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MENTIRAS GAYS

por Thynus, em 19.09.16
OS GAYS encontram talvez menos satisfações no seu tipo peculiar de jogos sexuais do que nos mitos lisonjeiros que cultivam a propósito de sua comunidade. Um desses mitos é o de que são marginalizados e perseguidos. Outro é o da sua superioridade intelectual.
Contra a primeira dessas crenças permanece o fato de que alguns dos tiranos mais sanguinários da História foram gays, entre outros Calígula e Mao TséTung. Aquele mandava capar os jovens bonitos para tomá-los como noivas; este comia à força os guardinhas do Palácio da Paz Celestial, enviando os recalcitrantes à paz celestial propriamente dita. Mas esses casos célebres não são exceções: destacam-se sobre o fundo negro de uma regra quase geral. Na Índia, no século passado, milhares de meninos foram comprados ou roubados de suas famílias e levados à força para servirem em bordéis homossexuais na Inglaterra. Na China aconteceu coisa semelhante. Na Alemanha e na França, clubes e círculos fechados de homossexuais sempre estiveram próximos dos centros de poder e prestígio (veja-se por exemplo o grupo de Stefan George e depois as S.A., guarda pessoal de Hitler, chefiada pelo sinistro Rohm, ele próprio um gay assumido). Alguns países islâmicos, onde a instituição do dote para a noiva dificultava o casamento para os homens pobres, tornaram-se paraísos para os homossexuais europeus ricos, que ali compravam barato os favores de jovens muçulmanos (leiam as memórias de Gide, Si le Grain ne Meurt). O comércio de meninos, um fato de amplitude universal, mostra o poder opressivo dos homossexuais ao longo da História. Para cada caso de violências cometidas contra homossexuais, pode-se citar outro de violência cometida por homossexuais. A choradeira de minoria oprimida são lágrimas de crocodilo. Ora oprimidos, ora opressores, os homossexuais, nesse ponto, não são melhores que os outros homens ou mulheres. Tudo depende de estarem fora do poder ou dentro dele. Pior ainda: não se encontrará nas fileiras gays um único santo, místico ou homem espiritual de elevada estatura. Iguais aos outros no mal, os gays têm escassa folha de serviços na prática do bem.
Quanto à ideia da superioridade intelectual, sustenta-se num equívoco brutal: a lista das celebridades gays incumbida de prová-la é falsa. Baseia-se num critério viciado por incurável elasticidade: a prática heterossexual, ainda que comprovada e duradoura, não é aceita como prova que uma criatura seja hétero; o mais leve indício, mesmo conjetural, de experiências homossexuais basta para classificá-la como gay. Lord Byron, que transou com duas centenas de mulheres e meia dúzia de rapazes, é gay, tanto quanto André Gide, que fez o mesmo com meia centena de rapazes e uma mulher. O homossexualismo episódico é prova de homossexualismo; o heterossexualismo só vale como prova quando exclusivo. A falácia é patente. Para piorar, a simples ausência de provas de casos amorosos com o sexo oposto é tida como fortíssimo indício de propensão gay, mas a ausência de provas de uma relação gay não é prova de nada. Dito de outro modo: todo mundo é gay até prova irrefutável em contrário. Mas a prova de heterossexualidade é impossível: o máximo que se admite é ausência de provas de homossexualismo. O desejo homossexual, num hétero praticante, faz dele um homossexual; o desejo heterossexual, num homo, também faz dele um homossexual, apenas com propensão bi. A total ilogicidade desses pressupostos não pode passar despercebida aos próprios gays. Sua argumentação é, em suma, totalmente desonesta.
Mas não é desonesta só nesses pontos. O debate em torno da homossexualidade é sistematicamente desviado dos tópicos decisivos, para concentrar-se em aspectos laterais, certamente mais vistosos e mais propícios ao florescimento do palavreado vazio.
A confusão proposital começa nos termos mesmos em que se coloca a discussão: opções sexuais. Hétero e homossexualidade não são igualmente opções. As relações entre sexos diferentes não são uma opção livre, mas uma necessidade natural para todas as espécies animais. Já o homossexualismo não é uma necessidade de maneira alguma, mas apenas um desejo. A supressão total da homossexualidade produziria muita insatisfação em certas pessoas; a da heterossexualidade traria a extinção da espécie. Colocar essas duas orientações num mesmo plano, tratando-as como simples opções livres, é falsear na base a discussão. O homossexualismo é uma opção; a heterossexualidade é um dado.
Por isso mesmo, é absurdo atribuir a essas duas condutas um mesmo valor. Uma necessidade e um gosto não têm o mesmo valor. Os homossexuais protestam contra a hegemonia dos héteros, mas ela é justa: os héteros falam em nome da espécie humana (que inclui os homos), e os homossexuais falam em nome dos desejos de um grupo. A prioridade determina a hierarquia. Querer nivelar essas duas coisas é um delírio infantil de onipotência.
Talvez por saber disso no fundo, a argumentação gay prefere situar-se com mais frequência num outro plano e apelar aos “direitos da pessoa humana”. Mas nenhum homossexual quer ser aceito simplesmente como pessoa; quer ser aceito e valorizado enquanto homossexual. Quando alguém o aceita como pessoa, condenando ao mesmo tempo sua opção sexual como doentia ou anormal, ele se sente discriminado. Porém nenhum homossexual vê algo de errado em aceitar um protestante ou católico apenas como pessoa, ao mesmo tempo que condena sua religião como falsa, repressiva, etc. Em suma: o homossexual pretende que sua opção sexual seja mais valorizada que uma opção religiosa alheia. Pretende que aceitemos sua homossexualidade como um valor, ao mesmo tempo que ele não aceita nossa religião senão como um fato.
A profunda distorção da consciência ética que preside à ideologia homossexual revela-se, por exemplo, no seguinte: uma manifestação de lésbicas contra a Igreja durante a visita de João Paulo II aos EUA é considerada uma expressão normal de um direito democrático; uma manifestação de católicos contra o lesbianismo seria condenada como odiosa discriminação, e poderia mesmo ser proibida por mandado judicial: o direito à expressão — mesmo agressiva — das preferências sexuais prevalece sobre o direito à expressão de uma crença moral e religiosa. O desnível nas escalas de valores é evidente. A religião — qualquer religião — serve a finalidades que transcendem infinitamente o mero gosto pessoal, ela é um valor universal e uma condição sine qua non da subsistência das culturas. Colocá-la num mesmo plano com a homossexualidade já seria um absurdo. Atribuir-lhe porém um valor inferior ao da opção sexual pessoal é monstruoso. É o mais temível atentado contra a dignidade da inteligência humana que já se cometeu desde o advento das teorias racistas.
A ideologia gay apela ainda a argumentos de ordem médica, fazendo a discussão girar em torno da pergunta: A homossexualidade é normal ou anormal? Mas isto está mal colocado, porque não existe ou é impossível determinar padrões de normalidade e anormalidade no mero plano da conduta. O normal e o patológico não existem — exceto convencionalmente — na conduta como tal, mas no plano dos poderes ou potências de que dispõe um indivíduo. Um homem não é surdo porque não ouve, mas porque não pode ouvir. Um impotente não é impotente porque não tem ereção, mas porque não pode ter ereção. E assim por diante. Deste modo, a conduta homossexual em si não pode ser considerada normal ou anormal. Mas certamente a incapacidade absoluta para a conduta heterossexual deve ser considerada anormal, quer essa incapacidade seja de ordem física ou psicológica, congênita ou adquirida. Se a conduta homossexual constante resulta numa incapacidade adquirida — ainda que de ordem puramente psicológica e sob a forma de uma rejeição ou ojeriza invencível —, então certamente é anormal. É anormal porque é a privação de uma potência necessária à subsistência da espécie123. A recíproca não é verdadeira: a incapacidade ou indisposição para a prática homossexual priva-nos somente de um certo tipo de prazer inteiramente desnecessário. Nem normal nem anormal, mas inócuo enquanto mera conduta, o homossexualismo pode tornar-se anormal por suas consequências, assim como a abstinência, conduta normal, pode tornar-se anormal desde o momento em que resulte, por excesso, numa privação definitiva da potência sexual, com todas as consequências psicológicas previsíveis.
Essas constatações bastam para derrubar a pretensão dos gays a legislações específicas em defesa da sua comunidade, pretensão fundada na alegação de normalidade da sua conduta. Porque das duas uma: ou o homossexualismo é uma opção, revogável a qualquer momento por um ato da vontade, ou é, ao contrário, uma privação da capacidade heterossexual. No primeiro caso, é mera conduta, sem maior significação médica, o que torna inócua a alegação de normalidade. No segundo, é deficiência, e é absurdo defender um direito à deficiência como tal. Portanto, os direitos que devem ser assegurados aos gays são simplesmente os mesmos que se garantem a todos os seres humanos: o direito de expressão, o direito de ir e vir, o direito à privacidade, etc. É descabido pretender que devam existir direitos específicos da comunidade gay, como não há direitos específicos dos abstinentes, dos sadomasoquistas, dos pedófilos, etc. Uma opção ou preferência não pode, por si, ser geradora de direitos, o que reduziria o direito a uma questão de gosto. Na melhor das hipóteses, esses direitos criariam um problema insolúvel: se um homossexual decide tornar-se heterossexual ele perde seus direitos de homossexual ou os conserva? E, caso passe por num período de indecisão, ele há de ter e não ter esses direitos ao mesmo tempo? Uma deficiência, porém, se não é um direito, pode ser geradora de direitos (como no caso dos cegos e aleijados, por exemplo): mas os homossexuais aceitariam acaso receber direitos especiais como portadores de uma deficiência? Nunca. Logo, pelos dois lados, a pretensão a direitos específicos é absurda. Um gosto pode gerar obrigações, nunca direitos.
Outros teóricos gays alegam o argumento da fatalidade: Não podemos ser senão aquilo que somos, logo temos o direito de ser o que somos. Mas, em primeiro lugar, ninguém lhes nega o direito de serem como são, e sim a pretensão a que esse modo de ser lhes garanta outros direitos suplementares. O que está subentendido na argumentação deles é um pressuposto de que a homossexualidade é normal porque é congênita. Mas a identificação entre congênito e normal é um perfeito nonsense (os mongoloides que o digam). Em segundo lugar, se aceitarmos que as tendências congênitas devam determinar soberanamente a conduta humana, teremos de dar adeus ao livre-arbítrio, e com isto a ideia mesma de uma liberdade de opção sexual irá por água abaixo. Em terceiro lugar, o império do congênito seria um argumento em favor de uma sociedade de tipo tradicional, onde a hereditariedade determinasse o destino, e contra a sociedade moderna, à sombra de cujos princípios se abriga o próprio movimento gay. Se, por outro lado, argumentarem que, dada uma tendência congênita, o indivíduo deve ter a liberdade de segui-la ou não, então torna-se irrelevante, para a decisão da conduta, saber se essa tendência é congênita ou não.
Caso argumentem que a superpopulação torna desnecessárias em última instância as relações heterossexuais, a resposta é: nem por isto tornam necessária a homossexualidade; alguma relação heterossexual, ainda que em dose menor, continuará sempre necessária e, neste sentido, mais valorosa para a humanidade do que a homossexual; para raciocinar in absurdum, mesmo que o Estado, para nivelar artificialmente homo e heterossexualidade, proibisse a procriação por contato direto homemmulher e tornasse obrigatória a inseminação artificial, a inseminação continuaria a ser nada mais que uma relação heterossexual por meios indiretos: os dados fundamentais da equação continuariam inalterados sob a maquiagem legal.
Outro indício de desonestidade intelectual é o abuso do rótulo “preconceito”. Os homossexuais estigmatizam como preconceito qualquer opinião que condene como anormal ou imoral a sua conduta. Preconceito é opinião irrazoável, ditada por meras preferências pessoais anteriores a uma conceituação do problema. Na maior parte dos casos as opiniões dos anti-homossexuais não são preconceitos, mas conceitos, tão elaborados, tão lógicos e respeitáveis quanto as opiniões dos homossexuais, para dizer o mínimo. Porém, mesmo supondo-se que fossem preconceitos, por que deveriam ser menos respeitáveis do que a opção homossexual mesma, que também não se funda em razões e sim num mero desejo, tão irracional e arbitrário quanto qualquer outro? Se existe um direito à expressão do desejo, deve também existir direito à expressão da repugnância, que é o contrário do desejo. Há pessoas que têm pela homossexualidade uma repugnância instintiva e irracional, tão instintiva e irracional quanto o desejo homossexual mesmo. Notem bem: lógica e psicologicamente, o contrário de um desejo não é a simples indiferença, mas a rejeição, a repugnância, o nojo. O velho Graciliano Ramos, na prisão, preferia passar fome a comer o almoço preparado pelo cozinheiro gay; se comia, vomitava. Deveremos considerar essa repugnância anormal, doentia, condená-la como imoral, reprimi-la, proibi-la em nome dos direitos dos gays? O direito à preferência é insensato se não acompanhado pelo concomitante direito à repugnância; e o direito à expressão de um vem junto com o direito à expressão de outra. Por que os homossexuais deveriam ter o direito de expressar livremente seus desejos, por mais arbitrários e irracionais que sejam, quando negam esse direito aos que sentem da maneira contrária? Se o homossexualismo é um direito, também o é o preconceito antihomossexual, desde que, é claro, um e outro não se traduzam em atos criminosos, como por exemplo, para o homossexual, a sedução de menores, e, para o antihomossexual, a rejeição de um candidato a emprego por motivo de opção sexual — coisas que, aliás, são a exceção e não a regra.
Se alguém — para raciocinar per absurdum — alegar que o gosto pode ser origem de direitos, mas a repugnância não, então a resposta será a seguinte: O que define o homossexualismo não é a atração pelo próprio sexo, mas a indiferença ou rejeição ao outro, assim como o que define o heterossexualismo não é a atração pelo outro sexo, mas a rejeição ou indiferença ante o próprio. O homossexualismo como mera conduta é uma coisa, como padrão libidinal é outra. A conduta homossexual pode ser acidental ou ocasional. O homossexual propriamente dito tem ou pretende ter um padrão, uma estrutura libidinal específica, diferente daquela do heterossexual. O padrão homossexual define-se pela exclusão das relações com pessoas dotadas de órgãos genitais diferentes: a rejeição da vagina, pelos homossexuais masculinos; do pênis, pelas lésbicas. Dispensar o diferente, satisfazer-se com o semelhante — eis o núcleo do padrão homossexual.
O travesti é um fenômeno diverso: é uma incorporação do diferente, é transformar-se no diferente (perdendo ou não as prerrogativas do semelhante, pois há graus de travestismo, do vagamente efeminado ao transexual). Em ambos os casos, há, porém, uma rejeição da diferença como tal, uma recusa de tentar o acordo amoroso entre os diferentes na síntese da procriação. O homossexualismo funda-se menos num gosto determinado do que numa determinada repugnância: se existe portanto um direito ao homossexualismo, existe igualmente um direito a sentir e expressar repugnância por ele.
Não cabe perguntar ao homossexual por que ele tem atração por pessoas do próprio sexo — já que ocasionalmente heterossexuais podem tê-la também — mas sim por que ele não tem atração pelo outro sexo, e se não considera isto uma forma de discriminação. Aí, das duas uma: ou todos os homossexuais teriam de declarar-se bissexuais que optaram livremente por uma das suas duas orientações possíveis, ou teriam de reconhecer que são portadores de uma deficiência.
Mas os homossexuais vão mais longe em suas exigências: pretendem que suas doutrinas e preferências devam ser ensinadas às crianças, para que estas possam “fazer livremente sua opção”. Acontece que uma criança de oito anos não está apta para uma relação (inclusa a perspectiva da gravidez), mas nada impede que faça experiências homossexuais. Para a relação heterossexual, há um umbral de maturidade mínima a ser transposto; para as relações homossexuais, não há. Jogos heterossexuais entre crianças são substancialmente diferentes de uma relação sexual adulta, porque esta inclui o risco ou o desejo da procriação; essa diferença inexiste entre jogos homossexuais infantis e uma relação homossexual adulta. Numa relação hétero, a diferença entre adulto e criança é um fator decisivo: um estuprador não pode engravidar uma menina normal de seis ou sete anos. Numa relação homossexual, porém, não há diferença: uma menina de seis anos está fisiologicamente apta a praticar cunnilingus numa mulher adulta, um garoto a fellatio num homem, e ambos o coito anal passivo. Inexistindo risco de gravidez, a responsabilidade civil do ato seria bastante atenuada. Que argumento nos sobraria, então, para condenar as relações sexuais entre adultos e crianças, desde que consentidas por ambas as partes? O ensino da homossexualidade às crianças terá duas consequências catastróficas: , favorecerá a opção mais fácil e incitará praticamente todas as crianças à experiência homossexual numa fase da vida em que ainda não podem desfrutar plenamente da heterossexualidade: ensinados o homossexualismo e o heterossexualismo como preferências equivalentes, a opção infantil não será livre, pois favorecerá quase que necessariamente o homossexualismo; , a longo prazo, entregará as crianças à mercê dos homossexuais adultos e suscitará a eclosão de movimentos pela liberação das relações eróticas entre adultos e crianças: o pedófilo, retroativamente, se tornará vítima inocente da sociedade repressiva que lhe impede o acesso a seu objeto de desejo.
E os direitos dos gays? O único direito que podem reivindicar legitimamente é o de que sua conduta sexual privada não lhes acarrete discriminação no emprego e na vida social em geral. A sociedade que lhes der isso já lhes deu tudo quanto merecem. Porém:
1º A mera expressão de condenação moral não é discriminação; é exercício da liberdade de consciência.
2º O preconceito mesmo, por irracional e fanático que seja, não é discriminação, desde que não se expresse em atos agressivos ou danosos.
3º Os gays não têm, moralmente, nenhum direito de induzir crianças à prática da homossexualidade, o que seria atraí-las por um caminho mais fácil antes que elas estivessem em condições de avaliar pessoalmente e diretamente o significado de ambas as experiências, homo e hétero; os demais seres humanos têm, ao contrário, o dever de procurar induzi-las à heterossexualidade, desde que não manifestem por si mesmas uma tendência contrária demasiado forte. Somente os adultos devem ser totalmente livres para optar, porque somente para os adultos existe propriamente a heterossexualidade.
4º Os gays não têm nenhum direito a pretender que suas preferências sexuais sejam mais dignas de respeito que as convicções morais ou religiosas dos outros. Qualquer sistema de crenças morais — especialmente qualquer sistema que já tenha servido de fundamento a uma civilização inteira — é, por si mesmo, mais valioso e mais digno de respeito que a expressão de um gosto em particular.
Nenhuma preferência pessoal, por mais justa ou legítima que seja, deve disputar a primazia com o que é necessário à subsistência da espécie humana. Os gays não têm, moralmente, nenhum direito de pretender que sua conduta valha tanto ou seja tão digna de respeito quanto a dos héteros. O homossexualismo é e será sempre uma questão de gosto, e o heterossexualismo uma questão de vida ou morte.
Nenhum sofisma poderá jamais revogar essas evidências, que estão no fundo da alma de todo ser humano, ainda que obscurecidas por toneladas de controvérsias pseudo-eruditas de um artificialismo sufocante. Estão inclusive na alma dos gays honestos, incontaminados por uma ideologia que, a pretexto de defendê-los, os leva a sacrificar sua consciência no altar do gosto, que é a mais arbitrária das divindades.

(Olavo de Carvalho - O Imbecil Coletivo) 

publicado às 22:23


MÉRITOS DA INCULTURA

por Thynus, em 19.09.16

UM GRAVE SINTOMA do declínio da consciência neste país é a facilidade com que todos aceitam como desculpa para a incultura do Sr. Luís Inácio Lula da Silva a origem operária do personagem1. É absolutamente falso que o líder de uma classe deva ter apenas o nível de instrução médio dos membros dessa classe. O líder de um partido burguês deveria então ser inculto como a média dos burgueses?

O líder de uma classe é, por definição, aquele que se eleva interiormente acima dela por seu talento e saber, sem abandonar o seu padrão de vida exterior nem a adesão íntima aos interesses e valores do seu meio de origem. Para quem tome a cultura no seu sentido verdadeiro de conhecimento interiorizado numa personalidade melhor, e não no de mera ostentação de diplomas2, a identificação de níveis de cultura com diferenças de classe social é um preconceito sociológico boboca. Se todo operário, ao adquirir cultura, se tornasse um burguês, não teria havido um único líder operário neste mundo. O mesmo aplica-se, analogicamente, a qualquer grupo social de origem. Ao elevar-se, por seus conhecimentos, à condição de pajé, um índio não se torna branco. O católico irlandês não se converte ao protestantismo da classe dominante por ter lido Sto. Tomás ou Beda Venerabilis em latim. A aquisição de uma verdadeira cultura é uma mudança interior, que, sobretudo no Brasil, quase nunca resulta em melhoria das condições externas de vida. Os professores dão o mais flagrante testemunho disso. No entanto o Sr. Luís Inácio Lula da Silva, para poder continuar fiel à condição de proletário, parece dever perseverar no nível cultural da sua classe de nascimento, ao mesmo tempo que se adapta sem maiores traumas ao padrão exterior de vida das classes superiores, incluindo roupas finas e charutos (mas ainda, graças a Deus, sem o maldito jet-ski). Seria uma odiosa demagogia censurá-lo por levar vida de deputado com seu salário de deputado, mas não o é menos sugerir que sua indigência cultural seja um direito. Não é decente um operário enriquecido pela política conceder prioridade antes ao consumo de charutos importados do que à contratação de um fonoaudiólogo para corrigir seu defeito de pronúncia. Igualmente desonesto é capitalizar a língua presa como emblema de populismo, subentendendo que os ricos falam português corretíssimo com pronúncia maviosa. Com isto o deputado e quase presidente dá ao povo um duplo mau exemplo, de consumismo esnobe e de desleixo cultural — no que aliás ele não deixa de ser típico de um país onde há todas as facilidades para a importação de carros de luxo e todas as dificuldades para a importação de livros de primeira necessidade.

Descontadas as exterioridades enganosas, não há qualquer conexão entre cultura interior e origem social, e isto já deveria estar mais do que claro num país onde os homens mais cultos — um Capistrano de Abreu, um João Ribeiro, um Florestan Fernandes, para não falar de Machado de Assis ou Gonçalves Dias — vieram das classes pobres. O fato de que alguns desses tenham aderido ao modo de vida dos ricos, enquanto outros permaneciam fiéis aos valores do seu meio de origem, mostra que as ideias não brotam da condição social, tanto quanto o mostra o fenômeno corriqueiro dos grãoburgueses que aderem ao discurso operário — dos quais se compõe aliás boa parte da elite petista.

A noção de que a cultura é um adorno burguês, dispensável num líder operário, vem de um preconceito que desvaloriza toda aquisição de conhecimentos que não resulte em benefício financeiro ou social para o seu detentor. A massa estúpida que aprecia a ignorância do líder como sinal de que ele “é povo” é a mesma que, ao ver um jovem pobre ler poesia ou filosofia, lhe pergunta com desdém: “Que é que você vai ganhar com isso?”. O prestígio do político iletrado não reflete a aspiração e o direito do operário a tornar-se mais culto e inteligente do que o burguês, mas o direito à incultura como tal, tomada como um valor e anexada, como uma insígnia de glória, à condição operária3.

Incapaz — ou — de desinteressado elevar-se intelectualmente acima de sua classe para poder representar o que ela tem de melhor, Lula não é, assim, um verdadeiro líder operário, mas uma amostra casual, escolhida por sua inocuidade mesma para funcionar como tela em branco onde a opinião pública possa projetar aspirações e desejos os mais desencontrados, sob a falsa unidade de uma moldura “operária”. Ele não personifica a classe operária no seu aspecto essencial, mas na figura acidental que, na presente conjuntura, ela compõe ante os olhos da imaginação brasileira. Imaginação em que se fundem, numa só fantasmagoria de gatos pardos, o ressentimento contra as classes dominantes e o desprezo petulante pela inteligência e pela cultura, provando, contra tudo o que alardeiam os teóricos marxistas há meio século, que socialismo e fascismo não têm entre si nenhuma incompatibilidade profunda.

Lula, no entanto, não é nenhum imbecil — e já mostrou possuir mais do que uma vaga consciência de que o papel em que o partido lhe incumbiu posar é desajustado e sobrante em relação à sua personalidade real. Daí uma certa humildade, sincera e tocante às vezes, mas que, por uma dessas singulares ironias da condição humana, não faz senão dar ainda mais credibilidade a algo que é, rigorosamente, uma burla. O mais irônico de tudo é que, raciocinando sempre dentro dos quadros da Weltanschauung petista que constitui o limite do seu horizonte intelectual, Lula parece empenhado com igual sinceridade em reprimir o apelo interior da humildade, para poder continuar a representar com um verniz de boa consciência o seu papel nessa burla, por mais que lhe doa por dentro, como se fosse um dever moral de primeira grandeza um homem fingir que é aquilo que seu partido necessita que ele seja. Também não é de hoje que o socialismo exige, de seus militantes, uma sucessão de pequenas mentiras interiores que, com o tempo, se avolumam e se multiplicam para constituir as sementes das grandes tragédias.

 

(Olavo de Carvalho - O Imbecil Coletivo) 

 

NOTAS:

1 - Lula não é aqui enfocado como indivíduo, mas como amostra. O que dele afirmo vale para muitos casos similares.

 2 - Diferença que o mais feroz detrator de Lula, o dr. Enéas — uma caricatura de homem culto — parece desconhecer completamente.

3 - Não posso deixar de ver nisso uma ofensa à dignidade da classe pobre, principalmente por ser eu mesmo filho de operária (da indústria gráfica) e por não ter desfrutado jamais das facilidades que os admiradores de Lula supõem imprescindíveis à aquisição de cultura.

publicado às 14:06

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A educação exige os maiores cuidados, porque influi sobre toda a vida.
 
"Educação nunca foi despesa. Sempre foi investimento com retorno garantido." 
(Sir Arthur Lewis)

É no problema da educação que assenta o grande segredo do aperfeiçoamento da humanidade.
(Immanuel Kant)  

Educação de cabeça para baixo
Clicando no Google a palavra “educação”, seguida da expressão “direito de todos”, encontrei 671 mil referências. Só de artigos acadêmicos a respeito, 5.120. “Educação inclusiva” dá 262 mil respostas. Experimente clicar agora “educar-se é dever de cada um”: nenhum resultado. “Educar-se é dever de todos”: nenhum resultado. “Educar-se é dever do cidadão”: nenhum resultado.

Isso basta para explicar por que os estudantes brasileiros tiram sempre os últimos lugares nos testes internacionais. A ideia de que educar-se seja um dever jamais parece ter ocorrido às mentes iluminadas que orientam (ou desorientam) a formação (ou deformação) das mentes das nossas crianças.

Eis também a razão pela qual, quando meus filhos me perguntavam por que tinham de ir para a escola, só conseguia lhes responder que, se não fizessem isso, eu iria para a cadeia; que, portanto, deveriam submeter-se àquele ritual absurdo por amor ao seu velho pai. Jamais consegui encontrar outra justificativa. Também lhes recomendei que só se esforçassem o bastante para tirar as notas mínimas, sem perder mais tempo com aquela bobagem. Se quisessem adquirir cultura, que estudassem em casa, sob a minha orientação. Tenho oito filhos. Nenhum deles é inculto. Mas o mais erudito de todos, não por coincidência, é aquele que frequentou escola por menos tempo.

A ideia de que a educação seja um direito é uma das mais esquisitas que já passaram pela mente humana. É só a repetição obsessiva que lhe dá alguma credibilidade. Que é um direito, afinal? É uma obrigação que alguém tem para com você. Amputado da obrigação que impõe a um terceiro, o direito não tem substância nenhuma. É como dizer que as crianças têm direito à alimentação sem que ninguém tenha a obrigação de alimentá-las. A palavra “direito” é apenas um modo eufemístico de designar a obrigação dos outros.

Os outros, no caso, são as pessoas e instituições nominalmente incumbidas de “dar” educação aos brasileiros: professores, pedagogos, ministros, intelectuais e uma multidão de burocratas. Quando essas criaturas dizem que você tem direito à educação, estão apenas enunciando uma obrigação que incumbe a elas próprias. Por que, então, fazem disso uma campanha publicitária? Por que publicam anúncios que logicamente só devem ser lidos por elas mesmas? Será que até para se convencer das suas próprias obrigações têm de gastar dinheiro do governo? Ou são tão preguiçosas que precisam incitar a população para que as pressione a cumprir seu dever? Cada tostão gasto em campanhas desse tipo é um absurdo e um crime.

Mais ainda, a experiência universal dos educadores genuínos prova que o sujeito ativo do processo educacional é o estudante, não o professor, o diretor da escola ou toda a burocracia estatal reunida. Ninguém pode “dar” educação a ninguém. Educação é uma conquista pessoal, e só se obtém quando o impulso para ela é sincero, vem do fundo da alma e não de uma obrigação imposta de fora. Ninguém se educa contra a sua própria vontade, no mínimo porque estudar requer concentração, e pressão de fora é o contrário da concentração. O máximo que um estudante pode receber de fora são os meios e a oportunidade de educar-se. Mas isso não servirá para nada se não estiver motivado a buscar conhecimento. Gritar no ouvido dele que a educação é um direito seu só o impele a cobrar tudo dos outros — do Estado, da sociedade — e nada de si mesmo.

Se há uma coisa óbvia na cultura brasileira, é o desprezo pelo conhecimento e a concomitante veneração pelos títulos e diplomas que dão acesso aos bons empregos. Isso é uma constante que vem do tempo do Império e já foi abundantemente documentada na nossa literatura. Nessas condições, campanhas publicitárias que enfatizem a educação como um direito a ser cobrado, e não como uma obrigação a ser cumprida pelo próprio destinatário da campanha, têm um efeito corruptor quase tão grave quanto o do tráfico de drogas. Incitam as pessoas a esperar que o governo lhes dê a ferramenta mágica para subir na vida sem que isto implique, da parte delas, nenhum amor aos estudos, e sim apenas o desejo do diploma.

(Olavo de Carvalho - o mínimo que você precisa saber para não ser um idiota)
brasileiro não necessita “ser educado”, ele precisa primeiro se divertir, depois estudar

publicado às 12:54


"Em cada animal não vejo senão uma máquina engenhosa, à qual a natureza ofereceu sentidos para recompor-se por si mesma, e para defender-se, até certo ponto, de tudo o que tende a destruí-la ou estragá-la. Percebo exatamente as mesmas coisas na máquina humana, com a diferença de que a natureza faz tudo nas ações do animal, enquanto o homem concorre para as suas, na qualidade de agente livre. Um escolhe ou rejeita por instinto, e o outro, por um ato de liberdade: o que faz com que o animal não se afaste da regra que lhe é prescrita, mesmo quando lhe fosse vantajoso fazê-lo, e que o homem se afaste frequentemente dela, em seu prejuízo. Assim é que um pombo morreria de fome perto de uma vasilha repleta das melhores carnes, e um gato, diante de uma porção de frutos ou de grãos, embora tanto um quanto o outro pudesse perfeitamente se nutrir com o alimento que desdenha, se ousasse experimentá-lo. É assim que os homens dissolutos se entregam a excessos que lhes provocam febre e morte porque o espírito deprava os sentidos, e a vontade fala ainda quando a natureza se cala... Mas, mesmo que as dificuldades que cercam todas essas questões permitissem a discussão sobre essa diferença entre o homem e o animal, há outra qualidade muito específica que os distingue, e sobre a qual não pode haver contestação: é a faculdade de se aperfeiçoar, faculdade que, com a ajuda de circunstâncias, desenvolve sucessivamente todas as outras e reside em nós, tanto na espécie quanto no indivíduo. Enquanto um animal é, ao fim de alguns meses, o que será durante toda a sua vida, e sua espécie, ao fim de mil anos, o que era no primeiro desses mil anos. Por que o homem está sujeito a se tornar imbecil? Não é absolutamente porque retorna assim a seu estado primitivo, e o animal, que nada adquiriu e nada tem a perder, permanece sempre com seu instinto, e o homem, perdendo com a velhice e outros acidentes tudo o que sua perfectibilidade lhe havia feito adquirir, torna a cair mais baixo do que o próprio animal?" (Jean Jacques Rousseau -  Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens)
 
Essas poucas frases merecem reflexão.
Comecemos examinando o exemplo do gato e do pombo. O que Rousseau quer dizer exatamente?
Antes de tudo, que a natureza constitui para esses animais códigos intangíveis, espécies de softwares, como eu lhe dizia há pouco, dos quais são incapazes de fugir: é essa a marca da liberdade deles. Tudo acontece como se o pombo estivesse preso, cativo de seu “programa” de granívoro, e o gato, do de carnívoro, e que para eles não houvesse praticamente nenhuma variação possível (ou muito pouca!). Sem dúvida, um pombo pode absorver alguns pequenos bocados de carne, ou o gato mordiscar, como se vê às vezes nos jardins, algumas hastes de relva, mas no geral, seus programas naturais não lhes deixam praticamente nenhuma margem de manobra.
Ora, a situação do ser humano é inversa — e é por isso que ele pode se dizer livre e, consequentemente, perfectível, (já que, diferentemente do animal limitado por uma natureza quase eterna, ele vai poder evoluir). Ele é mesmo tão pouco programado pela natureza que pode se afastar de todas as regras que ela prescreve aos animais. Por exemplo, ele pode cometer excessos, beber ou fumar até morrer, o que os animais não podem fazer. Ou, como diz ainda Rousseau, por meio de uma fórmula que anuncia toda a política moderna, no homem, “a vontade fala ainda quando a natureza se cala”.
Poderíamos fazer o seguinte comentário: no animal, a natureza fala o tempo todo e fortemente, tão fortemente que ele não tem a liberdade de fazer nada além de obedecer-lhe. No homem, ao contrário, domina certa indeterminação: a natureza está presente, de fato, e muito, como nos ensinam todos os biólogos. Nós também temos um corpo, um programa genético, o do nosso DNA, do genoma transmitido por nossos pais. Contudo, o homem pode afastar-se das regras naturais, e até mesmo criar uma cultura que se opõe a elas quase termo a termo — por exemplo, a cultura democrática que vai tentar resistir à lógica da seleção natural para garantir a proteção dos mais fracos.
Outro exemplo do caráter antinatural da liberdade humana — do afastamento ou do excesso, quer dizer, da transcendência da vontade em relação aos “programas naturais” — é muito mais marcante. Infelizmente, é um exemplo paradoxal que não defende efetivamente a humanidade do homem, já que se trata do fenômeno do mal naquilo que ele tem de mais assustador. Você precisa refletir por um tempo sobre isso para formar uma opinião. Mas, como você vai ver, ele confirma fortemente a argumentação de Rousseau em prol do caráter antinatural, e por isso mesmo, não animal, da vontade humana. Com efeito, parece que só o ser humano é capaz de se mostrar realmente diabólico.
Já posso ouvir a objeção que logo vem à mente: os animais não são, afinal de contas, tão agressivos e cruéis quanto os homens?
À primeira vista, sem dúvida, e poderíamos dar uma infinidade de exemplos que os defensores da causa animal frequentemente omitem. Eu, que em minha casa, quando era criança, no campo, tive uns vinte gatos, vi-os despedaçar suas presas com uma crueldade aparentemente inqualificável, comer camundongos vivos, brincar durante horas com pássaros dos quais tinham quebrado as asas ou furado os olhos...
Mas o mal radical, a respeito do qual se pode pensar, na perspectiva de Rousseau, que os animais desconhecem e que é um feito apenas dos humanos, está em outra coisa: ele reside no fato não mais simplesmente de “fazer maldade”, mas de fazer uso do mal como projeto, o que não tem nada a ver. O gato maltrata o camundongo, mas tanto quanto se possa afirmar, não é o motivo de sua tendência natural para caçar. Ao contrário, tudo indica que o ser humano é capaz de se organizar conscientemente para fazer tanto mal quanto possível a seu próximo. É, aliás, o que a teologia tradicional denomina de maldade, como próprio do demoníaco em nós.
Ora, esse demoníaco, lamentavelmente, parece ser específico do homem. A prova é o fato de que não existe nada no mundo animal, no universo natural, portanto, que se aparente à tortura.
Como lembra um de nossos melhores historiadores da filosofia, Alexis Philonenko, no início de seu livro L’Archipel de la Conscience Européenne [O arquipélago da consciência europeia], pode-se até hoje visitar em Gand, na Bélgica, um museu que faz pensar: o museu da tortura, exatamente. Veem-se, expostos em vitrines, os espantosos produtos da imaginação humana nessa matéria: tesouras, furadores, facas, tenazes, constritores de cabeça, arrancadores de unha, esmagadores de dedos e outras mil doçuras mais. Nada falta ali.
Os animais, como eu disse, devoram, às vezes, um dos seus ainda vivo. Eles nos parecem então cruéis. Mas basta refletir para compreender que não é ao mal enquanto mal que eles visam, e que a crueldade deles só se deve, é claro, à indiferença que sentem quanto ao sofrimento do outro. E no momento em que eles parecem matar “por prazer”, eles só estão, na verdade, exercendo do melhor modo um instinto que os guia e os mantém na guia, por assim dizer. Todas as pessoas que tiveram gatos, por exemplo, sabem que se os filhotes “se divertem” “torturando” suas presas é porque, ao fazê-lo, exercitam-se e aperfeiçoam a aprendizagem da caça, enquanto o animal adulto se contenta no mais das vezes em matar o mais rapidamente possível os camundongos ou os pássaros que captura. Mais uma vez o que nos parece tão cruel está ligado ao reino da indiferença total de que esses seres de natureza, os animais, dão prova nas relações do predador com sua presa, e não a uma vontade consciente de fazer o mal.
Mas o ser humano não é indiferente. Ele faz o mal e sabe que o faz e, às vezes, ele se compraz com isso. É claro que, diferentemente do animal, acontece de ele fazer do mal um objetivo consciente.
Ora, tudo parece indicar que essa tortura gratuita está em excesso em relação a toda lógica natural. Poderão objetar que o sadismo é, afinal, um prazer como qualquer outro, e que como tal se inscreve em algum ponto da natureza do ser humano. Mas isso não é uma explicação. É um sofisma, uma tautologia digna dos sábios de Molière que “explicam” os efeitos de um soporífero pela “virtude dormitiva” que há nele: acredita-se dar conta do sadismo invocando-se o gozo obtido com o sofrimento de outrem... quer dizer, invocando-se o próprio sadismo! A verdadeira questão é a seguinte: por que tanto prazer gratuito em transgredir o interdito; por que esse excesso no mal, mesmo que ele seja inútil?
Poderíamos dar exemplos infinitamente. O homem tortura seus semelhantes sem nenhum objetivo além do da própria tortura. Por que milicianos sérvios obrigam — como se lê nos relatórios de crimes de guerra cometidos nos Bálcãs — um infeliz avô croata a comer o fígado de seu neto ainda vivo? Por que os hútus cortam os membros dos recém-nascidos tútsis para se divertirem, apenas para nivelarem suas caixas de cerveja? Por que, exatamente, a maioria dos cozinheiros trincha com tanto prazer as rãs vivas, fatia uma enguia começando pela cauda, quando seria mais simples e mais lógico matá-las imediatamente? O fato é que se joga facilmente a culpa sobre o animal quando a matéria humana falha, mas não, como já observavam os críticos da teoria cartesiana dos animais-máquinas, sobre os autômatos que não sofriam. Já se viu, por acaso, um homem ter prazer em torturar um relógio de pulso ou de pêndulo? Temo que para isso não haja resposta “natural” convincente: a escolha do mal, o demoníaco, parece pertencer a uma ordem outra que não a da natureza. De nada serve, e na maioria das vezes é contraprodutivo.
É essa vocação antinatural, essa constante possibilidade de excesso que lemos no olho humano: porque ele não reflete apenas a natureza; nele podemos descobrir o pior, mas também, pela mesma razão, o melhor; o mal absoluto e a mais espantosa generosidade. É esse excesso que Rousseau chama de liberdade: é sinal de que não estamos, ou, em todo caso, não inteiramente, aprisionados em nosso programa natural de animal, por outro lado, semelhante aos outros animais.


(Luc Ferry - Aprender a Viver, filosofia para os novos tempos)

publicado às 11:57


“As crianças do futuro precisam ter mente aberta. O lar deve parar de advogar causas éticas ou crenças religiosas através de sorrisos ou olhares severos, carícias ou ameaças. Deve-se ensinar às crianças como pensar, e não o que pensar [...]”

— Margaret Mead (1901-1978)

 

Em 1925, uma jovem estudante de graduação em Antropologia, Margaret Mead, embarcou para a ilha de Tau, na Samoa americana, a fim de testar uma hipótese deveras interessante: se a rebelião, o tumulto e a angústia tipicamente adolescentes eram naturais ou culturais. Mead publicou suas descobertas em 1928, somando-as à pilha crescente de confusão que já incluía o livro O eixo da civilização (1922), de Margaret Sanger, e toda a sua fé no poder libertador de nossas glândulas sexuais; o Minha luta (1925), de Adolf Hitler, e sua identificação dos judeus como o maior problema para o progresso genético do mundo; e O futuro de uma ilusão (1927), de Freud, e suas declarações de que nós somos selvagens amorais por natureza e de que a moralidade é apenas uma série de tabus erigidos pelo homem em nome da religião (que é, em si, uma ilusão). O período entre-guerras foi mesmo um bom momento para os livros ruins, que contribuiu imensamente para aumentar o arcabouço de pseudociências do Ocidente. A contribuição de Mead foi impingir aos pobres samoanos polinésios a sua própria visão de um paraíso sexual radiante em Adolescência, sexo e cultura em Samoa.

O modus operandi que Mead adota – o de recolher alguns “fatos” de mitos originários e encaixá-los nos próprios devaneios filosóficos –, como já vimos, tem um pedigree bem conhecido. Hobbes pintou um quadro bem vivo da nossa condição natural baseado inteiramente num desses mitos. Rousseau e Freud fizeram o mesmo. Todos esses autores usaram evidências seletivas ou imaginárias para argumentar que a natureza humana é mais bem compreendida quando vista em seu estado primitivo. Seu pressuposto subjacente pode ser expresso numa fórmula simples: natural = primitivo = bom. Que o selvagem fosse nobre ou tosco, um moleque travesso ou uma besta feroz, fato é que ele era o Adão à cuja imagem foi feita primordialmente a nossa natureza, imagem essa que devemos resgatar e inspecionar, não sem antes esfregar para fora dela os acréscimos da nossa civilização.

Eu digo “Adão” de propósito, já que, como vimos, uma das preocupações da modernidade, especialmente dos seus espíritos mais entregues à secularização, é a tentativa incansável de conjurar um contra-mito ao relato bíblico do Gênesis. Quando Hobbes, Rousseau ou Freud imaginaram o estado pré-civilizado do homem, eles não o fizeram baseando-se em evidências históricas, mas em suposições. Subjacente a essas suposições estava a crença de que o que é melhor é o que é natural e original. Isso é verdadeiro até para Thomas Hobbes, para quem o estado natural era um estado de guerra, porque, por mais que escapemos dessa condição nefasta e rumemos à sociedade civil, ainda assim sempre desejamos que fosse possível fazer ou ter o que quer que queremos.

Margaret Mead realmente tentou achar um exemplo vivo do humano primitivo, mas seu famoso retrato dos samoanos libidinosos e despreocupados era, na verdade, mais uma ficção moderna – e isso seria válido inclusive se os samoanos fossem mesmo da exata forma como ela os descreveu em Adolescência, sexo e cultura em Samoa (suas descobertas são hoje uma questão em debate na academia).

A busca de Mead era falha desde o princípio, porque mesmo que um “povo primitivo” seja libidinoso e despreocupado, não se pode inferir que, simplesmente porque ele aparenta ser mais primitivo, ele está, de algum modo, mais perto do que é natural e bom, e pode, portanto, nos oferecer correções para o nosso próprio estilo de vida. Ele pode ser, ao mesmo tempo, mais primitivo e mais perverso. Sua sociedade pode ter decaído ao invés de ter avançado. O ponto fundamental é: a habilidade técnica é moralmente neutra. Um ladrão é um ladrão, esteja ele armado com um porrete ou com uma AK-47; há bárbaros primitivos e bárbaros sofisticados.

A falácia de se pensar que o primitivo é superior porque é alegadamente mais natural é especialmente perniciosa quando usada da forma como a usa Mead: como um meio para contrabandear uma teoria sofisticada e altamente questionável a respeito da natureza humana. “Eis a minha teoria. Veja, esses nativos conformam-se exatamente à minha teoria. Portanto, minha teoria deve estar correta”.

Devemos ser capazes de ver mais claramente a falácia do trabalho de Mead se traçarmos um paralelo um tanto imaginário com Hobbes, permitindo-o ser um antropólogo viajante por alguns momentos. Hobbes argumentava que o ser humano é amoral por natureza, e que, no estado natural, ele tinha o direito de preservar-se por qualquer meio possível, inclusive o canibalismo. Agora, imagine Hobbes trabalhando em pleno feriado. Ele entra num barco e sai velejando em direção ao Caribe, onde encontra caribenhos antropófagos; aí então escreve Adolescência, sexo e cultura no Caribe, que descreve precisamente uma sociedade primitiva, livre de qualquer náusea em relação à ingestão de seres humanos. Como eles são mais primitivos, então estão mais próximos do estado natural; e como são canibais, eles confirmam que o canibalismo é algo natural. Portanto, declara Hobbes, minha teoria deve ser verdadeira. Os seres humanos são amorais por natureza.

Se quisermos colocar a coisa de um modo mais politicamente correto, essa falácia é uma forma de colonialismo intelectual e cultural imposta sobre os pobres nativos, contra suas vontades, uma tentativa levemente disfarçada de fazê-los úteis, junto dos pós-primitivos, para ainda outra agenda estrangeira ou um programa revolucionário de ponta.

Qual era a agenda de Mead? Aparentemente, ela tinha viajado para a Samoa para descobrir se “a rebelião contra a autoridade, as perplexidades filosóficas, o aflorar do idealismo, o confronto e a luta” eram “dificuldades inerentes à adolescência ou se à adolescência americana”.[ Margaret Mead, Coming of Age in Samoa: A Psychological Study of Primitive Youth for Western Culture. American Museum of Natural History Special Members Edition, 1928, 1973, cap. 1, p. 3 ] Todo o tumulto da adolescência era natural ou era mera coisa de ocidental?

É claro que essa era uma pergunta perfeitamente legítima, apesar de certamente não ser das mais simples, daquelas que uma simples viagem à Polinésia poderia resolver. Mas, mesmo reconhecendo a legitimidade da questão, o famoso parágrafo de abertura do Capítulo 2 deveria fazer soar o alarme de que a autora havia embrulhado uma agenda escondida em sua bagagem:


A vida do dia começa ao amanhecer, ou, se a lua manteve seu brilho até a luz do dia, pode-se ouvir os gritos dos homens jovens antes mesmo do amanhecer, vindos do declive na montanha. Inquietos à noite, povoada de fantasmas, eles gritam vigorosamente uns para os outros enquanto aceleram seu trabalho. Conforme a aurora começa a cair, suave, por entre os telhados marrons, e as palmeiras, esbeltas, destacam-se contra o mar reluzente e sem cor, os amantes esgueiram-se de volta para casa de seus encontros privados, deslizando entre as palmeiras ou pelas sombras das canoas encalhadas, para que a luz então só os encontre onde deveriam ter dormido.[ Ibid., cap. 2, p. 8 ]


Isto parece mais ser uma abertura de uma novela romântica, das mais ardentes, que o início de um livro de pesquisa antropológica, diligentemente concebida e executada. Para ser mais exato, Mead escreveu-a como um romance mesmo, a fim de que sua agenda oculta tivesse o maior apelo popular possível (o que, de fato, aconteceu). Seu objetivo era convencer o Ocidente de que os rigores da moral sexual cristã eram antinaturais, e de que seríamos bem mais felizes sem suas proibições angustiantes.

Em outras palavras, Mead estava usando os samoanos para forçar a sua própria moral sexual, mas isto não era tudo que ela estava tentando forçar. Conforme ela deixa claro em sua conclusão, ela buscava toda uma nova abordagem para a educação, a “Educação para a Escolha”, cuja ênfase essencial era evitar toda ênfase e cuja principal convicção era a de que não havia convicção principal alguma:


A educação [...] ao invés de ser uma defesa especial de uma conduta em particular, uma tentativa desesperada de formar um hábito específico de pensar, que irá se opor a todas as influências exteriores, deve ser uma preparação para essas mesmas influências [...]. [As] crianças do futuro precisam ter mente aberta. O lar deve parar de advogar causas éticas ou crenças religiosas através de sorrisos ou olhares severos, carícias ou ameaças. Deve-se ensinar às crianças como pensar, e não o que pensar. E, porque males antigos morrem devagar, deve-se ensiná-las a tolerância, assim como hoje as ensinam a intolerância. Elas devem aprender que muitos caminhos estão abertos para elas, nenhum está canonizado sobre seus alternativos, e que cabe a elas e somente a elas o fardo da escolha. Livres de qualquer preconceito, desprendidas de qualquer condicionamento que desde cedo familiariza certos padrões, elas devem ver às claras as escolhas que jazem diante delas.[ Ibid., cap. 14, p. 137 ]


Uma “mente aberta”, é claro, para as diferentes posições sexuais; uma “tolerância” para com uma multidão de prazeres sexuais alternativos; isso era o que estava no topo da agenda educacional de Mead. Então como foi que ela espremeu dos samoanos uma orientação dessas? Ela tentou demonstrar que a sociedade samoana era majoritariamente pacífica e livre de tormentos – especialmente da “tempestade de estresse [encontrada] nos adolescentes americanos” – porque as fontes de conflito e ansiedade incorporadas em nossa sociedade estavam majoritariamente ausentes na sociedade samoana. Mead raciocina que, se estavam ausentes na sociedade samoana, portanto, elas não devem ser naturais.

Por exemplo, na sociedade samoana há muito pouco conflito entre pais e filhos, porque as crianças samoanas são cuidadas indiferentemente por seus pais, seus tios, suas tias, seus primos e, em geral, por qualquer pessoa da vila que seja mais velha que elas. Se uma jovem garota não gosta de viver debaixo do mesmo teto com seus pais, ela simplesmente embrulha sua esteirinha e vai morar com outro parente. Se um jovem garoto acha sua mãe muito exigente e seu pai pouco convidativo, ele simplesmente desacampa dali e vai acampar-se na companhia de parentes mais agradáveis. “Nenhuma criança samoana [...] tem de lidar jamais com o sentimento de estar presa. Há sempre algum parente para o qual ela pode fugir”.[ Ibid., cap. 4, p. 24 ]

Mead traça a conclusão de que “seria desejável [para nós] que abrandássemos, ao menos em alguma pouca medida, o papel determinante que os pais representam na vida das crianças”,[ Ibid., cap. 13, p. 119] para aí podermos duplicar o efeito débil que os pais samoanos exercem na vida de suas crianças. Um ótimo efeito advindo do fato de que os samoanos não são tão ligados aos seus pais é que, para eles, não há a “especialização do afeto” (ou seja, o amor intenso e pessoal tipicamente familiar) que se pode ver na modernidade ocidental, com suas “famílias biológicas, minúsculas e encravadas”. Nas nossas famílias “encravadas”, existem “fortes laços entre pais e filhos”, mas na vida tribal samoana, grandiosa e tempestuosa, multifamiliar e não-nuclear, “o lar não domina e distorce a vida da criança” como o faz no Ocidente.[ Ibid., p. 118 ] Os filhos, portanto, não criam laços especiais com seus pais biológicos; como seu afeto se dispersa numa pletora de parentes, ele é correspondentemente fraco em relação a qualquer pessoa. Mead considerava isso um plus. Um amor forte gera conflitos fortes; um amor fraco torna os conflitos leves e escassos.

Um dos tipos mais intensos de amor, é claro, é o amor romântico, que gera todo tipo de sobrecarga emocional, angústia e conflito – jovens perdidamente apaixonados jurando alianças eternas até a morte, suplicantes atormentados implorando pela mão de uma moça, esposas traídas tramando vinganças assassinas. Mas aqui Mead encontra outra “diferença gritante entre a sociedade samoana e a nossa”, a saber, vemos uma “falta de especialização dos sentimentos, e particularmente do desejo sexual, entre os samoanos”.[ Ibid., p. 119 ] “O amor romântico, da forma como ocorre em nossa civilização, inextricavelmente ligado às idéias de monogamia, exclusividade, inveja e inflexível fidelidade, não ocorre em Samoa”.[ Ibid., cap. 7, p. 58 ] E por quê? Porque os samoanos agem de modo bem parecido aos amantes despreocupados de Rousseau em seu estado natural, lançando-se desde cedo, e com freqüência, em “experimentações livres e tranqüilas”.[ Ibid., p. 54 ]

Segundo Mead, muito da energia típica da fase final da adolescência é gasto saltitando “sob as palmeiras”.[ Ibid., p. 50 ] O foco de sua pesquisa antropológica eram as jovens meninas samoanas, que, ao contrário de suas colegas ocidentais, eram completamente livres de qualquer angústia sexual porque eram completamente livres quanto a tudo que se relacionava a sexo. Tolu, Namu e Fala, representantes comuns das meninas adolescentes samoanas, faziam, todas, “encontros casuais com seus amantes e seus contatos eram freqüentes e animados”.[ Ibid., cap. 10, p. 84 ] Elas desviaram da crise ocidental de tormento e estresse sexual tornando-a inteiramente casual, conforme o relato de Mead:


Com a exceção de alguns casos [...] a adolescência não representava um período de crise e estresse, mas era, ao contrário, uma época de desenvolvimento ordenado de um conjunto de interesses e atividades cada vez mais maduros. As idéias das meninas não eram perturbadas por nenhum conflito, não eram confundidas por nenhum questionamento filosófico, não eram abatidas por nenhuma ambição remota. Viver sendo uma garota com muitos amantes pelo máximo de tempo possível e então se casar na própria vila, perto de seus parentes, e ter muitos filhos – essas eram ambições uniformes e satisfatórias.[ Ibid., p. 87 ]


Mas a dedicação dos samoanos pelo sexo livre começa muito antes de sua adolescência, e sua falta de “especialização” em relação ao sexo os faz descer saltitando por várias avenidas de prazeres animados. Desde muito cedo, as crianças têm “uma compreensão vívida da natureza do sexo. A masturbação é um hábito nada menos que universal, começando na idade dos seis ou sete anos”, apesar de a freqüência com que acontecesse diminuir um pouco “com o começo das atividades heterossexuais”, e porque “as práticas homossexuais entre os garotos e as garotas maiores também acabam tomando seu lugar, em certa medida”. Ibid., p. 76 ] Obviamente, os encontros homossexuais também não são nenhum fardo:


Essas relações casuais entre as garotas nunca assumiram uma importância a longo termo. Da parte das garotas em fase de crescimento e das mulheres que trabalhavam juntas, elas eram consideradas uma diversão prazerosa e natural, apenas tingidas pela falta de pudor. Onde as relações heterossexuais eram tão casuais, canalizadas por tamanha superficialidade, não havia um padrão no qual poderia se encaixar ou não as relações homossexuais.[ Ibid., p. 82]


Enquanto nós, ocidentais, ficamos todos preocupados com a heterossexualidade e com a homossexualidade, os samoanos ignoravam todo o conjunto das nossas ansiedades e discriminações culturais considerando todo tipo de atividade sexual algo como uma mera brincadeira. Nós temos a mente restrita quanto ao sexo; eles têm a mente completamente aberta. Nós perdemos nosso tempo discutindo divórcios nas cortes, desvendando os nós das nossas neuroses nos sofás dos analistas e suando para encontrar os limites aceitáveis para a conduta sexual. Os samoanos passam seu tempo como chimpanzés rousseaunianos, casualmente coçando aquilo que está ardendo. A natureza tão casual de sua sexualidade os mantém distantes do nervosismo a respeito de sua homossexualidade, tão comum a nós, ocidentais puritanos de gola alta.


A preocupação generalizada com o sexo, a atitude que considera as atividades sexuais menores, as danças sugestivas, as conversas estimulantes e impudicas, as músicas indecorosas e as lutas provocadas como sendo diversões aceitáveis e atrativas são majoritariamente responsáveis pela atitude nativa perante as práticas homossexuais. Elas são apenas brincadeiras, não recebem nem reprovação nem muita importância. Como as relações heterossexuais ganham importância não pelo amor e a tremenda fixação sobre o indivíduo, que são as únicas forças capazes de fazer uma relação homossexual durar e tornar-se importante, mas sim pelos filhos e pelo lugar do casamento na estrutura social e econômica da aldeia, é fácil entender porque as práticas homossexuais tão prevalecentes não têm tanta importância nem desfechos escandalosos. O reconhecimento e o uso de todas as variedades secundárias de atividades sexuais nas relações heterossexuais, as quais se agigantam como primárias nas relações homossexuais, serve de instrumento também na minimização de sua importância.[ Ibid., p. 83 ]


O modo de superar as inibições sexuais, portanto, é a saturação sexual da cultura. Se o sexo é inteiramente indiscriminado e as amarras morais que nos aprisionam são todas cortadas, então recuperamos nosso modo natural e nada angustiante de existir – e isso não vale somente para os solteiros. Repetindo a inversão moral de Rousseau, Mead sugere que é o desejo tolo pela fidelidade que cria o conflito matrimonial; os laços antinaturais da monogamia duradoura criam o sofrimento duradouro. Desfaçam-se os laços e o peso será aliviado.


Se [...] uma esposa realmente se cansa de seu marido, ou um marido de sua esposa, o divórcio vem como uma questão simples e informal, o não-residente simplesmente vai para casa, para sua família, e o relacionamento é dito ‘falecido’. Trata-se de uma monogamia muito frágil, freqüentemente trespassada e mais ainda rompida por completo. Mas muitos adultérios ocorrem [...], o que dificilmente ameaça a continuidade dos relacionamentos estabelecidos. A parte das terras da família que cabe a uma mulher torna-a independente de seu marido, e portanto não há casamentos de qualquer duração no qual uma das pessoas está constantemente infeliz. Uma pequena faísca de briga e a mulher vai embora para sua casa e para seu povo; se seu marido não se esforça para conciliar-se com ela, cada um procura outro parceiro.[ Ibid., cap. 7, p. 60 ]


Então, veja, o problema com os ocidentais é que, ao “assumir apenas uma forma restrita de atividade sexual”, nós canalizamos nossa libido muito cedo num tubo muito estreito, o que deve eventualmente “resultar em casamentos insatisfatórios”.[ Ibid., cap. 10, p. 83 ] Se apenas ignorássemos as restrições primárias e deixássemos nossos impulsos sexuais fluírem irrestritos, então quando chegássemos à época do casamento, já poderíamos estar despreocupados e relaxados como os samoanos. A melhor maneira para um divórcio sem culpas é livrarmo-nos das pesadas e antinaturais noções de culpa. Na verdade, toda a noção de que há culpas morais quanto à sexualidade é – como diria Freud – a causa do nosso profundo e neurótico mal-estar. Mas não é assim com os samoanos. Eles nos ensinam que a noção mesma de perversão sexual é uma perversão:


Ao descontar a nossa categoria de perversão, conforme é aplicada na prática, e reservá-la ao caso ocasional do pervertido psíquico, eles legislam todo um campo de possíveis neuroses para fora da existência. Onanismo, homossexualidade, formas estatisticamente incomuns de atividade heterossexual são práticas que não são nem banidas nem institucionalizadas. O espectro mais amplo que elas proporcionam previne o desenvolvimento de culpas obsessivas que são causa freqüente de desconforto entre nós. As práticas mais variadas permitidas heterossexualmente preservam qualquer indivíduo de ser penalizado por determinado condicionamento. Essa aceitação de um espectro mais amplo como “normal” proporciona uma atmosfera cultural na qual a frigidez e a impotência psíquica não ocorrem, e um ajuste sexual satisfatório no casamento pode sempre ser estabelecido. Aceitar tal atitude sem aceitar, de forma alguma, a promiscuidade, seria dar vários passos na direção de resolver muitos impasses matrimoniais e de esvaziar muitos dos bancos de nossas praças e as casas de prostituição.[ Ibid., cap. 13, p. 124 ]


Sem aceitar a promiscuidade de forma alguma? Se isso tudo é normal, que raio de prática poderia ser considerada promíscua? Seja lá como isso for, Mead deixa claro que a atitude casual perante o sexo é só uma parte da filosofia de vida samoana do não-faça-guerra-faça-amor. O que “torna o amadurecimento tão fácil, tão simples, é a casualidade generalizada de toda a sociedade” a respeito de tudo, tanto no Céu quanto na Terra:


Porque Samoa é um lugar onde ninguém aposta muito alto, ninguém paga muito caro, ninguém sofre por suas convicções ou briga até à morte por motivos especiais. Os desacordos entre pais e filhos solucionam-se com a mudança do filho para o outro lado da rua, as rugas entre um homem e toda a vila resolvem-se pela remoção desse para outra vila, as brigas de um marido com o amante de sua esposa acabam em belas esteiras [costuradas, em forma de presente]. Nem a pobreza nem grandes desastres ameaçam a população e a faz agarrar-se à sua vida avidamente, e a tremer pela continuação da existência. Nenhum deus implacável, veloz em sua fúria e poderoso em sua punição, disturba o significado de seus dias.[ Ibid., p. 110 ]


Alguém bem que poderia se perguntar a respeito da implacabilidade dos deuses em Samoa, dado que ali foi um território de missão para os cristãos desde a metade do século XIX. A resposta de Mead – que, é claro, ela queria que fosse bastante instrutiva para os cristãos ocidentais – era a de que os samoanos usaram seu cristianismo como usavam seus andrajos, tão leve e facilmente jogados para trás quando ocasiões apropriadas se apresentavam. Como dizia ela, “os únicos dissidentes” da atitude casual samoana perante os costumes sexuais “são os missionários, que divergem em vão e seus protestos não são relevantes”.[ Ibid., p. 112 ] O “prêmio moral da castidade” introduzido pelos missionários era encarado “com reverência, mas com completo ceticismo, e o conceito de celibato é absolutamente insignificante para eles”.[ Ibid., cap. 7, p. 55 ] A “influência dos missionários [...] falhou em dar ao nativo a noção de pecado”, ainda que tenha “providenciado a ele uma lista de pecados”.[ Ibid., cap. 9, p. 70. ] O resultado é que, em Samoa, “todo o cenário religioso é de formalismos [isto é, ter certas noções, mas nenhuma convicção mais profunda], de certo compromisso e aceitação à meia-medida. O grande número de pastores nativos, com suas interpretações peculiares do cristianismo, tornou impossível o estabelecimento do rigor típico do protestantismo ocidental, sua inseparável associação com as ofensas e sanções sexuais e sua consciência individual do pecado”.[ Ibid., cap. 11, p. 91. ] Isto é tudo para o bem, já que essa versão mais liberal e maleável de cristianismo mostra-se uma religião que produz bem pouca aflição. Outro plus e outra lição para os eclesiásticos causadores de neuroses deste nosso lado do Pacífico.

Qual é, então, a lição de casa de Mead? Nós, ocidentais, “vivemos um período de transição”.[ Ibid., cap. 14, p. 138 ] Ao contrário dos samoanos, que vivem numa sociedade estável, porém promíscua, os ocidentais encontram-se num estado de fluxo, inundado por múltiplos padrões de conduta, vários estilos de vida, numerosas visões religiosas, variadas idéias a respeito da sexualidade. Nosso estresse, em especial o da adolescência, é também multifacetado. Os samoanos são despreocupados porque têm poucas restrições à sua sexualidade, não têm laços atados pela relação familiar, buscam viver uma vida fácil numa cultura simples, que não os aflige com escolhas competitivas, intermináveis, a respeito do que fazer com suas vidas. Os americanos preocupam-se demais com conflitos e escolhas porque o “progresso” abriu-lhes a fenda para um lamaçal de visões de mundo conflitantes. Que fazer?

Obviamente, não podemos voltar à simplicidade nativa, mas podemos importar para a nossa cultura a casualidade samoana a respeito de toda questão sexual e deixar o vapor do nosso estresse para trás através do estabelecimento de algo como um prêmio cultural para a escolha individual e a tolerância completa. Nosso problema é que deparamo-nos com “muitos padrões, mas ainda acreditamos que apenas um deles deve ser o correto”. Não é à toa que estamos estressados. Nós devemos aceitar a idéia de que os padrões são como uma pletora de bugigangas que podemos escolher num bazar – a cada um o que lhe couber, e quanto mais bizarro, melhor. Que haja apenas um padrão: que ninguém interfira no padrão dos outros. Não pode haver um certo porque não pode haver um errado, e não há erros porque ninguém pode estar definitivamente certo.

O grito de guerra de Mead é, portanto, o de que nós precisamos marchar adiante na criação de uma nova era, “na qual nenhum grupo reclama sanções éticas para os seus costumes e todo grupo acolhe em seu meio aqueles que forem temporariamente adequados para filiação”. Só aí, dispara Mead, “teremos conhecido o ponto alto da escolha individual e da tolerância universal ao qual uma cultura heterogênea, e somente uma cultura heterogênea, pode chegar”.[ Ibid ]

Isso tudo deve soar tão familiar que seria supérfluo comentar o fato de que essa é a plataforma mesma das revoluções culturais liberais do século XX. O mesmo vale para a idéia de Mead a respeito das restrições sexuais, que, ao invés de nos salvarem da crueldade e da autodestruição, causam-nos uma insalubre implosão neurótica.

Algo deve ser dito a respeito do trabalho de Mead enquanto pura propaganda científica. Para o canalha, a “ciência”, bem como o patriotismo, pode servir de último refúgio (às vezes até de primeiro). Em 1983, o antropólogo Derek Freeman acusou Margaret Mead (que havia morrido cerca de cinco anos, antes canonizada como ícone cultural e intelectual) de ter representado os samoanos de modo inteiramente errado. “As conclusões principais de Adolescência, sexo e cultura em Samoa”, argumentou ele, “são, na realidade, fantasias de um mito antropológico profundamente em discordância com os fatos da etnografia e da história samoanas”.[ Derek Freeman, Margaret Mead and Samoa: The Making and Unmaking of an Anthopological Myth. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1983, p. 109 ] Na realidade, ele dizia, os samoanos estavam muito mais preocupados com a castidade – e, portanto, eram bem menos sexualmente promíscuos – que os ocidentais da época. O ponto feito por Freeman era contundente: Mead impôs sua própria agenda ao tratar dos samoanos.

O argumento de Freeman certamente é plausível. Seja lá o que os samoanos estavam fazendo, a própria Mead agia de modo bem parecido aos alegados nativos descompromissados, o que leva a crer que sua antropologia era, na verdade, uma autobiografia levemente disfarçada, que ela estava prestes a atualizar. Ela era casada quando partiu em viagem para a Samoa, mas largou seu primeiro marido por um homem que conheceu na viagem de volta. Este segundo foi logo substituído por um terceiro, e finalmente esse seu terceiro casamento foi jogado de lado, assim, casualmente. O tempo todo ela mantinha-se em relação com sua amante lésbica, Ruth Benedict. Conforme ela mesma afirma depois, sendo bem franca, “uma heterossexualidade rígida é uma perversão da natureza”. Cf. Hilary Lapsey, Margaret Mead and Ruth Benedict: The Kinship of Women. Amherst, MA: University of Massachusetts Press, 1999, p. 26, 76, 79-80 e 308 ] Em sua sociedade ideal, confidenciava, as pessoas seriam homossexuais quando jovens, aí trocariam para algo mais heterossexual durante a época de reprodução, para então trocarem de volta.[ Jane Howard, Margaret Mead: A Life. New York: Fawcett Crest, 1984, p. 253 ] Estaria Mead pintando os samoanos com suas próprias cores?

A crítica de Freeman causou um belo alarde e uma batalha retórica vem se alastrando desde então. Alguns têm questionado a análise de Freeman sobre a cultura samoana, e portanto também o seu criticismo quanto à de Mead, cujo status de ícone cultural e liberal foi arranhado, mas não sobreposto. Enquanto isso, o antropólogo Martin Orans levantou outra acusação contra Mead, totalmente distinta, mas igualmente danosa. Segundo ele, Freeman não provou realmente que Mead estava equivocada sobre os samoanos; os métodos que ela usou eram tão ruins que suas conclusões não tinham substância suficiente para estarem erradas. Daí o título do livro de Orans, Nem mesmo errada: Margaret Mead, Derek Freeman e os samoanos.[ Tradução livre para Not even wrong: Margaret Mead, Derek Freeman, and the Samoans ] A real questão é: como o livro Adolescência, sexo e cultura em Samoa – que Orans demonstra estar encoberto por “falhas metodológicas extensas” e infectado por uma “escassez ou total ausência de informações de suporte para seu argumento”[ Martins Orans, Not Even Wrong: Margaret Mead, Derek Freeman and the Samoans. Novato, CA: Chandler and Sharp Publishers, Inc., 1996, p. 123-124 ] – tornou-se tão influente? Sendo mais direto, “[c]omo os antropólogos e outros eminentes acadêmicos podem ter ignorado surdamente tantos defeitos ruidosos? Como tantas gerações de professores universitários puderam incluir [esse livro] em suas listas de leituras obrigatórias aos estudantes? Como pôde um trabalho tão falho ter servido de pedra-angular para tanta honra?”.[ Ibid., p. 124 ]

Orans diz que a razão número um é “ideológica”. “Nós queríamos que as descobertas de Mead estivessem certas. Nós acreditávamos que uma moral sexual mais permissiva seria um benefício para todos nós. Mais importante ainda, suas descobertas eram estratégicas para os defensores da importância da cultura frente à biologia. Essa perspectiva propunha a resolução dos problemas humanos através de uma mudança social, enquanto que a outra, de ênfase biológica, insistia que nossos problemas estavam enraizados na natureza humana e não eram, portanto, erradicáveis”. A mensagem de que a permissividade sexual e a engenharia social poderiam nos render uma diversão enorme e ainda eliminar completamente os problemas da sociedade teve pronta audiência no início do século XX (como ainda tem hoje em dia).

A razão número dois encontra-se enraizada na própria disciplina da antropologia cultural – ou, talvez, em sua falta de disciplina. Segundo Orans, ele próprio um antropólogo praticante, “desde sua concepção, essa sua prática vem sendo profunda e freqüentemente não-científica e categoricamente despreparada, à vontade para acolher espontaneamente generalizações sem qualquer embasamento empírico”.[ Ibid., p. 125 ] A antropologia serviu então como manto científico perfeito para cobrir uma análise cultural em nada mais científica do que a teoria do estado natural imaginada por Hobbes e Rousseau.

O desejo de que algo seja verdadeiro, no lugar do desejo pelo que é verdadeiro em si, pode muito bem ser a raiz mesma de todo mal. É certamente a origem de toda ideologia, e as ideologias foram as fontes de uma boa parte do mal perpetrado no século passado.

O que é uma ideologia? Vivemos em uma era tão ideológica que nos é difícil distinguir os bons raciocínios dos maus. A distinção crucial aqui é a de que ideologia não é filosofia. A filosofia é o amor à sabedoria, o amor ao que é real, independentemente de gostarmos dele ou não. É o desejo pela verdade, é a humildade constante de remodelar nossos desejos de acordo com a realidade. A ideologia atinge a verdade pelo outro lado, moldando-a àquilo que porventura desejarmos. Por uma ideologia, não se tem escrúpulos para talhar a verdade a fim de fazê-la caber aos nossos desejos, e por isso mesmo ela não leva a hesitar aqueles que, como Mead, a usam para refazer a realidade conforme suas ânsias. A pseudociência é, portanto, serva da ideologia. A política é sua ferramenta.

Mead dá um belo exemplo do poder que uma ideologia tem de criar e perpetrar uma pseudociência. Conforme Orans deixa claro, o desejo de se criar uma revolução sexual fez vários cientistas altamente qualificados (que deviam ter sido mais espertos) aceitarem e exaltarem o trabalho de Mead, mesmo considerando que, pelos cânones adotados em metodologia científica, o tecido de sua argumentação tinha mais furos que pano. Mas eles queriam que aquilo fosse verdade. “Fosse o livro não-científico na mesma medida, mas com uma ideologia oposta”, Orans nota com sinceridade, “com certeza o teríamos destruído por conta de suas falhas científicas”.[ Ibid., p. 13 ]

É claro que Mead não é a única culpada pelo sucesso de vendas das pseudociências. Marx e Engels consideravam-se eminentemente científicos, assim como Darwin, Freud, Hitler e Sanger. E quando tomarmos Kinsey para analisar, veremos a perversão sexual posando de ciência no traje emprestado e austero de um jaleco de laboratório. Mas não podemos culpar apenas esses autores execráveis. Livros ruins apenas estragam o mundo quando são consumidos ferozmente por aqueles que têm fome de suas mensagens: que seria bom eliminar os “inaptos” ao invés de preocupar-se caridosamente com eles; que todo mal é causado por uma classe ou raça e pode ser eliminado através do extermínio dessas pessoas; que podemos nos tornar gênios se lançarmo-nos aos bacanais e ao sexo-livre; e que o sexo casual, o divórcio casual, a família casual, os padrões casuais e a religiosidade casual podem nos curar dos males que nos afligem.

Em cada um desses casos, a cura é o que mata.

 

 (BENJAMIN WIKER - Dez Livros que estragaram o Mundo e outros cinco que não ajudaram em nada)

publicado às 00:46


Bertrand Russell (1872-1970)

por Thynus, em 16.09.16
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Temer o amor é temer a vida, e os que temem a vida já estão meio mortos.
 
Bertrand Russell dedicou-se ao ativismo político durante a Primeira Guerra Mundial
Bertrand Arthur William Russell, terceiro conde de Russell, nasceu no País de Gales, em uma família tradicional, no auge do poderio econômico e político inglês. Tornou-se filósofo, lógico e matemático, além de inveterado humanista. Escritor prolífico, ajudou a popularizar a filosofia por meio de palestras e comen­tários sobre uma grande variedade de assuntos, não apenas acadêmicos mas também relativos a questões da atualidade. Seguindo a tradição familiar de forte posicionamento político, foi um proeminente pacifista, contra a intervenção norte-americana na Primeira e na Segunda Guerra Mundial, em favor da emancipação fe­mi­nina e do controle da natalidade e ferrenho defensor das reformas sociais; defendia o livre-comércio entre as nações e combatia o imperia­lismo. Agnóstico declarado, criticava qualquer forma de autoridade que tolhesse a liberdade de pensamento e a expressão e acusava as instituições religiosas e os fiéis por dificultarem a vida do ser humano. Pagou o preço por seu posi­cio­namento secularista quando, em 1939, após uma controvérsia pública, foi proibido pela justiça de Nova York de lecionar no City College. Seus leitores e admiradores viam nele um profeta da vida criativa, moderna e racional. Foi um dos primeiros defensores do desarmamento nuclear. Dono de um estilo de escrita límpido e característico pela clareza de seus raciocínios – bem como pela coragem e ousadia com que se dedicava às suas causas –, em 1950 recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, “em reconhecimento de seus variados e importantes escritos nos quais advoga ideais humanitários e a liberdade de pensamento”. Em 1966, emprestou o nome ao Tribunal Bertrand Russell, criado em Londres como parte do Movimento Comu­nista Internacional, destinado a “julgar” países que combatiam o comunismo e defendiam o imperialismo norte-americano. (Acabou por se afastar do organismo, posteriormente transferido para Roma.) Na década de 1960, denunciou os Estados Unidos pela invasão do Vietnã. Foi casado quatro vezes. Morreu com quase cem anos, enfraquecido por uma gripe. Escreveu inúmeros livros, entre os quais Por que não sou cristão (1927), Ensaios céticos (1928) e História da filosofia ocidental (1946).

Alan Ryan (Bertrand Russell - No Que Acredito)

publicado às 00:29


A natureza e o homem

por Thynus, em 16.09.16
O homem é uma parte da natureza, não algo que contraste com ela. Seus pensamentos e movimentos corporais seguem as mesmas leis que descrevem os deslocamentos de estrelas e átomos. O mundo físico é grande comparado ao homem – maior do que se pensava à época de Dante, mas não tão grande quanto parecia cem anos atrás. Em todos os sentidos, tanto no micro como no macrocosmo, a ciência parece estar atingindo limites. Acredita-se que o universo possua dimensão espacial finita e que a luz possa percorrê-lo em algumas centenas de milhões de anos. Acredita-se que a matéria consista de elétrons e prótons, os quais são finitos em tamanho e dos quais há no mundo apenas um número finito. Provavelmente suas trans­for­mações não sejam contínuas, como se costumava pensar, mas ocorram aos saltos, estes nunca menores que um salto mínimo. Ao que parece, as leis que governam essas transformações podem ser resumidas em um pequeno número de princípios bastante gerais, que determinam o passado e o futuro do mundo no momento em que se conhece uma pequena parte qualquer de sua história.

Logo, a ciência física está se aproximando do estágio em que se tornará completa e, portanto, desinteressante. Dadas as leis que governam os deslocamentos de elétrons e prótons, o resto é meramente geografia – uma coleção de fatos particulares relativos à sua distribuição ao longo de alguma parcela da história do mundo. A soma total de fatos geográficos necessários para determinar essa história é provavelmente finita; em tese, eles poderiam ser anotados em um grande livro a ser mantido em Somerset House, junto com uma máquina de calcu­lar cuja manivela, uma vez girada, possibilitaria ao pesquisador descobrir os aconte­cimentos de outras épocas que não as regis­tradas. É difícil imaginar algo menos atraente e mais distante dos deleites apaixonados da descoberta incom­pleta. É como escalar o topo de uma alta montanha e nada encontrar senão um restaurante onde se venda gengibirra – envolto pela neblina, mas equipado com aparelho radiotelegráfico. Quiçá nos tempos de Ahmes a tábua de multiplicação fosse excitante.

Deste mundo físico, em si mesmo desin­teressante, o homem é parte. Seu corpo, como qualquer outro tipo de matéria, é compos­to por elétrons e prótons, que, até onde sabemos, obedecem às mesmas leis a que se submetem os elétrons e prótons que não constituem animais e plantas. Alguns sustentam que a fisiologia jamais poderá ser reduzida à física, mas seus argumentos não são muito convincentes, de sorte que parece prudente supor que estejam errados. Aquilo que chamamos de nossos “pensamentos” parece depender da disposição de trilhos em nosso cérebro, do mesmo modo que as jornadas dependem das rodovias e das estradas de ferro. A energia utiliza­da no ato de pensar parece ter uma origem química; por exemplo, uma deficiência de iodo fará de um homem inteligente um idiota. Os fenômenos mentais parecem estar intimamente vincu­lados a uma estrutura material. Se assim é, não podemos supor que um elétron ou um próton solitário seja capaz de “pensar”; seria como espe­rar que um indivíduo sozinho pudesse jogar uma partida de futebol. Tampouco podemos supor que o pensamento individual possa sobre­viver à morte corporal, uma vez que ela destrói a organização do cérebro e dissipa a energia por ele utilizada.

Deus e a imortalidade, dogmas centrais da religião cristã, não encontram respaldo na ciên­cia. Não se pode dizer que uma ou outra dessas doutrinas seja essencial à religião, na medida em que nenhuma delas é encontrada no budismo (com respeito à imortalidade, tal afirmação, feita de maneira inadequada, pode ser enga­nosa, mas, em última análise, está correta). Entretanto, nós ocidentais passamos a concebê-las como o mínimo irredutível da teologia. Sem dúvida, as pessoas continuarão a alimentar essas crenças, visto que lhe são aprazíveis, como aprazível é atribuir-nos a virtude e aos nossos inimigos o vício. De minha parte, porém, não vejo nelas qualquer fundamento. Não pretendo provar que Deus não existe. Tampouco posso provar que o Diabo seja uma ficção. É possível que exista o Deus cristão, assim como é possível que existam os deuses do Olimpo, do Egito antigo ou da Babilônia. Mas nenhuma dessas hipóteses é mais provável do que a outra: residem fora da região do conhecimento provável e, portanto, não há razão para considerar qualquer uma delas. Não me estenderei sobre essa questão, tendo em vista que já a tratei em outra oportunidade.(*)

A questão da imortalidade pessoal assenta-se sobre uma base um tanto diferente. Aqui, a evidência é possível em ambos os sentidos. Os indivíduos fazem parte do mundo cotidiano de que se ocupa a ciência, sendo possível descobrir as condições que determinam sua existência. Uma gota d’água não é imortal; pode ser decomposta em oxigênio e hidrogênio. Assim, se uma gota d’água alegasse possuir uma qualidade aquosa que sobreviveria à sua dissolução, estaríamos inclinados ao ceticismo. Da mesma forma, sabemos que o cérebro não é imortal e que a energia organizada de um corpo vivo é, por assim dizer, desmobilizada à hora da morte, estando consequentemente indisponível para uma ação coletiva. Todas as evidências vêm demonstrar que o que consideramos nossa vida mental está intimamente relacionado à estru­tura do cérebro e à energia corporal or­ga­ni­zada. Logo, é razoável supor que a vida mental cesse no momento em que cessa a vida material. Por mais que esse argumento seja apenas uma proba­bilidade, ele é tão consistente quanto aqueles em que se baseia a maior parte das conclusões científicas.

Há várias áreas em que essa conclusão poderia ser atacada. A pesquisa psíquica alega ter evidências científicas verdadeiras da sobrevi­vência, e não há dúvida de que seu procedi­men­to, em princípio, está cientificamente correto. Evidências dessa espécie poderiam ser de tal forma esmagadoras que a ninguém com espírito científico seria dado rejeitá-las. Porém, a relevância a ser atribuída a elas deve depender da proba­lidade a priori da hipótese de sobrevivência. Há sempre maneiras diferentes de explicar cada conjunto de fenômenos, e, dentre eles, devemos prefe­rir aquele que é, a priori, menos impro­vável. Os que já consideram provável sobrevivermos à morte estarão prontos para ver nessa teoria a melhor explicação para os fe­nô­me­nos físicos. Aqueles que, baseados em outros critérios, julgarem-na implausível partirão em busca de outras explicações. De minha parte, considero as evidências até aqui aduzidas pela pesquisa psíquica em favor da sobrevivência muito mais frágeis do que as evidências fisiológicas apresentadas pelo outro lado. Mas admito plenamente que poderiam a qualquer momento tornar-se mais fortes, e, nesse caso, seria pouco científico descrer da sobrevivência.

A sobrevivência à morte corporal é, no entanto, um assunto diferente da imortalidade: só pode significar um adiamento da morte psí­quica. É na imortalidade que os homens desejam crer. E os que creem na imortalidade irão se opor a argumentos de cunho fisiológico, a exemplo dos que venho utilizando, sob a alegação de que alma e corpo são coisas totalmente díspares e que a alma é algo absolutamente diverso às suas manifestações empíricas por meio de nossos órgãos. Creio ser essa uma superstição metafísica. Espírito e matéria, para certos propósitos, são termos igualmente convenientes, mas não realidades supremas. Os elétrons e os prótons, a exemplo da alma, são invenções lógicas; cada qual constitui uma história, uma série de acontecimentos, e não uma entidade permanente isolada. No caso da alma, tornam-no óbvio os fatos relativos ao desenvolvimento. Quem quer que considere a concepção, a gestação e a infân­cia não pode acreditar seriamente que ao longo de todo esse processo a alma seja algo indivisível, perfeito e completo. É evidente que ela se desen­volve como o corpo e se origina tanto do esper­matozoide como do óvulo, de sorte que não pode ser indivisível. Não se trata aqui de materialismo: é simplesmente o reconhe­cimento de que tudo o que é interessante é uma questão de organização, e não de substância primor­dial.

Os metafísicos aventaram incontáveis argu­­mentos no intuito de provar a imortali­dade da alma. Mas há um simples teste por meio do qual todos esses argumentos podem ser demolidos. Provam todos, igualmente, que a alma deve penetrar a totalidade do espaço. Mas, da mesma forma como não estamos tão ansiosos para engordar quanto para ter uma vida longa, nenhum dos metafísicos em apreço jamais percebeu essa aplicação de seu raciocínio. Eis um exemplo do poder assombroso exercido pelo desejo ao cegar até mesmo homens competentes ante falácias cuja obviedade seria de outro modo imediatamente reconhecida. Se não temêssemos a morte, creio que a ideia de imortalidade jamais houvesse surgido.

O medo é a base do dogma religioso, assim como de muitas outras coisas na vida humana. O medo dos seres humanos, individual ou cole­tivamente, domina muito de nossa vida social, mas é o medo da natureza que dá origem à religião. A antítese entre espírito e matéria, como vimos, é mais ou menos ilusória; mas há uma outra antítese mais importante, a saber: aquela entre as coisas que podem e as que não podem ser afetadas por nossos desejos. A linha que as divide não é nítida nem imutável – à medida que a ciência avança, cada vez mais o controle humano exerce seu domínio sobre as coisas. Todavia, há coisas que permanecem definitivamente do outro lado. Entre elas encontram-se todos os grandes fatos de nosso mundo, os tipos de fatos de que se ocupa a astronomia. São apenas os fatos que se verificam sobre ou perto da superfície da terra que podemos, em certa medida, moldar aos nossos desejos. E mesmo sobre a superfície da terra nossos poderes são muito limitados. Acima de tudo, não podemos evitar a morte, ainda que muitas vezes consigamos adiá-la.

A religião representa uma tentativa de supe­rar essa antítese. Se o mundo é controlado por Deus, e Deus pode ser movido pela prece, somos detentores de uma parcela dessa oni­­­po­tên­­cia. Em tempos passados, os milagres acon­te­­ciam em resposta a súplicas; na Igreja Ca­tó­li­ca eles ainda ocorrem, mas os protes­t­an­tes perderam tal poder. Contudo, é possível prescindir desses milagres, uma vez que a Providência decretou que a operação das leis naturais produzirá os melhores resultados possíveis. Logo, a crença em Deus serve para humanizar o mundo da natureza e para fazer com que os homens sintam que as forças físicas são realmente suas aliadas. Da mesma forma, a imortalidade rechaça o pavor da morte. Os que creem que na morte herdarão a bem-aventurança eterna quiçá possam encará-la sem horror, ainda que, para a felicidade dos médicos, isso não aconteça com frequência. De toda forma, essa crença alivia um pouco os temores dos homens, mesmo quando não pode atenuá-los de todo.

A religião, por ter no terror a sua origem, dignificou certos tipos de medo e fez com que as pessoas não os julgassem vergonhosos. Nisso prestou um grande desserviço à humanidade, uma vez que todo medo é ruim. Acredito que quando morrer apodrecerei e nada de meu ego sobreviverá. Não sou jovem e amo a vida. Mas desdenharia estremecer de pavor diante do pensamento da aniquilação. A felicidade não deixa de ser verdadeira porque deve necessariamente chegar a um fim; tampouco o pensamento e o amor perdem seu valor por não serem eternos. Muitos homens preservaram o orgulho ante o cadafalso; decerto o mesmo orgulho deveria nos ensinar a pensar verdadeiramente sobre o lugar do homem no mundo. Ainda que as janelas abertas da ciência a princípio nos façam tiritar, depois do tépido e confortável ambiente fami­liar de nossos mitos humanizadores tradi­cionais, ao fim o ar puro nos confere vitali­dade, e ademais os grandes espaços têm seu próprio esplendor.

A filosofia da natureza é uma coisa; a filoso­fia do valor é totalmente distinta. Confun­di-las não gera senão prejuízo. O que consideramos bom, aquilo de que deveríamos gostar, não tem qualquer relação com o que é – questão esta concernente à filosofia da natureza. Por outro lado, não nos podem proibir de dar valor a isso ou àquilo pelo fato de o mundo não humano não fazê-lo; tampouco nos podem compelir a admirar alguma coisa por ser uma “lei da natureza”. Sem dúvida somos parte da natureza, que produziu nossos desejos, esperanças e temores de acordo com leis que os cientistas estão come­çando a descobrir. Nesse sentido, somos parte da natureza, estamos a ela subordinados, somos consequência das leis naturais e, em última instância, suas vítimas.

A filosofia da natureza não deve ser indevi­da­mente terrena; para ela, a terra não é senão meramente um dos menores planetas de uma das menores estrelas da Via Láctea. Seria ridículo perverter a filosofia da natureza a fim de apresentar resultados aprazíveis aos diminutos parasitas deste planeta insignificante. O vita­lismo como filosofia, não menos que o evolu­cionismo, revela, a esse respeito, falta de senso de proporção e relevância lógica. Toma os fatos da vida que nos são pessoalmente inte­ressantes como detentores de um significado cósmico, e não de um significado restrito à superfície terrestre. O otimismo e o pessimismo, na qualidade de filosofias cósmicas, revelam o mesmo humanismo ingênuo; o universo, até onde o conhecemos pela filosofia da natureza, não é bom nem mau, nem se ocupa em nos fazer felizes ou infelizes. Todas essas filosofias nascem da presunção humana e são mais bem corrigidas com um quê de astronomia.

Entretanto, na filosofia do valor a situação se inverte. A natureza é apenas parte daquilo que podemos imaginar; todas as coisas, sejam elas reais ou imaginárias, podem por nós ser aprecia­das, e não há padrão externo a mostrar que nossa apreciação está errada. Somos nós os árbitros máximos e irrefutáveis do valor, e do mundo do valor a natureza constitui apenas uma parte. Logo, nesse universo, somos maiores que a natureza. No mundo dos valores, a natureza em si é neutra – nem boa nem ruim, merecedora nem de admiração nem de cen­sura. Somos nós quem criamos valor, e são nossos desejos que o conferem. Desse império somos reis e de nossa realeza nos tornamos indignos se à natureza nos curvamos. Estabelecer uma vida plena cabe portanto a nós, e não à natureza – nem mesmo à natureza personificada como Deus.

(Bertrand Russell - No Que Acredito)

publicado às 00:16


A vida virtuosa

por Thynus, em 16.09.16
Em diferentes épocas e entre diferentes povos, surgiram várias e variadas concepções acerca do que seria uma vida virtuosa. Em certa medida, tais diferenças eram passíveis de argumentação; isso quando os homens divergiam quanto aos meios de atingir determinado fim. Para alguns, a prisão é uma boa forma de impedir o crime; outros sustentam que a educação seria a melhor alternativa. Uma divergência de tal natureza pode ser resolvida com provas suficientes. Mas algumas divergências não podem ser testadas dessa maneira. Tolstói condenava toda e qualquer guerra; outros julgavam que a vida de um soldado empenhado em combater pela justiça era extremamente nobre. Aqui provavelmente estava implicada uma real divergência quanto aos fins pretendidos. Aqueles que reverenciam o soldado não raro consideram a punição aplicada aos pecadores algo bom em si mesmo; Tolstói não pensava assim. Para tal questão, nenhum argumento é possível. Não posso, pois, provar que minha concepção de uma vida virtuosa esteja correta; posso apenas expô-la e esperar que com ela concordem tantos quanto for possível. Eis o que penso:

A vida virtuosa é aquela inspirada pelo amor e guiada pelo conhecimento.

Tanto o conhecimento como o amor são indefinidamente extensíveis; logo, por melhor que possa ser uma vida, é sempre possível imaginar uma vida melhor. Nem o amor sem o conhecimento, nem o conhecimento sem o amor podem produzir uma vida virtuosa. Na Idade Média, quando a peste surgia numa região, os sacerdotes alertavam a população para que se reunisse nas igrejas e orasse por sua salvação; como consequência, a infecção propagava-se com extraordinária rapidez entre as multidões de suplicantes. Eis, portanto, um exemplo de amor sem conhecimento. A última guerra nos propiciou um exemplo de conhecimento sem amor. Em ambos os casos, o resultado não foi senão a morte em grande escala.

Ainda que o amor e o conhecimento sejam ambos necessários, em certo sentido o amor é mais fundamental, na medida em que levará indivíduos inteligentes a buscar o conhe­cimento a fim de descobrir de que modo beneficiar aqueles a quem amam. Mas, se os indivíduos não forem inteligentes, hão de contentar-se em acreditar naquilo que lhes disseram e possivelmente praticarão o mal, apesar da mais genuína benevolência. É a medicina que talvez ofere­ça o melhor exemplo daquilo a que me refiro. Ao paciente, um médico qualificado é mais útil do que o mais devotado amigo, e o progresso no conhecimento médico faz mais pela saúde da comunidade do que toda filantropia mal instruída. Ainda assim, uma certa bondade mesmo aqui se fará essencial, no caso de serem os ricos os únicos a lucrar com as descobertas científicas.

Amor é uma palavra que abrange uma varie­­dade de sentimentos; empreguei-a pro­positalmente porque desejo incluí-los todos. O amor como emoção – sentimento a que me refiro, já que o amor “por princípio” não me parece legítimo – desloca-se entre dois polos: de um lado, o puro deleite na contemplação; de outro, a benevolência pura. No que diz respeito aos objetos inanimados, tem lugar apenas o deleite; não podemos sentir benevolência para com uma paisagem ou uma sonata. Esse tipo de prazer é presumivelmente a fonte da arte. Em regra, é mais forte em crianças na tenra infância que nos adultos, inclinados que estão a considerar os objetos de uma perspectiva utilitária. Ele desempenha uma função impor­tante em nossos sentimentos para com os seres hu­ma­nos, alguns dos quais providos de encanto e outros do contrário, quando considerados simples­mente como objetos de contemplação estética.

O polo oposto do amor é a benevolência pura. Houve homens que sacrificaram suas vidas em amparo aos leprosos; nesse caso, o amor que sentiam não poderia ter tido qualquer componente de prazer estético. O afeto dos pais, via de regra, é acompanhado pelo encanto proporcionado pela aparência do filho, mas permanece forte mesmo na ausência total desse elemento. Pareceria estranho chamar de “bene­volência” o interesse da mãe pelo filho doente, visto que costumamos empregar essa palavra para descrever uma emoção fugaz que nove em dez vezes só constitui logro. De toda forma, é difícil encontrar outro termo para descrever o desejo pelo bem-estar de outra pessoa. Por certo um desejo de tal natureza, no caso do sentimento dos pais em relação ao filho, pode atingir qualquer grau de intensidade. Em outros casos, ele é muito menos intenso; de fato, afigura-se plausível que toda emoção altruística seja uma espécie de transbordamento do amor paternal, ou por vezes a sua sublimação. Na falta de um termo melhor, devo chamar essa emoção de “benevolência”. Mas esclareço que falo aqui de uma emoção, e não de um princípio, e que nela não incluo qualquer sentimento de superioridade, como algumas vezes é associado à palavra. O vocábulo “simpatia” expressa parte do que quero dizer, mas omite o componente de atividade que desejo incluir.

O amor, em sua totalidade, é uma com­binação indissolúvel de dois elementos, deleite e benquerer. O prazer dos pais ante um filho belo e bem-sucedido é uma combinação de ambos os elementos; tal como o amor sexual, no que tem de melhor. Mas no amor sexual só existirá benevolência quando houver uma posse segura, pois, do contrário, o ciúme a destruirá, ainda que talvez aumente o prazer na contemplação. O deleite desprovido de benquerer pode ser cruel; o benquerer desprovido de deleite tende facilmente a tornar-se um sentimento frio e um tanto arrogante. Alguém que deseje ser amado quer ser objeto de um amor que contenha ambos os elementos, exceto nos casos de extrema fragilidade, como na infância e nas situações de grave enfermidade. Nesses casos, a benevolência pode ser tudo que se dese­ja. Por outro lado, nos casos de extremo vigor, mais que benevolência, deseja-se admiração: é o esta­do de espírito de potentados e beldades famosas. Só desejamos o bem dos outros à medida que nos sentimos carentes de ajuda ou sob a ameaça de que eles nos façam mal. Pelo menos essa pareceria a lógica biológica da situação, mas não é muito aplicável ao que toca à vida. Deseja­mos afeto a fim de escaparmos do sentimento de solidão, a fim de sermos, como costumamos dizer, “compreendidos”. É uma questão de simpatia, e não simplesmente de benevolência; a pessoa cujo afeto nos é satisfa­tório não nos deve unicamente querer bem, mas também saber em que consiste nossa fe­licidade. Isso, no entanto, pertence ao outro componente de uma vida virtuosa, a saber: o conhecimento.

Em um mundo perfeito, cada ser sensível seria para os demais objeto do mais repleto amor, constituído de prazer, benevolência e com­preensão inextricavelmente combinados. Isso não significa que, nesse mundo real, devamos nos esforçar por nutrir tais sentimentos em relação a todos os seres sensíveis com os quais nos deparemos. Há muitos diante dos quais não podemos sentir qualquer deleite, por nos serem repulsivos; se tivéssemos de violentar nossa natureza tentando ver beleza neles, bastaria simplesmente que embotássemos nossa sensibi­lidade para o que naturalmente julgamos belo. Para não mencionar seres humanos, há pulgas, percevejos e piolhos. Deveríamos passar pelas mesmas dificuldades que o Ancient Mariner(*) para que pudéssemos sentir prazer em contemplar semelhantes criaturas. Alguns santos, é verdade, chamaram-nos de “pérolas de Deus”, mas o que realmente deleitava esses homens era a oportunidade de expor a própria santidade.

A benevolência é mais fácil de estender-se amplamente, mas mesmo ela tem seus limites. Se um homem tivesse por desejo casar-se com uma dama, não deveríamos pensar que o melhor para ele seria desistir de seu intento, caso descobrisse que um concorrente desejaria igualmente desposá-la: deveríamos considerar o fato como uma justa competição. Contudo, seus sentimentos para com o rival não podem ser inteiramente benevolentes. Penso que em todas as descrições de uma vida plena neste planeta devemos assumir um certo princípio funda­mental de vitalidade e instinto animal; sem ele, a existência se torna insípida e desinteressante. A civilização deveria ser algo que se somasse a isso, e não que o substituísse. Nesse sentido, o santo ascético e o sábio desinteressado não se constituem em seres humanos completos. É possível que um pequeno número desses homens enriqueça uma comunidade; mas um mundo formado por eles morreria de tédio.

Semelhantes considerações conduzem a uma certa ênfase sobre o elemento do deleite como ingrediente do amor ideal. No mundo de hoje, o deleite é algo inevitavelmente seletivo e nos impede de nutrir os mesmos sentimentos por toda a humanidade. Quando surgem confli­tos entre o deleite e a benevolência, via de regra eles devem ser resolvidos por um acordo, e não pela total renúncia de um dos dois. O instinto tem seus direitos; se o violarmos além da me­dida, sua vingança se dará por meios sutis. Logo, ao almejar uma vida virtuosa, devemos ter em mente os limites da possibilidade humana. Também aqui, todavia, somos levados de volta à necessidade de conhecimento.

Quando me refiro ao conhecimento como ingrediente de uma vida plena, não me refiro ao conhecimento ético, mas ao conhecimento científico e ao conhecimento de fatos particulares. Estritamente falando, não penso que haja um conhecimento ético. Se desejamos alcançar um determinado fim, o conhecimento po­de­rá nos indicar os meios para tanto e imprecisamente passar por ético. Contudo, não creio que nos seja dado decidir que tipo de conduta é certa ou errada, a não ser que tomemos como base suas prováveis consequências. Fixado um objetivo a alcançar, descobrir como fazê-lo é um problema que compete à ciência. Todas as normas morais devem ser testadas com base em sua tendência ou não de concretizar os objetivos que desejamos. Refiro-me aqui aos obje­tivos que desejamos, e não àqueles que deve­ría­mos desejar. O que “deveríamos” desejar não é senão o que os outros pretendem que desejemos. Normalmente, é o que querem que desejemos as autoridades – pais, professores, po­liciais e juízes. Se você me diz “você deveria fazer isso e aquilo”, a força motriz de sua observação reside em meu desejo de obter a sua aprovação – a par, possivelmente, de recompensas e punições vinculadas à aprovação ou à desaprovação. Na medida em que todo comportamento nasce do desejo, está claro que as noções éticas só podem ter importância quando sobre ele exercem sua influência. Elas o fazem por inter­médio ­do desejo de aprovação e do medo da desa­prova­ção. Por tratar-se de forças sociais poderosas, naturalmente devemos nos empenhar em conquistá-las para a nossa seara, caso queiramos levar a efeito qualquer propósito social. Quando afirmo que a moralidade de conduta tem de ser julgada por suas prováveis conse­quên­­cias, quero dizer que meu desejo é ver aprovado aquele comportamento capaz de execu­tar os propósitos sociais que desejamos e desaprovado o comportamento oposto. No presente, isso não é feito; há certas normas tra­di­cio­nais segundo as quais a aprovação e a desa­pro­vação são conferidas de maneira absolutamente indiferente às suas consequências. Mas esse é um tópico que abordarei na próxima seção.

A superfluidade da ética teórica se mostra óbvia nos casos simples. Suponhamos, por exemplo, que nosso filho esteja doente. O amor faz com que queiramos curá-lo, e a ciência nos mostra de que modo fazê-lo. Não há uma teoria ética como etapa intermediária, demons­trando que o melhor seria que nosso filho se curasse. Nosso ato provém diretamente do dese­jo de atingir um determinado fim, não menos que do conhecimento dos meios necessários para tanto. Isso se aplica igualmente a todos os atos, sejam eles bons ou maus. Os fins diferem, e o conhecimento é mais adequado em alguns casos do que noutros. Entretanto, não há maneira concebível de levar as pessoas a fazerem coisas que não desejam. Possível é modificar seus desejos por meio de um sistema de recompensas e punições, entre as quais a aprovação e a desaprovação social não sejam as menos pode­rosas. Eis, portanto, a questão para o moralista legislativo: de que modo será organizado esse sistema de recompensas e punições, tendo em vista assegurar o máximo do que é desejado pela autoridade legislativa? Se digo que a autoridade legislativa tem maus desejos, estou simplesmente dizendo que seus desejos contrastam com aqueles do seguimento social a que pertenço. Fora dos desejos humanos, não há padrão moral.

Por conseguinte, o que distingue a ética da ciência não é nenhum tipo especial de co­nhe­ci­mento, mas simplesmente o desejo. O conheci­mento exigido pela ética é tal qual o conhe­cimento em todos os campos; o peculiar é que se desejam determinados fins e a correta conduta é o que levará até eles. Evidentemente, para que a definição de conduta correta exerça uma grande atração, os fins devem corres­ponder ao que deseja grande parte da humanidade. Se eu definisse a conduta correta como aquela que eleva minha renda pessoal, os leitores discordariam. A eficácia total de qualquer argumento ético reside em seu componente cien­tífico, isto é, na prova de que um tipo de conduta, mais do que qualquer outra, é o meio para alcançar um fim amplamente desejado. Esta­beleço uma distinção, contudo, entre argumento ético e educação ética. A última consiste em reforçar certos desejos e enfraquecer outros. Trata-se de um processo um tanto quanto diferente, que discutirei em separado, em uma etapa posterior.

Podemos, por ora, explicar mais exata­men­te o sentido da definição de vida virtuosa que dá início a este capítulo. Quando afirmei que a vida virtuosa consiste no amor guiado pelo conhecimento, o desejo que me inspirou não foi senão o de viver essa vida o máximo possível e de ver vivê-la outras pessoas; o conteúdo lógico de tal afirmação é que, numa comunidade onde os homens vivam dessa maneira, mais desejos serão satisfeitos que numa comuni­dade onde haja menos amor ou menos conhecimento. Não pretendo com isso dizer que uma vida assim seja “virtuosa” ou que seu oposto seja uma vida “pecaminosa”, pois essas são concepções que não me parecem ter qualquer justificação cien­tífica.

(Bertrand Russell - No Que Acredito)

Notas:
(*) - Referência a The Rime of the Ancient Mariner (A balada do velho marinheiro), poema de 1797 de S. T. Coleridge. (N.T.)

publicado às 00:11


Normas morais

por Thynus, em 16.09.16
A necessidade prática da moralidade nasce do conflito dos desejos, seja de pessoas dife­rentes ou da mesma pessoa, sob circunstâncias diferentes ou ainda sob a mesma circunstância. Um homem deseja beber e ao mesmo tempo estar apto para o trabalho no dia seguinte. Julgamo-lo imoral se ele adota o rumo que lhe proporciona a menor satisfação do seu desejo. Pensamos mal dos extravagantes ou impru­dentes, ainda que a ninguém prejudiquem senão a si próprios. Bentham supunha que a moralidade, como um todo, provinha do “egoís­mo esclarecido” e que aquele que sempre agisse com vistas à máxima satisfação pessoal em última análise sempre agiria acertadamente. Não posso aceitar semelhante opinião. Houve tiranos que sentiam um refinado prazer ao testemunhar práticas de tortura; não posso exaltar homens dessa espécie, quando a prudência os levava a poupar a vida de suas vítimas tendo em vista infligir-lhes sofrimentos adicionais no dia seguinte. Entretanto, outras coisas sendo iguais, a prudência faz parte de uma vida virtuo­sa. Mesmo Robinson Crusoé teve ensejo de prati­car a diligência, o autodomínio e a previdência – que devem ser considerados qualidades morais –, pois aumentavam sua satisfação total sem que, em contrapartida, acarretassem dano aos outros. Esse elemento da moralidade desempenha um papel de extrema importância na formação das crianças, pouco propensas a pensar no futuro. Se fosse mais praticado na vida adulta, o mundo rapidamente se tornaria um paraí­so, visto que esse elemento seria suficiente para prevenir as guerras, que consti­tuem atos de paixão, e não da razão. De qualquer forma, apesar da importância da prudência, não é ela o elemento mais interessante da moralidade. Tam­pouco o elemento que suscita problemas intelectuais, pois que não necessita apelar a outra coisa que não o egoísmo.

O componente da moralidade que não está incluído na prudência é, essencialmente, análogo à lei ou aos estatutos de um clube. Constitui um método que aos homens permite viver em união numa comunidade, não obstante a possibilidade de que seus desejos possam entrar em conflito. Nesse caso, contudo, são possíveis dois métodos muito diferentes. Há o método do direito criminal, que, ao determinar consequências desagradáveis para atos que sob certos aspectos frustram os desejos de outros homens, visa a uma harmonia tão somente externa. Esse é também o método da censura social: ser julgado mal pela própria sociedade a que se pertence representa uma forma de puni­ção, tendo em vista evitar aquilo que a maioria das pessoas evita que se saiba, por transgredir o código de seu grupo social. Mas há um outro método, mais fundamental e muito mais satisfatório quando bem-sucedido. Implica modificar os caracteres e os desejos dos homens, a fim de minimizar situações de conflito, fazendo com que o sucesso dos desejos de um homem seja compatível, tanto quanto possível, com os desejos de outro. Eis por que o amor é melhor que o ódio – porque, em vez de con­flito, confere harmonia aos desejos dos indivíduos envolvidos. Duas pessoas entre as quais haja amor perseveram ou fracassam juntas, mas, quando dois indivíduos se odeiam, o êxito de um constitui o fracasso do outro.

Se estávamos certos ao afirmar que a vida virtuosa é inspirada pelo amor e guiada pelo conhecimento, está claro que o código moral de qualquer comunidade não é definitivo nem autossuficiente, mas deve ser examinado com vistas a descobrir-se se é tal qual o que a sabedoria e a benevolência teriam decretado. Nem sempre os códigos morais foram impecáveis. Os astecas, por temerem que a luz do sol esmae­cesse, consideravam seu penoso dever comer a carne humana. Erraram em sua ciência – e talvez houvessem percebido seu erro científico se tivessem sentido qualquer amor pelas vítimas de seus sacrifícios. Algumas tribos confinavam suas meninas ao escuro dos dez aos dezessete anos por receio de que os raios so­la­res pudessem engravidá-las. Mas será que nossos modernos códigos de moralidade nada contêm que seja análogo a essas práticas selvagens? É possível que proibamos apenas as coisas que são verdadeiramente danosas ou de uma forma ou de outra tão abomináveis que nenhuma pessoa decente seria capaz de defendê-las? Não estou muito certo disso.

A moralidade atual constitui uma curiosa mistura de utilitarismo e superstição, mas o componente supersticioso exerce uma maior influência, como é natural, uma vez que a su­pers­tição é a fonte das normas morais. Origi­nal­mente, certos atos eram tidos como desagradáveis aos deuses, sendo, desse modo, proibidos por lei por temer-se que a ira divina pudesse recair sobre toda a comunidade, e não apenas sobre os indivíduos culpados. Daí nasceu a concepção de pecado, como aquilo que desagrada a Deus. Não se pode determinar por que razão certos atos eram de tal modo desagradáveis; seria extremamente difícil dizer, por exemplo, por que era desagradável que um cabrito fosse cozido no leite da própria mãe. Mas ficou-se sabendo, pela Revelação, que tal era o caso. Por vezes as ordens divinas têm sido curiosamente interpretadas. Dizem-nos, por exemplo, que não trabalhemos aos sábados, mas na com­preen­são dos protestantes isso significa que não devemos nos divertir nos domingos. Porém, a mesma autoridade sublime é atribuída tanto à nova quanto à antiga proibição.

É evidente que um homem provido de uma perspectiva científica da vida não se pode deixar intimidar pelos textos das Escrituras ou pelos ensinamentos da Igreja. Não lhe satisfará dizer “este ou aquele ato constitui pecado, e isso encer­ra a questão”. Investigará se tal ato ver­dadeiramente acarreta algum mal, ou se, pelo contrário, o que acarreta algum mal é crê-lo pecaminoso. Constatará que, especialmente no tocan­te ao sexo, nossa moralidade corrente contém muito do que na origem é pura superstição. Perceberá também que essa superstição, tal qual a dos astecas, implica uma crueldade desnecessária e que seria abolida caso as pes­soas fossem tomadas pelo sentimento de bondade para com seus semelhantes. Mas os defensores da moralidade tradicional raramente são pessoas com corações generosos, como se pode constatar no amor ao militarismo revelado pelos dignitários da Igreja. Seduz pensar que apreciam a moralidade como aquilo que lhes pro­picia um meio legítimo para dar vazão ao desejo de infligir sofrimento; o pecador constitui uma caça legal; portanto, fora com a tolerância!

Observemos uma vida humana comum desde sua concepção até o túmulo e notemos os pontos em que a moral supersticiosa inflige sofrimentos evitáveis. Inicio pela concepção, porque aqui a influência da superstição é particularmente notável. Se os pais não são casados, a criança traz do nascimento um estigma, tão claramente imerecido quanto tudo mais possa sê-lo. Caso um deles possua uma doença venérea, possivelmente a herdará o filho. Se já têm filhos demais para sua renda familiar, haverá pobreza, subnutrição, superlotação e, muito provavelmente, incesto. Entretanto, a grande maioria dos moralistas concorda que, para os pais, evitar a concepção não é a melhor maneira de descobrir como evitar tal miséria.(*) Para satisfazer a esses moralistas, uma vida de tortura é infligida a milhões de seres humanos que jamais deveriam ter existido, simplesmente porque se supõe que o intercurso sexual seja um ato pecaminoso – exceto quando acompa­nhado do desejo de gerar filhos –, mas que não o seja quando tal desejo está presente, mesmo sendo absolutamente certo que essas crianças serão umas desvalidas. Ser morto inesperadamente e então comido, destino das vítimas dos astecas, é sofrimento sobremodo inferior ao infligido a uma criança nascida sob circunstâncias miseráveis e contaminada por doenças venéreas. Ainda assim, é esse o maior dos sofrimentos que em nome da moralidade aplicam delibera­damente bispos e políticos. Se tivessem sequer a menor centelha de amor ou piedade pelas crian­ças, não poderiam essas pessoas aderir a um código moral em que estivesse implicada uma crueldade de tal forma diabólica.

No nascimento e durante a primeira infância, em média a criança sofre mais por causas econômicas que pela superstição. Ao terem filhos, as mulheres abastadas contam com os melhores médicos, as melhores enfermeiras, a melhor dieta, o melhor repouso e o melhor exercício. As mulheres das classes operárias não gozam de tais vantagens, e, por não contarem com elas, frequentemente seus filhos morrem. Pouco fazem as autoridades públicas no sentido de prestar assistência a essas mães, e ainda assim de muita má vontade. Num momento em que o suprimento de leite a mães lactantes é cortado para evitar despesas, as autoridades públicas gastam vastas somas na pavimentação de ricos bairros residenciais onde há pouco tráfego. Devem saber que, ao tomar essa decisão, estão condenando à morte pelo crime de pobreza um dado número de crianças das classes operárias. Não obstante, o partido governante é apoiado pela imensa maioria de ministros religiosos, os quais, tendo o papa à frente, arregi­men­taram as vastas forças da superstição ao redor do mundo em apoio à injustiça social.

Em todas as etapas da educação, a influên­cia da superstição é desastrosa. Uma certa por­cen­tagem de crianças é dada ao hábito de pensar; uma das metas da educação é curá-las desse hábito. Assim, perguntas inconvenientes são repreendidas com “silêncio, silêncio!” ou com castigo. A emoção coletiva é utilizada para instilar certos tipos de crenças, mais particularmente as de cunho nacionalista. No âmbito da educação, cooperam capitalistas, militaristas e eclesiásticos, uma vez que, para exercer seu poder, dependem todos da prevalência do emocionalismo e da carência de julgamentos críticos. Com o amparo da natureza humana, a educação logra aumentar e intensificar essas propensões presentes no homem médio.

Uma outra maneira pela qual a superstição prejudica a educação se dá mediante sua influência sobre a escolha de professores. Por razões econômicas, uma professora não deve ser casada; por razões morais, não deve manter relações sexuais extraconjugais. E, no entanto, todos aqueles que se deram ao trabalho de estu­dar a psicologia mórbida sabem que a virgindade prolongada é, regra geral, extraordinariamente danosa às mulheres, tão danosa que, numa so­cie­dade sensata, seria severamente desestimu­lada, no caso das professoras. As restrições impostas levam cada vez mais a uma recusa, por parte de mulheres enérgicas e empreendedoras, a ingressar na carreira docente. Tudo isso devido à resistente influência do ascetismo supersticioso.

Nas escolas de classe média e alta, a questão é ainda mais problemática. Verificam-se servi­ços religiosos nas capelas, e o ensino da moral está nas mãos de clérigos. Estes, na quali­dade de professores de moral, fracassam quase que necessariamente sob dois aspectos. Condenam atos que não acarretam dano algum e perdoam outros que são sobremodo prejudi­ciais. Condenam as relações sexuais entre pessoas solteiras que se desejam, mas que não estão absolutamente certas quanto a passar toda uma vida juntas. Em sua maioria, reprovam o controle de natalidade, mas nenhum deles conde­na a brutalidade de um marido que leva a mulher à morte em consequência de gestações demasiado frequentes. Conheci um clérigo elegante cuja mulher em nove anos dera à luz nove filhos. Os médicos o advertiram de que, caso tivesse mais um filho, a esposa morreria. No ano seguinte, uma vez mais ela deu à luz e morreu. Ninguém o condenou; ele conservou seu benefício eclesiástico e casou-se nova­mente. Enquanto os clérigos continuarem a perdoar a crueldade e a condenar o prazer inocente – na qualidade de guardiães da moral dos jovens – só poderão fazer o mal.

No âmbito da educação, outro efeito perni­cioso da superstição é a ausência de instrução quanto aos fatos que dizem respeito ao sexo. Os principais fatores fisiológicos deve­riam ser ensinados de maneira bastante simples e natural, antes da puberdade, numa época em que não causam excitação. Na puberdade, deve­riam ser ensinados os elementos de uma moralidade sexual despida de qualquer caráter supersticioso. Rapazes e moças deveriam aprender que nada, a não ser uma inclinação mútua, pode justificar as relações sexuais. Isso é contrário aos ensinamentos da Igreja, para a qual o ato sexual se justifica contanto que os interessados estejam casados e que o homem deseje um outro filho – por maior que possa ser, no entanto, a relutância da esposa. Rapazes e moças deveriam aprender a respeitar reciprocamente sua liberdade; deveriam ser levados a perceber que nada confere a um ser humano direitos sobre o outro e que o ciúme e a possessividade ani­quilam o amor. Deveriam aprender que trazer ao mundo um outro ser humano é algo muito sério e que só pode ser assumido quando se tem certeza de que a crian­ça contará com uma ra­zoá­vel expectativa de saúde, um ambiente ade­qua­do e o cuidado dos pais. Não obstante, deve­riam aprender métodos de controle de natalidade, de modo a assegurar que seus filhos só viessem ao mundo quando desejados. Por fim, deveriam tomar conhecimento dos perigos causados pelas doen­ças venéreas, assim como dos métodos de preven­ção e cura. O aumento da felicidade humana que se pode esperar da educação sexual aplicada nessas bases é imensurável.

Deve-se reconhecer que, na ausência de filhos, as relações sexuais constituem um assunto de caráter inteiramente privado, que não diz respeito nem ao Estado, nem ao próximo. Atualmente, certas formas de relação sexual que não visam a gerar filhos são punidas pelo direito criminal – medida essa fundada na supers­tição, uma vez que a questão afeta a ninguém mais exceto as partes diretamente interessadas. No caso de haver filhos, é um erro supor que, necessariamente para o benefício destes, é neces­sário tornar o divórcio uma tarefa complicada. A embriaguez habitual, a cruel­dade, a insanidade, são todas razões que tornam o divórcio necessário tanto para a saúde dos filhos quanto para a saúde da mulher ou do marido. Hoje, a importância peculiar que se atribui ao adultério é totalmente irracional. Sem dúvida, muitas formas de má conduta são mais fatais para a felicidade conjugal do que uma eventual infidelidade. A insistência do homem em ter um filho uma vez ao ano, que conven­cionalmente não constitui má conduta ou cruel­dade, é a mais fatal de todas.

As normas morais não deveriam ser tais que tornassem impossível a felicidade instin­tiva. Ainda assim verifica-se uma monogamia rigorosa – numa comunidade em que o número de indivíduos de ambos os sexos é extre­mamente desigual. Sob tais circunstâncias, é natural que as normas morais sejam infringidas. Entretanto, quando essas normas são tais que só podem ser obedecidas à medida que se reduz severamente a felicidade comunitária – e quando o melhor é que fossem infringidas do que cumpridas –, decerto está na hora de alterá-las. Se isso não for feito, muitos indivíduos cujas ações não se opõem ao interesse público se verão diante da imerecida alternativa da hipo­crisia ou da desonra. A Igreja não faz caso da hipocrisia, que constitui um lisonjeiro tributo a seu poder; alhures, no entanto, ela passou a ser identificada como um mal que não se deveria infligir.

Ainda mais danosa que a superstição teo­lógica é a superstição do nacionalismo, do dever para com o próprio Estado e nada mais. Mas não me proponho discutir o assunto nesta ocasião, senão unicamente destacar que o ato de nos voltarmos apenas para nossos compatriotas é contrário ao princípio de amor que reconhecemos como constituinte de uma vida de bem. É também contrário, evidentemente, ao egoísmo esclarecido, pois que um nacionalismo exclusivo não compensa sequer às nações vitoriosas.

Outro aspecto sob o qual nossa sociedade sofre devido à concepção teológica de “pecado” diz respeito ao tratamento dispensado aos criminosos. A opinião de que os criminosos são “perversos” e que “merecem” punição não encontra respaldo numa moralidade racional. Não há dúvida de que certos indivíduos fazem coisas que a sociedade deseja evitar – e faz bem em evitar tanto quanto possível. Podemos tomar o assassinato como o caso evidente. Naturalmente, se a uma comunidade cabe viver em comunhão e a nós desfrutar seus prazeres e vantagens, não podemos permitir que pessoas matem umas às outras sempre que se sentirem impulsionadas a tanto. Mas esse problema deveria ser tratado com um espírito puramente científico. Deveríamos simplesmente indagar: qual o melhor método para evitar o assassi­nato? Dentre dois métodos igualmente eficazes em sua prevenção é preferível aquele que acarrete o menor prejuízo ao assassino. O mal a ele infligido é absolutamente lamentável, a exemplo da dor de uma operação cirúr­gica. É possível que seja igualmente necessário, mas não é motivo para que haja regozijo. O sentimento vingativo que se denomina “indignação moral” não passa de uma forma de crueldade. Os sofrimentos infligidos aos criminosos jamais se podem justificar pela noção de punição vingativa. Se a educação, combinada com a bondade, também for eficaz, deve-se dar preferência a ela; tanto mais se deve preferi-la quanto mais eficaz ela for. Evidentemente, a prevenção do crime e a punição pelo crime são duas questões diferentes; presume-se que o propó­sito de causar sofrimento ao criminoso constitua um meio de intimidação. Se as prisões fossem humanizadas a ponto de um detento receber uma boa educação gratuitamente, é possível que as pessoas viessem a cometer crimes a fim de qualificar-se para elas. Não há dúvida de que a prisão deva ser menos aprazível que a liberdade; porém, a melhor maneira de assegurar esse resultado é fazer com que a liberdade seja mais agradável do que por vezes é. Não desejo, contudo, envol­ver-me na questão da Reforma Penal. Desejo simplesmente sugerir que deveríamos tratar o criminoso tal como tratamos alguém que sofra de uma epidemia. Cada qual é um perigo público e cada qual deve ter a liberdade limitada até que deixe de representar uma ameaça à sociedade. Entretanto, enquanto o homem que sofre de uma pestilência é objeto de solidariedade e comise­ração, o criminoso é objeto de execração. Isso é totalmente irracional. E é por conta dessa diferença de postura que nossas prisões são muito menos bem-sucedidas em curar as tendências criminosas do que nossos hospitais em curar as enfermidades.

(Bertrand Russell - No Que Acredito)

Notas:
(*) - Felizmente, isso já não é mais verdade. Hoje, a vasta maioria de líderes protestantes e judeus não faz objeção ao controle de natalidade. A declaração de Russell é uma descrição perfeitamente acurada das condições existentes em 1925. É também significativo que, com uma ou duas exceções, todos os grandes pioneiros da contracepção – Francis Place, Richard Carlile, Charles Knowlton, Charles Bradlaugh e Margaret Sanger – eram livre-pensadores proe­minentes. (Nota da edição original.)

publicado às 00:05

 

"Na sociedade moderna há muito lazer e pouco prazer" (Chantal Thomas)

 

A: - “Você se afasta cada vez mais dos que vivem: logo eles o apagarão de suas listas!” 

B: - “É a única maneira de partilhar o privilégio dos mortos.” 

A: - “Qual privilégio?” 

B: - “Não mais morrer.”

(Nietzsche, A Gaia Ciência 262)

publicado às 14:19



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