida complexas apareceram de repente (sem evoluir gradualmente, passo a passo) é pura invenção, como a magia ficcional da fada madrinha.
Quanto a abóboras que viram carruagens, os encantamentos mágicos também estão excluídos, do mesmo modo que para os sapos e príncipes. Carruagens não evoluem — pelo menos não naturalmente. Mas, tanto quanto aviões e enxadas, computadores e pontas de flecha, as carruagens são fabricadas por humanos, e eles evoluem. O cérebro e as mãos humanas evoluíram pela seleção natural, tão seguramente como a cauda da salamandra e as pernas do sapo. E o cérebro humano agora é capaz de projetar e criar carruagens e carros, tesouras e sinfonias, máquinas de lavar e relógios. Sem mágica. Sem truques. Explicando tudo, de um modo belo e simples.
No resto do livro, quero mostrar a você que o mundo real, como é entendido cientificamente, tem sua própria magia. Eu a chamo de magia poética, uma beleza inspiradora que é ainda mais mágica porque é real e podemos compreender como funciona. Em comparação à verdadeira beleza e magia do mundo real, o sobrenatural e os truques de palco parecem vulgares e sem graça. A magia da realidade não é sobrenatural, não é um truque.
É absolutamente fascinante. Fascinante e real. Fascinante porque é real.
 
(Dawkins, Richard - A magia da realidade : como sabemos o que é verdade)
 
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publicado às 23:48



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