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A lei do celibato clerical

por Thynus, em 05.08.16
A escassez de padres celibatários na Igreja Católica é tão grave que muitas paróquias estão sendo forçadas a fechar. Ao mesmo tempo, existem mais de 3.000 padres casados nos Estados Unidos. Para colocar tal assunto sob uma perspectiva melhor, um em cada 3 padres se casou. Existe um grande número de padres disponíveis para trabalhar em paróquias - em média mais de 400 padres em cada Estado. Os padres casados continuam sendo padres, porém deixam de ser clérigos. Um padre se encaixa numa vocação de serviço, uma vocação divina. Um clérigo ocupa uma posição organizacional na igreja institucional.

Quando um padre se casa, ele é dispensado do seu estado clerical. Contudo, ele conserva a totalidade do sacerdócio. Ele deveria ser referido como um ex-clérigo. A ordenação é permanente. Este fato é validado pela Lei Canônica número 290 da Igreja. Vinte e uma leis da igreja possibilitam os católicos a usarem padres casados. No casamento, em razão da Lei Canônica 290 e de nossa educação ou ordenação, e ainda dos doze séculos de tradição católica romana, os padres mantém o seu papel de servir ao povo, conforme Jesus o fez.

Os padres casados não abandonam a sua fé. Continuam a ajudar os católicos em suas necessidades, enquanto aguardam o completo restabelecimento, quando a lei do celibato, feita pelo homem, for anulada. No início deste milênio, 30% dos padres são casados. Muitos padres casados e suas esposas ministram como um casal.

Padres Casados Na Igreja Antiga

A história registra amplamente o apoio ao sacerdócio casado. O celibato existia no primeiro século, com os eremitas e monges, mas este era considerado um estilo de vida opcional, alternativo. Os políticos medievais deram origem à disciplina do celibato obrigatório dos padres. O apóstolo Pedro era casado. Existem referências no evangelho sobre a esposa de Pedro e sua sogra. É provável que todos os apóstolos de Jesus, exceto o jovem João, fossem casados. Os apóstolos casados e suas esposas foram os primeiros pastores e os primeiros missionários na igreja primitiva. Eles e seus sucessores no ofício da pregação levaram a mensagem de Jesus através das culturas e a protegeram contra muitas adversidades. Eles guiaram a frágil igreja jovem através do crescimento primitivo e a ajudaram a sobreviver a numerosas perseguições.

O Papa JP2, em 1993, declarou publicamente que o celibato não é essencial ao sacerdócio. Este pronunciamento dá aos padres casados uma grande esperança de ver solucionado o problema da escassez de padres celibatários.

A igreja primitiva fazia um trabalho de equipe embasado em pequenas comunidades familiares, através da região mediterrânea. A vida era marcada por um sentimento de alegre expectação. Jesus disse que iria voltar e os primeiros cristãos acreditavam que isso logo iria acontecer. Dirigidos pelos apóstolos e outros discípulos do Senhor, eles se encontravam nas casas uns dos outros para estudar a Palavra de Deus e ter comunhão. Os estranhos eram convidados a compartilhar o pão e o vinho e ninguém era excluído de recebê-los. Os estranhos logo se tornavam amigos, juntavam-se à jovem igreja e traziam outras pessoas para ouvir as boas novas do Evangelho de Jesus Cristo.

A Sagrada Escritura registra que os apóstolos e os bispos eram casados. No Novo Testamento, na 1 Timóteo 3:1-7, Paulo discute as qualificações necessárias a um bispo. Ele descreve uma espécie de “pai sereno”, um pai de família. Como parte de sua descrição, S. Paulo até mesmo pergunta: ”Porque, se alguém não sabe governar a sua própria casa, terá cuidado da igreja de Deus?” (1TM 3:5) Paulo estabeleceu muitas comunidades pequenas e as deixou nas mãos dos pastores e bispos casados.

A liderança da igreja era embasada no serviço e prestava contas ao povo. Cada membro da igreja tinha voz na comunidade. Conforme lemos em Atos dos Apóstolos 15:22, as decisões do grupo eram tomadas de acordo com toda a assembléia. A igreja primitiva era retratada como democrática, onde a liderança escutava a comunidade e satisfazia suas necessidades.

Influência Romana na Igreja

Como foi possível chegar à grande instituição eclesiástica que existe hoje? O que teria acontecido com o ministério dos cristãos casados? Tudo começou no ano 313 d.C, quando o Imperador Constantino legalizou o Cristianismo dentro do Império Romano. Sob a sua legislação, a igreja primitiva mudou de um grupo de pequenas comunidades perseguidas na fé oficial para um poder mundial sob o imperador Teodósio, no ano 380 d.C.

As intenções de Constantino ao adotar o Cristianismo não eram totalmente espirituais. Sua posição foi sendo desafiada por grupos políticos. Constantino precisava exibir o seu poder. Forçar outros políticos a se tornarem cristãos foi o teste de lealdade. Constantino usou a nova religião como uma ferramenta eficaz, no sentido de desalojar os seus inimigos. Ela fortaleceu o seu poder político. Constantino também teve de enfrentar a unificação de muitos povos que seus exércitos haviam vencido. O Cristianismo foi a chave para estabelecer uma nova identidade romana nos povos conquistados. Aparentemente, ele os tornou cristãos para salvar suas almas, porém essa nova religião foi simplesmente o ato final de sua conquista sobre eles.

Com o Cristianismo sendo agora a religião do Império Romano, muitas coisas mudaram para os cristãos. Seus líderes deixaram de se esconder, temendo por suas vidas. Em vez disso, passaram a receber pagamento pelos seus serviços eclesiásticos e gozavam de privilégios especiais na sociedade romana. Aos bispos era concedida autoridade civil e determinada jurisdição sobre o povo em sua área. Os romanos, que eram membros da elite governante local, depressa “converteram-se” ao Cristianismo, conforme era exigido pelo Imperador. Eles eram homens treinados na vida publica e hábeis na política urbana. Foi então que se tornaram padres, sem qualquer bem embasamento bíblico. Esses políticos romanos com o seu recém adquirido sacerdócio trouxeram atitudes impessoais e legalistas do governo romano para a Igreja. A celebração da Ceia passou de pequenas reuniões nos lares para o que hoje nós chamamos “Missa” englobando gigantescos números de pessoas em grandes edifícios. A celebração da Ceia tornou-se um ritual altamente estruturado, que imitava as cerimônias da corte da Roma imperial. Esta influência romana pagã é a fonte das vestimentas sacerdotais, da genuflexão, da postura e da estrita formalidade da Missa.

A estrutura da igreja institucional emergiu da imitação do governo romano. Grandes edifícios, cortes de tribunal eclesiástico, governantes e súditos começaram a substituir as pequenas comunidades embasadas na família, as quais eram servidas por um sacerdócio local casado. Os novos padres romanos agiram no sentido de retirar a autoridade dos ministros casados nas pequenas comunidades, a fim de consolidar o poder político ao seu redor. Com a assistência do império romano, a liderança da igreja tornou-se uma hierarquia, a qual se afastou de suas origens familiares, caindo na mentalidade romana de uma classe governante que estava acima do povo na rua.

Outras mudanças aconteceram, as quais retiraram os direitos do povo, em favor dos políticos romanos. A igreja adotou a prática romana de permitir que somente os homens mantivessem a autoridade institucional. A Igreja Romana fez o contrário do que o Senhor Jesus havia feito. Ele exaltou o papel da mulher, enquanto a igreja rebaixou a sua condição. O celibato foi criado.

Celibato Obrigatório - Ataque às Mulheres e à Intimidade conjugal

Com o passar do tempo, o celibato adquiriu o status de espiritualidade especial. Certas facções promoveram-no, começando a denegrir a santidade matrimonial e a vida familiar. A prática romana de abster-se das relações conjugais, para conservar a energia, antes de uma batalha ou de um evento esportivo, encontrou o seu caminho na pratica litúrgica. Aos padres foi ordenado absterem-se de intimidade com suas esposas, na véspera da celebração das missas. A mensagem resultante foi que a sexualidade e o matrimônio já não eram santos. O celibato tornou-se também outra oportunidade política nas mãos dos padres e bispos ambiciosos. Eles usavam o estilo de vida celibatário como ferramenta política, no sentido de diminuir a influência dos padres casados. Uma atitude negativa em direção às mulheres e à sexualidade começou a emergir da hierarquia, a qual se colocou em árduo contraste à saudável perspectiva familiar, que era central à igreja primitiva. Por causa disso o celibato foi estabelecido como o mais elevado estado de santidade e conseqüente supressão do sacerdócio casado.

Por exemplo, em 366, o Papa Damásio começou a perseguir o sacerdócio casado, quando declarou que os padres podiam continuar a casar, porém ficavam proibidos de fazer amor com suas esposas. Tanto os padres como o povo rejeitaram essa lei. No ano 385, o Papa Sirício abandonou a própria esposa e os filhos, a fim de ascender à posição papal. Ele decretou imediatamente que nenhum dos padres poderia mais continuar casado, porém não conseguiu obediência à sua odiosa e nova lei.

Durante os próximos 1.000 anos, uma ética sexual não natural emergiu da teologia em desenvolvimento na igreja. Essa nova preocupação com a sexualidade era contrária às relações normais do homem e fora do andamento natural da vida, conforme estabelecido por Deus. Em 401, Santo Agostinho escreveu: “Nada é tão poderoso para neutralizar o espírito de um homem como a carícia de uma mulher”. A crescente atitude contra a sexualidade e as mulheres foi designada a controlar os aspectos íntimos da vidas das pessoas e essa pratica prossegue até ao dia de hoje. Por serem pais de família, os padres casados podiam ver a agenda política por trás da obsessão da hierarquia em relação à sexualidade. Os padres casados continuaram solidários com o povo, tendo feito o possível para atrapalhar os contínuos esforço da hierarquia romana para ganhar poder sobre eles e suas famílias.

Proibida a Comunhão Para os Católicos Divorciados 
Que se Casavam Novamente

Com a proibição do divórcio e de um segundo casamento, outra prática política entrou em jogo. A hierarquia da igreja medieval estava em luta com muitas monarquias e famílias reais, através da Europa. Com a capacidade de controlar os casamentos reais, Roma verificou que poderia influenciar as alianças políticas e manipular os assuntos de Estado. Como resultado desse novo esforço em controlar as alianças reais, privando-as da comunhão e dos sacramentos, caso se divorciassem, imediatamente o povo comum passou a ser punido, quando se divorciava e se casava novamente. Era negada total participação na vida da Igreja, quando o povo não concordava com a vontade das autoridades eclesiásticas. O status legal substituiu a espiritualidade como modelo de santidade e boa posição na igreja institucional, o que ainda hoje continua sendo uma poderosa influência. [Como se pode ver, não foi por obediência às Escrituras, mas por conveniência política que a Igreja Católica se colocou contra o divórcio].

Infalibilidade, um conceito criado pelo Homem

Nessa crescente atmosfera de poder e legalismo, alguns papas medievais abusaram de sua autoridade. No ano de 1075, o Papa Gregório VII declarou que ninguém poderia julgar um papa, exceto Deus. Introduzindo o conceito de infalibilidade, ele foi o primeiro papa a declarar que Roma jamais podia errar. Ele mandou fazer estátuas à sua imagem e as colocou nas igrejas através da Europa. Ele insistia em que todo mundo deveria obedecer ao papa, e que todos os papas eram santos, por causa de sua associação com S. Pedro. [No século 19, o Papa Pio IX estabeleceu definitivamente o dogma da Infalibilidade papal].

Como proprietária de terras, a hierarquia medieval sabia que iria ganhar mais poder político, o qual tentava conseguir em cada continente europeu. Um benefício adicional da propriedade de terras era o dinheiro. Ela agora podia coletar impostos dos fiéis e cobrar pelas indulgências e outros ministérios sacramentais. Essa prática contribuiu para a Reforma Protestante e a divisão da comunidade da Igreja Católica Romana, no século 16.

No século 11, os ataques contra os padres casados aumentaram de intensidade. Em 1074, o Papa Gregório VII legislou que qualquer homem que fosse ordenado deveria, antes, declarar o celibato. Prosseguindo em seus ataques contra as mulheres, Gregório declarou publicamente que “a Igreja não pode escapar das garras do laicato, a não ser que os padres escapem das garras de suas esposas”. Dentro de 20 anos as coisas pioraram ainda mais. Em 1095 houve uma escalada de violência contra os padres casados e suas famílias. O Papa Urbano II ordenou que os padres casados que ignorassem a lei do celibato fossem aprisionados para o bem de suas almas. Em seguida, ordenou que as esposas e os filhos dos padres casados fossem vendidos como escravos e que o dinheiro fosse levados aos cofres da Igreja.

O esforço para consolidar o poder da Igreja na hierarquia medieval a desapropriação dos bens e das terras das famílias dos padres alcançaram o ápice em 1139. A legislação que oficializou definitivamente o celibato veio no Concílio de Latrão, sob o papa Inocêncio II. A motivação para essas leis foi adquirir terras em toda a Europa, fortalecendo, assim, o poder do papado. A lei do celibato usava uma linguagem falando de pureza e santidade, mas o seu verdadeiro intento foi solidificar o controle sobre o clero mais baixo e eliminar qualquer confrontação aos objetivos políticos da hierarquia medieval.

Os padres cometem pecados muito piores do que os da fornicação

Um homem corajoso, o bispo italiano Ulrich de Imola, argumentou que a Igreja não tinha o direito de proibir o casamento dos padres e aconselhou os bispos a não abandonarem suas famílias. Ele disse: “Quando o celibato é imposto, os padres cometem pecados muito piores do que a fornicação”. O grande número de prisões de padres envolvidos em má conduta sexual tem comprovado que o Bispo Ulrich estava certo. A evidência científica que está emergindo demonstra que o celibato obrigatório está ligado aos abusos sexuais cometidos pelos padres. A respeitável tradição do sacerdócio casado foi virtualmente diluída pelo celibato forçado. As saudáveis origens das famílias de nossa fé foram desperdiçadas com a supressão do sacerdócio casado e da desvalorização da mulher na Igreja.  

110.000 padres casados em todo o mundo

Muitos dos problemas que hoje enfrentam os padres casados podem ser traçados de volta ao período da história da Igreja. Nos últimos 25 anos, mais de 100.000 padres católicos romanos, no mundo inteiro, têm se casado e muitos têm continuado, discretamente, a praticar o sacerdócio. Para cada três padres católicos romanos nos Estados Unidos, existe atualmente um padre casado e esse número continua a crescer. O matrimônio tem dado a esses padres uma nova perspectiva. Eles praticam o sacerdócio com uma compaixão mais profunda pelas pessoas e as contemplam na face. Casais de padres casados têm visitado idosos em casas de repouso, quando nenhum padre celibatário está disponível. Os padres casados entendem as necessidades especiais dos católicos divorciados que desejam contrair um segundo matrimônio. O público tem comprovado apreciar o seu estilo afetuoso e sua compaixão diante dos problemas da vida. Principalmente as mulheres se mostram profundamente comovidas pela honestidade e respeito demonstrados pelos padres casados às suas esposas e pela sensibilidade que demonstram diante dos problemas femininos.

70% dos católicos americanos querem padres casados

Quando tentam mudar do celibato para o matrimônio, aos padres não é dada opção alguma que não seja a de assinar uns papéis mo Vaticano, os quais inferem que eles não tiveram realmente uma vocação para o sacerdócio e que são, psicologicamente, instáveis ou moralmente fracos. A verdade é exatamente o oposto. Muitos católicos americanos têm formalmente reconhecido a sua coragem, especialmente os que têm sido alcançados através do programa “Rent a Priest” (Alugue um Padre). Nas pesquisas nacionais, 70% dos católicos desejam que os seus padres reassumam na Igreja Católica o seu ofício como padres casados. Eles ficaram impressionados com a integridade dos padres casados e com a compassiva compreensão que eles demonstram às pessoas passando por situações difíceis.

“O celibato não é essencial ao sacerdócio” (Papa João Paulo II)

Além da declaração do Papa JP2 de que o celibato não é essencial ao sacerdócio, têm acontecido outros movimentos promissores no Vaticano com relação aos padres casados. A maioria dos católicos ignora que Roma está ordenando ministros protestantes casados ao sacerdócio e lhes destinando paróquias aqui os Estados Unidos. Em alguns casos, esses ministros protestantes, agora padres católicos, substituirão os padres que foram obrigados a deixar suas paróquias por terem se casado. Roma está permitindo que eles continuem casados e está provendo apoio às suas famílias. Estudos mostram que o custo de manter a família de um padre casado é menor do que o de um celibatário, com governanta e outros assistentes.

O Vaticano ordena ministros protestantes casados

O celibato obrigatório é uma regra feita pelo homem, uma disciplina, exatamente como a obsoleta proibição de moças coroinhas. Essas práticas disciplinares não são necessárias à fé católica romana e devem ser mudadas. Hoje existem muitas paróquias fechadas por causa da regra do celibato. Com uma simples assinatura o Vaticano poderia suspender essa regra para todos os padres. Ao fazer isso, a Igreja poderia mobilizar 110.000 casais de padres/esposas no mundo inteiro e reabrir as paróquias que foram obrigadas a se fecharem.

O Papa JP2 está tomando outra iniciativa que pode envolver os padres casados. Existe um desligamento de 20 ritos universais. Quem não ouviu falar da Igreja Bizantina, do Rito Caldeu, do Rito Copta? Nem todos eles estão em comunhão com Roma e o Papa JP2 está tentando unificar todos esses ritos, formando uma única família eclesiástica. A maioria das igrejas orientais tem conservado durante séculos a tradição do sacerdócio casado e desejará continuar com a mesma, ao formar qualquer nova aliança com Roma.

Leis Canônicas - O público deve fazer a requisição

Cada lei eclesiástica é referida como um Cânon. O corpo de leis da Igreja foi formado logo após a imposição do celibato obrigatório. Parece que o monge Graciano, o qual formulou a Lei Canônica, não estava a par da injusta perseguição feita aos padres cassados e às suas famílias. Creio que ele escreveu, no Código, leis que os protegeriam e permitiriam, eventualmente, a restauração do sacerdócio casado. Existem 21 leis eclesiásticas que permitem pedir ajuda a um casal de padre/esposa. Eu gostaria de mencionar duas dessas leis, a fim de explicar como podem elas ser usadas para ajudar os católicos a se sentirem à vontade, quando chamam um padre casado.

O Cânon 290 é muito especial. Ele fala da indissolubilidade do sacerdócio. Vou citar: “Após ter sido recebida, validamente, a ordenação ela jamais poderá ser invalidada”. Esta lei confirma que os sacramentos que os padres casados dão aos fiéis são válidos. Muitas pessoas acham que, quando um padre se casa, ele fica excomungado e deixa de ser um padre. Mas o Cânon 290 mostra que isso não é verdade. Está no Código que nós sempre nos referimos a nós mesmos como “padres católicos romanos casados”.

Convém esclarecer que os sacramentos dados pelos padres casados são válidos, embora não sejam lícitos. Isso é tecnicamente correto e eu gostaria de dar um exemplo para explicar a diferença entre os dois termos: “válido” e “lícito”. Vou usar uma analogia médica, a fim de esclarecer o assunto. Imaginemos que um médico do Novo México está voando para Chicago, a fim de assistir a uma conferência. Ele desce no aeroporto em O’Hara, aluga um carro e, a caminho do hotel, ele presencia um acidente de tráfego. Um homem é arremessado do seu carro e está sangrando muito de um ferimento no braço. O médico corre para socorrer a vítima, faz estancar o sangue e imobiliza o novo paciente, até a chegada da ambulância. Em tal situação de emergência, o auxílio médico é válido, visto como o médico é formado numa Faculdade de Medicina credenciada. Porém sua ajuda não é lícita, pois ele não tem licença para praticar a Medicina no Estado de Illinois. Eis a diferença entre “válido” e “lícito”. Podem ter certeza de que a vitima do acidente ficou feliz em que um médico válido estivesse ali para ajudá-la, quando ela tanto precisou de ajuda.

Quando os católicos (ou alguém precisando de ajuda) não encontram um padre celibatário disponível, eles já estão apelando aos padres casados com a mesma compreensão de sua validade, segundo as leis da Igreja. Os padres casados são pessoas que receberam uma vocação divina para o sacerdócio. Eles completam com sucesso anos de treinamento nos seminários e são validamente ordenados pelos bispos católicos romanos. Receberam diplomas em Teologia e em outras disciplinas.

Sob o prisma das leis da Igreja, estamos num estado de emergência, pois a escassez de padres celibatários está causando o fechamento de paróquias e ameaçando a disponibilidade das missas e dos sacramentos, essenciais às atividades da Igreja. É muito provável que aconteça, futuramente, uma mudança nesse quadro. De fato, todos os estudos feitos, inclusive os patrocinados pela CNBUSA, indicam que essa crise [da falta de padres ativos] apenas vai piorar nos anos vindouros. Existem pouquíssimos padres celibatários - e já idosos - para atender ao crescente número de católicos.

Os bispos aplaudem pacificamente

Os bispos americanos lidam, diariamente, com a escassez de padres celibatários. Um em cada quatro bispos tem dito, não oficialmente, que estão prontos a dar boas vindas e receber de braços abertos a volta dos padres casados. Esses bispos são excelentes líderes que desejam o melhor para o seu povo. Eles sabem que existem em média 400 padres casados em cada Estado. Trabalhando em conjunto, os padres celibatários e os casados poderiam impedir o fechamento das paróquias. Trabalhando lado a lado, eles poderiam melhorar drasticamente a disponibilidade da missa e dos sacramentos. Muitos bispos americanos desejam que a educação e a experiência que os padres casados têm para oferecer à Igreja não sejam desperdiçadas. Muitos deles nos têm encorajado a continuar promovendo o sacerdócio casado, pois é uma tradição da Igreja que a prática se torne um costume e que o costume se torne lei. Isso já está sendo feito com a aceitação de ministros protestantes ao sacerdócio e a declaração do Papa JP2 de que o celibato não é essencial ao sacerdócio. O próximo passo é que os fiéis comecem a pedir ajuda pastoral dos padres casados.

Talvez vocês não estejam sabendo que algumas mudanças na Igreja têm acontecido através do povo. As moças coroinhas são um exemplo excelente. Muitas paróquias treinaram moças e rapazes para ajudarem na missa. O Vaticano emitiu uma regra contra moças coroinhas, em 1987. Visto como essa regra não foi aceita e a atuação de moças coroinhas continuou pelo mundo, o Vaticano acabou relaxando a regra. A prática se torna hábito e o hábito se torna lei. Quanto maior for o número de católicos exigindo padres casados, a fim de lhes proverem os sacramentos, mais depressa essa prática redundará no completo restabelecimento dos padres casados, dando-se um fim ao fechamento das paróquias, com melhor assistência sacramental aos fiéis católicos. Já tomamos muito espaço nesta fita, portanto, vamos resumir. Nossa mensagem é simples e direta. Como católicos romanos, vocês têm o direito de exigir que os padres casados celebrem missas e dêem os sacramentos.

John Shuster (padre católico casado)
Movimento Nacional dos Padres Casados

publicado às 22:15

"Elegeram-me para a liderança da comunidade porque eu era o mais jovem dos monges e, assim, podia trazer novidades. Depois, quando me propus a criar uma realidade que incluísse célibes, eremitas e casados, me opuseram o muro das leis eclesiásticas."
A reportagem é de Giacomo Galeazzi, publicada no jornal La Stampa, 18-05-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Padre Alberto Stucchi é sacerdote e religioso, prior do mosteiro de Claraval, em Milão, onde vive uma antiga comunidade da ordem cisterciense. Depois de 11 anos de vida monástica levada, como admitem seus próprios superiores, de modo exemplar, ele conheceu Elena, com quem nasceu uma história de amor.
Depois de pedir e obter um período de reflexão fora do mosteiro, ele decidiu não interromper o relacionamento. "Os piores conselhos me foram dados no mosteiro. Eles chegaram até a 'justificar' o meu relacionamento. Eles me disseram que eu era prior, que eu tinha muitas responsabilidades, que talvez eu precisasse de um desafogo, enfim: 'Faça o que quiser, mas às escondidas'. O importante era que não se soubesse por aí."
Eis a entrevista.

A quem você contou sobre o seu relacionamento?
Assim que eu percebi que amava Elena, falei primeiro com os meus coirmãos, depois com os superiores da ordem. Logo senti o seu terror. Eu entendi que tinha que escolher: ou ela ou o mosteiro. Tive que renunciar ao amor para conservar a licença necessária para pregar o amor: um paradoxo. O direito canônico concede um ano de reflexão, e assim eu fui viver com Elena. Disseram-me para pedir a dispensa do sacerdócio.

Você quer a dispensa?
Não, seria como admitir que eu não estava consciente no momento dos votos. Na prática, um erro. Mas eu não renego nada do que eu vivi. Diante de mim tinha se aberto um novo caminho. Saí da ordem, mas ainda sou sacerdote. Se um bispo ou o superior-geral de uma congregação me acolhessem, eu poderia voltar a desempenhar a minha missão. Elena morreu há cinco meses de um câncer nos ossos.

Foi uma crise de vocação?
A crise não estava ligada ao meu ministério. Eu não estava perdendo a vocação, ao contrário, eu a estava descobrindo mais do que nunca. Depois do encontro com Elena, eu reconheci a beleza da vida religiosa e queria continuar levando-a para um novo vilarejo monástico. Por isso, tentei várias vezes, com a minha companheira, o diálogo com a instituição eclesiástica, tentando explicar o absurdo de um celibato vivido não como escolha, mas como obrigação. E deixar Elena para voltar à minha vida anterior como se nada tivesse acontecido não era uma solução possível. O meu desejo de amor se chocou com a rigidez das leis eclesiásticas, com a contradição de estar fora das regras canônicas e, ao mesmo tempo, de estar cada vez mais envolvido em uma experiência que me fazia sentir monge, padre e prior mais do que nunca. Entre duas opções irreconciliáveis, eu escolhi a Elena.

O que vocês pediram?
Tentamos reivindicar como o amor por Deus e o amor por uma mulher não estão em contradição. Sobre esse ponto, com os meus superiores, não havia nenhuma possibilidade nem de diálogo nem de compreensão. Elena e eu nos recusamos a manter secreta a nossa relação, a aceitar aquilo que, na vida religiosa, virou um costume tolerado ou recomendado.

E a resposta?
"Às escondidas, se rouba e se mata, certamente não se ama", eu respondi a quem me propunha viver a minha história na ambiguidade, no compromisso. O princípio agostiniano "Ama e faze o que quiseres" se transforma dramaticamente em "Faze o que quiseres, mas às escondidas". Eu confio que as mulheres em busca da verdadeira clareza encontram no Papa Francisco um corajoso defensor da transparência.

(Instituto Humanitas Unisinos)

publicado às 17:09

“Quando o celibato é imposto, 
os padres cometem pecados muito piores do que a fornicação”.
(SHUSTER, John. A lei do celibato clerical)
 
 
No domínio da sexualidade, o cristianismo é tributário de heranças diversas. O desenvolvimento da moral sexual cristã recebe influência não apenas dos hebreus, mas também de gregos (orfismo, platonismo e estoicismo) e gnósticos. O pessimismo que envolvia a corporeidade produziu a hostilidade para com o prazer e todo um modo de conduzir as consciências, disciplinando gestos e comportamentos. A exigência do celibato será, então, a culminância desta antipatia e a formulação do “poder pastoral” o meio pelo qual se configurou os papeis de pastor e ovelha; condutores e conduzidos, neste processo de subjetivação cuja “perfeição” é atingida com a supressão da própria vontade, a negação do prazer e a exigência da doação total do próprio “eu”. Identificar as raízes “pagãs” do pessimismo sexual cristão e analisar a sexualidade a partir dos procedimentos do governo de si e dos outros constitui o objetivo deste artigo.

1. O mundo grego e o domínio do des-hedonismo
Este modo de governar-se ou “o cuidado de si” é tema consagrado na antiguidade. Dominar os próprios prazeres, desejos e impor-se uma rotina não era novidade para a moral grega que via no autodomínio uma virtude. A hostilidade ao prazer e ao corpo é um legado da antiguidade que foi preservado até hoje no cristianismo. A relação entre a moral cristã e a moral grega antiga não deve ser vista como oposição, como se o cristianismo representasse a austeridade e o domínio de si em contraposição ao mundo antigo licencioso e permissivo. Existe aqui uma relação de diferenciação e continuidade. O cristianismo encontrou uma forma de controlar os indivíduos, já presente no mundo antigo, distinta apenas quanto aos fins. O cuidado de si era uma temática recorrente, Seu objetivo, contudo, não era de modo geral transcendental. Com o cristianismo introduzindo a idéia de salvação para além desta vida o cuidado de si perde seu sentido último centrado no exercício do poder e em ocupar-se de si para conhecer a si próprio, passando a um cuidado consigo para não perder a salvação. Enquanto no mundo antigo era uma busca de si mesmo, com o cristianismo ocorre a renúncia de si. Um sujeito considerado virtuoso e temperante no mundo antigo instaurava uma relação de obediência consigo mesmo. Com o cristianismo a virtude e a temperança estão em ser obediente a outrem e renunciar à própria vontade.
O pessimismo sexual na antiguidade não decorria como no cristianismo da relação pecado/punição uma exceção era o orfismo, que em sentido semelhante, possuía dada noção de pecado original e misoginia. O orfismo é um movimento religioso complexo, com influências dionisíacas, pitagóricas, egípcias, apolíneas e orientais. Surgiu entre os séculos VI e V a.C. e exerceu forte influência em Platão, chegando por ele ao cristianismo. Muito simplistamente, podemos comparar algumas semelhanças simbólicas com relação à fé cristã. O orfismo se caracteriza pelo pensamento embrionário da impureza feminina e, também, do pecado original, pelos órficos denominado de crime primordial dos Titãs. Também a figura de Jesus Cristo como Filho de Deus tem seu paralelo em Orfeu que é filho de Apolo. Curiosamente, Orfeu foi retratado nos mosaicos do mausoléu de Gala Placídia, em Ravena como Bom Pastor. Imagem bastante popular de Jesus. O orfismo é uma religião androcêntrica, apenas os homens eram iniciados no ocultismo. Através do rito de conversão o homem adquiri um status distintivo e rompe os laços com as mulheres que diante de sua impureza estavam proibidas de participar. Os homens por outro lado, podiam facilmente se livrar das impurezas do corpo através de ritos de purificação. (KIYAN, Ana Maria Mezzarana. A identidade do sacerdote católico: um estudo sobre o celibato e a política de identidade da Igreja Católica. São Paulo: Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica, 2005, p. 21) Recomenda vestes brancas para atrair a pureza.
O órfico torna-se iniciado no caminho, uma senda da verdade, justiça e salvação, pelo qual o sectário podia determinar seu destino depois da morte, e por fim, escapar da roda da vida. A elite convertida a esse modo de vida atingirá a divindade, enquanto as massas de pessoas ignorantes irão apodrecer na lama do Hades (...) Além do mais, dado que a misoginia é explícita no orfismo pela sua exclusão de mulheres, padrão que irá se repetir na tradição filosófica e no clero cristão... essa hostilidade para com as mulheres, evidente no ascetismo pode ser a prática oculta de nosso compromisso religioso e filosófico com a pureza. (SCHOTT, Robin. Eros e os processos cognitivos. Rio de Janeiro: Rosa dos tempos, 1988, p. 55)
A misoginia órfica não é a questão fundamental na tônica da moral sexual grega ou do cuidado de si. Acreditava-se que o sexo enfraquecia (LAÉRCIO, Diógenes. Vida dos Filósofos, VIII) e, por isso, deveria ser praticado nas estações menos quentes, como afirmava Pitágoras (Séc. VI a.C.). O sexo, por vezes, era considerado prejudicial à saúde e extenuante. Hipócrates relata uma enfermidade que teria ocorrido depois do jovem ter se excedido nos prazeres sexuais (HIPÓCRATES. Epidemia III, 18). Para ele reter o sêmen era conservar a energia. A moral sexual regulava a vida dos indivíduos para fins universais e comunitários. Para Epíteto, filósofo grego estóico que viveu a maior parte de sua vida em Roma, o casamento era um modo de todo ser humano viver em conformidade com a natureza e colaborar com a humanidade em geral.(ÉPICTÈTE. Entretiens, III, 7, 19-20) O estoicismo (300 a.C. a 250 d.C) foi a escola de filosofia antiga que perpetuou esta visão reducionista do ato sexual. Afirma que todo o universo é corpóreo e governado por um logos divino (ou razão universal, noção que os estóicos tomam de Heráclito e desenvolvem). Este lógos ordena todas as coisas e, por meio dele, o mundo é um cosmos, que em grego significa "harmonia". O estoicismo propõe viver de acordo com a lei racional da natureza e aconselha a indiferença (apathea) em relação a tudo que é externo ao ser. Durante os dois primeiros séculos da era cristã radicalizaram seu discurso e rejeitaram a procura do prazer. Neste sentido, o ato sexual se concentrou no casamento. A obrigação de casar-se estava, pois, em conformidade com o viver natural e sua necessidade objetivava a descendência.
Esse fim procriador figurava dentre as razões de casar-se; era ele que tornava necessárias as relações sexuais no casamento; sua ausência, aliás, podia dissolver a união conjugal (...) Nos textos clássicos a síntese do vínculo matrimonial com a relação sexual era admitida pela razão maior da procriação. (FOUCAULT. Michel. A Mulher/Os Rapazes: História da sexualidade v. 3. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p. 34-35)
Não existe, portanto, uma preocupação com o prazer, mas com o fim procriativo. O próprio Platão encontra nos prazeres sexuais do matrimônio um ardil da natureza para a procriação. Para ele o mais importante era fornecer filhos à cidade a fim de conservar sua força.(Ibidem, p. 63) Essa des-hedonização, radicalizada pelo estoicismo será encontrada mais tarde na exigência cristã de um bom casal. Quem não fosse casado deveria abster-se de sexo. A renúncia absoluta à paixão foi tomando lugar da opção pelo casamento, uma vez que quem optava por ele assumia sua incapacidade de controlar-se.
Para eles o princípio natural e racional do casamento o destina a ligar duas existências, a produzir uma descendência, a ser útil para a cidade e a beneficiar o gênero humano na sua totalidade; buscar no casamento, prioritariamente, sensações de prazer seria infringir a lei, reverter a ordem dos fins e transgredir o princípio que deve unir, num casal, um homem e uma mulher. (1 Ibidem, p. 53-54)
Assim, não faz sentido nenhuma relação sexual por prazer. Busca-lo fora do casamento para alguns autores era impensável. Musonius estimava por vergonhosa e um desregramento que fere os fins do casamento, pois, “como os porcos, obtém prazer com a própria sujeira”.(MUSONIUS RUFUS. Reliquiae, XII, pp. 63-64) Evidencia-se seu desprezo ao corpo. “Pecariamos, continua Musonius, contra nossos deuses ancestrais e contra Jupter protetor da família”.(Ibidem, XV, p. 78) Este moralista grego foi de tal forma assumido pela moral cristã que o vemos citado por Clemente de Alexandria (150 - 215), teólogo cristão ateniense e fundador da escola filosófica de Alexandria, em seu segundo livro do Pedagogo. (CLÉMENT D’ALEXANDRIE, Lê Pedagogue, II, 10) O cerne da questão não está propriamente na fidelidade, mas, tão somente, na racionalidade, no autodomínio e nos fins do casamento que tendem à descendência e ao bem da comunidade. As relações extraconjugais demonstram a falta de domínio sobre os próprios impulsos, que deveriam ser comedidos dentro das próprias relações matrimoniais.
Todo o amor pela esposa de alguma outra pessoa é vergonhoso. Mas também é vergonhoso amar a própria esposa desmesuradamente. Ao amar a esposa, o homem sábio toma a razão como guia, não a emoção. Resiste ao assalto das paixões, e não se permite ser levado impetuosamente ao ato sexual. Não há gesto mais depravado do que o de amar a própria esposa como se ela fosse uma adúltera. (SÊNECA. Sobre o casamento)
Esta passagem agradou tanto a Jerônimo, um dos padres da Igreja, que a citou contra Joviniano, o amante do prazer.(JERÔNIMO DE STRIDON. Contra Joviniano I, 49) O desejo tem por fim a descendência e não o prazer. Ele deve ser comedido e a austeridade deve fazer parte da vida matrimonial. Também a pederastia foi combatida por muitos moralistas. Nos primeiros séculos da era cristã, o amor pelos rapazes sofre um combate pela desnaturalização da prática corriqueira na época clássica, ligada ao companheirismo guerreiro, aos ritos de passagem, à prática pedagógica ou mesmo à perversão admitida. (SARTREC, Maurice. A homossexualidade na Grécia antiga. In: Amor e sexualidade no Ocidente: edição especial da Revista L’Histoire/Seuil. Porto Alegre: L&PM, 1992) Protógenes e Písias acentuam que a relação com as mulheres foi ordenada pela natureza para a conservação da espécie e, neste sentido, não nos diferenciamos dos demais animais. O amor pelos rapazes, assim, retiraria o ser humano da pura animalidade. Contra as mulheres acentua Calicrátidas: “basta olhar de perto, as mulheres são feias (...) Para mascarar essa realidade, é-lhes necessário um grande esforço: maquiagem, vestes, penteado, jóias, enfeites; elas se dão uma beleza de aparência”.(CALICRÁTIDAS in FOUCAULT, Michel. Op. Cit., pp. 116-117) A artificialidade das mulheres é, então, comparada à verdade do corpo masculino. Sua beleza é real, pois se apresentaria sem afetação e disfarces. Cáricles, por sua vez, assume o combate ao amor pelos rapazes reforçando a transgressão à natureza. Ele perturba o ordenamento do mundo, ocasiona condutas de violência e de embuste e, finalmente, ele é nefasto para os objetivos do ser humano.
Por fim, esta moral des-hedonista tendeu à conservação da virgindade como virtude, uma vez que o prazer é tido como um desregramento da razão humana. O ideal da virgindade não começou com o cristianismo. A escolha pela existência filosófica promoveu, desde a época clássica, uma discussão quanto às vantagens e aos aborrecimentos do viver matrimonial para aquele destinado a velar pela humanidade. Os cuidados com a própria alma, o domínio das paixões – da qual o filósofo deve dar exemplo – e a procura da tranquilidade de espírito são contrapostas às agitações do casamento. Tais inconvenientes aparecem em Epiteto. Para ele o filósofo como arauto da verdade e mensageiro de Zeus junto aos homens não deveria ter lar, nem escravos, nem recursos, nem mulher e filhos, pois tais coisas deviam-no de sua reflexão. Para ocupar-se de si mesmo ele deve renunciar ao casamento para despertar os outros à verdade.(ÉPICTÈTE, Entretiens, III, 22, 47)
A virgindade foi concebida como estilo de vida. O taumaturgo Apolônio de Tiana (séc. I d.C.), informa seu biógrafo Filóstrato, que fez voto de castidade e que o manteve por toda a vida. Também o naturalista Plínio, o Velho, que morreu na erupção de Vesúvio em 79 d.C., elogia o elefante como exemplar, porque só se acasala de dois em dois anos. (RANKE-HEINEMANN, Uta. Eunucos pelo Reino de Deus: mulheres, sexualidade e a Igreja Católica. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1996, p. 25) Sorano de Éfeso (Séc. II d.C.), médico pessoal do imperador Adriano, considerava saudável a virgindade contínua. A única justificativa para seu ato era a procriação, sem a qual se comprometia a continuidade da comunidade.
2. A Gnoses e a demonização do mundo
A visão negativa do prazer sexual, como um cuidado de si próprio, que prevaleceu no estoicismo viu-se ainda fortalecida pela invasão de um “movimento” surgido provavelmente na Pérsia, um pouco antes do nascimento de Jesus, e veio a se revelar no competidor mais perigoso do cristianismo: a gnoses (conhecimento). Tem como base as filosofias que floresciam na Babilônia, Egito, Síria e Grécia. O gnosticismo combinava alguns elementos da astrologia e mistérios das religiões gregas, mistérios de Elêusis, bem como os do Hermetismo (estudo da filosofia e da magia associados a escritos atribuídos a Hermes Trismegisto, uma deidade sincrética que combina aspectos do deus grego Hermes e do deus egípcio Thoth), com as doutrinas do Cristianismo.
O gnosticismo negava radicalmente a realidade imanente. Pregava a abstinência do casamento, e dos demais prazeres, como da comida e bebida. A mesma atitude entra-se em Santo Agostinho de Hipona.(Cf. SANTO AGOSTINHO. As Confissões. São Paulo: Quadrante, 1989, p. 195) O corpo, na gnoses, assim como tudo o que existe no mundo não vem das mãos de um Deus bom, mas de demônios. Só a alma humana, ou seja, seu verdadeiro eu, seu verdadeiro ego, surge como uma centelha de luz deste outro mundo, um mundo de luz. A alma do homem, assim, se encontra numa terra estranha, tendo o corpo por seu cárcere e o mundo como num ambiente hostil. Os prazeres desviam a alma que anseia por libertar-se da matéria e retornar à luz espiritual. O cristianismo primitivo tentou resistir ao gnosticismo. No Novo Testamento encontra-se passagens contra a gnoses e seu desprezo pela existência: “Nisto se reconhece o Espírito de Deus: todo espírito que proclama que Jesus Cristo se encarnou é de Deus” (1 João 4,2). Para o cristianismo, Jesus assumiu verdadeiramente a natureza humana, se fazendo um com os homens, se tornou verdadeiramente homem. Seu corpo era verdadeiro corpo. Essa afirmação combate o gnosticismo que dizia que Jesus teve apenas a aparência de homem. Ou ainda: “Ó Timóteo, guarda o bem que te foi confiado! Evita as conversas frívolas e mundanas, assim como as contradições de pretensa ciência” (1 Timóteo 6,20). O conhecimento da Gnoses era considerado inferior e enganador. Contudo, parece que alguns trechos do Novo Testamento, especialmente as cartas do apóstolo Paulo, apresentam certa influência deste desprezo ao corpo e as coisas do mundo.
Porque os que são segundo a carne inclinam-se para as coisas da carne; mas os que são segundo o Espírito para as coisas do Espírito (Romanos 8,5)
Porque o desejo da carne é hostil a Deus, pois a carne não se submete à lei de Deus, e nem o pode (Romanos 8,7)
De fato, se viverdes segundo a carne, haveis de morrer; mas, se pelo Espírito mortificardes as obras da carne, vivereis (Romanos 8,13)
Quem semeia na carne, da carne colherá a corrupção; quem semeia no Espírito, do Espírito colherá a vida eterna (Gálatas 6,8)
Também todos nós éramos deste número quando outrora vivíamos nos desejos carnais, fazendo a vontade da carne e da concupiscência. Éramos como os outros, por natureza, verdadeiros objetos da ira {divina} (Efésios 2,3)
Nestas passagens percebe-se clara a dualidade ou a dicotomia entre carne e espírito, entre as coisas do mundo e as coisas de Deus. De certo, o cristianismo apresenta uma concepção pessimista do corpo, que se encontra submetido à vontade de Deus e a uma dada concepção do uso da corporeidade muito semelhante ao pessimismo gnóstico e helenístico.
O gnosticismo é governado por um pessimismo profundo, que se contrapõe à cosmovisão da antiguidade. É verdade que os gregos tinham familiaridade com a depreciação da matéria – falar do corpo como prisão da alma é remontar a Platão (Górgias 493 A) – mas o cosmo (= beleza e ordem, cf. “cosméticos”) era uma estrutura unificada, graduada de baixo para cima sem rompimento entre matéria e espírito. A demonização de toda corporeidade e de toda a matéria era desconhecida antes da invasão do gnosticismo. (Ibidem, p. 27)
Plotino, principal representante do neo-platonismo, escreveu contra os gnósticos. Contudo, deixou-se influenciar por aqueles que combatia. Ao que parece a recusa ao prazer denotava uma espécie de sedução distintiva.
Ele parecia ter vergonha de possuir um corpo”, escreve seu biógrafo Porfírio (Ca. 305; A vida de Plotino, § 1). O neoplatonismo exigia de seus seguidores uma vida abstinente, uma verdadeira ascese. E teve um destino semelhante ao do cristianismo: por mais que tenha lutado contra o gnosticismo desde o princípio, viu-se contaminado pela hostilidade gnóstica ao corpo.(Ibidem, p. 28)
A filosofia neoplatônica (de extrema importância para Agostinho), que se desenvolveu na primeira metade do século III, foi influenciada pela compreensão gnóstica da vida. No entanto, o gnosticismo fez outra vítima: o judaísmo.
3. O Judaísmo e a sedução gnóstica
Não há, de modo geral, uma postura pessimista com relação ao sexo no Antigo Testamento. O livro do Cântico dos Cânticos, por exemplo, celebra o amor mútuo entre os amantes, que se unem, se perdem, se buscam e se encontram. Este livro não fala de Deus e emprega uma linguagem típica dos apaixonados, numa coleção de poemas unidos pelo seu tema: o amor. Sua autoria é atribuída a Salomão. Vale a pena citar alguns trechos:
A amada:
Que me beije com beijos de sua boca!
Teus amores são melhores do que o vinho, (cap. 1, v.2)
Arrasta-me contigo, corramos!
Leva-me, ó rei, aos teus aposentos
E exultemos! Alegremo-nos em ti!’ (v.4)
O amado:
Como és bela,
Quão formosa.
Que amor delicioso!
Tens o talhe da palmeira,
E teus seios são os cachos.
Pensei: “vou subir à palmeira
Para colher dos teus frutos!
Sim, teus seios são cachos de uva,
E o sopro das tuas narinas perfuma
Como o aroma das maçãs.
Tua boca é um vinho delicioso
Que se derrama na minha
Molhando-me lábios e dentes.
A amada:
Eu sou do meu amado
Seu desejo o traz a mim.’ (Cap. 7,vv.7-11)
A lei judaica não proibia a poligamia e até a considerava normal, como se pode ver nos exemplos que se seguem: “Ora, Labão tinha duas filhas: a mais velha se chamava Lia e a mais nova Raquel (...) Tomou sua filha Lia e conduziu a Jacó (...) Jacó uniu-se também a Raquel e amou Raquel mais do a Lia” (Gênesis 29, 16. 22. 30). Também “Elcana possuía duas mulheres: Ana era o nome de uma, e a outra chamava-se Fenema” (Samuel 1, 2). “E tomou Lameque para si duas mulheres; o nome de uma era Ada, e o nome da outra, Zilá” (Gênesis 4, 19). O livro do Deuteronômia supõe como natural a poligamia (cf. Deuteronômio 21,15). O homem poderia ter quantas mulheres pudesse sustentar. Mas isso não significa que não havia uma normalização da sexualidade. O adultério era punido com severidade, geralmente implicando no apedrejamento:
Quando um homem for achado deitado com mulher que tenha marido, então ambos morrerão, o homem que se deitou com a mulher, e a mulher; assim tirarás o mal de Israel. Quando houver moça virgem, desposada, e um homem a achar na cidade, e se deitar com ela, então trareis ambos à porta daquela cidade, e os apedrejareis, até que morram (Deuteronômia, 22, 22-24).
A finalidade procriadora também existia e a esterilidade era vista como uma maldição (cf. Isaías 63, 9 e Oséias 9, 14; Lucas 1,25), pois não cumpria a finalidade última da união marital. Assim, a moral judaica permitia, nestes casos, que o marido da esposa estéril gerasse um filho com outra mulher livre ou com a escrava da sua esposa; e os filhos da escrava eram pertencentes à sua esposa. Isto era visto com naturalidade pelos antigos judeus. No livro de Tobias lê-se: “Ora, vós sabeis, ó Senhor, que não é para satisfazer a minha paixão que recebo minha prima como esposa, mas unicamente com o desejo de suscitar uma posteridade” (Tobias 8,9). Esta afirmação foi citada por muitos teólogos cristãos rigoristas justificando a finalidade procriadora. Com o passar do tempo e a monogamia foi se impondo como regra. No tempo de Jesus a poligamia já havia desaparecido quase por completo entre os judeus. Mas o pessimismo para com o corpo e a sexualidade adveio da influência gnóstica.
A influência do gnosticismo e do ascetismo sexual, que era em si alheia ao judaísmo, é observada claramente na seita dos habitantes do deserto do tempo de Jesus, conhecidos como essênios. O conhecemos mediante as descobertas em Qumrãn (1947).
Sobre eles Josefo, historiador judeu (m. Ca. 100 d.C.) escreve: ‘Judeus por nascimento (...) afastam-se das alegrias da vida como se afastassem de um grande mal e abraçam a continência como virtude. Olham de modo desfavorável para o casamento (...) Por causa da inconstância das mulheres são cautelosos com elas, convencidos de que nenhuma mulher é fiel ao marido (...) São enfaticamente convencidos de que o corpo morre e a matéria não dura, mas que as almas são imortais e eternas, duram para sempre (...) Sobre as almas crêem que vêm do éter mais rarefeito (...) Se forem libertados dos grilhões da carne, se consideram libertos de uma longa prisão e planam nas alturas em bendito júbilo. (A Guerra judaica II, 8,2-13). (RANKE-HEINEMANN, Uta. Op.cit., p. 30.)
Também Fílon da Alexandria (20 a.C. e 50 d.C.), filósofo grego-judeu sintetiza o pensamento judeu e grego: “Nós, descendentes dos hebreus, temos práticas e costumes bastante peculiares. Ao contrairmos matrimônio, procuramos virgens puras; e firmamos por meta não o prazer, mas a geração de filhos legítimos”. (Sobre José 9,43) Neste sentido era contrário à contracepção, pois, “os que durante o coito causam a destruição do sêmen são sem dúvida inimigos da natureza”. (Sobre as leis individuais 3). Ao explicar as leis de Moisés critica o prazer com a própria esposa (“homens lúbricos que em sua frenética paixão praticam toda a sorte de coito lascivo, não com a esposa alheia, mas com a própria”(bidem, 3, 2, 9) e condena o homossexualismo:
Como o mau agricultor, o homossexual deixa desaproveitada a terra fértil e moureja dia e noite com o tipo de solo do qual nenhum fruto se pode esperar (...) o homem efeminado, que falsifica o selo da natureza deve ser morto sem hesitação (...) porque está em busca de um prazer antinatural e trabalha, por sua vez, em prol da desolação e do despovoamento das cidades (...) ao destruir sua semente. (Ibidem, 3, 37-42)
O gnosticismo em contato com o judaísmo promoverá uma série de posturas austeras com relação à sexualidade e o pessimismo com relação ao corpo torna-se parte integrante da moral judaica, chegando a formar vida celibatária como se vê em Qumrãn com os essênios. A influência do gnosticismo e do ascetismo sexual, alheia ao judaísmo pode ser observada entre eles. O mundo, na concepção judaíza, expressão da bondade criadora de Deus, como relata o livro do gênesis, torna-se sombrio sob a influência de satã e o corpo é alvo de todas as maledicências. Tendo o cristianismo nascido entre os judeus e se desenvolvido de fato no mundo greco-romano, a influência destas idéias na cosmovisão cristã se torna visível no pessimismo com relação ao corpo, ao mundo e à sexualidade, que ganha novos contornos com o advento de uma novidade: a crença no advento iminente do fim do mundo e a ligação entre carne e pecado.
4. O poder pastoral e a radicalização do pessimismo sexual
As razões que teriam podido levar o mundo greco-romano à castidade, à limitação da vida sexual ao quadro conjugal e ao descrédito da bissexualidade estão em um novo motivo tratado como urgente: a aproximação do fim do mundo que exigia pureza. Na fé cristã Jesus inaugura o fim dos tempos. A pregação cristã anunciava sua morte e ressurreição, sua ascensão aos céus e seu retorno para julgar toda a humanidade segundo seu proceder (Cf. Mateus 25, 31-46). Justos e injustos teriam destinos diversos, onde uns gozarão das bem-aventuranças e outros da condenação eterna. Os prazeres sexuais não ficaram de fora de uma moral austera. Paulo adverte: “Eu vos digo, irmãos: o tempo torna-se curto. Que doravante aqueles que têm mulher vivam como se não a tivessem mais” (1 Coríntios 7, 29). Alguns extremistas da pureza chegaram a se castrar, como Orígenes, pois segundo o Evangelho de Mateus: “há eunucos que se castraram a si próprios pelo Reino dos Céus” (Mateus 19,12), ou ainda, “se o teu olho te escandalizar, arranca-o, e atira-o para longe de ti; melhor te é entrar na vida com um só olho, do que, tendo dois olhos, seres lançado no fogo do inferno” (Mateus 18,9).
Além do proximidade do fim do mundo como exigência de pureza, um novo motivo vai colaborar com o pessimismo sexual cristão: a ligação entre a carne e o pecado. A natureza humana é fraca e instrumento da maledicência:
Sinto, porém, nos meus membros outra lei, que luta contra a lei do meu espírito e me prende à lei do pecado, que está nos meus membros. Homem infeliz que sou! Quem me livrará deste corpo que me acarreta a morte?... (Romanos 7,23-24) Ora, as obras da carne são estas: fornicação, impureza, libertinagem, idolatria, superstição, inimizades, brigas, ciúmes, ódio, ambição, discórdias, partidos, invejas, bebedeiras, orgias e outras coisas semelhantes. Dessas coisas vos previno, como já vos preveni: os que as praticarem não herdarão o Reino de Deus! (...) Pois os que são de Jesus Cristo crucificaram a carne, com as paixões e concupiscências. (Gálatas 5,19-21.24) Com o triunfo do cristianismo no século IV, dois acontecimentos garantem o sucesso da nova ética sexual: a difusão dos conceitos de carne (oposta à espírito), e a sexualização do pecado original.
Clemente de Alexandria (ca. 150-215) é o primeiro a relacionar o pecado original ao ato sexual. (...) Mas foi Agostinho que ligou definitivamente pecado original e sexualidade por intermédio da concupiscência. Por três vezes, entre 395 e 430, ele afirma que a concupiscência transmite o pecado original. Desde os filhos de Adão e Eva, o pecado original é levado ao homem pelo ato sexual. (...) A humanidade foi engendrada no erro que acompanha todo acasalamento por causa da concupiscência que nele se manifesta forçosamente. (LE GOFF, Jacques. A recusa do prazer. In: Amor e sexualidade no Ocidente: edição especial da Revista L’Histoire/Seuil. Op.cit., p. 154-155)
O teólogo parisiense Hugo de São Victor (1096-1141) dirá: “O acasalamento dos pais não ocorrendo sem o desejo carnal (libido), a concepção dos filhos não se dá sem pecado”. (Ibidem, p. 157) O pecado original é, então, passado por meio do ato sexual. A recusa do prazer é a nova ética sexual herdada do estoicismo. Nas Confissões Agostinho revela a superioridade do estado de vida celibatário e seu desprezo pelo prazer:
Deus manda-me que me abstenha da concupiscência da carne, da concupiscência dos olhos e da ambição do mundo. Mandou-me que me abstivesse do coito, e com relação ao matrimônio aconselhou-me algo melhor; e porque Ele me concedeu a sua graça, pude escolher este estado superior ao matrimônio. (SANTO AGOSTINHO. Op.cit., p. 193)
O Senhor me aumentará cada vez mais a sua graça, para que minha alma continue em direção a Deus, livre da pegajosa concupiscência (...) e nem mesmo em sonhos realize, devido às imagens carnais, essas vis torpezas que chegam à polução da carne, e deixe de consentir nelas. (Ibidem, p. 194)
O Novo Testamento já mostra traços desta postura pessimista com relação ao ato sexual. No livro do Apocalipse, João fala de 144 mil pessoas que diante de Deus, em seu Reino, cantavam suas glórias: “Estes são os que não se contaminaram com mulheres, pois são virgens” (Ap 14,4). Não ter relações sexuais e conservar a virgindade era sinal de pureza. A influência gnóstica é notória também nos livros considerados apócrifos. O termo ‘monakos’, monge ou solitário, que expressaria uma forma religiosa ascética e celibatária dos cristãos a partir do século IV, é usado no Evangelho de Tomé para descrever os gnósticos.(LIMA, Luciano José de. Entre a ortodoxia e a heterodoxia: conflitos simbólicos e relações de poder entre cristianismos na antiguidade e o caso da Biblioteca de Nag Hammadi. Rio de Janeiro, Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio do Janeiro - UFRJ, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais – IFCS, 2006, p. 80) Contraditoriamente, algumas passagens bíblicas, mais conformes a moral hebraica, embora rígida, não proibia o casamento dos líderes espirituais. Os sacerdotes do Antigo Testamento se casavam, Jesus escolheu homens casados para Apóstolos, com exceção de João, e Paulo aconselha que quem deseja o episcopado , ou seja, o cargo de bispo, “tem o dever de ser irrepreensível, casado uma só vez” (1 Timóteo 3,2), assim como os diáconos (1 Timóteo 3,12). A proibição do casamento para o apóstolo está na ordem das doutrinas demoníacas: “O Espírito diz expressamente que, nos tempos vindouros, alguns hão de apostatar da fé, dando ouvidos a espíritos embusteiros e a doutrinas diabólicas, proíbem o casamento” (1 Timóteo 4,3).
A condenação ao casamento é uma característica do gnosticismo que foi assumida pela Igreja. Mas a questão está na própria corporeidade, pois até o prazer em comer e beber era repudiado, como lembra Agostinho: “a necessidade de ter de comer e de beber me é agradável, e devo lutar contra esse prazer para não ser escravo dele, e o combato todos os dias com muitas mortificações, reduzindo o meu corpo à servidão. (SANTO AGOSTINHO. Op.cit., p. 195) A virtude estava em dominar os prazeres temporais: “Não sigas os teus apetites e domina o teu prazer”. (Ibidem, p. 196) Como em uma tragédia grega, a construção histórica do celibato clerical fala de temas humanos fundamentais (como o prazer sexual, o conforto, a liberdade) que devem ser negligenciados para que expressem uma vida elevada, quase “divina”. Isidoro de Sevilha (c.560 - 636) escreveu sobre os responsáveis da Igreja: “O responsável de uma igreja por uma parte tem de deixar-se crucificar ao mundo com a mortificação da carne, e por outra, tem de aceitar a decisão da ordem eclesiástica de dedicar-se ao governo com humildade, ainda que não queira fazê-lo”. (Livro das Sentenças III, 33, I: PL 83, col. 705 B)
O termo para o qual tende a prática da obediência é a humildade, cuja expressão máxima é a renúncia à própria vontade. Tal obediência objetiva a mortificação da vontade e do desejo. Neste sentido, ser humilde é ser obediente a alguém que comande. Um dirige e o outro é dirigido. O que é dirigido deve aceitar e obedecer. O cristão se põe nas mãos de seu pastor não somente para as coisas espirituais, mas, também para as materiais e para a vida cotidiana. Não se trata simplesmente de obedecer a uma lei, mas estar inteiramente na dependência de alguém. O melhor exemplo é a prova de irreflexão na qual o monge obedece no mesmo instante que ordenado. É uma relação de submissão. O pastorado faz surgir toda uma prática de submissão dos indivíduos (de indivíduo a indivíduo). É um campo de obediência generalizada, fortemente individualizado em cada uma de suas manifestações, de forma que até os que comandam o fazem, pois, receberam ordem de comandar. A ovelha vive uma relação de servidão integral, mas ao mesmo tempo, o pastor deve ver seu encargo como um serviço. É uma individualização que implica na destruição do “eu”.
Obedecer é renunciar a si mesmo, a suas vontades, inclusive aos prazeres do corpo para garantir a “apátheia” (controle de si). A palavra apatia provém do grego clássico apatheia. Páthos em grego significa “tudo aquilo que afeta o corpo ou a alma” e tanto quer dizer dor, sofrimento, doença, como o estado da alma diante de circunstâncias exteriores capazes de produzir emoções agradáveis ou desagradáveis, paixões. Assim, apatheia tanto pode significar ausência de doença, de lesão orgânica, como ausência de paixão, de emoções. O termo apatheia foi usado por Aristóteles (384-322 a.C.) no sentido de impassibilidade, insensibilidade, e, a seguir, incorporado pela escola filosófica fundada por Zenon (335-263 a.C.), o estoicismo, para expressar um estado de espírito ideal a ser alcançado pelo homem durante a sua existência. Segundo o estoicismo, o sofrimento decorre das reações despertadas no ser humano por quatro classes de emoções: a dor, o medo, o desejo e o prazer. O ideal do estóico é alcançar a apatheia, ou seja, a natural aceitação dos acontecimentos, uma atitude passiva diante da dor e do prazer, a abolição das reações emotivas, a ausência de paixões de qualquer natureza. A Igreja vai beber desta fonte e desejar a apátheia como objetivo final deste modo de ser obediente. A renúncia de si e o domínio das paixões prevê a hierarquização deste indivíduo sobre os menos capazes e sua capacidade de conduzir. Espera-se que o padre seja perfeitamente obediente e humilde e exija o mesmo. Há, portanto uma construção de individualidades dependentes e recíprocas, uma espécie de economia da dependência.
Com o poder pastoral, a Igreja configurou os papeis de pastor e ovelha por meio de um processo de individualização exacerbada na qual a “perfeição” é atingida com a supressão da própria vontade e do próprio “eu”. O homem ocidental aprendeu a si considerar ovelha e a pedir condução, direção e/ou salvação a um pastor. Alguém diferente, escolhido para conduzir às fontes de água e alimento, que o proteja e cure as feridas. Os sacramentos estão na ordem da condução das consciências. O batismo é entrada das ovelhas no rebanho; a comunhão é seu alimento; a penitência reintegra as ovelhas desgarradas ao rebanho; e o próprio poder jurisdicional do bispo em sua diocese, ou mesmo, do padre em sua paróquia traduz-se como a vigilância do pastor sobre o rebanho. Acautelar-se das condutas é importante para garantir que as “ovelhas doentes”, cujo comportamento contradiga ao esperado, não possam contaminar o rebanho com sua moléstia. Vigiar é um dever. Um cuidado que se impõe sobre o rebanho e cada ovelha individualmente. Ele deve prestar contas no fim do dia de cada uma de suas ovelhas e de todo o rebanho. Deve estar disposto a dar a vida por elas. Deve defendê-las e morrer por elas se for preciso. Deve até expulsar as inconvenientes e prejudiciais ao rebanho para que este não se perca. Este alguém separado será o intermediador entre a escassez e a bonança, entre esta terra de lágrimas e o paraíso.
O Secretariado Nacional das Vocações Sacerdotais da CNBB publicou um documento em 1960 que demonstra bem esta construção do sacerdote como mediador entre os homens e Deus. A exaltação da figura do pastor tende a promover nas consciências a necessidade da condução e o desejo da salvação para aqueles cuja vida “dissoluta” e “mundana” não pode produzir a certeza da bem-aventurança eterna. Nesta construção discursiva, a verdade sobre o pastor aparece como uma “necessidade de salvação”.
 Depois de Deus, o padre é tudo...
 Deixai uma paróquia vinte anos sem padre e aí se adorarão os animais. (Santo Cura d’Ars).
 Nada há tão sublime como o sacerdócio no altar, onde o padre torna-se o senhor do seu Criador, o senhor do seu Deus.
 Nada há tão grandioso como o sacerdócio; pois nas mãos do padre repousa a sorte do gênero humano.
 Vocação traída: um mundo em perigo. Um padre a mais: um mundo salvo.
 Não há civilização sem cristianismo: não há cristianismo sem igreja; não há igreja sem padre.
 Custear as despesas de formação de um sacerdote é fazer o melhor seguro para a vida eterna.
(Documentário Vocacional: Dia Nacional das Vocações Sacerdotais - Secretariado Nacional das Vocações Sacerdotais da CNBB, S.P. 1960, pp. 97-102. In: TAGLIAVINI)

Esta imagem do sacerdote/pastor é herança judaica e influência órfica. Na literatura mosaica Deus aparece como pastor que conduzia seu povo (Êxodo 13, 21). Existe aqui uma percepção histórica que o hebreu tinha de si mesmo. No Antigo testamento se lê: “E dar-vos-ei pastores segundo o meu coração, os quais vos apascentarão com ciência e com inteligência” (Jeremias 3,15). O próprio Moisés era pastor de ovelhas (Êxodo 3). Jesus, assim como Orfeu, se assume como pastor: “Eu sou o bom Pastor; o bom Pastor dá a sua vida pelas ovelhas” (João 10,11). O pastor tende a salvar o rebanho dos perigos e conduzi-lo às boas pastagens a exemplo de Moisés e especialmente de Jesus, o bom pastor, que dá a vida pelo seu rebanho. Esta herança judaica que, somada ao pessimismo sexual gnóstico, ao desprezo do corpo estóico e a misoginia órfica, produziu a figura do pastor celibatário que progressivamente foi se disseminado pelo mundo cristão. O que torna o sacerdote/pastor diferente é sua negação ao prazer e renúncia à própria vontade como cuidado de si e dos outros. Este desapego de si lhe autorizaria a intermediar as relações com a divindade e conduzir as consciências. Seu sacrifício – supressão da própria vontade – legitima sua condição de guia (João Virgílio. Educação e condições materiais de existência: uma leitura sociológica da vocação sacerdotal. Revista Educere et Educare. Vol. 1 nº 2 jul./dez. 2006. p. 39)
O pastorado no cristianismo deu lugar a toda uma arte de conduzir, de dirigir, de levar, de guiar, de controlar, de manipular os homens, uma arte de segui-los e de empurra-los passo a passo, uma arte que tem a função de encarregar-se dos homens coletiva e individualmente ao longo de toda a vida deles e a cada passo de sua existência.(FOUCAULT. Michel. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008, pp. 218-219)
Assim, um sujeito é sujeitado em redes contínuas de obediência e servidão. O pastorado cristão é, na verdade, uma forma de poder temporal, que sob o argumento de conduzir os indivíduos à felicidade eterna assume o governo dos homens. O viver celibatário faz parte desta estratégia de poder. É um mecanismo de dominação das individualidades. O Papa João Paulo II, em 1993, declarou publicamente que o celibato não é essencial ao sacerdócio. Então, qual a razão para sua manutenção? Disciplina e controle parecem apropriados. O sacerdote católico ao mesmo tempo em que exerce o poder pastoral também sofre seus efeitos, pois o que lhe é exigido para o exercício da função é sua doação em tempo integral e a negação de si mesmo. E, ao contrário do que se pensa, nunca houve consenso quanto à necessidade do celibato para o exercício das funções sacerdotais na Igreja Católica. Sua adoção está na ordem das relações de dominação. A história do celibato revela muito mais o conflito e a resistência/desobediência à norma do que o estilo de vida proto-angelical que se quer demonstrar.

5. A construção do celibato clerical: disciplina, distinção e resistência
A primeira imposição a favor do celibato ocorre no Sínodo de Elvira em 306 sob a liderança do bispo Hósio de Córdova. De caráter puramente local, restrito à região da atual Espanha, decide que todos os clérigos (bispo, padres e diáconos) deveriam abster-se de relações sexuais com suas esposas. Os clérigos poderiam permanecer casados desde que se abstenham das intimidades do matrimônio. A violação da norma seria punida com a exclusão do corpo clerical. É importante perceber que o Sínodo é uma reunião convocada pela autoridade eclesiástica local, ou seja, o bispo, que com seus padres e diáconos tratam de assuntos pertinentes à sua jurisdição. Não possui caráter universalista como os Concílios Ecumênicos, mas regionalizado. Assim, não teve muita repercussão na Igreja Católica como um todo. Não obstante, abriu-se um precedente para os mais ascéticos imporem o celibato obrigatório, até então, opcional.
No primeiro Concílio Ecumênico de Nicéia (325) propôs-se o celibato obrigatório para todo o clero católico. No entanto, o Concílio não assume a prática prescrita no Sínodo de Elvira:
Presume-se que o Bispo espanhol Hósio de Córdova, que já assumira a liderança em Elvira, foi um dos que propuseram a proibição das relações conjugais para os padres em Nicéia também. Segundo um relato do historiador Sócrates (ca. 450), o bispo Panúcio, homem de grande prestígio, que perdera um olho e um tendão do joelho na perseguição imposta por Diocleciano, ergueu-se e disse que nenhum jugo pesado desse tipo deveria ser colocado sobre o clero, pois o casamento era algo de honrável. Bastava aos que entrassem para o clero solteiros não se casarem depois, mas nenhum padre deveria ser separado da mulher com quem se casara enquanto ainda era leigo. (RANKE-HEINEMANN, Uta. Op.cit., p. 114)
O contra-senso entra em cena nos Sínodos que se seguiram. O de Gangra (340-341) defende o casamento dos padres e a compatibilidade entre seu ofício religioso e vida matrimonial. Pretensas Constituições Apostólicas na década de 380 excomungavam qualquer padre ou bispo que por motivo devocional repudiasse sua esposa. Porém, no ano de 385, o Papa Sirício abandonou a própria esposa e os filhos, a fim de ascender à posição papal. Ele decretou imediatamente que nenhum dos padres poderia mais continuar casado. Tal exigência permaneceu sem efeito. Cinco anos depois o Concílio de Cartago estabelece as mesmas obrigações de Elvira, sendo ratificadas no Sínodo de Cartago em 401. Contudo, ainda não bastava que os padres casados se abstivessem da vida sexual. O Papa Inocêncio I no Sínodo de Roma (402) estabeleceu: “Bispos, padres e diáconos precisam ser solteiros” (Cân.3). (Ibidem, p. 115.) Na prática, contudo, nada mudou. Uma declaração sinodal não tem força política para se impor a toda instituição. Ademais, nos séculos iniciais do cristianismo o Papa não possuía a representação política de hoje.
A Igreja Católica se desenvolveu, e governou-se, em torno das cinco sedes mais antigas, chamadas de patriarcados, estabelecidos pelo Concílio Ecumênico de Calcedônia (451 d. C.): Roma, Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém. Cada patriarca possuía independência política e administrativa. As raízes da supremacia eclesiástica romana foram construídas neste concílio, destacando-se Leão I (440-461) Ele exerceu papel estratégico singular na defesa de Roma contra as invasões bárbaras e foi-lhe atribuído, pela primeira vez na história, o título de Papa (paizinho). Em Calcedônia defendeu explicitamente a autoridade papal em detrimento dos demais patriarcas e a proibição do coito conjugal para os clérigos. O arcebispo de Roma, o Papa, passa a ser chamado de primus inter pares (o primeiro dentre seus iguais). O apogeu do papado antigo, contudo ocorre no pontificado de Gregório I ou Gregório Magno (590-604). Sua lista de realizações passa pela defesa de Roma contra os lombardos até reformas no interior da Igreja, como a liturgia, regularizando as celebrações do calendário cristão e promovendo a música sacra, o “canto gregoriano”, como se conhece hoje. Gregório I, quanto ao tema em questão, toma partido da separação carnal entre os clérigos e suas esposas. Em carta ao bispo Leão de Catana afirma:
Que seu espírito fraternal cuide da diligência dos que acabam de ser elevados a essa ordem, para que não tomem a liberdade de manterem relações com as esposas, caso as tenham. Mas faça-os saber com toda a severidade que tudo será observado como se ocorresse debaixo dos olhos da Sé Apostólica. [Exigindo-se que a partir da ordenação sacerdotal em diante] amassem as esposas como se fossem irmãs e se acautelassem em elas como se fossem inimigas. (Diálogos IV, 11)
Assim, homens casados continuavam sendo ordenados padres e pouco consenso existia em torno da questão. O sínodo de Arles em 443, o de Clermont em 535 e o Terceiro Sínodo de Orleans em 538, defendem a continência conjugal dos clérigos. O Sínodo de Tours (567), foi mais longe, regulamentando a vida conjugal dos bispos. Além de propor a ausência de intimidade ao casal surge, agora, uma novidade: a separação de domicílio. A esposa do bispo ficaria em uma casa sendo servida apenas por mulheres e o bispo em outra, cercado por seus clérigos. E chega a afirmar o seguinte:
O bispo só pode procurar sua esposa como irmã. Onde quer que esteja, deverá ficar rodeado de clérigos, e sua residência deverá ficar separada de sua esposa (...) O arcipreste deve sempre ter um clérigo com ele, que o acompanhará aonde for e que deve ter a cama no mesmo quarto com ele. (Cân. 19)(Ibidem)
A disciplina assume dimensões austeras e passa a vigiar exaustivamente o cotidiano. A conseqüência imediata é seu afastamento do simples fiel. O sacerdócio começa a assumir uma característica distintiva que o hierarquiza e o separa dos “leigos”, termo que indica aquele indivíduo inexperiente, não conhecedor, que precisa ser orientado. O leigo é visto como inferior e incapaz. O casado vai aos poucos perdendo seu espaço na hierarquia católica e o termo que lhe posiciona no campo religioso designa sua ignorância e a necessidade de ser conduzido pelos “separados”, “puros” e “sapientes”. Os Sínodos de Lião (583) e de Toledo (589) repetem a orientação de que os clérigos casados não podem viver juntos com as esposas.
A insistência da igreja latina diante da separação carnal do clérigo com sua esposa era mais um capítulo no distanciamento com a igreja do oriente que cresceu consideravelmente no segundo Trulano, um sínodo realizado em 691/92. Para a Igreja Ortodoxa este evento foi tão importante para a sua formulação disciplinar que é considerado como o Sétimo Concílio Ecumênico e, suas decisões, portanto, de caráter universal, permanecem até hoje. Sua postura sobre o celibato é distinto da adotada pela igreja latina. Lê-se no cânon 13:
Na Igreja romana, os que recebem o diaconato ou o sacerdócio tem de prometer suspender as relações com as esposas. Mas permitimos que continuem casados, de acordo com os Cânones Apostólicos. Quem tentar romper com o casamento será destituído, e o clérigo que se separar da esposa sob o pretexto de piedade será excomungado. (RANKE-HEINEMANN, Uta. Op.cit., p. 118)
Evidente que esta decisão não é aceita com facilidade. A igreja romana nem reconhece Trulano como o Sétimo Concílio Ecumênico, que para ela é Nicéia (2º), em 787. Curiosamente, o último concílio universal. A unidade da Igreja começa a desfazer-se devido as diferenças entre o Oriente e o centralismo do patriarca do Ocidente. As determinações de Trulano II foram aceitas quase duzentos anos depois pelo Papa João VIII (872-882), que declara que os sacerdotes casados antes da ordenação, deveriam assim permanecer. Contraditoriamente, este momento do papado é marcado pela imoralidade e corrupção. A pressão sobre os padres casados diminui. Parte desse período é tradicionalmente conhecido como pornocracia ou época das rameiras, numa referência a certas práticas que predominavam na corte papal. Os padres, até então, sempre se casaram e há indícios de que até o século IX não houvesse nenhum impedimento legal ao casamento do pontífice. Contudo este período, que se estende até a morte do Papa João XII em 963, se caracteriza pelo comportamento promiscuo. Acredita-se que a princesa toscana Marozia,(NARLOCH, Leandro. Marozia: a chefe dos papas. In “Aventuras na História” edição 072, julho 2009) concumbina do papa Sérgio III (904-911) – que chega ao papado depois de assassinar seu antecessor Leão V, em 903 – foi mãe do futuro Papa João XI (935). Ela também foi acusada de comandar o assassinato do Papa João X (914-928), para favorecer seu favorito a tornar-se Papa Leão VI (928), que também morre violentamente no mesmo ano de consagração.
Com reforma Gregoriana (1054), assim denominada em homenagem a Gregório VII, acentuou-se a luta em favor do celibato clerical e o fortalecimento do poder papal. Não por acaso o cisma entre oriente e ocidente ocorreu em meio à reforma. Assim, aos 16 de julho daquele ano proclama-se o anátema sobre a igreja oriental. A questão do casamento sacerdotal teve papel decisivo nessa reforma. O cardeal Humberto que pronunciou o anátema descreve assim os sacerdotes da Igreja Ortodoxa:
Os jovens maridos, exaustos por acabarem de praticar os desejos carnais, servem ao altar. E, imediatamente após, tornam a abraçar suas esposas com as mãos que foram santificadas pelo corpo imaculado de Cristo. Essa não é a marca da fé verdadeira, mas uma invenção de satanás. (C. Will, Acta et escripta quae de controversiis ecclesiae graecae et latinae 1861, p. 126)
Com ironia o Patriarca Petros de Antioquia diz que devido à invasão de Roma pelos vândalos, a igreja perdeu os documentos do Concílio de Nicéia e defendeu o clero casado de seu patriarcado. Contudo, sem a interferência do oriente o casamento dos padres recebe novos golpes. Em 1073, Gregório VII impõe o celibato. Defini-se que o matrimônio dos sacerdotes é herético e exigi-se que qualquer homem que fosse ordenado deveria, antes, declarar o celibato. “Em 1130, o Papa Inocêncio declarou no sínodo de Clermont que como o pressuposto era de que os padres eram templos de Deus, vasos do Senhor e santuários do Espírito Santo, seria ofensivo deitar-se no leito conjugal e viver nessa impureza.” (KIYAN, Ana Maria Mezzarana. Op.cit., p. 63) As esposas passam a ser consideradas concubinas e, portanto, sem direito algum sobre os bens de seus maridos. Mas essas considerações ainda não possuem força de lei. Inocêncio II, no ano de 1139, por ocasião do II concílio de Latrão, torna o casamento do clero não apenas proibido, mas ilegal e inválido. O argumento da pureza se levanta em nome de um corpo clerical santo(A palavra Santo origina-se do latim “sanctus”, que significa separado, inviolável, virtuoso.) e as separações de padres casados depois da ordenação são providenciadas. Mas isso não impede as uniões dos sacerdotes. Isso por que...
a partir de 1139, homens casados não mais eram ordenados padres; porém, como não havia uma cerimônia específica para a união conjugal, muitos padres casados em segredo, ainda ordenavam-se. Esta dificuldade de controle foi sanada a partir de 1563, quando a cerimônia formal de casamento se tornou obrigatória. (Ibidem, p. 64)
Suas esposas, neste ínterim, passaram a ser rotuladas de concubinas, prostitutas, adulteras e em certos lugares de barregãs, como em Castela, por exemplo, no...
final do século XI. No plano legislativo, a barreguice garantia todos os direitos para a mulher e para os filhos nascidos da união (...) Em Portugal, nos séculos XII e XIII, as imagens das barregãs não estavam associadas às representações aviltantes das concubinas, que foram construídas pela Igreja durante a Reforma Gregoriana (...) Anteriormente ao século XIV, a barreguice, na sociedade portuguesa, era uma relação não muito distinta do casamento e a condição de barregã não era considerada torpe e desprezível.
(SILVA, Edlene. As Barregãs de Clérigos: mulheres pecadoras e malditas. In www.espam.edu.br. (acesso em 26/5/2009))
Até o século XVI as leis das dioceses eram cumpridas com parcimônia. A contradição, por vezes, parte dos próprios papas, como Alexandre VI (1492-1503), nascido Rodrigo Gil de Borja i Borja, em Xativa, um município da Espanha na província de Valência. A partir de 1470, como cardeal, liga-se a Giovanna Catanei e tem por amante Giulia Farnese. Teve sete filhos. Um destes, César Borjia, aos dezesseis anos, é nomeado por ele cardeal. O casamento ou o concubinato clerical eram rotineiros em toda a Europa. Na tentativa de moralizar chega-se a cobrar multas de seus transgressores. Heinemann,(RANKE-HEINEMANN, Uta. Op.cit., p. 127-128) relata que em 1521, o Bispo de Constança, Hugo Von Landenberg, arrecada cerca de seis mil florins em multas, referentes a 1500 crianças que teriam nascido das uniões clericais.
Após a Reforma Protestante os concílios tridentinos de 1537 e 1563 confirmam novamente o celibato obrigatório como regra inquebrantável e de excelência sobre o matrimônio. A Reforma robustece a postura como instrumento distintivo. Diante dos padres ortodoxos, dos pastores protestantes e dos fiéis leigos, devem os padres católicos reluzir a diferenciação dos eleitos de Deus. Separados do mundo por uma vida austera e desprendida das seduções materiais poderiam, então, conduzir os que, como ovelhas, enxergam mal e precisam do pastor que as guie às bem-aventuranças. Entre discurso e prática, contudo, nunca houve uma homogeneização da prática do celibato.
Como regra disciplinar obrigatória para o clero latino, o celibato é o resultado de um conflito sem solução. O pastorado cristão, como governo dos homens, faz surgir toda uma prática de submissão dos indivíduos e controle do cotidiano com o objetivo explícito de direção. Neste sentido o domínio da sexualidade aparece como cuidado de si, autodomínio e superioridade de uma elite separada. Este regime de verdade, no entanto, esconde uma concepção negativa com relação à corporeidade, cuja configuração é anterior e exterior ao próprio cristianismo. O pessimismo sexual assumido pela Igreja criou papéis que são transgredidos pela própria incapacidade de seu exercício. A manutenção desta norma disciplinar ganha sentido unicamente a partir das relações de poder que objetivam a hegemonia no mercado de bens salvíficos e a dominação das consciências.
A discussão sobre o celibato é, diferente do que se pensa, muito comum entre os padres em exercício. A presidência da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) censurou um texto aprovado em fevereiro de 2008 pela Comissão Nacional dos Presbíteros (CNP) que sugeria ao Vaticano “possibilitar outras formas de ministério ordenado que não seja apenas a do presbítero celibatário”. Isso significa, na prática, a ordenação de homens casados e a readmissão de padres que deixaram suas funções para se casar.(Jornal “Estadão” de 12 de abril de 2008) O “Documento aos Presbíteros”,(Secretariado do Ministério Hierárquico da CNBB, Documento aos Presbíteros. Edição da CNBB, 1969) uma publicação do Secretariado do Ministério Hierárquico da CNBB, de 15 de novembro de 1968, declarou que apenas 20% do clero afirmava a necessidade da lei do celibato sacerdotal. O restante dos pesquisados (80%) acreditava poder ser facultativo e não exigido por lei.
Recentemente um sacerdote católico desenvolveu uma ampla pesquisa em relação à situação da sexualidade dos sacerdotes católicos no Brasil. Sua pesquisa foi publicada com o nome “Um espinho na carne”, (NASINI, Gino. Um espinho na carne. São Paulo, Santuário, 2001) lançado em 2001. Nele Gino Nasini aponta para alguns dados indiciantes desta realidade: 77% dos padres ouvidos disseram ter conhecimento de algum tipo de contato sexual, abusivo ou não, entre os sacerdotes de sua diocese. Destes, 35% foram com parceiros do mesmo sexo, 50% com mulheres, 12% com adolescentes, 2% com freiras e 1% com crianças. Apenas 20% dos entrevistados conseguiram reverter a situação e continuaram a ser padres, outros 23% deixaram o sacerdócio, 21% mantiveram uma mesma relação por no mínimo 3 anos, 32% ainda mantém algum tipo de relacionamento sexual e 4% após um intervalo de tempo voltaram a ter vida sexual ativa. Entre decretos e excomunhões os padres católicos nunca deixaram de se relacionar afetiva e sexualmente. Hoje, parte daqueles que deixaram o ministério e se casaram estão organizados em associações como o Movimento de Padres Casados no Brasil, o Movimento pelo Celibato Opcional da Espanha, o Catholics for a Changing Church da Inglaterra, o Movement for the Ordination of Married Men da Zâmbia, o Celibacy Is The Issue Ministries dos EUA, dentre outras.
O bispo italiano Ulrich de Imola (bispo de 1053-63), certa vez argumentou que a Igreja não tinha o direito de proibir o casamento dos padres e aconselhou a não abandonarem suas famílias: “Quando o celibato é imposto, os padres cometem pecados muito piores do que a fornicação”.(SHUSTER, John. A lei do celibato clerical. In: www.cpr.org.br (Acesso: 14/8/2009) O poder pastoral ao afastar e hierarquizar o clero promoveu um técnica disciplinar ambígua, em que sacralização e desumanização, aparecem como irmãos siameses difíceis de separar.

(REVISTA HISTÓRIA - Ano 1 (2010), Número 1, Volume 1) 

publicado às 01:53

"Caro Papa Francisco, somos um grupo de mulheres de todas as partes da Itália (e além), que te escreve para romper o muro de silêncio e indiferença com que nos deparamos todos os dias. Cada uma de nós está vivendo, viveu ou gostaria de viver uma relação amorosa com um sacerdote, do qual está apaixonada."
A reportagem é de Gian Guido Vecchi, publicada no jornal Corriere della Sera, 18-05-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Assim começa uma carta enviada ao Vaticano e assinada por 26 mulheres que afirmam ser "uma pequena amostra" em nome de muitas que "vivem no silêncio". As mulheres pedem que Bergoglio reveja a regra do celibato sacerdotal e que as receba "para levar diante de ti, humildemente, as nossas histórias e as nossas experiências".
No texto, as signatárias escrevem que as alternativas à situação que vivem "são o abandono do sacerdócio ou a persistência vitalícia de um relacionamento secreto": mas, no primeiro caso, "também nós, mulheres, desejamos que a vocação sacerdotal dos nossos companheiros possa ser vivida plenamente"; no segundo, "entrevê-se uma vida no contínuo escondimento, com a frustração de um amor não completo que não pode esperar por um filho". E concluem que o serviço "a Jesus e à comunidade" seria desempenhado "com maior impulso" por um sacerdote "apoiado por esposa e filhos".
O Abandono do sacerdócio ou a persistência vitalícia de um relacionbamento secreto?
 
No passado, Bergoglio não se isentou do tema do celibato, mas com uma posição bastante diferente. No livro escrito pelo cardeal com o amigo rabino Abraham Skorka, ele explicava que a tradição celibatária "é uma questão de disciplina, não de fé" e "pode-se mudar", mas acrescentava: "Por enquanto, sou a favor de que se mantenha o celibato, com os prós e os contras que ele tem, porque são dez séculos de boas experiências mais do que de falhas".
Sobre os relacionamentos dos padres, ele havia sido claro: "Se um deles vem e me diz que engravidou uma mulher, eu o ouço, procuro que ele tenha paz e, pouco a pouco, faço com que ele se dê conta de que o direito natural é anterior ao seu direito como padre. Portanto, ele tem que deixar o ministério e assumir esse filho, […] porque esse filho tem o direito de ter o rosto de um pai. Comprometo-me a ajeitar todos os papéis em Roma, mas ele tem que deixar tudo".
Na Igreja Católica, já existem padres casados. A disciplina do celibato vale para a Igreja latina, não nas católicas orientais. Existe a possibilidade de que, no futuro, se vá rumo a uma "dupla disciplina", também na Igreja latina. Talvez com as mesmas regras: apenas os celibatários podem ser bispos.
Não é um tabu. O cardeal Martini propôs que se "ordenassem homens casados que tenham experiência e maturidade". O secretário de Estado, Pietro Parolin, explicou em setembro passado que o celibato "não é um dogma da Igreja e pode ser discutido". Mas sem generalizar: Bergoglio dizia que, "se, hipoteticamente, o catolicismo ocidental revisasse o tema do celibato, creio que ele o faria por razões culturais (como no Oriente), não tanto como opção universal".

(''Somos 26 mulheres apaixonadas por padres'': a carta ao Papa Francisco)

publicado às 20:03


Uma das coisas mais difíceis que se pode perguntar a um cientista é o que é a ciência e como é possível distingui-la do que não é ciência. Um recurso muito rigoroso para procurar uma resposta, do ponto de vista metodológico, é buscar a evolução histórica do fazer científico. Isso nos remete à Grécia antiga e ao surgimento da filosofia, conhecida como a mãe da ciência moderna.

No entanto, não será muito estimulante perceber que uma das coisas mais difíceis que se pode perguntar a um filósofo é justamente o que é a filosofia. Existem pelo menos três respostas diferentes a essa pergunta, o que bastaria, segundo alguns filósofos, mesmo sem saber quais são elas, para afirmar com segurança que não sabemos o que é a filosofia. Mas esse aparente paradoxo nos ajuda a perceber a complexidade do assunto que queremos desenvolver na escola, com jovens que iniciam a adolescência.

Vamos às respostas. Uma das mais tradicionais, segundo alguns filósofos, diz que a filosofia se distingue por seu objeto, pois se ocupa de três questões fundamentais: o que existe no mundo, como sabemos o que existe no mundo e o que vamos fazer a respeito disso. Ao buscar a resposta a cada uma dessas perguntas, vamos nos envolver com três áreas do saber filosófico. Ao procurar saber o que existe no mundo, vamos estudar a natureza da realidade, no campo do conhecimento chamado pelos filósofos de “metafísica”. Ao tentar compreender como podemos saber o que existe no mundo, vamos estudar as condições necessárias para se conhecer algo, no campo do conhecimento chamado de “epistemologia”. Por fim, ao estudar o que se pode e o que não se pode fazer diante dos fatos do mundo e das formas de conhecê-los, vamos lidar com o que os filósofos chamam de “ética”. Todos nós certamente já dedicamos um bom tempo a essas três questões, mas os que procuram sistematizar, registrar e comunicar o resultado de seus pensamentos são os filósofos que se tornaram mais famosos.

Essa resposta que confere relevo ao objeto da filosofia foi profundamente questionada a partir de Nicolau Maquiavel (1469-1527), que percebeu a necessidade de buscar incessantemente novas perguntas, para além da metafísica, da epistemologia e da ética, afirmando que a questão central a enfrentar será sempre a manutenção do poder, a política.1

Essa primeira resposta para a pergunta sobre o que é a filosofia nos ajuda a entender a segunda: pode-se filosofar sobre qualquer coisa – ou seja, não é o objeto da reflexão que distingue o filosofar –, mas o que importa é o método que se utiliza nessa sistematização cuidadosa do pensamento. O apoio na razão, de maneira explícita e justificada, seria a característica distintiva da filosofia, independentemente do objeto sobre o qual ela se debruça.

A defesa do método e da razão como parte essencial da filosofia encontrou oponentes intelectualmente robustos, desde Immanuel Kant (1724-1804) e Friedrich Nietzsche (1844-1900) até o contemporâneo Paul Karl Feyerabend (1924-1994). Tais filósofos, cada qual a seu modo, questionaram a objetividade de qualquer método e expuseram a validade relativa não apenas da reflexão filosófica, mas também das teorias científicas, convidando-nos a criticar a forma de raciocínio que utilizamos a qualquer tempo.
Finalmente, a terceira resposta, talvez a mais antiga. Para alguns filósofos, a filosofia é uma atitude em relação à vida, ou seja, essencialmente um modo de viver. Ela nos leva a posições críticas em relação à forma de conceber coisas, fenômenos e comportamentos, uma recusa inicial em aceitar passivamente o que todas as pessoas aceitam sem refletir mais profundamente a respeito. Talvez o maior exemplo dessa posição seja Sócrates, que levou ao extremo seu “amor pela sabedoria”, o significado da palavra “filosofia” em grego. Ele insistia em comunicar o resultado da sistematização de seus pensamentos críticos (que não cuidou de registrar) e acabou condenado à morte por isso. Por coerência com seu “modo de vida”, com sua crença de que uma vida sem reflexão profunda não vale a pena ser vivida, enfrentou dignamente seu fim trágico e não fugiu ao castigo capital.

A visão socrática de filosofia foi questionada por outros filósofos, sendo um dos mais famosos Francis Bacon (1561-1626), que defendeu o primado do método e da razão, pois a vida humana tem a influência de “ídolos”, que ofuscam nossa visão. Como vimos, a defesa do método, por sua vez, não esteve imune a críticas.

Assim, apontando honestamente as incertezas de base em nosso tema central, admito que, em lugar de buscar resolver a questão de definir o que é a ciência, o que seria algo pretensioso, optei por trilhar um caminho mais suave, trocando a investigação da essência de nosso objeto de estudo pela descrição do que ele tem sido, deixando ao leitor a tarefa de formular seu próprio conceito de ciência. Assim, convido o leitor a iniciar aqui uma jornada muito particular e modesta junto ao pensamento científico que integra a cultura ocidental e que é, portanto, essencial aos currículos do ensino fundamental. Portanto, do ponto de vista metodológico, justifica-se o recurso da exposição histórica diante da impossibilidade de definir simplesmente o que é ciência; cabe mostrar como o pensamento científico se transformou no decorrer dos tempos. No entanto, tampouco poderia enfrentar a tarefa de produzir um compêndio de história da ciência, por isso escolhi três ícones para discutir partes importantes de seus trabalhos nos próximos capítulos. Assim como três pontos definem um plano, três pensadores poderão nos dar uma ideia do vasto horizonte que delineia o panorama científico moderno. Mas antes será necessário entender o lugar onde se inicia essa jornada.

 

(Nélio Bizzo - Pensamento Científico, A natureza da ciência no ensino fundamental)

publicado às 01:02

Você pode ver, Epimeteu concebe e realiza o que os nossos ecologistas chamam hoje uma “biosfera” ou um “ecossistema” perfeitamente equilibrado — o que os gregos, por sua vez,chamam simplesmente um cosmos, uma ordem harmoniosa, justa e viável, em que cada espécie animal pode sobreviver ao lado e apesar das outras. E isso confirma que a natureza — pelo menos se acreditarmos na mitologia — é uma ordem francamente admirável. Você talvez me pergunte: por que então Epimeteu merece ter fama de um bobalhão que tudo compreende atrasado?

Aqui vai a resposta de Protágoras:
Mas como Epimeteu, todos sabemos, não era dos mais previdentes, ele se deu conta, depois de desperdiçar o tesouro de qualidades com seres privados de raciocínio, de ter sobrado a raça humana, que nada havia ganho; e ele se confundiu todo, sem saber o que fazer. Foi essa a situação encontrada por Prometeu, ao chegar para controlar a distribuição. Viu os animais razoavelmente munidos sob todos os pontos de vista, enquanto o homem continuava nu, sem nada nos pés, nada para se cobrir, desarmado [...] E tomado pela preocupação de encontrar um meio que protegesse o homem, Prometeu roubou de Hefesto e de Atena o gênio criativo das artes, ao roubar-lhes o fogo (pois sem o fogo, não há meio de se adquirir tal gênio nem de utilizá-lo). Desse modo, fez ao homem a sua doação.
Podemos perceber o duplo erro de Prometeu, que vai ocasionar a dupla punição: contra ele próprio, a águia terrível a devorar seu fígado, mas também contra os homens, a quem Zeus envia Pandora e, com ela, todos os males que passam a estar ligados à condição humana mortal. Em que, exatamente, consiste esse duplo erro?

Primeiro, Prometeu se comportou como um ladrão; sem permissão ele entra no ateliê que têm juntos Hefesto e Atena para de um roubar o fogo e da outra as artes. Por esse roubo ele já é passível de punição. Mas o pior é que Prometeu, sem consentimento de Zeus, fornece aos homens um novo poder, um poder de criação quase divino, e podemos imaginar — para além do comentário de Platão, que se prende a outros aspectos do mito que não nos interessam diretamente aqui — ser provável que essa possibilidade vá, um dia ou outro, levar os humanos, sempre tão dispostos à hybris, a se tomarem por deuses. De fato, como nos indica Protágoras, graças aos dons propriamente divinos fornecidos por Prometeu, os homens se tornam os únicos animais capazes de fabricar objetos “técnicos”, artificiais: calçados, cobertas, roupas, alimentos tirados da terra etc. Isso significa que, à semelhança dos deuses, eles passam também a ser verdadeiros criadores. Mais ainda, são os únicos a articular sons de maneira a poder lhes dar um sentido, isto é, os únicos a inventar a linguagem, algo que, mais uma vez, consideravelmente os aproxima dos deuses. Em compensação, como esses dons roubados por Prometeu vêm diretamente dos olímpicos, os humanos são também os únicos seres vivos a saber da existência dos deuses e a construir altares em homenagem a eles. Mesmo assim, visto que não param de se comportar de maneira injusta uns com os outros, a ponto de incessantemente se colocarem em risco de autodestruição, ao contrário dos animais que formam um sistema de coparticipação equilibrado e viável, eles estão sob a ameaça de hybris o tempo todo! É então uma espécie prodigiosamente perigosa e preocupante para o cosmos esta que Prometeu acaba de fabricar, sem o consentimento de Zeus. Compreende-se por conseguinte muito bem a sua raiva, por que considera indesculpáveis e irresponsáveis as manobras de Prometeu, e por que ele resolve não só punir esse filho de Titã, mas ao mesmo tempo os homens, para justamente recolocá-los também
em seu lugar e lembrar que não devem ceder à hybris. É o que realmente está em jogo nesse mito: fazer com que os mortais, apesar dos dons de Prometeu, não se imaginem deuses.

No fundo, é à mesma ideia que fundamenta a peça que o grande trágico Ésquilo dedicou a Prometeu quase dois séculos antes de Platão colocar o mito em cena com o personagem de Protágoras.
De fato, descobre-se que Zeus já desconfiava dos mortais no momento da repartição do mundo e da organização do cosmos, depois de tomar o poder de seu pai, Cronos. Mais uma vez, prefiro citar diretamente o texto de Ésquilo para que você se habitue à maneira de se exprimir dos gregos, cinco séculos antes da nossa era:
Assim que se sentou no trono paterno (isto é, o trono de Cronos, que Zeus acaba de derrubar com a ajuda dos Ciclopes e dos Hecatonquiros), ele repartiu os privilégios entre os diferentes deuses e fixou os escalões do seu império (você se lembra, é onde começa realmente a criação da ordem cósmica). Mas não levou em consideração os infelizes mortais. Queria inclusive fazer a raça inteira desaparecer, para que outra nascesse. E ninguém, além de mim, Prometeu, se opôs. Apenas eu tive tamanha audácia e impedi que os maltratados mortais descessem ao Hades (aos infernos, que frequentemente são designados pelo nome do deus que ali reina). Por isso aqui me encontro, dobrado sob o peso de dores dificilmente suportáveis, desagradáveis de serem vistas (trata-se, é claro, das dolorosas correntes e da águia devoradora do fígado). Por ter me apiedado dos mortais, fui julgado indigno de piedade.
Tudo bem. Entretanto, uma vez mais, por quê? Um pouco mais adiante, Prometeu se gaba de todas as vantagens que proporcionou aos homens. Quando se lê a lista, como em Platão, compreende-se que Zeus de forma alguma tenha visto com bons olhos essa espécie que pode perfeitamente — mais ou menos como receiam os ecologistas de hoje — ser a única na terra a poder praticar, graças às técnicas de que dispõe, o descomedimento a ponto de pura e simplesmente ameaçar de destruição a ordem cósmica:
Ouçam então as misérias dos mortais e vejam como, de crianças que eram, fiz deles seres dotados de raciocínio e reflexão. Vou contar, não para denegrir os homens, mas para mostrar os favores concedidos por generosidade minha. Eles viam sem enxergar, escutavam sem ouvir e, semelhantes às imagens dos sonhos, tudo misturavam ao acaso, ao longo da vida inteira. Não conheciam casas de tijolos cozidos ao sol. Não sabiam trabalhar a madeira. Viviam entocados como as ágeis formigas, no fundo de antros sombrios. Não tinham sinal algum seguro que indicasse o inverno, a primavera florida nem o verão rico em frutos. Tudo era feito sem o uso da inteligência, até o dia em que lhes mostrei a difícil arte de discernir o levantar dos astros e o seu ocaso. Inventei para eles a mais bela de todas as ciências, a do número, assim como a junção das letras que conserva a lembrança de todas as coisas e favorece a cultura das artes. Também fui o primeiro a emparelhar animais e fazê-los servir, sob o jugo e o bastão, para que tomassem o lugar dos mortais nos trabalhos mais árduos e atrelei ao carro cavalos dóceis às rédeas, luxo com que se guarnece a opulência. Fui eu próprio o inventor também desses veículos com asas de linho em que os marinheiros percorrem os mares. São tantas as invençõe que imaginei a favor dos mortais e eu, desafortunado que sou, não vejo meio de me libertar da minha presente desgraça.
Prometeu pode ser um bom camarada, mas passa completamente ao lado do problema que preocupa Zeus — problema que, uma vez mais, ressurge sob aspecto muito próximo na ecologia contemporânea, e não por acaso, aliás, a imagem de Prometeu nela se mantém onipresente. Pois aos olhos de Zeus, a declaração de Prometeu soa como terrível confissão — e tudo que o filho do Titã Jápeto expõe a seu favor parece, do ponto de vista dos olímpicos, a mais terrível das acusações. O que a mitologia grega aqui põe em cena, com uma clarividência e profundidade impressionantes, é a definição totalmente moderna (Podemos encontrá-la no início da tradição humanista, com Pico della Mirandola, Rousseau, Kant e até Sartre) de uma espécie humana cuja liberdade e criatividade são fundamentalmente antinaturais e anticósmicas. O homem prometeico é o homem da técnica, capaz de criar, inventar de maneira incessante, fabricar máquinas e artifícios capazes de um dia se libertarem de todas as leis do cosmos. É isso, muito exatamente, que Prometeu lhe dá, roubando o “gênio das artes”, ou seja, a faculdade de utilizar e até inventar todo tipo de técnica. Agricultura, aritmética, linguagem, astronomia: tudo isso serve ao homem para escapar de sua condição, se erguer com arrogância acima dos seres da natureza e, desse modo, perturbar a ordem cósmica ainda recente, que Zeus com tanta dificuldade conseguira construir! Resumindo, ao contrário das outras espécies vivas — aquelas das quais Epimeteu perfeitamente organizou a vida, de maneira a formar um sistema equilibrado e imutável, em tudo oposto ao que a humanidade formaria assim que estivesse capacitada às artes e às ciências —, a espécie humana é a única entre as mortais capaz de hybris, a única podendo, ao mesmo tempo, desafiar os deuses e perturbar e até mesmo destruir a natureza. E é isso, certamente, que Zeus não pode ver com bons olhos, ou o vê inclusive com um olho muito mau, se considerarmos as punições infligidas a Prometeu e aos humanos.
Daí a pensar em destruir a humanidade inteira, a distância é bem curta, e algumas narrativas mitológicas deram esse passo.
O dilúvio e a arca de Deucalião segundo Ovídio: destruição e renascimento da humanidade
Um fato fica bem-estabelecido: é inegável a tendência à hybris, que caracteriza a humanidade desde que adquiriu os tais novos poderes de criatividade, ligados às técnicas roubadas dos deuses por Prometeu. É constante a ameaça de cair no vício, com uma possibilidade cada vez maior de vir a cometer crimes contra a ordem justa. Vários mitógrafos antigos seguem (de forma mais ou menos deformada com relação a Hesíodo) o mito da idade de ouro com outro episódio famoso, o do dilúvio decidido por Zeus para destruir a humanidade atual e fazê-la renascer — exatamente como na Bíblia — a partir de dois justos: um homem, Deucalião, filho de Prometeu, e uma mulher, Pirra, filha de Epimeteu e Pandora. Os dois são descritos como seres simples e direitos, vivendo de acordo com diké, a justiça, e afastados da hybris que caracteriza o restante da humanidade caída em decadência. (3) O primeiro poeta a dar uma narrativa detalhada e completa do dilúvio — só se encontram antes algumas alusões aqui e ali, mas não suficientemente completas para constituírem uma história coerente — é Ovídio. No início de Metamorfoses, ele nos oferece uma versão plausível do mito e liga o episódio do dilúvio a um acontecimento particular que poderia ocorrer em nossa época, isto é, na idade de ferro, resultado direto da derrelição a que chegou a humanidade nesse período: trata-se do caso Licaão, um rei grego que tentou enganar Zeus de maneira abominável. Ovídio evoca ainda a existência de uma raça que, depois ou durante a idade de ferro, não se sabe, teria sido fabricada por Gaia com o sangue dos Gigantes fulminados por Zeus — para que a raça dos seus filhos não se extinguisse —, tendo dado a tais seres um “rosto humano”. Eles entretanto guardavam o traço indelével das suas origens, se caracterizando, antes de mais nada, pelo prazer em carnificinas e por não respeitarem os deuses.
Vamos dar uma olhada nessa narrativa do dilúvio e também supor que estamos na companhia da raça de ferro ou, pior ainda — se é que isso é possível —, dessa que saiu do sangue dos Gigantes fulminados por Zeus e, por conseguinte, vivendo em plena hybris. Zeus, avisado de que o comportamento dos humanos se revelava calamitoso, resolve dar um giro de fiscalização pela terra para ver até que ponto a humanidade havia decaído. E o que ele vê? Que a situação é ainda pior do que lhe descreveram! Em todo lugar reinam assassinos, ladrões, homens que menosprezam a ordem do mundo instaurada pelos deuses. Para poder observar por si mesmo, com tranquilidade e sem correr o risco de receber uma impressão errada por ter sido reconhecido, Zeus assume uma aparência humana e perambula de um lado para outro pela terra. Acaba chegando à Arcádia, onde reina um tirano chamado Licaão (o que, em grego, significa “lobo”). E revela ao povo da região ser um deus que descera à terra. Impressionado, o povo reza. Mas Licaão, pelo contrário, desanda a rir. E seguindo o esquema que encontramos várias vezes, à semelhança do episódio de Tântalo, ele resolve desafiar Zeus para confirmar se, de fato, como pretende, ele é um deus ou, pelo contrário, um simples impostor.
Licaão decide matar Zeus durante o sono, mas antes de executar esse intento funesto, degola um infeliz prisioneiro que o rei de um povo denominado molosso havia deixado como refém. Corta-o em pedaços, ferve alguns, assa outros e acha ótima ideia servir tudo isso como jantar para Zeus! É um erro fatal, pois como já acontecera com Tântalo, Zeus percebe e compreende tudo. O raio é acionado, e o palácio de Licaão desmorona sobre a sua cabeça. O tirano, entretanto, consegue escapar, e Zeus o transforma em lobo — e vemos Licaão, sempre cruel, com os olhos animados por paixão sanguinária, dirigir seu ódio contra os outros animais, tornando-se seu mais feroz predador. Veja como Ovídio descreve essa cena, no início de Metamorfoses — que cito ainda no mesmo espírito, para que se dê conta do estilo e com quanta vivacidade os mitos eram contados naquela época. É Zeus quem fala, na primeira pessoa. Ele já se encontra no Olimpo, depois de convocar todos os deuses para uma assembleia extraordinária. Conta a eles sua experiência, anunciando estar disposto a destruir a raça humana, e expõe os motivos de tal decisão. Como sempre, ponho meus próprios comentários entre parênteses:
Durante a noite, enquanto eu dormia um sono profundo, Licaão se preparava para me surpreender e matar; vejam com qual prova ele queria saber a verdade (quer dizer, confirmar se Zeus é de fato um deus). Mas achou que não era ainda o bastante. Com a espada, cortou a garganta de um dos reféns que lhe tinha enviado o povo molosso. Em seguida, ferveu uma parte ainda palpitante dos membros em água quente para torná-la mais macia e fez grelhar outra parte diretamente no fogo. Mal terminou de pôr a mesa, meu raio vingativo desmoronou sobre ele o palácio [...] Tomado de pavor, ele fugiu e, ganhando o campo silencioso, começou a uivar; pois foi em vão que tentou falar; toda a raiva contida em seu coração passou a se concentrar na boca; sua habitual sede de matança agora se dirige a rebanhos, de forma que continua ainda a se satisfazer no sangue [...] Suas roupas se transformaram em pelos, os braços se tornaram patas, mas ele conserva ainda traços do seu antigo aspecto. Mantém o mesmo pelo grisalho, o mesmo ar cruel, os mesmos olhos febris, e nada perdeu da atitude feroz. Abati com meu raio uma única casa, mas muitas merecem o mesmo fim! Pois sobre a terra inteira reina a furiosa Erínia (quer dizer, você se lembra, uma das deusas da vingança — significando haver crimes à solta a serem punidos). Mais parece uma conjuração para o crime! Não vamos mais esperar. Que todos os homens sofram — é a minha decisão irrevogável — o castigo que bem merecem.
 
 E o castigo, como você deve ter adivinhado, é o dilúvio. Zeus imagina, por um instante, destruir a humanidade com sua arma favorita, já utilizada contra Licaão, o raio, mas desiste. A destruição necessária é tamanha — a terra inteira precisa se livrar do gênero humano corrompido — que o braseiro talvez ganhasse proporções enormes, podendo muito bem incendiar o universo inteiro e queimar o próprio Olimpo. À água, então, recorreria Zeus, e por ela a humanidade vai morrer. Zeus toma o cuidado de esconder os ventos que afastam as nuvens — aqueles que, consequentemente, como o mistral mediterrânico, trazem dias bonitos, secos e quentes. Em contrapartida, espalha, como cães cruéis de matilha, ares úmidos e pesados, de tenebrosas nuvens carregadas de água que começa a cair do céu com gotas grossas e densas. Para que tudo se encaminhe da melhor forma, pede também que Poseidon (Netuno) bata no chão com seu tridente, fazendo os rios saírem dos seus leitos e também as ondas do oceano se agitarem. Em pouco tempo, a terra inteira fica coberta d’água. Veem-se, segundo Ovídio, focas de corpo informe substituírem as cabras nos campos, golfinhos ligeiros entre as árvores, lobos nadarem com ovelhas, ao lado de leões de pelo fulvo, todos pensando apenas em salvar as próprias peles. As filhas de Nereu, um dos deuses do mar, se encantam descobrindo cidades inteiras ainda intactas sob as águas... Homens e animais, enfim, todo o pequeno mundo de mortais acaba sendo tragado. Até os pássaros morrem; cansados de voar sobre um mar sem limites, eles acabam desistindo e sendo também tragados. Aqueles que, de uma maneira ou de outra, escapam, mais cedo ou mais tarde morrem de fome — pois evidentemente não resta mais alimento algum para que sobrevivam.
Todo mundo morre. Exceto dois seres, dois humanos que Zeus teve o cuidado de preservar — e mais uma vez estamos bem próximos do mito bíblico. Pois no momento em que anuncia a decisão de destruir a totalidade do gênero humano, a assembleia dos deuses, na verdade, fica dividida. Uns apoiam e até agravam a vontade exterminadora. Mas outros, pelo contrário, lembram que a terra, sem os mortais, pode se tornar bem tediosa e vazia. Deixariam aquele lugar maravilhoso apenas para os animais selvagens? Além disso, quem vai cuidar dos altares, fazer sacrifícios, homenagear os deuses, se não houver mais homens para isso? A verdade — e eu é que acrescento, pois está apenas subjacente no texto de Ovídio — é que, sem os homens, o cosmos inteiro está destinado a morrer!
E de novo abordamos um dos temas mais profundos da mitologia: se a ordem cósmica fosse perfeita, caracterizada por um equilíbrio imutável e sem falhas, o tempo simplesmente pararia, isto é, a vida, o movimento, a história, e não haveria, inclusive para os deuses, nada mais a se ver nem fazer, ficando claro que o caos primordial e as forças que ele não para de engendrar de vez em quando não podem nem devem jamais desaparecer totalmente. E a humanidade, com todos os seus vícios e, principalmente, com a sucessão infinita de gerações que isso implica, desde o envio de Pandora e da morte “de verdade” para os homens, é indispensável à vida. Magnífico paradoxo que se pode formular da seguinte maneira: não há vida sem morte, não há história sem sucessão de gerações, não há ordem sem desordem, não há cosmos sem um mínimo de caos. Por esse motivo, apesar das objeções que lhe fazem alguns deuses, Zeus prefere poupar dois humanos. Por quê? Simplesmente para que a humanidade possa reviver. Quais? Dois seres excepcionais, para que a espécie pelo menos reinicie a partir de bases sólidas e sadias. Excepcionais não significa que sejam “grandiosos”. Pelo contrário, seres simples, mas, como se diz, “honestos”. Têm o coração puro, vivem afastados da hybris, dentro dos princípios de diké, respeitando os deuses e a ordem do mundo. Quem são eles? Eu já disse os seus nomes: Deucalião e Pirra. E disse também que ele é um dos filhos de Prometeu. Hesíodo nunca diz quem é a mãe, nem Ovídio, mas pode-se supor, por Ésquilo, que talvez se trate de uma filha de Oceano, ou seja, uma Oceânida chamada Hesionê. Pirra, por sua vez, é filha de Epimeteu e Pandora. Em certo sentido, é a humanidade da idade de ferro que continua, mas recomeçando do zero, de um homem e uma mulher que, para todo o futuro que se abre, ou seja, para a nossa atual humanidade, podem ser considerados o primeiro homem e a primeira mulher.
Como irão povoar a terra? De maneira bem curiosa, que lembra os tempos primordiais, sem nada dever a Pandora — o que é preferível, se quiserem partir com o pé direito. Sozinhos, assustados, perdidos no universo gigantesco e deserto, Deucalião e Pirra, que tinham tido o cuidado de construir, como Noé, uma arca bem sólida, acostam, após nove dias de dilúvio ininterrupto, na região mais alta do monte Parnaso, que havia sido preservada das águas por vontade de Zeus. Ali, encontram encantadoras ninfas chamadas “coricianas” por habitarem uma gruta, Corícia, escondida no flanco do monte Parnaso, logo acima de Delfos. Eles visitam o santuário de Têmis, a outra deusa da justiça, e lhe dirigem orações: como sobreviver após a catástrofe e, principalmente, como, sozinhos, restaurar a humanidade perdida? Têmis se apieda e dá a seguinte resposta, bastante enigmática à primeira vista — como sempre, quando se trata de oráculos:
Afastem-se do templo, cubram a cabeça, desamarrem o cinto das suas vestes e joguem atrás das costas os ossos de sua avó.

Deve-se reconhecer, são recomendações bem estranhas, e nossos dois infelizes humanos se sentem completamente desorientados! O que a deusa quer dizer, de fato? Pensam, pensam e acabam compreendendo: cobrir a cabeça e soltar o cinto que prende as roupas é adotar a maneira ritual de os sacerdotes fazerem sacrifício aos deuses. Trata-se, então, de um sinal de humildade, de respeito — o contrário da hybris que levara a humanidade à perdição. Quanto aos ossos da avó, a indicação com toda evidência não sugere, como Deucalião e Pirra de início imaginam, a profanação de algum cemitério! A avó em questão é obviamente Gaia — na verdade, para ser mais preciso, a bisavó de Deucalião e Pirra, mãe de Jápeto, que é pai de Prometeu e Epimeteu, pais, por sua vez, dos nossos dois sobreviventes. E os ossos de Gaia, naturalmente, são as pedras. Bastava pensar. Emocionados, temendo terem compreendido mal, Deucalião e Pirra pegam mesmo assim algumas pedras e lançam-nas por cima dos ombros, para trás. Milagre! As pedras se amolecem. Misturando-se à terra, tornam-se carne, e algumas veias surgem na superfície dela, se enchendo de sangue. As lançadas por Pirra viram mulheres, as de Deucalião, homens, e todos trazem seu selo de origem: a nova humanidade será uma raça suficientemente firme, como a pedra da qual saiu, resistente ao cansaço e sólida como a rocha!

Mas ainda há os animais que também, todos, desapareceram no dilúvio. Muito felizmente, sob o calor do sol, a terra embebida d’água se aquece e, nessa lama morna “como o seio da mãe”, diz Ovídio, começam suavemente a nascer animais. Eles saem à luz, veem o dia e se desenvolvem: inúmeras espécies antigas, já conhecidas, e outras, pelo contrário, novíssimas.
O mundo volta a funcionar. A vida retoma seu fluxo, e a ordem cósmica escapa, finalmente, dos dois males que a ameaçavam: o caos, de um lado, que podia a qualquer instante ressurgir através daquela humanidade completamente mergulhada na hybris; de outro, o tédio da inércia e da vacuidade, caso as espécies mortais totalmente desaparecessem. Com isso, você pode perceber que somente aí a cosmogonia, a construção do cosmos, está verdadeiramente concluída.

É também nesse ponto que a questão crucial, aquela em que a mitologia beira a filosofia — o que é uma vida boa para os mortais? —, vai poder, enfim, se colocar em toda sua amplitude. E com Ulisses vamos poder começar a respondê-la em profundidade. Pois não basta se colocar sob o ponto de vista dos deuses, como fizemos até agora, incorporando a lógica da teogonia. Afinal, o que interessa a nós, humanos, é saber como nos situarmos em relação a toda essa edificação grandiosa. Admitamos, por hipótese, aceitar a visão grega do mundo, achar que o universo é globalmente harmonioso e ordenado, e que nós, seres acabados, estamos irremediavelmente destinados à morte: quais são, nessas condições, os princípios para uma vida boa? Além disso, esses dois dados básicos se tornam menos absurdos para nós, hoje, sendo inclusive bem atuais: com tudo bem considerado, é muito possível que o universo seja efetivamente ordenado como acham os gregos. A ciência contemporânea apoia, em inúmeros aspectos, essa visão. A cada dia, as descobertas da biologia e da física modernas nos levam a crer que simplesmente existem ecossistemas, que o universo é organizado, que evolui na direção de seres cada vez mais adaptados etc. Quanto à finitude, o desencantamento do mundo leva um grande número de pessoas, pelo menos nos países democráticos, a achar que a noção de imortalidade prometida pelas religiões é, no mínimo, duvidosa. A ideia, então, de que a sabedoria consiste em aceitar a hipótese de uma ordem cósmica, no coração da qual os mortais vivem por determinado tempo, é mais contemporânea do que nunca. Por essa razão, a viagem de Ulisses, passando claramente do ponto de vista dos deuses ao dos simples mortais e descrevendo a maneira como um ser humano particular pode e deve encontrar seu lugar no cosmos para chegar à vida boa, tem algo a nos dizer ainda hoje.

Tentemos entender melhor em que e por quê: é a questão inteira da sabedoria dos mortais que está em jogo e, acredite, isso vale bem a pena.
 
(Luc Ferry - A Sabedoria dos Mitos Gregos) 

NOTAS:
 
(1) Hesíodo chama também a idade de ouro de idade de Cronos, o que pode parecer estranho, tendo em vista a famosa guerra de Zeus contra os Titãs que acabei de contar. Mas deve-se dizer que, ainda segundo Hesíodo, apesar das más ações posteriores, Cronos foi bem ou mal o primeiro soberano, o primeiro senhor do cosmos, até ser vencido por Zeus e lançado no Tártaro. Aliás, diz também o final do poema, o senhor do Olimpo acaba inclusive perdoando o pai e até mesmo o reabilita.

(2)  Mas dou um resumo: a raça de prata, também diretamente criada pelos deuses do Olimpo, como a raça de ouro, não envelhece. No seu caso, entretanto, a juventude duradoura tem um significado bem diferente. Por cem anos os homens da raça de prata vivem como crianças. Isso quer dizer que não são adultos desenvolvidos, como os da raça de ouro, mas seres infantis que assim que chegam à maturidade vivem muito pouco tempo porque são dominados pela mais horrível das hybris, que imediatamente os leva à morte. Não somente são da mais extrema violência uns com os outros, mas também recusam cultuar os deuses e oferecer-lhes sacrifícios, render suas merecidas honras. Irritado com tal falta de diké e tanto desrespeito pela justa hierarquia dos seres, Zeus resolve fazê-los desaparecer. Pode-se dizer que esses homens se assemelham às más divindades; como Tífon ou os Titãs ao guerrearem os olímpicos, eles não buscam edificar uma ordem cósmica justa e harmoniosa. Pelo contrário, desprezam-na e se esforçam no sentido de sua destruição — e por isso Zeus é obrigado a se livrar deles. De modo oposto, os homens da idade de ouro correspondem a uma ordem do mundo bem-dirigida e bem-organizada sob a égide dos olímpicos — razão pela qual podem viver em perfeita harmonia com eles. Ao morrerem, os homens da idade de prata, por vontade de Zeus, também se transformam em demônios, mas demônios que, ao contrário dos anteriores, são soterrados como divindades más e “caóticas”, sob a terra, nas trevas. O que significa que são punidos. A terceira raça é a de bronze, que não se situa no mesmo nível que as duas primeiras. São seres limitados, que têm a existência reduzida, por assim dizer, a uma só e única dimensão da vida humana, a da pura violência guerreira. Nada sabem fazer além de lutar, e sua brutalidade é sem igual. São terríveis em força, possuem armas de bronze e até vivem em casas de bronze. Nada que seja caloroso ou confortável envolve a sua vida. Moram em lugares à imagem deles: metálicos, duros, frios e vazios. Considerando que a primeira raça corresponde às boas
divindades favoráveis ao cosmos, a segunda às divindades tenebrosas e caóticas, a terceira corresponde aos Gigantes; como estes, aliás, está destinada a uma morte anônima, morte que os gregos denominam “negra”, a morte mais horrível que pode haver para eles, pois reina nas trevas das profundezas da terra e da qual ninguém escapa, de modo algum. De tanto lutarem entre si, os homens de bronze acabam mutuamente se aniquilando, de forma que Zeus não precisa intervir para livrar o cosmos da sua presença. A quarta raça, a dos heróis, dedica-se também à guerra. Mas diferentemente dos homens da idade de bronze, praticam-na, se podemos assim dizer, com justiça, diké, com honradez e não na hybris que a pura violência constitui. Aquiles, Héracles, Teseu, Ulisses e Jasão, homens da idade heroica, seres tornados célebres por suas ações gloriosas e corajosas — e não anônimos como os de bronze —, são soldados, sem dúvida, mas, antes de tudo, são homens de honra, preocupados em respeitar os deuses e, finalmente, encontrar seu devido lugar no coração da ordem cósmica. Por isso esses heróis, que Hesíodo chama “semideuses”, são mais ou menos como os homens da idade de ouro. Também não morrem completamente. Os mais valorosos deles, tendo preenchido seu espaço de tempo, são colocados por Zeus num lugar magnífico, a “ilha dos bem-aventurados”, onde, sob a égide de Cronos liberto e perdoado pelo senhor do Olimpo, eles vivem como os homens da idade de ouro, sem precisar trabalhar, sem preocupações, sem doenças nem dores, numa terra de abundância que lhes fornece por conta própria o que é necessário para uma vida doce e feliz.

(3) Não há menção a esse episódio no texto de Hesíodo, e certamente se colocou o problema referente à época em que teria ocorrido esse famoso dilúvio. Apoiados em fontes tardias — provavelmente a Biblioteca de Apolodoro —, alguns sem discutir remetem a destruição da humanidade corrompida à idade de bronze. Porém, deve-se concordar que, dentro da perspectiva aberta por Hesíodo, essa hipótese não faz muito sentido, pois os homens da idade de bronze têm como característica essencial justamente a autodestruição, de tanto que se combatem. Assim sendo, Zeus não precisaria intervir para livrar o cosmos da sua presença. 

publicado às 23:57

Na obra de Hesíodo, que foi a primeira a fazer sua narração, o mito da idade de ouro se confunde com o das cinco idades ou, melhor dizendo e seguindo à letra o texto grego, das “cinco raças” humanas. Pois, antes de tudo, é disso que se trata: Hesíodo nos descreve cinco humanidades diferentes, cinco tipos humanos que se teriam sucedido no correr do tempo, mas que, a títulos diversos, podemos também achar que permanecem mais ou menos possíveis na atual humanidade.
O mito inteiro gira ao redor da questão das relações entre hybris e diké (Como Jean-Pierre Vernant mostrou de maneira magistral. É nele que me inspiro para o essencial da interpretação desses três mitos) traça uma linha divisória fundamental entre as vidas humanas em harmonia com a justiça e o cosmos ou, pelo contrário, as existências entregues à hybris, ao orgulho e ao descomedimento. Às vezes dizem que esse poema de Hesíodo foi inspirado por circunstâncias reais. Isso talvez seja parcialmente verdadeiro. Hesíodo acabava, em sua própria vida, de passar por terrível provação, uma grave divergência com o irmão, Perses, a quem o poema se dirige: em seguida à morte do pai, Perses teria exigido uma parte maior da herança familiar (pecando, desse modo, por hybris). Ele inclusive corrompe as autoridades encarregadas da condução do processo, para que lhe deem razão. Em tais condições, é normal que o poema que o irmão lhe dirige trate de justiça, de diké. Mas Hesíodo, juntando esse problema particular à teogonia e à cosmologia, amplia o tema, de forma que a obra não se limita, de maneira nenhuma, a tratar do seu caso pessoal. Pelo contrário e de maneira geral, partindo da perspectiva que é a da ordem cósmica organizada sob a égide dos deuses, ele entra na questão da oposição entre a vida boa, uma vida em acordo com a diké, e a vida má, a vida submetida à hybris. Entretanto, apesar da aparência de um tratado de moral, o poema de Hesíodo vai muito mais longe. Ele é o primeiro a abordar a questão que nos interessa primeiramente após a cosmogonia e a teogonia, depois do nascimento do mundo e do nascimento dos deuses: o nascimento da humanidade tal como a conhecemos hoje. A meta fundamental, para nós mortais, é compreender por que estamos aqui e o que vamos poder fazer nesse mundo divino e ordenado, é verdade, mas no qual nossa existência mortal tem apenas, ao contrário da dos deuses, um tempo bem curto, que precisamos preencher da melhor forma que pudermos.
Vou começar contando, de modo sucinto, o mito das cinco raças e depois veremos, mais demoradamente, os sublimes mitos de Prometeu e de Pandora, a primeira mulher, antes de tentarmos enfim perceber os significados que têm essas narrativas fundamentais, em termos de sabedoria de vida para os seres humanos.
O mito da idade de ouro e as
“cinco raças” humanas
No início, então, temos a idade de ouro, uma época feliz ao extremo, pois os homens vivem ainda em comunidade de bom entendimento com os deuses. Nessa época, eles são fiéis à diké, são justos. Isso significa que se abstêm da importuna hybris, que leva as pessoas a quererem mais do que lhes cabe e assim ignorar, ao mesmo tempo, o que elas são e em que consiste a ordem do mundo. Nessa época, conta ainda Hesíodo, os homens dispõem de três privilégios maravilhosos, privilégios com os quais, tenho certeza, ainda hoje você gostaria de poder contar. Em primeiro lugar, não têm necessidade alguma de trabalhar para ter uma profissão, nem mesmo para se sustentar. A natureza é tão generosa que por conta própria lhes dá — como no Jardim do Éden, o famoso paraíso perdido do mito bíblico de Adão e Eva — todo o necessário para viverem agradavelmente: os frutos mais deliciosos da terra, rebanhos gordos e em quantidade, fontes de água fresca e rios acolhedores, um clima suave e constante, ou seja, eles têm o que comer, beber, vestir e aproveitar a vida sem preocupação alguma. Além disso, não conhecem o sofrimento, nem a doença, nem a velhice e, desse modo, vivem protegidos dos males que em geral, estragam a vida humana, amparados das desgraças que se abatem sobre cada um de nós, quase cotidianamente, nos dias atuais. E por fim, apesar de serem mortais, pode-se dizer que eles morrem “o menos possível”, sem dor nem aflição, “como se caíssem no sono”, diz Hesíodo. Se eles “quase não são mortais” é porque, simplesmente, não têm medo dessa morte que chega num piscar de olhos, sem fazer história, de forma que se sentem bem próximos dos deuses, com os quais, aliás, compartilham a vida cotidiana.
Quando tal raça, um dia, acaba desaparecendo, “oculta pela terra”, na expressão de Hesíodo, esses homens, na verdade, não morrem completamente. Tornam-se o que os gregos denominam daemon. Preste atenção, porém, a palavra não tem para eles nada do sentido negativo que acabou ganhando na tradição cristã e com o qual estamos hoje em dia habituados; pelo contrário, são espíritos amigos e justos — comparáveis, se quisermos continuar a analogia com a tradição cristã, a “anjos da guarda” —, capazes de distinguir entre hybris e diké, entre o mal e o bem, entre o descomedimento e o justo. Graças a esse notável discernimento, eles recebem de Zeus o insigne privilégio de dividir as riquezas em função das boas e das más ações dos homens. Percebe-se que mesmo após a morte esses seres continuam, de certo modo, a viver e a viver bem, uma vez que, transformados em daemons/anjos da guarda, eles se mantêm entre os vivos, sobre a terra e não embaixo, nas trevas, como os maus que são punidos pelos deuses (1)
Vem então a idade de prata, com o reino de uma raça de homens pueris e maus, seguida pela idade de bronze, também detestável, povoada por seres terríveis e sanguinários, e depois a idade dos heróis, guerreiros, mas valorosos e nobres, que terminam seus dias na “ilha dos bem-aventurados”, onde a vida em tudo se parece com aquela da idade de ouro. Deixo de lado essas descrições (2) e parto diretamente para a última idade, a idade de ferro, quer dizer, nossa época e nossa humanidade. E quanto a isso, dessa vez a descrição de Hesíodo é, por assim dizer, apocalíptica. O período, com certeza, é o pior de todos. Nessa idade de ferro, os homens não param de penar e de sofrer; para eles, não há alegria alguma que não venha acompanhada por dor, favor nenhum que não implique, como o reverso da medalha, um mal. Os homens não somente envelhecem a toda velocidade, mas ainda precisam trabalhar duramente para ganhar o seu sustento. E estamos apenas no início dessa era; as coisas podem piorar. Por quê? Simplesmente porque essa humanidade vive em hybris, em completo descomedimento, não se limitando mais, como no caso dos homens de bronze, à brutalidade guerreira, mas contaminando todas as dimensões da existência humana. Tomada por inveja, ambição e violência, ela não respeita a amizade, os juramentos nem a justiça, sob forma alguma, de modo que os homens correm o sério risco de ver os últimos deuses a ainda viver na terra e em sua proximidade partirem em definitivo para o Olimpo. Estamos nos antípodas da bela idade de ouro, quando os seres humanos viviam em comunidade amiga com os deuses, sem trabalhar, sem sofrer e (quase) sem morrer. Os homens dessa idade decadente se encaminham para a catástrofe; se insistirem nesse caminho, como a rixa com o irmão fez Hesíodo acreditar, não haverá sequer o bem no reverso da medalha, mas apenas o mal dos dois lados e, no final de tudo, a morte sem remédio. São as últimas e devastadoras misérias da vida tomada pela hybris, a vida em desacordo com a ordem cósmica e (é tudo uma coisa só) a existência sem respeito pelos deuses.
Esse mito levantou inúmeras questões e continua ainda a levantar. Ocasionou uma incrível pluralidade de interpretações. Mas uma, dentre todas as outras, se realça com uma espécie de evidência: como e por que a humanidade passou da idade de ouro à idade de ferro? De onde vem tal declínio, tal derrelição? Assumindo outra linguagem, a da Bíblia — que neste caso se encaixa perfeitamente —, como explicar essa “expulsão” de um “paraíso” para sempre perdido? São essas, justamente, as interrogações que os mitos de Prometeu e de Pandora, inseparáveis um do outro, respondem diretamente. Mais uma vez, deixemo-nos guiar pelos dois poemas de Hesíodo, Teogonia e Os Trabalhos e os Dias, antes de evocarmos algumas apresentações diferentes e mais tardias da mesma narrativa mítica, principalmente as de um filósofo, Platão, e um trágico, Ésquilo.

O “crime” de Prometeu e sua punição com o envio à terra de Pandora, a primeira mulher e “maior infortúnio para os homens que trabalham”
Ao lermos o poema de Hesíodo, compreendemos facilmente que os mitos de Prometeu e de Pandora tentem explicar os motivos da passagem da idade de ouro para a idade de ferro. São eles que, pondo entre parênteses as três idades intermediárias, procuram mostrar como a humanidade passou de um extremo a outro. É claro, tal passagem parece, à primeira vista, catastrófica. No entanto, é de nós que se trata, de nosso lugar singular, totalmente original no coração do universo dos elementos e dos deuses. E é a partir desse lugar que será preciso colocar o problema da existência humana, do caminho que precisamos buscar e, se possível, encontrar, nesse mundo. É impossível refletir sobre a sabedoria dos mortais sem levar em consideração sua situação única, mesmo que à primeira vista desastrosa, no meio do cosmos.
Para compreender bem tudo isso, preciso lhe falar um pouco do personagem que tem aqui o papel principal, ou seja, Prometeu. Ele frequentemente é apresentado como um dos Titãs. A verdade é um pouquinho diferente, pois ele não pertence à geração de Cronos. Na realidade, é apenas filho de Titãs. Mais precisamente, um filho de Jápeto (um dos irmãos de Cronos) e de Climena, uma linda oceanina “de belos tornozelos”, isto é, uma das inúmeras filhas do mais velho dos Titãs, Oceano. Em grego, o nome Prometeu tem um significado bem eloquente. Quer dizer “aquele que pensa antes”, isto é, aquele que tem astúcia e inteligência, como, por exemplo, dizemos de um jogador de xadrez que está sempre “uma jogada à frente” do adversário. Ele tem três irmãos cujos destinos são funestos — sem dúvida por sequelas da guerra de Zeus contra os Titãs, que fez com que a prole destes últimos não vivesse propriamente numa atmosfera de santidade: primeiro Atlas, condenado por Zeus a sustentar o céu na sua cabeça, com a ajuda dos seus braços “incansáveis”; depois Menoitios, a quem o senhor do Olimpo rapidamente fulmina, por achá-lo arrogante, cheio de hybris e meio intrépido demais para não ser perigoso; e finalmente Epimeteu. O nome Epimeteu também tem um significado, mas exatamente o inverso do de Prometeu. Em grego, pro quer dizer “antes” e epi, “depois”. Epimeteu é aquele que só pensa “depois”, que age sem refletir e está sempre uma jogada atrás, o lerdo que em francês se diz ter um “espírito de escada”, quer dizer, lento e pesadão. Ele se torna o principal instrumento da vingança de Zeus contra Prometeu e contra os homens — vingança que, justamente, vai fazê-los passar da idade de ouro para a idade de ferro. Mas não vamos antecipar as coisas.
No momento em que começa a cena que nos interessa, estamos numa vasta planície, onde os homens vivem ainda em perfeita harmonia com os deuses: a planície de Meconé. Pelas próprias palavras de Hesíodo, eles ali vivem “protegidos, distante dos infortúnios, sem trabalhar duramente, sem sofrer as tristes doenças que fazem com que os homens morram” e “cedo envelheçam na infelicidade”. Pode-se facilmente reconhecer, na descrição, a idade de ouro. Era ainda a boa época. Um dia, por algum motivo que Hesíodo não diz, Zeus resolve “acertar as pendências entre os homens e os deuses”. Na verdade, trata-se de dar continuidade à construção do cosmos; assim como Zeus repartira convenientemente o mundo entre seus pares, os deuses, reservando-lhes os respectivos e justos lugares, distribuindo, como diria mais tarde o direito romano, “a cada um o seu”, da mesma maneira é preciso decidir qual parte do universo cabe aos humanos, qual, por assim dizer, será o lote dos mortais. Pois, nesse momento, é do que se deve tratar. Com esse intuito, para claramente determinar o que, de um lado, passa a ser dos deuses e, do outro, dos homens, Zeus pede a Prometeu que sacrifique um boi e o reparta de maneira justa, para que tal divisão sirva, de certa maneira, como modelo para as futuras relações entre deuses e homens.
É então gigantesco o que está em jogo, e Prometeu, acreditando fazer o bem, com a finalidade de ajudar os homens — dos quais, dizem, sempre tomara a defesa contra os olímpicos, talvez por ser descendente dos Titãs e, como tal, nem tão amigo dos deuses da segunda geração —, tenta enganar Zeus: ele separa duas metades e coloca sob o couro do animal os bons pedaços de carne, os pedaços que os homens gostariam de comer. O couro, é claro, não é bom de se comer, e para garantir o golpe e ter certeza de que essa primeira metade seria bem repugnante e não pudesse ser escolhida por Zeus como a parte destinada aos deuses, ele a enfia inteira no estômago pouco apetitoso do boi sacrificado. Por outro lado, ele amontoa os ossos brancos, meticulosamente limpos e consequentemente incomíveis para os homens, arrumando-os delicadamente sob uma bela camada de gordura bem lustrosa e apetitosa! Lembro que Zeus, já tendo devorado Métis, a astúcia, é o deus mais inteligente de todos e não poderia cair na artimanha de Prometeu. Ele muito evidentemente a percebe e, mesmo louco de raiva com a tentativa, finge cair na armadilha — já saboreando a terrível vingança que prepara contra Prometeu e, no mesmo embalo, contra os humanos que o deus acredita estar inteligentemente favorecendo nessa negociata. Zeus escolhe então o monte de ossos brancos escondidos sob a gordura lustrosa e deixa os bons cortes de carne para os humanos.
Note, de passagem, que  (É um tema muito precisamente esclarecido por Vernant, uma vez mais) Zeus não chega a fazer qualquer esforço ao deixar a carne para os homens, e por um excelente motivo: os deuses do Olimpo nunca comem carne! Eles exclusivamente comem e bebem ambrosia e néctar, os únicos alimentos que convêm aos Imortais. É um ponto capital que, por si só, já anuncia boa parte das misérias futuras da humanidade que sai da idade de ouro por culpa de Prometeu. Somente quem está fadado a morrer precisa se alimentar com carne e pão, por exemplo, que regeneram as forças. Os deuses se alimentam por prazer, por diversão, apenas pela delícia dos pratos; os homens se alimentam antes de tudo por necessidade e, se não se alimentarem, morrem ainda mais rapidamente do que, de qualquer maneira, vai acontecer um dia ou outro. Deixar a carne para os humanos e dar os ossos aos deuses é, na verdade, confirmar o fato de que eles são mortais, rapidamente cansados pelo trabalho, sempre em busca de alimento, e na falta disso definham, sofrem, adoecem e morrem muito rapidamente de fome — coisas que os deuses, evidentemente, ignoram.
Mesmo assim, Prometeu tentara enganá-lo para favorecer os homens, é o que pensa Zeus, furioso. Para puni-los, não lhes dá mais o fogo que vem do céu, com o qual os homens se aquecem e, principalmente, cozinham a comida de que precisam para viver. Para os gregos, o cozimento é um dos sinais da humanidade do homem, o que mais clara e exatamente o situa entre os deuses e os animais, pois os deuses não precisam se alimentar, e os animais comem alimentos crus. E a humanidade perde essa sua especificidade quando Zeus lhes retira o fogo. Pior ainda, com uma segunda punição, “Zeus”, diz Hesíodo de maneira um tanto enigmática, “tudo escondeu”.Na verdade, seu significado é que em vez dos frutos da terra se oferecerem em plena luz e em qualquer estação ao apetite do homem, como na idade de ouro, os grãos passam a estar enterrados e será preciso trabalhar para tirar da terra alimentos consumíveis. Torna-se necessário lavrar e semear para que o trigo germine, e depois ceifar, moer e assar para fabricar o pão. Ou seja — e é um ponto crucial —, com o nascimento do trabalho, atividade das mais desagradáveis, começa a expulsão do mundo paradisíaco.
Por isso Prometeu comete um segundo desvio, um segundo crime de lesa-majestade: ele simplesmente rouba de Zeus o fogo e o entrega aos homens! A fúria do senhor do Olimpo sobe ao extremo, com sua ira sem limites. Para esperteza, esperteza e meia; ele resolve também inventar uma armadilha — e que armadilha — para punir os protegidos de Prometeu, os homens! Manda que Hefesto fabrique com urgência, usando água e terra, a estátua de uma jovem “que todos amem”, uma mulher pela qual os imbecis humanos se apaixonem loucamente! Toda uma plêiade de deuses dão a ela um talento, uma graça, um charme: Atena ensina a arte de tecer, Afrodite oferece a beleza absoluta e o dom de suscitar o desejo “que faz sofrer” e provoca “a inquietação que deixa prostrado o homem”. Ou seja, Pandora, pois é dela que se trata, é a sedução em forma de mulher. Hermes, o deus da comunicação e do comércio, que é astucioso, mas também sedutor e meio trapaceiro quando necessário, acrescenta um “coração de cadela e maneiras sonsas”. Ou seja, a jovem em questão sempre haverá de querer, como explica Hesíodo, “mais do que o bastante” — é o que significa esse “coração de cadela”. Ela será insaciável, em todos os sentidos: comida, dinheiro, presentes, sempre querendo mais, mas também, é claro, em matéria sexual, com um apetite igualmente ilimitado. Seu gozo, potencialmente, nunca acaba — no que se refere àquilo em que o homem, diga ele o que disser para parecer mais interessante, logo se sente esgotado. Quanto às “maneiras sonsas”, isso significa que Pandora pode seduzir qualquer um, pois tem todos os argumentos, todas as manhas e as mais deliciosas mentiras. Para completar o quadro encantador, Atena a enfeita com roupas sublimes, Hefesto confecciona para ela um diadema de inimitável sofisticação, outras divindades, como as Graças, chamadas Horas, filhas de Zeus e Têmis, a deusa da persuasão, lhe concedem também alguns dons, de forma que no final, como Zeus com um riso perverso diz para si mesmo, os infelizes humanos nada vão poder, rigorosamente nada, contra tal armadilha, contra essa “peste para os homens que trabalham”, contra essa mulher sublime em aparência, temível na realidade, que vai “alegrar-lhes o coração” a ponto de, “tão contentes”, os bobalhões “apreciarem o próprio mal”.
Não deixe de notar a semelhança entre a astúcia de Prometeu e a de Zeus. Termo a termo elas se confrontam; como sempre, no cosmos harmonioso, a punição deve corresponder ao erro. Prometeu tenta enganar Zeus servindo-se das aparências — disfarçando ossos incomíveis sob a gordura apetitosa e, inversamente, escondendo a boa carne no horrível estômago do boi? Não há de ser nada! Zeus também utiliza a miragem das ilusões. Pandora tem toda a aparência externa de uma promessa de felicidade, mas, no fundo, é a rainha das dissolutas, podendo ser tudo, menos um presente!
A moça deslumbrante, pura fatalidade, tem um nome — “Pandora” — ao mesmo tempo esclarecedor e muito enganador. Significa em grego: aquela que tem todos os dons — porque, diz Hesíodo, “todos que tinham sua casa no Olimpo lhe concederam um dom” —, a menos que signifique, como acham alguns, “aquela que foi dada aos homens por todos os deuses”. Pouco importa, aliás. Fato é que as duas leituras são boas: Pandora aparentemente tem todas as virtudes possíveis e imagináveis, pelo menos em termos de sedução (ou de moral, coisa que, como você sabe, é algo bem diferente). Além disso, foi de fato enviada aos homens pelo conjunto dos olímpicos, que os querem punir.
Zeus, então, dá vida à sublime criatura e, em seguida, pede a Hermes que a conduza a Epimeteu, o bobo que primeiro age e depois pensa, quando já é tarde demais e o mal está feito. Prometeu, no entanto, havia prevenido o irmão; dissera-lhe que não aceitasse, sob pretexto algum, um presente dos deuses do Olimpo, pois sabe que eles querem se vingar dele e também dos homens. Mesmo assim, é claro que Epimeteu cai na esparrela e se apaixona como um louco por Pandora. Não apenas dela nascerão outras mulheres que, como ela, irão arruinar, em todos os sentidos da palavra, a vida dos homens, mas, além disso, ela ergue uma estranha “jarra” (que na mitologia logo se chamará “caixa de Pandora”) dentro da qual Zeus se dera o trabalho de colocar todos os males, todas as desgraças e todos os sofrimentos que devem se abater sobre a humanidade. Apenas a esperança fica presa no fundo do funesto recipiente! E isso pode ser interpretado de duas maneiras. Pode-se primeiro achar que os humanos não poderão sequer se agarrar a alguma esperança, visto que ela não saiu da caixa. Pode-se também entender, o que me parece mais adequado, que a eles resta a esperança, o que está longe de ser uma vantagem concedida por Zeus. De fato, não se engane: a esperança, para os gregos, não é um bom presente. É inclusive uma desgraça, uma tensão negativa, pois esperar é continuar carente, é desejar o que não se tem e, consequentemente, estar de certa maneira insatisfeito e infeliz. Quem espera se curar é porque está doente, quem espera ser rico é porque é pobre, de forma que a esperança é mais um mal do que um bem. Seja como for, cito como Hesíodo descreve a cena em Os Trabalhos e os Dias. Vou transcrevê-la, pois ela claramente indica os laços que unem nossos três mitos (e faço alguns comentários entre parênteses):
Prometeu, no entanto, tinha-lhe dito (a Epimeteu, então) que nunca aceitasse um presente de Zeus Olímpico e o devolvesse, temendo que algum mal se abatesse sobre aqueles que morrem (os mortais = os homens). Mas ele (ainda Epimeteu) aceitou e, mal teve nas mãos o seu infortúnio, compreendeu (como pode ver, ele compreende atrasado, tarde demais). Naquele tempo, as tribos de homens viviam na terra protegidos, distante das infelicidades, sem trabalhar duramente, sem sofrer tristes doenças que fazem os homens morrer (temos aqui o mito da idade de ouro e, como se pode também observar, é com a vinda de Pandora que os homens saem desse período); os que têm que morrer cedo envelhecem na infelicidade [...] A mulher, então, com as suas mãos, erguendo a tampa da jarra, espalhou o mal entre os homens, causando-lhes penas cruéis (essa jarra logo se torna a famosa “caixa de Pandora”, Hesíodo não diz de onde veio nem como chegou, mas o certo é que Zeus foi quem a encheu com seu detestável conteúdo). Somente a esperança permaneceu em sua casa indestrutível no interior, para aquém das beiradas da jarra, sem escapar para fora; pois antes disso a tampa voltou a fechar a jarra, como era a intenção de Zeus da
égide (a palavra vem do grego aigos, que quer dizer cabra e designa o célebre escudo de Zeus, fabricado com a pele da cabra Amalteia, que dizem ser impossível de se perfurar com flechas). Com isso, 10 mil sofrimentos se espalharam entre os homens (pois Zeus tinha posto na “caixa de Pandora” todos os males possíveis e imaginários para punir os homens — doenças de todo tipo, dores diversas, medo, velhice, morte etc.); a terra está repleta de infelicidade, o mar também; as doenças entre os homens, algumas durante o dia, outras à noite, viajam por capricho próprio, trazendo aos homens o infortúnio sem nada avisar, pois Zeus, prudente, tirou-lhes a voz (todos esses males nos caem em cima sem que possamos prever nem prevenir). Não é possível, então, se esquivar do que planejou Zeus (quer dizer, punir os humanos mortais).
Aí temos como, então, por causa de Pandora, ou por ela, saímos da idade de ouro.
A essa punição terrível, que parece apenas de forma indireta visar a Prometeu, pois não o atinge pessoalmente e sim a quem ele queria defender e proteger, isto é, os humanos, se acrescenta outra que, agora sim, concerne diretamente ao filho de Jápeto: ele é dolorosamente acorrentado no alto de uma montanha, e Zeus todos os dias envia uma gigantesca águia para lhe devorar o fígado. Pois o fígado de Prometeu é imortal e volta a crescer à noite, de forma que o suplício atroz pode recomeçar de maneira incessante. Mais tarde, muito mais tarde, Prometeu seria, por fim, liberto por Héracles. Uma lenda tardia, bem posterior ao texto de Hesíodo, conta que Zeus chega a jurar pelo Estige — um juramento impossível de se desfazer — que nunca soltaria Prometeu do seu rochedo. Mas Zeus tem muito orgulho das façanhas de seu filho, Héracles, e não quer desaprová-lo. Para também não se contradizer, Zeus aceita que Prometeu seja liberto, mas deveria sempre carregar consigo um pequeno pedaço de pedra daquele rochedo, preso num anel! Dizem que esse pequeno arranjo com o céu deu origem a uma das nossas joias mais comuns: o anel enfeitado com uma pedra preciosa.
Mas voltemos aos humanos e à sua nova condição, claramente delineada pelo mito de Pandora. Podemos tirar daí três lições que você deve agora tentar compreender e guardar, para melhor apreciar o que virá depois.
Três lições filosóficas dos mitos de Prometeu e Pandora
Primeiro, se Pandora for de fato a primeira mulher, como Hesíodo insiste, isso quer dizer que na época da idade de ouro, antes da famosa divisão do boi feita por Prometeu em Meconé, os homens então viviam sem mulheres. De certo havia já feminilidade no mundo, bem-representada por uma miríade de divindades femininas, mas os mortais eram exclusivamente masculinos. O que implica, em consequência, que eles não nasciam pela união de um homem e uma mulher, mas apenas pela vontade dos deuses e por meios que estes escolhessem (é possível que diretamente da terra, como outras narrativas mitológicas nos levam a crer). O ponto é crucial, pois o nascimento a partir da união sexual do homem com a mulher vai tornar os mortais realmente mortais. Você se lembra de que, na idade de ouro, eles não morriam por inteiro ou, melhor dizendo, morriam o menos possível; desapareciam de forma gradual, durante o sono, sem aflição nem sofrimento e sem nunca pensar na morte. Além disso, depois de desaparecerem, permaneciam de certa maneira em vida, pois se tornavam daemons, anjos da guarda encarregados de distribuir aos homens as riquezas, de acordo com o mérito de cada um. Com o surgimento de Pandora, os mortais se tornam totalmente mortais, e isso, por um motivo de real profundidade: é que o tempo, tal como o conhecemos, com sua sequência de males — velhice, doenças, morte —, realmente nasce. Você se lembra de Urano e, depois dele, Cronos, que não queriam deixar os filhos viver em pleno dia. Urano os deixava trancados no ventre de Gaia, a mãe, enquanto Cronos simplesmente os devorava até que a mãe de Zeus, Reia, enganando-o, lhe deu um engodo a engolir, uma pedra enrolada em panos, no lugar do filho. A verdadeira razão para tanta vontade de impedir que os filhos viessem à luz fica clara. Não se trata apenas de prevenir um eventual conflito no qual o rei em exercício poderia perder o poder, destronado pelos próprios herdeiros, mas, mais profundamente, trata-se de colocar obstáculos ao tempo, à mudança e, por conseguinte, impedir essa forma de morte que a sucessão das gerações simboliza. O cosmos ordenado e estável é o ideal para qualquer soberano precavido, e a filiação, a sucessão de filhos, implica sempre a ruína dessa bela permanência. Conclui-se que já a partir dali a abertura para a descendência passava a estar decididamente colocada. Vê-se com isso que as crianças ocupam uma posição no mínimo ambígua: nós as amamos, é claro, mas elas simbolizam também nossa perdição — o que mostra que os gregos parecem menos sentimentais e talvez um pouco menos simplistas do que nos tornamos hoje em dia.
Em segundo lugar, como na Bíblia, a saída da idade de ouro vem acompanhada por uma funesta calamidade: o trabalho. Dali em diante, de fato, será preciso que os homens ganhem seu pão com o suor do rosto, e isso por pelo menos duas razões. A primeira, eu já disse: Zeus “tudo escondeu”, ele enterrou no chão os frutos que servem de alimento ao homem, principalmente os cereais com os quais se fabrica o pão, de forma que ele vai precisar se esforçar para se alimentar. Mas há também a encantadora Pandora e, com ela, diz a Teogonia, da qual cito um pequeno trecho, “a raça e as tribos das mulheres, grande flagelo para os mortais”:
Elas moram com os homens e da pobreza maldita não querem a companhia (mais claramente, não aguentam a pobreza): precisam mais do que o bastante. É como nas colmeias, em que as abelhas engordam os zangões e tudo se passa desfavoravelmente para elas; o dia inteiro, até o pôr do sol, trabalham e fazem seus favos de cera branca, enquanto eles permanecem no fundo da colmeia. É a fadiga do outro que eles armazenam em suas panças.
Não é muito feminista, concordo, mas a época de Hesíodo não é a nossa. De qualquer forma, está terminada aquela bela idade de ouro em que os homens podiam todo dia rejubilar-se com os deuses e se alimentar com toda inocência, sem nunca se sacrificar às necessidades da dura labuta. Mas o pior, se podemos assim dizer, é que a mulher, evidentemente, não é um mal absoluto.
Seria simples demais, e essa é a terceira lição do mito: a vida humana é trágica nesse sentido de não haver o bem sem o mal. O homem, como quis Zeus com seu triste sorriso, é totalmente driblado, preso na armadilha sem saída possível. Pois se ele evita se casar, para que seu patrimônio não seja como o das abelhas, a quem Hesíodo o compara, devorado pelos zangões (a mulher que sempre quer mais do que o bastante), sem dúvida ele pode, mesmo trabalhando menos, acumular maior riqueza. Mas para quê? Para quem se daria a tanto trabalho? Sem contar que quando morrer, não tendo filhos, nenhuma descendência, as riquezas acumuladas acabarão nas mãos de vagos parentes distantes que pouco lhe interessam! Ele morre uma segunda vez, por assim dizer, pois, sem descendentes, nada seu sobreviverá. Um mortal à segunda potência, de certa forma! Ele tem, então, que se casar, se quiser herdeiros, mas novamente então a armadilha se fecha para ele — ao que se acrescenta ainda o fato de que os filhos podem ser maus, o que configura a pior das desgraças para um pai! Resumindo, num ou noutro caso, o bem vem inevitavelmente acompanhado de um mal ainda maior.
É claro, o texto de Hesíodo parece tremendamente misógino — e é por esse ângulo, por exemplo, que ele é lido na maioria das universidades americanas. As associações femininas que hoje prosperam no meio acadêmico certamente levariam Hesíodo à justiça, e ele com certeza seria condenado e proibido de ensinar. Mas podemos também entender que os tempos mudaram, que nossa época não é a de Hesíodo e que, para além das palavras que chocam, deve-se principalmente ligar o que ele diz à questão da morte. Pois essa, com toda evidência, é a infelicidade suprema que se abate sobre os homens que na idade de ferro não morrem mais, se posso assim dizer, como no bom e velho tempo da idade de ouro. À nova vida que a mulher dá — quando se passa do nascimento a partir da terra, decidido e organizado pelos deuses, ao nascimento por união sexual — corresponde uma nova morte, antecedida por sofrimentos, trabalhos, doenças e todos os males associados à velhice e que os seres humanos da idade de ouro desconheciam.
Por isso, de novo, impõe-se a questão crucial, subjacente a todo o universo da mitologia que vemos se estabelecer com Hesíodo: o que é uma vida boa para os mortais? Contrariamente ao que em seguida farão as grandes religiões, a mitologia grega não promete a vida eterna nem o paraíso. Apenas tenta, como a filosofia por ela anunciada, ser lúcida com relação à nossa condição. O que fazer senão viver em harmonia com a ordem cósmica ou então, se quisermos evitar a morte anônima, tentar ser célebre pela glória heroica? Como Ulisses, devemos nos convencer de que semelhante vida pode inclusive ser preferível à imortalidade.
Mas vejamos, por enquanto, o final da história, tal como foi imaginada ou pelo menos contada depois de Hesíodo.
Os motivos da expulsão da idade de ouro: o mito de Prometeu visto por Platão e Ésquilo
Tenho certeza de que com o senso de justiça que as crianças têm, você deve ter se perguntado: afinal, por que os humanos foram punidos por um crime que não cometeram? Houve hybris por parte de Prometeu, tudo bem, pois ele quis desafiar os deuses e enganá-los, escondendo os bons pedaços de boi sob aparência repugnante, e dando aos pedaços ruins um aspecto apetitoso. Mas o que fizeram de errado os homens, nesse caso específico? E por que seria assim tão necessário colocá-los em seu lugar de mortais, como fez Zeus, não tendo eles nada a ver com isso e sem culpa alguma? Ao contrário de alguns mitógrafos contemporâneos, pessoalmente sinto sempre um certo constrangimento em continuar, como se fosse normal, uma história contada por Hesíodo, no século VII a.C., completando-a com um texto escrito em um contexto totalmente diferente, mais de três séculos depois. No caso, o texto em que Platão trata do mito de Prometeu, em seu diálogo intitulado Protágoras — nome de um dos maiores sofistas da sua época. Não é por nos dirigirmos a um público
mais amplo, incluindo crianças, que podemos fazer qualquer coisa. Mudam não apenas a época — três séculos não são pouca coisa! —, mas também o registro, pois passa-se da mitologia à filosofia. Com isso claramente especificado, o olhar filosófico de Platão, apesar de completamente diferente do de Hesíodo, propõe dos seus poemas uma perspectiva ao mesmo tempo esclarecedora e plausível: Prometeu não roubou apenas o fogo de Hefesto, roubou também, segundo Platão, as artes e técnicas de Atena, de forma que o homem corre o sério risco, um dia ou outro, de se achar igual aos deuses. E nesse caso a humanidade terá, sem sombra de dúvida, sua vez de pecar por hybris! É bem possível que já fosse o que estava em jogo, desde a planície de Meconé, no momento da divisão do boi sacrificado.
De fato, segundo Protágoras, pelo menos da maneira como Platão o põe em cena em seu diálogo, não se pode compreender direito o desacordo entre os homens e os deuses sem relembrar toda a história, voltando à época em que os homens ainda não existiam, época, então, em que na terra havia apenas deuses.
Um belo dia, por algum motivo que Protágoras não esclarece (quem sabe se entediavam sozinhos?), os deuses resolvem criar o conjunto dos mortais, isto é, animais e homens. Começam a trabalhar animados e fabricam com terra, fogo “e tudo que se pode misturar com a terra e o fogo” figurinhas, estatuetas de formas diversas. Antes de lhes dar vida, pedem a Epimeteu e a Prometeu que distribuam as diferentes qualidades para cada uma. Com insistência Epimeteu pede ao irmão que deixe para ele a parte inicial do trabalho — e começa com as espécies animais desprovidas de raciocínio. Qual o seu método? Epimeteu não é tão burro quanto se diz, e a distribuição das qualidades inclusive se passa de maneira bem hábil. Ele constrói um “cosmos”, um sistema perfeitamente equilibrado e viável, dando a cada espécie animal possibilidades de sobrevivência com relação às demais. Por exemplo, no caso de animais miúdos, como o pardal ou o coelho, ele dá ao primeiro asas para poder fugir dos predadores, e ao segundo, rapidez na corrida e tocas para se esconder em caso de perigo. Veja como Protágoras descreve o trabalho de Epimeteu:
De modo geral, sua distribuição consistiu em dar chances iguais. E em tudo que imaginava, seu cuidado foi o de evitar que alguma raça se extinguisse. Mas uma vez dados os meios para escapar das mútuas destruições, ele imaginou para todas uma defesa cômoda com relação às variações de temperatura que vêm de Zeus: vestiu-as com uma espessa pelagem ou também sólidas carapaças, que protegem do frio, mas são igualmente eficazes contra tórridos calores, sem contar que ao dormir isso constituiria também um cobertor próprio, fazendo parte de si mesmo. A determinada raça ele calçou com cascos córneos, outras, com garras sólidas e desprovidas de sangue. Em seguida escolheu alimentos diferentes para as diferentes raças: para algumas a relva brotando no chão, para outras, os frutos das árvores, para outras ainda, raízes; a algumas concedeu que sua alimentação fosse a carne de outros animais, mas atribuiu a estas uma fertilidade restringida, dando abundante fertilidade às que se despovoariam com isso, salvaguardando desse modo as suas espécies.
(continua)

publicado às 19:53

 

Aristóteles foi considerado por alguns como o maior de todos os filósofos da história, e, paradoxalmente, por outros, como o mais sério obstáculo para que o Ocidente superasse as trevas da Idade Média. A explicação para essa ampla gama de visões é relativamente simples, pois ele é autor de uma obra muito vasta que foi adaptada pela Igreja Católica no século XIII, por Tomás de Aquino e seu mestre, Alberto Magno, considerados duas sumidades intelectuais em sua época, referências maiores na chamada “tradição escolástica”13.

Assim, superar essa visão implicava afrontar uma hierarquia rígida e uma autoridade consolidada pelas estruturas do poder político da Europa. No entanto, para entender o que havia a superar, é necessário compreender de que maneira o conhecimento produzido por Aristóteles significou um avanço, principalmente em sua época, mas, também, como seu legado passou a impedir o florescimento e a aceitação das ideias modernas.

 

O jovem estagirita

Aristóteles nasceu em 384 a.C. na cidade de Estagira, na extremidade norte do mar Egeu, filho de um influente médico do rei da Macedônia. Aos 17 anos foi mandado para Atenas, e estudou com o maior filósofo da época, Platão, que fundara uma escola diante do bosque de Academos, um herói da mitologia grega, por isso conhecida como Academia. O jovem estudante se destacou a ponto de ser prezado como seu melhor aluno, o que não o impediu de divergir do mestre de maneira muito profunda. No entanto, isso mesmo era, de certa maneira, prova de seu aprendizado verdadeiro, pois uma das lições mais significativas de seu mestre Platão se referia a refletir sobre as convicções mais profundas. Ele, ao assim proceder, acabara por discordar de lições básicas.

Na base da filosofia platônica reside a concepção de que a concretização das coisas só pode se dar por meio de um empobrecimento de sua existência abstrata. Assim, o círculo pode ser perfeito em pensamento, mas um círculo construído em madeira, por exemplo, jamais será perfeito. Por consequência, a observação das coisas do mundo a fim de desenvolvermos nossas ideias sobre ele era vista, por Platão, como uma simples perda de tempo. Um pensamento, para ser verdadeiro, deveria ser perfeito, o que implicava abandonar o mundo das coisas concretas e imperfeitas como fonte de modelos para nosso pensamento. O “pensar correto” era condição de criação das coisas verdadeiras, e não sua tangência com o mundo real.

Aristóteles passou a discordar de seu mestre e atribuiu ao mundo concreto e real papel decisivo para desenvolver o pensamento. Logo se tornaria um professor conhecido e respeitado, o que o levou a ser indicado, em 342 a.C., preceptor do filho do então novo rei da Macedônia, que haveria de ser Alexandre, o Grande. Este sempre reconheceu os ensinamentos de seu professor, que o levaram a grandes conquistas militares, resultando em retribuições generosas para que o mestre continuasse a desenvolver suas pesquisas e escrever livros. Acredita-se que Aristóteles tenha escrito de quatrocentos a mil livros, embora poucos tenham sobrevivido até nosso tempo. Isso significa que, muito provavelmente, a escola que ele fundou, e que se chamava Liceu, tinha uma vasta equipe de colaboradores, que devem ter constituído a primeira equipe de pesquisa da história. Fala-se em centenas de homens, que viajavam aos mais remotos pontos do mundo conhecido à época, coletando e desenhando espécimes. Assim, não é de se estranhar que sua contribuição mais duradoura tenha sido no campo da Biologia, abarcando aproximadamente a terça parte dos escritos que chegaram até nós.

As descrições zoológicas de Aristóteles eram coerentes com a forma de pensamento que desenvolvera, tributário do de Platão embora essencialmente distinto. Por exemplo, o pé da galinha, o do pato e o do gavião são parecidos, mas profundamente diferentes. Para ele, era fácil entender a razão disso, pois o pé do pato tinha a finalidade de impulsionar o animal na água; o da galinha, na terra; e o do gavião tinha a finalidade de agarrar alimento. Diversos filósofos haviam discutido a razão de possuirmos mãos tão especiais. Para Anaxágoras (498-428 a.C.), por possuir mãos tão prodigiosas, teríamos desenvolvido nossa inteligência e nos tornado os animais mais inteligentes do mundo. A resposta de Aristóteles era radicalmente oposta, pois dizia que a natureza nos dotara de mãos para que exercitássemos nossa inteligência. A finalidade das coisas explicava sua própria existência, no sentido de que os fins explicam os meios, e não ao contrário.

Outra conhecida passagem dá conta de sua oposição a outro filósofo pré-socrático, Empédocles (c. 490-430 a.C.), que argumentava que as partes dos animais, como seus pés, os habilitam a sobreviver, sendo que aqueles que não os possuíssem acabariam por morrer. Ele teria exemplificado com os dentes humanos: por que temos dentes incisivos e dentes molares exatamente nos lugares da boca mais apropriados para sua função? A resposta de Empédocles, que vivera muito antes de Aristóteles, era surpreendente, pois apontava justamente para uma explicação de feição “moderna”, conjugando a coincidência de tê-los e sua função. Ele dizia que, a cada geração, nascem animais com dentes adequados às suas necessidades e outros sem eles, mas apenas os que os possuem sobrevivem, numa surpreendente aproximação que recorda um programa “adaptacionista”. Já a resposta de Aristóteles reafirmava seu princípio de priorizar a finalidade, capaz de explicar os meios. Ele dizia que, estivesse Empédocles correto, seria possível observar algo muito diferente do que de fato se vê, ou seja, os animais nascem com os dentes de que necessitam – por exemplo, todos os cães nascem com grandes caninos e as ovelhas nascem sem eles –, e não o contrário, como exigia a teoria de Empédocles.14 A finalidade, e não o acaso, explicaria a perfeita adequação dos dentes ao alimento do animal.

O argumento causal a rivalizar com essa explicação, identificada com a supremacia da necessidade, é o do acaso. O estagirita diz que o argumento é sedutor e poderia confundir muitas pessoas, mas ele se fixa na questão constitutiva do ser. Não existe um cão que não seja identificável, em linhas gerais pelo menos, por seus dentes. Por mais que uma onda de frio ocorra no verão, isso não é suficiente para nos confundir sobre em que estação do ano estamos. Tampouco passaremos a definir o verão pela ocorrência de ondas de frio, que

mesmo que ocorram naquela época do ano, não chegam a ser parte constitutiva dela. Os fatos fortuitos não têm uma finalidade e, mesmo que ocorram, não se incorporam à natureza das coisas. Assim, eles não se confundem com os fatos que cumprem uma finalidade e se incorporam à natureza das coisas, passando a ser identificados com elas. Se os dentes cumprem uma função, têm uma finalidade, e, sendo assim, não podem ser creditados ao acaso. Eles se incorporaram ao ser e continuarão a constituí-lo naturalmente, o que contrariava a visão de Empédocles.

 

O entrave do finalismo aristotélico

Os animais estavam equipados com o que de melhor havia para sua sobrevivência e isso lhes conferia estabilidade em um mundo em constante movimento.15 E, assim, Aristóteles conseguiu organizar classificações, a partir dessas características estáveis, percebendo uma “ordem” no mundo, o que lhe permitia criar conhecimento de uma maneira rigorosa. Além de estudar as características externas, Aristóteles investigou o interior dos organismos, sendo provavelmente um dos primeiros estudiosos a dissecar animais para estudá-los. Além disso, ele admitia a geração espontânea de animais pequenos, identificando o animal com o tipo de matéria em meio à qual ele era gerado. Os animais que eram espontaneamente gerados em matéria mole, como a lama, eram, eles também, moles (como os vermes). Os que eram gerados em meio à areia, por exemplo, tinham carcaças e carapaças duras (os chamados “testáceos”).

Mas por que razão, então, sua influência é considerada tão danosa por alguns? Bem, inicialmente, deve-se reconhecer a convicção aristotélica de que as partes estavam perfeitamente ajustadas às necessidades do animal, sendo, por isso, reveladoras da finalidade para a qual foram supostamente criadas. Essa perspectiva, denominada “finalismo” ou “teleologia”, constitui por si uma grande dificuldade para o desenvolvimento da biologia moderna, como veremos adiante. A biologia aristotélica tem muito de descritivo e, por isso, resistiu ao tempo,16 mas seu recurso ao finalismo e sua aversão a outros fatores casuais colidem frontalmente com a compreensão moderna.

Além disso, coerente com sua maneira de conceber o mundo, Aristóteles conseguia explicações factíveis para a existência de praticamente tudo, o que acrescentava grande dificuldade para aqueles que pretendiam criticá-lo. Por fim, seu sistema tinha uma demanda lógica que o tornava especialmente palatável a hierarquias religiosas, pois não podia carecer de uma divindade. De fato, o Concílio de Trento declarou a versão de Tomás de Aquino de Aristóteles como a doutrina oficial da Igreja Católica (“tomismo”). A dominância cultural, intelectual e teológica do mestre estagirita se estendeu aos países protestantes e, embora a doutrina aristotélica tenha sido seriamente questionada na chamada “revolução científica”, como veremos no próximo capítulo, ela teve presença marcante no pensamento científico pelo menos até o século XIX. Os jesuítas introduziram, em 1586, a Ratio studiorum, que definia os textos-padrão para o ensino da filosofia aristotélica em seus colégios, a partir de sua sede vaticana, o Collegio Romano. Muitas escolas cristãs adotaram esse currículo, ainda que com adaptações. Os textos selecionados pelos jesuítas incluíam a descrição do mundo físico constituído pelos quatro elementos (terra, água, ar e fogo) e mencionavam o heliocentrismo de Copérnico, mas de maneira crítica. Muitos esforços foram empreendidos, a partir de 1600, a fim de conciliar as novas observações astronômicas e outras descobertas ao sistema ptolomaico-aristotélico, principalmente a partir do Collegio Romano.17 Da mesma forma, a Inquisição foi revigorada e passou a combater mais fortemente os oponentes dessa versão oficial. Giordano Bruno (1548-1600) acabou condenado por ela, por sustentar visões opostas à filosofia aristotélica tomista, em especial sua defesa da infinitude do universo18 e da possibilidade de vida em outros planetas.

 

A solidez do sistema aristotélico

As coisas do mundo teriam propriedades que poderiam ser reduzidas a quatro aspectos, oponíveis dois a dois. As coisas poderiam ser quentes ou frias, úmidas ou secas, em uma ampla gama de possibilidades entre esses extremos, ligadas a seus elementos constituintes. Estes, em nosso mundo, seriam também quatro: o fogo, a água, o ar e a terra. A lenha fria podia tornar-se quente ao perder água, por exemplo, caso fosse colocada no fogo. Vê-se que, quando começa a arder, ela perde água, que dela começa a porejar. Essa mudança libera o ar de seu interior, na forma de fumaça, e a terra que a constitui, que forma as cinzas. Assim, uma coisa fria e seca se tornaria quente e úmida. Essa era a visão tradicional dos quatro elementos na Grécia antiga, já presente em Empédocles, à qual Aristóteles havia acrescentado um quinto elemento, o éter (ou quintessência) presente de maneira imperceptível no céu, mas aparente ao se agregar, formando as estrelas e, em agregados maiores, os planetas, a Lua e o Sol.

Os cinco elementos tinham propriedades intrínsecas, que explicavam sua dinâmica. O fogo teria uma tendência natural para se mover para cima; a água, por outro lado, descia, mas permanecia por cima da terra. O ar tendia a subir, ficando acima da água, mas nunca alcançaria a altura do fogo. Assim, os elementos terrestres tinham movimento retilíneo, seja em sentido ascendente ou descendente. Um objeto constituído por grande quantidade de um elemento poderia ser mais pesado ou mais leve. Uma pluma é constituída de muito ar; isso explicaria o fato de se mover lentamente em direção à terra. Já uma pedra pequena possuiria grande quantidade do elemento terra, o que explicaria seu movimento rápido para baixo. Pedras pequenas se movimentariam mais lentamente para baixo; pedras mais pesadas, com mais elemento terra em sua constituição, se movimentariam mais rapidamente.

Esses movimentos naturais dos objetos do mundo poderiam ser alterados por alguma violência, os “movimentos forçados”, mas não se aplicariam aos objetos do céu. Estes seriam imperturbáveis, pois constituídos de um elemento distinto (o éter), o qual invariavelmente se movia de maneira uniforme, descrevendo uma trajetória perfeitamente circular. O círculo era visto como uma manifestação de perfeição, remetendo à ideia de divindade. As estrelas se moviam descrevendo um círculo perfeito. Os planetas constituíam um caso à parte e não por outra razão eram tidos, eles próprios, como divindades, capazes de superar as regras fixas dos astros ordinários.19

O movimento natural dos objetos acima da Lua era, pois, uma das características do universo e era visível: não há noite em que não se veja o movimento das estrelas e dos planetas, não há dia em que não mencionavam o heliocentrismo de Copérnico, mas de maneira crítica. Muitos esforços foram empreendidos, a partir de 1600, a fim de conciliar as novas observações astronômicas e outras descobertas ao sistema ptolomaico-aristotélico, principalmente a partir do Collegio Romano.17 Da mesma forma, a Inquisição foi revigorada e passou a combater mais fortemente os oponentes dessa versão oficial. Giordano Bruno (1548-1600) acabou condenado por ela, por sustentar visões opostas à filosofia aristotélica tomista, em especial sua defesa da infinitude do universo18 e da possibilidade de vida em outros planetas. 

 

A solidez do sistema aristotélico

As coisas do mundo teriam propriedades que poderiam ser reduzidas a quatro aspectos, oponíveis dois a dois. As coisas poderiam ser quentes ou frias, úmidas ou secas, em uma ampla gama de possibilidades entre esses extremos, ligadas a seus elementos constituintes. Estes, em nosso mundo, seriam também quatro: o fogo, a água, o ar e a terra. A lenha fria podia tornar-se quente ao perder água, por exemplo, caso fosse colocada no fogo. Vê-se que, quando começa a arder, ela perde água, que dela começa a porejar. Essa mudança libera o ar de seu interior, na forma de fumaça, e a terra que a constitui, que forma as cinzas. Assim, uma coisa fria e seca se tornaria quente e úmida. Essa era a visão tradicional dos quatro elementos na Grécia antiga, já presente em Empédocles, à qual Aristóteles havia acrescentado um quinto elemento, o éter (ou quintessência) presente de maneira imperceptível no céu, mas aparente ao se agregar, formando as estrelas e, em agregados maiores, os planetas, a Lua e o Sol.

Os cinco elementos tinham propriedades intrínsecas, que explicavam sua dinâmica. O fogo teria uma tendência natural para se mover para cima; a água, por outro lado, descia, mas permanecia por cima da terra. O ar tendia a subir, ficando acima da água, mas nunca alcançaria a altura do fogo. Assim, os elementos terrestres tinham movimento retilíneo, seja em sentido ascendente ou descendente. Um objeto constituído por grande quantidade de um elemento poderia ser mais pesado ou mais leve. Uma pluma é constituída de muito ar; isso explicaria o fato de se mover lentamente em direção à terra. Já uma pedra pequena possuiria grande quantidade do elemento terra, o que explicaria seu movimento rápido para baixo. Pedras pequenas se movimentariam mais lentamente para baixo; pedras mais pesadas, com mais elemento terra em sua constituição, se movimentariam mais rapidamente.

Esses movimentos naturais dos objetos do mundo poderiam ser alterados por alguma violência, os “movimentos forçados”, mas não se aplicariam aos objetos do céu. Estes seriam imperturbáveis, pois constituídos de um elemento distinto (o éter), o qual invariavelmente se movia de maneira uniforme, descrevendo uma trajetória perfeitamente circular. O círculo era visto como uma manifestação de perfeição, remetendo à ideia de divindade. As estrelas se moviam descrevendo um círculo perfeito. Os planetas constituíam um caso à parte e não por outra razão eram tidos, eles próprios, como divindades, capazes de superar as regras fixas dos astros ordinários.19

O movimento natural dos objetos acima da Lua era, pois, uma das características do universo e era visível: não há noite em que não se veja o movimento das estrelas e dos planetas, não há dia em que não se veja o Sol sempre com a mesma velocidade e a mesma trajetória perfeitamente circular. Esse movimento eterno e invariável do quinto elemento influenciaria o movimento dos outros quatro elementos, embora ele aparecesse sem a mesma regularidade. Esse quinto elemento, ao contrário dos demais, era imaterial, e seu movimento, uniforme e eterno, seria revelador de outra característica exclusiva: em vez de ser movido, ele seria motor. Ele, na verdade, seria o motor capaz de explicar, direta ou indiretamente, todos os demais movimentos que ocorriam abaixo da Lua. Algumas coisas seriam movidas indiretamente por ele, ou seja, por motores que receberam movimento dele. Em outras palavras, o motor celeste provocava movimento nas coisas ou nos motores que as movimentavam diretamente, os quais seriam, eles também, móveis. Assim, não só as coisas do mundo, mas também seus motores, se moviam. O único motor imóvel seria o motor primeiro, que Aristóteles reconhecia ser a causa primeira de tudo, por isso mesmo identificada com a figura de Deus. A teologia seria a forma suprema da Filosofia, ao debruçar-se sobre o motor de todas as coisas, aquilo que pode explicar todos os movimentos, todas as mudanças de proporções dos elementos.

É interessante que a teologia de Aristóteles não é resultado de uma experiência mística; ao contrário, é uma decorrência lógica do exercício puro da razão. Se não fosse necessário evocar Deus para explicar o mundo, como concluiu séculos mais tarde Laplace (1749-1827), então a Física seria a Filosofia mais elevada, diria o sábio estagirita.

 

A metafísica aristotélica

Os livros de Aristóteles sobre Física foram agrupados, muito depois de sua morte, sob o nome “Metafísica”, indicando uma certa forma de interpretá-los. Nossos sentidos poderiam nos ajudar a validar argumentos, por exemplo, ao observarmos um animal e descrevermos suas qualidades. No entanto, algumas coisas não poderiam ser vistas, e isso não nos impediria de, indo além da Física, tecer considerações sobre elas, o que constituiria, para os seguidores de Aristóteles, sua metafísica, ou a ciência das primeiras causas e princípios.

Na Física de Aristóteles, como vimos, os movimentos ganharam explicações e justificativas precisas e lógicas. Aliás, até a existência de Deus segue o mesmo caminho. Fenômenos que não podem ser observados são amparados igualmente por explicações meticulosas. A luz, por exemplo, encerrava outro dos grandes problemas que haveriam de ser enfrentados para alcançar visões modernas da Física. Empédocles argumentava que a luz se deslocava de um lado para outro, ou seja, que ela tinha uma velocidade. Aristóteles criticou duramente essa afirmação dizendo que ninguém era capaz de ver o deslocamento da luz, e que ela seria, portanto, “instantânea”, ou, em outros termos, de velocidade infinita. Mais tarde, Galileu analisará essa questão inclusive nos mesmos contextos. A observação do relâmpago e do trovão permite perceber a propagação da luz em grandes distâncias, ao mesmo tempo que resta entender sua relação com o som. Nem mesmo Galileu conseguiu perceber algum atraso entre a emissão da luz do relâmpago e seu reflexo em montanhas distantes, embora, como veremos adiante, tenha planejado um experimento engenhoso.20

O motor primeiro não era revelado pelos sentidos, da mesma forma que o quinto elemento, mas era possível tornar sua existência viável, por coerência com outros fenômenos e coisas. Mas, por vezes, era necessário realizar ajustes. Por exemplo, a partir de determinada altitude, o ar não conseguiria avançar, estando acima dele, como vimos, o fogo. Acima do fogo teria início o chamado “mundo supralunar”, preenchido apenas por éter, o quinto elemento cuja existência Aristóteles havia teorizado. No mundo sublunar ocorreriam fenômenos como a formação das nuvens, havendo uma limitação necessária entre a distribuição dos quatro elementos tradicionais e o quinto elemento. No entanto, havia dificuldades, por exemplo, na forma dos meteoritos ferrosos, ou seja, compostos do elemento terra, corpos que caíam do céu provocando incêndios, portanto compostos também do elemento fogo. Eles revelavam ser compostos simultaneamente de dois elementos presentes no mundo sublunar (terra e fogo). Ora, como corpo celeste, o meteoro deveria ser composto do elemento éter, e não de fogo e terra.

A saída, para Aristóteles, foi levantar a hipótese de que os meteoritos eram fenômenos sublunares, que se formariam de maneira semelhante às nuvens. Estas se formariam com a elevação do ar – como vimos, em sua tendência natural de movimento retilíneo ascendente – em combinação com a água, a qual tenderia a mover-se em direção à terra, o que explicava a chuva. Aristóteles conjecturou outra forma de elevação do ar, na ausência de água. Ao atingir o nível mais elevado, do fogo, haveria uma queima, e, caso elementos sólidos tivessem se elevado junto com o ar, da combustão resultariam os meteoritos e as estrelas cadentes. Caso a queima envolvesse apenas ar seco, se originariam os cometas. Esses fenômenos ocorreriam, portanto, todos no espaço sublunar.

Os fenômenos que envolviam o elemento terra, como vimos, naturalmente acabariam por se mover para baixo, para ocupar seu lugar natural. Os meteoritos e as estrelas cadentes tinham também uma explicação engenhosa para sua ocorrência, sempre no espaço sublunar. O espaço supralunar estava reservado para o mundo divino, com a perfeição do movimento circular, compondo eternamente um quadro perfeito e invariável. Os cometas e as “estrelas novas”, os meteoritos e as estrelas cadentes não poderiam fazer parte desse quadro eterno e perfeito, tido como “incorruptível”, mas a revolução científica logo perceberia a fragilidade dessa elaboração teórica, como veremos no próximo capítulo.

Todas essas explicações para os fenômenos do mundo, incluindo características observáveis e as imaginadas, compunham uma metafísica muito coerente, que estava, por sua vez, assentada em um complexo e elaborado estudo das causas. Além de estudar a causalidade dos fenômenos, Aristóteles desenvolveu ainda um método para criar conhecimento seguro, no qual era possível criar uma verdade desconhecida a partir de outras duas verdades conhecidas, o silogismo aristotélico. O estudo da causalidade e os silogismos dedutivos e indutivos fogem (infelizmente) ao escopo deste livro. Uma das causas aristotélicas é a causa final, a base do finalismo. De qualquer forma, cabe apenas dizer que o método silogístico será questionado por Francis Bacon, e as causas finais por René Descartes (1598-1650), outro grande pensador da revolução científica.

 

O enfraquecimento do sistema aristotélico

Mais importantes, para as finalidades deste livro, são alguns dos principais problemas que haveriam de ser enfrentados por aqueles que viveram o renascimento da razão e se depararam com novas possibilidades de pensar o mundo, ao mesmo tempo em que encontravam firmes obstáculos teóricos. Particularmente, a física de Aristóteles, com suas explicações sobre os movimentos, mostrava o que ocorria em um mundo imóvel, onde os quatro elementos – terra, água, ar e fogo – têm tendências naturais de se deslocar para cima ou para baixo.

A ideia de uma Terra imóvel era absolutamente necessária para Aristóteles, pois os movimentos dos astros eram circulares, portanto perfeitos, e eternos. Por serem assim, constituíam evidências da existência de uma divindade, uma necessidade básica em qualquer teologia. Quando a alta hierarquia católica declara, no Concílio de Trento, o tomismo aristotélico como doutrina oficial católica, a evidência concreta no mundo supralunar em constante movimento circular, perfeito e imutável, passa a ser um dos dogmas do catolicismo, justificando a relação entre razão e fé.21

Os pensadores da revolução científica, ao contrariar esse quadro teórico e dizer que a Terra girava, transformaram as estrelas e o Sol em astros fixos, sem movimento, em lugar de descreverem círculos perfeitos. De certa forma, questionavam um dogma que se tornara central no catolicismo, pois, ao questionar as evidências do poder divino, pareciam questionar a existência do próprio Deus. Além disso, a Terra passava a ter movimento circular, invertendo a localização da perfeição e da divindade, convertendo seus pecadores habitantes em seres perfeitos e divinos, o que a Inquisição entendia como pura heresia. Mas a rotação de nosso planeta não aniquilaria apenas o movimento circular dos objetos do mundo supralunar, tornando-os corpos etéreos imóveis e inertes, como também simplesmente acabaria com o movimento retilíneo dos quatro elementos do mundo sublunar. Sua causa desapareceria, eis que era o movimento do mundo supralunar que respondia pelo movimento dos quatro elementos do mundo sublunar. Além disso, suas trajetórias retas passariam a ser curvilíneas, pois uma gota de chuva, por exemplo, ao cair deixaria uma nuvem em movimento circular e não atingiria o solo imediatamente abaixo dela, mas o que teria estado pouco antes a leste. Ao jogar uma pedra para o alto, arremessando-a exatamente na perpendicular, veríamos sua queda a oeste do ponto de lançamento, devido ao movimento da Terra.

No século XIV, quando as artes militares começaram a incluir canhões de curto alcance nos navios de guerra, por exemplo, as trajetórias retilíneas ainda explicavam os tiros certeiros. Mas, com a artilharia de longo alcance, com obuses impulsionando petardos a maior distância, o estudo do movimento começou a ser crítico para o cálculo balístico. Segundo a física de Aristóteles, os projéteis subiriam em linha reta até que terminasse a influência da perturbação violenta da detonação da pólvora. Terminado o movimento forçado, teria início o movimento natural de queda em linha reta, perpendicularmente ao solo, descrevendo, assim, uma trajetória triangular. O triângulo retângulo seria a representação aristotélica do percurso do projétil, com o ângulo reto sinalizando o ponto de impacto junto ao solo.

Não é difícil imaginar que os generais dos primeiros batalhões de artilharia não estivessem nada contentes com a geometria aristotélica nos campos de batalha. A rotação do planeta acrescentava uma complicação nada desprezível a esse quadro. Segundo Aristóteles, inimigos a leste seriam mais difíceis de atingir, ao passo que os canhões deveriam alcançar alvos mais distantes se estes estivessem a oeste. Pelas leis aristotélicas de movimento, enquanto a bala de canhão estivesse viajando pelo ar, o alvo estaria se afastando (se localizado a leste) ou se aproximando (se a oeste), o que não era confirmado pelos artilheiros. De fato, um dos primeiros problemas práticos que Galileu enfrentou, como veremos, foi a trajetória balística, um problema militar que a poderosa República de Veneza tinha interesse em resolver antes dos otomanos.

Justamente na época que denominamos Renascimento, o Ocidente estava mudado. A concepção aristotélico-ptolomaica de universo conseguira suprir necessidades práticas, principalmente ligadas ao calendário, mas não dava conta de uma série de novas demandas, entre elas as da cinemática e da cartografia. O desenvolvimento da navegação precisava urgentemente de mapas mais precisos, o que era impossível sem uma nova astronomia, imprescindível para determinar com precisão as coordenadas geográficas. As artes militares e a engenharia, no novo contexto das manufaturas, traziam também demandas que a tradição escolástica era incapaz de satisfazer. Galileu Galilei iria enfrentar Aristóteles, desde sua matemática até sua astronomia, e toda a hierarquia católica se veria ameaçada com as novas ideias.

 

(Nélio Bizzo - Pensamento Científico, A natureza da ciência no ensino fundamental)

 

NOTAS:

13  A escolástica foi um movimento reformador cristão iniciado por Santo Agostinho (345-430 d.C.), que buscou reinterpretar os ensinamentos do cristianismo à luz do pensamento ocidental, conciliando fé e razão. As primeiras escolas eclesiásticas foram fortemente influenciadas por essa tradição, profundamente abalada pelo Renascimento e pela Reforma protestante.

14  V. IRWIN, T. H. Aristotle’s First Principles. Oxford: Clarendon Press, 1988, em especial p. 105 e seguintes (“Disputes about teleology”).

15  Esta era uma nítida influência do platonismo incorporada por Aristóteles.

16  Darwin se referiu elogiosamente a Aristóteles, como “um dos maiores, se não o maior dos observadores”, embora admitisse um conhecimento indireto, apenas a partir de fontes secundárias e comentaristas. V. GOTTHELF, A. Darwin on Aristotle. Journal of the History of Biology, 1999, 32(1): 3-30.

17  SARGENT, R-M. Aristotelianism. In: OLBY, R. C.; CANTOR, G. N.; CHRISTIE, J. R. R.; HODGE, M. J. S. Companion to the History of Modern Science. Londres; Nova York: Routledge, 1990, 1081 p., p. 44-45.

18  Esta era uma das retificações de Tomás de Aquino, pois Aristóteles originalmente acreditava que o universo não havia tido um início, o que contrariava a descrição da criação do mundo ex novo (criado a partir do nada) presente no Gênesis.

19  O próprio nome “planeta” é indicativo de sua trajetória no céu, pois significa “astro errante”.

20  V. FILONOVICH, S. R. The Greatest Speed. Moscou: MIR Publishers, 1986.

21  O tomismo tem como um de seus fundamentos a certeza de que se pode confiar à razão a tarefa de demonstrar os preâmbulos da fé (preambula fidei), ou seja, o conjunto de verdades cuja demonstração é necessária para a própria fé, entre as quais se encontra, em primeiro lugar, a existência de Deus. O movimento perfeitamente circular do espaço supralunar e a perfeição dos seres vivos seriam justamente provas da existência de um ser superior. (Cf. ABBAGNANO. Diccionario de filosofía. Bogotá: Fondo de Cultura Econômica, 1997, p. 943 e 1143-1144).

publicado às 14:56


O FARISEU E A CRIANÇA

por Thynus, em 01.08.16
Em seu livro Why I Am Not a Christian,[64] o filósofo Bertrand Russell escreveu: “A intolerância que se espalhou pelo mundo com o advento do cristianismo é uma de suas características mais curiosas”.
A história prova que a religião e as pessoas religiosas possuem uma tendência à pobreza de espírito. Em vez de aumentar nossa capacidade de aproveitar a vida e experimentar a alegria e o mistério, a religião costuma reduzi-la. Conforme progride a Teologia Sistemática, a sensação de encantamento declina. Os paradoxos, as contradições e as ambiguidades da vida são codificados, e o próprio Deus é cerceado, reprimido, confinado às páginas de um livro com capa de couro. Em vez de uma história de amor, a Bíblia é vista como um manual de instruções detalhadas.
As maquinações da religião manipuladora são trazidas à tona cada vez que Jesus encontra algum fariseu. Um desses confrontos é particularmente intenso. A fim de absorver plenamente seu impacto, precisamos analisar a compreensão judaica sobre o sábado.
No princípio, o sábado era, primeira e essencialmente, um memorial da criação. O livro de Gênesis declara:
Viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom [...] E, havendo Deus terminado no dia sétimo a sua obra, que fizera, descansou nesse dia de toda a sua obra que tinha feito. E abençoou Deus o dia sétimo e o santificou; porque nele descansou de toda a obra que, como Criador, fizera. Cf. 1:31; 2:2-3
O sétimo dia celebra a conclusão de toda a obra da criação e é considerado santo pelo Senhor. O sábado é um dia sagrado, reservado para Deus, um período específico de tempo consagrado a ele. É uma data comemorativa judaica, dedicada àquele que disse: “Eu sou o Senhor seu Deus, seu Criador”. O sábado era um reconhecimento solene de que Deus tinha direitos supremos, um ato público de apropriação no qual a comunidade de fé reconhecia dever a própria vida e existência ao Outro. Como um dia memorial da criação, o sábado significava louvor de adoração e ação de graças por todos os atos bondosos de Deus, por tudo aquilo que os judeus eram e tinham. O descanso devido ao trabalho executado era uma questão secundária.
Uma trégua em relação às preocupações com dinheiro, prazer e conforto se traduzia no desenvolvimento de uma perspectiva mais apropriada a respeito do Criador. No sábado, os judeus refletiam sobre o que havia acontecido na semana anterior a partir de um contexto mais amplo ao dizer a Deus: “Tu és o verdadeiro Governante, não passo de teu mordomo”.
O sábado era um dia de sinceridade rigorosa e contemplação cuidadosa; dia de avaliação pessoal, de analisar os rumos da vida e de fortalecimento das bases do relacionamento com Deus. Os judeus aprenderam a orar dessa forma no sábado: “Nosso coração se agita a semana inteira, mas hoje descansa de novo em ti”. Como memorial da criação, o sábado judaico prefigurava o domingo do Novo Testamento: o memorial de nossa recriação em Cristo Jesus.
Em segundo lugar, o sábado também era um memorial da aliança. No monte Sinai, quando Deus entregou as duas tábuas a Moisés, instruiu o povo desta maneira: “Pelo que os filhos de Israel guardarão o sábado, celebrando-o por aliança perpétua nas suas gerações. Entre mim e os filhos de Israel é sinal para sempre” (Êx 31:16-17). Assim, todo sábado era uma renovação solene da aliança entre Deus e o povo escolhido. As pessoas renovavam sua dedicação em servi-lo. A cada sábado se regozijavam novamente com a promessa de Deus: “Agora, pois, se diligentemente ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, então, sereis a minha propriedade peculiar dentre todos os povos; porque toda a terra é minha; vós me sereis reino de sacerdotes e nação santa” (Êx 19:5-6).
Mais uma vez, descansar do trabalho não era o objetivo principal na observância do sábado. Era tanto um complemento à adoração quanto a própria adoração. Mas a adoração continuou sendo o elemento essencial da celebração do sábado. Anos depois, o profeta Isaías se referiria ao sábado como um dia “deleitoso”. O jejum e o pranto eram proibidos. Era necessário usar roupas brancas e festivas, e a observância do sábado deveria ser acompanhada de músicas alegres.
Além disso, a festa não se restringia ao templo. O sábado foi e continua sendo a grande festa do lar judaico ortodoxo — a ponto de ser considerado o principal fundamento de uma vida familiar realmente estável e de um espírito de intimidade familiar que tem caracterizado os judeus ortodoxos ao longo dos séculos. Todos os membros da família deveriam estar presentes, junto com os convidados, especialmente os pobres, estrangeiros ou viajantes. (Em Lucas 7 vemos Jesus, o pregador itinerante, jantando num sábado na casa do fariseu Simão.)
A celebração do sábado começava quando o Sol se punha na sexta-feira, quando a mãe da família acendia as velas de modo cerimonial. Em seguida, o pai, depois de dar graças diante de um cálice de vinho, colocava a mão sobre a cabeça de cada filho e abençoava a todos de maneira solene, com uma oração pessoal. Esse e muitos outros gestos paralitúrgicos similares não apenas serviam para consagrar o sábado, mas também para santificar o lar judeu, fazendo dele um mikdash me-at, um pequeno santuário no qual os pais eram os sacerdotes e a mesa da família, o altar.
Infelizmente, após o exílio babilônico, o principal significado espiritual do sábado foi toldado. Sob uma liderança espiritualmente falida, houve um deslocamento sutil do foco. Os fariseus, que conduziam a religião como uma espécie de escudo de autojustificação e um tipo de espada de julgamento, instituíram as exigências frias de um perfeccionismo baseado em regras, porque assim ganhavam status e controle, ao mesmo tempo que garantiam aos fiéis a certeza de estarem marchando a passos firmes pela estrada da salvação.
Os fariseus falsificaram a imagem de Deus, transformando-o em um guarda-livros eterno e limitado, cujo favor podia ser alcançado somente por meio da observância escrupulosa de leis e regulamentos. A religião se tornou instrumento de intimidação e escravização, em vez de libertar e fortalecer. Os judeus fiéis eram orientados a concentrar a atenção no aspecto secundário do sábado: a abstenção do trabalho. A celebração alegre da criação e da aliança, preconizada pelos profetas, desapareceu. O sábado tornou-se dia de legalismo. Os meios se tornaram os fins. (É nisso que reside a genialidade da religião legalista: transformar as questões principais em secundárias e vice-versa.) Consequentemente, o que surgiu daí foi uma miscelânea de proibições e prescrições que transformaram o sábado num fardo pesado que levava à exacerbação dos escrúpulos — o tipo de sábado que Jesus de Nazaré censurou de modo tão veemente.
Dezessete séculos depois, essa interpretação literal farisaica do sábado desaguou na Nova Inglaterra. No Código de Connecticut está escrito: “No dia de sábado, ninguém deve correr, andar pelo jardim ou por qualquer outro lugar, exceto ao se dirigir ou voltar da reunião, e com reverência. Ninguém deve viajar, cozinhar, arrumar camas, varrer a casa, cortar o cabelo ou fazer a barba no sábado. Se algum marido beijar a esposa ou ela, a seu marido, no Dia do Senhor, a pessoa responsável pelo erro deve ser punida de acordo com o entendimento da corte dos magistrados”.
Paradoxalmente, o que interfere na relação entre Deus e o ser humano é a moralidade obstinada e a falsa piedade. Não são prostitutas e cobradores de impostos as pessoas que encontram maior dificuldade em se arrepender; são os religiosos que julgam não ter motivos de arrependimento, tranquilos porque não quebraram nenhuma lei no sábado.
Os fariseus investem muito em gestos religiosos visíveis, em rituais, em métodos e técnicas, gerando, em tese, uma gente santa, mas também crítica, robotizada, sem vida e tão intolerante com os outros quanto é consigo; pessoas violentas, exatamente o oposto do que significa santidade e amor — “o tipo de gente espiritual que, consciente de sua espiritualidade, continua crucificando o Messias”.[65]
Jesus não morreu por obra de assaltantes, estupradores ou assassinos. Ele foi morto por pessoas profundamente religiosas, os membros mais respeitados da sociedade, que preferiram lavar as mãos.
Por aquele tempo, em dia de sábado, passou Jesus pelas searas. Ora, estando os seus discípulos com fome, entraram a colher espigas e a comer. Os fariseus, porém, vendo isso, disseram-lhe: Eis que os teus discípulos fazem o que não é lícito fazer em dia de sábado. Mas Jesus lhes disse: Não lestes o que fez Davi quando ele e seus companheiros tiveram fome? Como entrou na Casa de Deus, e comeram os pães da proposição, os quais não lhes era lícito comer, nem a ele nem aos que com ele estavam, mas exclusivamente aos sacerdotes? Ou não lestes na Lei que, aos sábados, os sacerdotes no templo violam o sábado e ficam sem culpa? Pois eu vos digo: aqui está quem é maior que o templo. Mas, se vós soubésseis o que significa: Misericórdia quero e não holocaustos, não teríeis condenado inocentes. Porque o Filho do Homem é senhor do sábado. 
Mateus 12:1-8, grifos do autor
Não é pouco o que está em jogo aqui. Os fariseus insistem na importância suprema das regras da lei. A dignidade básica e as necessidades genuínas dos seres humanos são irrelevantes. Jesus, entretanto, insistia que a lei não era um fim em si, mas o meio para alcançar o objetivo: a obediência era expressão do amor a Deus e ao próximo; portanto, qualquer forma de religiosidade que se coloca no caminho do amor também é um obstáculo no caminho do próprio Deus. Tal liberdade desafiava o sistema judaico. Porém, Jesus disse que tinha vindo não para destruir a lei, mas para cumpri-la. O que ele ofereceu não foi uma nova lei, e sim uma nova atitude em relação à lei, baseada no amor.
O espírito farisaico viceja hoje naqueles que se valem da autoridade da religião para controlar os outros, envolvendo as pessoas em intermináveis listas de regras, assistindo à luta que elas travam para cumpri-las e se recusando a oferecer assistência. Eugene Kennedy afirmou: “O poder dos fariseus surge do fardo que colocam sobre as costas dos judeus sinceros; sua satisfação consiste na manipulação básica do medo que as pessoas nutrem de desagradar a Deus”.[66] O cartaz do lado de fora de uma igreja do Ocidente dizendo que “homossexuais não são bem–vindos” é tão ofensivo e degradante quanto o que um brechó do sul dos Estados Unidos ostentava na vitrine, nos anos 1940: “Proibida a entrada de cães e pretos!”.
As palavras de Jesus, “misericórdia quero e não holocaustos”, são dirigidas a homens e mulheres de fé, além dos limites do tempo. Kennedy comentou: “Qualquer pessoa que, ao longo da história, tenha priorizado a lei, as regras e a tradição, e não o sofrimento dos outros, está na mesma situação [dos fariseus], acusando o inocente com a mesma arrogância”.[67]
Quantas vidas foram arruinadas em nome da religiosidade tacanha e intolerante!
O ponto forte do fariseu de qualquer época é a sua capacidade de transferir, proclamar e apontar a culpa dos outros. Tem o dom de enxergar o cisco no olho de outra pessoa e não notar a viga que carrega no dele. Cegado pela ambição, o fariseu não consegue perceber sua sombra e, por isso, a projeta nos outros. Este é o dom que ele possui, sua assinatura, sua reação mais previsível e garantida.
Há muitos anos, a caminho do funeral da irmã de um amigo, passei de carro sobre uma ponte respeitando o limite de noventa quilômetros por hora. Vi uma placa mais adiante indicando que o limite voltava a cem quilômetros por hora. Rapidamente acelerei para 110 e, de repente, um policial me mandou parar. Ele era negro.
Expliquei que estava correndo para um funeral. Ele me ouviu com indiferença, verificou minha carteira de habilitação e me entregou, com a maior frieza, uma multa por excesso de velocidade. Na mesma hora, em minha mente, eu o acusei de racismo e revanchismo, e o culpei pelo provável atraso na igreja. Meu fariseu interior, até então adormecido, anunciava, assim, que estava vivo e passando bem.
Sempre que transferimos culpa a outra pessoa, estamos procurando um bode expiatório para escapar de alguma situação em que estamos implicados. A transferência da culpa é um tipo de defesa que substitui a análise honesta da vida e que busca crescimento pessoal nas falhas e autoconhecimento nos erros. Thomas Moore afirmou: “Essencialmente, é uma forma de evitar a consciência do erro”.[68]
O farisaísmo judaico era composto por um grupo relativamente pequeno de pessoas “separadas” que, quase dois séculos antes de Cristo, a fim de evitar que a fé judaica se misturasse com as estrangeiras, se entregaram a uma vida de observância rigorosa da lei mosaica. “Viviam como se estivessem num longo ensaio, uma orquestra sinfônica que não parava de se afinar, tocando variações torturantes da lei”.[69] Antes do exílio dos judeus, quando o espírito da aliança ainda era vivo e vibrante, o povo se sentia seguro à sombra do amor de Deus. No período farisaico, à medida que a compreensão das Escrituras hebraicas se deteriorou, os judeus passaram a se sentir seguros à sombra da lei. É óbvio que o evangelho da graça apresentado pelo carpinteiro nazareno era ultrajante.
Para o fariseu, Deus tem grande apreço pela pessoa que segue a lei. A aceitação divina é secundária, condicionada ao comportamento do fariseu. Para Jesus, a situação é diametralmente oposta. Ser aceito, apreciado e amado por Deus vem em primeiro lugar, motivando o discípulo a viver a lei do amor. “Nós amamos porque ele nos amou primeiro” (1Jo 4:19).
Suponhamos que uma menina nunca tenha recebido amor por parte de seus pais. Certo dia, ela encontra outra garota cujos pais a cobrem de afeição. A primeira pensa: “Também quero ser amada desse jeito. Nunca experimentei isso, mas vou conquistar o amor de minha mãe e de meu pai pelo meu bom comportamento”. Assim, para ganhar a afeição de seus pais, ela escova os dentes, arruma a cama, sorri, se esmera nas boas maneiras, nunca faz beicinho nem chora, nunca exprime uma necessidade e esconde os sentimentos negativos.
Esse é o caminho dos fariseus. Seguem a lei de modo impecável com o objetivo de induzir Deus a amálos. A iniciativa é deles. A imagem que fazem de Deus forçosamente os prende a uma teologia de obras. Se Deus é como a insuportável enfermeira Ratched do filme Um estranho no ninho, sempre ávida por encontrar as falhas em toda e qualquer pessoa, o fariseu precisa perseguir um estilo de vida que minimize os erros. Então, no Dia do Julgamento, ele pode apresentar a Deus um histórico imaculado, e a Divindade, relutante, terá de aceitá-lo. A psicologia do fariseu torna atraente uma religião que consiste em lavar copos e pratos, jejuar duas vezes na semana e entregar o dízimo da menta, do endro e do cominho.
Que fardo insuportável! A luta para se tornar apresentável diante de um Deus distante e perfeccionista é exaustiva. Legalistas nunca conseguem alcançar as expectativas que projetam em Deus, “pois sempre haverá uma nova lei e, com ela, uma nova interpretação, mais um fio de cabelo a ser cortado pela mais aguçada navalha religiosa”.[70]
O fariseu interior é a face religiosa do impostor. O “eu” idealista, perfeccionista e neurótico é oprimido por aquilo que Alan Jones chama de “espiritualidade terrorista”. Uma vaga inquietação por nunca viver um relacionamento adequado com Deus assombra a consciência do fariseu. A compulsão por se sentir seguro em relação a Deus alimenta esse desejo neurótico de alcançar a perfeição. Essa avaliação pessoal compulsiva, infindável e moralista torna impossível ao fariseu sentir-se aceito diante de Deus. A consciência de sua falha pessoal conduz à perda súbita da autoestima e dispara os mecanismos da ansiedade, do medo e da depressão.
O fariseu interior se apossa do meu “eu” verdadeiro sempre que prefiro as aparências à realidade; sempre que sinto medo de Deus; sempre que entrego o controle da minha alma às regras, em vez de me arriscar a viver em união com Jesus; quando escolho parecer bom, e não ser bom; quando prefiro as aparências à realidade. Recordo as palavras de Merton: “Se tenho uma mensagem para meus contemporâneos, certamente é esta: sejam o que quiserem, sejam loucos, bêbados [...] Mas evitem, a todo custo, uma coisa: o ‘sucesso’”.[71]
É claro que Merton está se referindo ao culto ao sucesso, à fascinação que a honra e o poder exerciam sobre os fariseus, o impulso incontrolável de potencializar a imagem do impostor aos olhos dos admiradores. Por outro lado, quando minha falsa humildade despreza o prazer das conquistas e desdenha dos elogios e louvores, fico orgulhoso dela, alienado e isolado das pessoas reais, e o impostor assume o controle de novo!
Meu fariseu interior nunca se sobressai tanto quanto nos momentos em que assumo uma postura de superioridade moral em relação aos racistas, aos fanáticos e aos homofóbicos. Balanço a cabeça em anuência quando o pregador passa um carão nos incrédulos, liberais, adeptos da Nova Era e outros que estão do lado de fora do aprisco. Nenhuma palavra seria ácida o suficiente para condenar, com o devido vigor, os filmes de Hollywood, os comerciais de televisão, as roupas provocativas e o rock’n’roll. No entanto, minha biblioteca está repleta de comentários bíblicos e livros teológicos. Frequento a igreja com regularidade e oro todos os dias. Tenho um crucifixo em minha casa e carrego uma cruz no bolso. Minha vida é toda formada e saturada de religião. Eu me abstenho de carne às sextas-feiras. Dou apoio financeiro a organizações cristãs. Sou um evangelista dedicado a Deus e à Igreja.
Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, porque dais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho e tendes negligenciado os preceitos mais importantes da Lei: a justiça, a misericórdia e a fé [...] Guias cegos, que coais o mosquito e engolis o camelo! [...] Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, porque sois semelhantes aos sepulcros caiados, que, por fora, se mostram belos, mas interiormente estão cheios de ossos de mortos e de toda imundícia! Assim também vós exteriormente pareceis justos aos homens, mas, por dentro, estais cheios de hipocrisia e de iniquidade.
Mateus 23:23-24,27-28
Na parábola sobre o fariseu e o publicano, o fariseu se levanta no templo e ora: “Ó Deus, graças te dou porque não sou como os demais homens, roubadores, injustos e adúlteros, nem ainda como este publicano; jejuo duas vezes por semana e dou o dízimo de tudo quanto ganho” (Lc 18:11-12).
Essa oração revela as duas falhas que denunciam o fariseu. Em primeiro lugar, ele é muito cioso de sua religiosidade e santidade. Quando ora, é somente para agradecer aquilo que possui, e não para pedir algo que não tem ou não é. Seu erro é acreditar que não possui erro nenhum. Ele se adora. A segunda falha tem a ver com a primeira: o fariseu despreza as pessoas. Ele as julga e condena porque está convencido de que está em posição superior. Ele é um homem pretensamente justo que condena os outros de modo injusto.
O fariseu que perdoa a si mesmo está condenado. O cobrador de impostos que se condena é absolvido. Negar o fariseu interior é fatal. É imperativo que o reconheçamos, dialoguemos com ele, perguntemos a razão para precisar buscar fora do Reino as fontes da paz e da felicidade.
Em uma reunião de oração da qual participei, um homem de aproximadamente sessenta anos foi o primeiro a falar: “Quero apenas agradecer a Deus por não ter nada do que me arrepender hoje”. Sua esposa suspirou. O que ele quis dizer foi que não havia cometido nenhuma fraude, blasfêmia, fornicação nem quebrado algum dos Dez Mandamentos. Havia se distanciado da idolatria, da bebedeira, do sexo irresponsável e de coisas semelhantes; ainda assim, não tinha penetrado totalmente naquilo que Paulo chama de liberdade interior dos filhos de Deus.
Se continuarmos a nos concentrar exclusivamente na dualidade pecador/santo no jeito como vivemos e agimos, ignorando a oposição feroz entre o fariseu e a criança, o crescimento espiritual chegará, de repente, a um ponto de estagnação.
Em evidente contraste com os conceitos farisaicos de Deus e religião, o conceito bíblico do evangelho da graça é o da criança que nunca recebeu nada além de amor, e que tenta fazer o melhor que pode porque é amada. Quando ela comete erros, sabe que não corre o risco de perder o amor dos pais. A possibilidade de que eles deixem de amá-la se ela não arrumar seu quarto jamais passa pela mente dessa criança. Os pais podem desaprovar o comportamento do filho, mas o amor que sentem não está condicionado ao desempenho da criança.
Para o fariseu, a ênfase está sempre no esforço e na conquista pessoal. O evangelho da graça enfatiza a primazia do amor de Deus. O fariseu se deleita com a conduta impecável, enquanto a criança se delicia na ternura incondicional de Deus.
Em resposta à pergunta que a irmã fez sobre o que ela queria dizer com “permanecer como uma criancinha diante do bom Deus”, Teresa de Lisieux disse:
É reconhecer a própria insignificância, esperando tudo do bom Deus, exatamente como a criancinha espera tudo de seu pai; é não ficar ansioso por nada, não tentar ficar rico [...] Ser pequeno também é não se atribuir as virtudes praticadas, como se alguém pudesse acreditar-se capaz de conquistar algo, mas reconhecendo que o bom Deus coloca esse tesouro nas mãos de seus pequeninos para que façam uso dele sempre que precisarem; contudo, é sempre o tesouro do bom Deus. Finalmente, é nunca ficar desalentado com as próprias falhas, porque as crianças sempre caem; porém, são pequenas demais para causarem grandes danos a si.[72]
Os pais amam um pequenino antes que a criança ponha sua marca no mundo. Uma mãe nunca mostra o filho ao vizinho com as palavras: “Esta é a minha filha, ela será advogada”. Portanto, a maior proeza dessa criança no futuro não será o esforço para obter a aceitação e a aprovação, mas a sensação abundante e transbordante de ser amada. Se o fariseu é a face religiosa do impostor, a criança interior é a face religiosa do “eu” verdadeiro.
A criança representa o “eu” autêntico e o fariseu, o falso “eu”. Aqui nos deparamos com um interessante casamento da psicologia com a espiritualidade. O objetivo da psicanálise é expor as neuroses dos pacientes; afastá-los da falsidade, da falta de autenticidade e do artificialismo, conduzindo-os à aceitação pura da realidade, àquilo que Jesus nos ordena ser: “A menos que se tornem como um destes pequeninos”.
A criança interior tem consciência de seus sentimentos e não se inibe de expressá-los; o fariseu processa os sentimentos e prepara uma reação estereotipada diante das circunstâncias da vida. Na primeira visita que Jacqueline Kennedy fez ao Vaticano, o papa João XXIII perguntou a seu secretário de Estado, Giuseppi Cardinal Montini, qual seria a maneira mais apropriada de cumprimentar a nobre visitante, esposa do presidente dos Estados Unidos. Montini respondeu: “Seria adequado dizer ‘madame’ ou senhora Kennedy”. O secretário saiu e, minutos depois, a primeira-dama apareceu na porta. Os olhos do papa brilharam. Ele se aproximou, abraçou-a e bradou: “Jacqueline!”.
A criança expressa suas emoções de modo espontâneo; o fariseu toma o maior cuidado para reprimi-las. A questão não é se eu sou introvertido ou extrovertido, se minha personalidade é passional ou submissa; a questão é saber se expresso ou reprimo meus sentimentos genuínos.
Certa vez, John Powell afirmou, com tristeza, que como epitáfio para a lápide de seus pais sentira-se compelido a escrever: “Aqui jazem duas pessoas que nunca se conheceram”. O pai nunca conseguiu compartilhar seus sentimentos, por isso a mãe nunca o conheceu. Abrir o coração a outra pessoa, parar de mentir sobre a solidão e os medos, ser honesto a respeito dos afetos e dizer aos outros o quanto são importantes — esta franqueza é o triunfo da criança sobre o fariseu e um sinal da presença ativa do Espírito Santo. “... onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade” (2Co 3:17).
Ignorar, reprimir ou rejeitar os sentimentos significa deixar de dar ouvidos às inspirações do Espírito no íntimo da vida emocional.[73] Jesus ouvia. No evangelho de João, somos informados de que Jesus era mobilizado por emoções intensas (cf. 11:33). No livro de Mateus, vemos sua ira se manifestar: “Hipócritas! Bem profetizou Isaías a vosso respeito, dizendo: Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. E em vão me adoram” (cf. 15:7-9). Ele pediu pelas multidões em oração, pois “compadeceuse delas, porque estavam aflitas e exaustas como ovelhas que não têm pastor” (cf. 9:36). Quando viu a viúva de Naim, “o Senhor se compadeceu dela e lhe disse: Não chores!” (Lc 7:13). Será que o filho dela teria ressuscitado se Jesus reprimisse seus sentimentos?
O pesar e a frustração surgiram de modo espontâneo: “Quando ia chegando, vendo a cidade, chorou e dizia: Ah! Se conheceras por ti mesma, ainda hoje, o que é devido à paz!” (Lc 19:41-42). Jesus deixou de lado o constrangimento quando bradou: “Vós sois do diabo, que é vosso pai, e quereis satisfazer-lhe os desejos” (cf. Jo 8:44). Dá para perceber mais que um sinal de irritação quando, jantando na casa de Simão, em Betânia, Jesus disse: “Deixai-a; por que a molestais?” (Mc 14:6).
Identificamos grande frustração nestas palavras: “Até quando vos sofrerei?” (Mt 17:17); fúria intensa em: “Arreda, Satanás! Tu és para mim pedra de tropeço” (cf. 16:23); sensibilidade extraordinária em: “Alguém me tocou, porque senti que de mim saiu poder” (Lc 8:46); e ira ardente em: “Tirai daqui estas coisas; não façais da casa de meu Pai casa de negócio” (Jo 2:16).
Espalhamos tanta cinza em cima do Jesus histórico que raramente sentimos o calor de sua presença. Ele é um tipo de homem cujo modelo esquecemos: confiável, franco, emotivo, que não manipula as pessoas, sensível, compassivo. Sua criança interior era tão livre que ele não considerava o choro um ato de covardia. Ele se relacionava com as pessoas de maneira franca, e se recusava a comprometer sua integridade. A descrição que o evangelho faz do Filho amado de Deus é a de um homem perfeitamente sintonizado com as emoções e sem receio de expressá-las. O Filho do Homem não desprezou ou rejeitou os sentimentos, como se os considerasse instáveis ou pouco confiáveis. Para ele, eram como sensíveis antenas emocionais, às quais atentava e, por meio delas, compreendia a vontade do Pai: coerência no discurso e na ação.
Antes de sair para jantar, minha esposa Roslyn costuma dizer: “Preciso de uns minutinhos para me maquiar”. O fariseu precisa usar a máscara religiosa o tempo todo. Seu apetite voraz por atenção e admiração o obriga a apresentar uma imagem edificante e evitar erros e falhas cuidadosamente. Emoções descontroladas podem resultar em grandes encrencas.
No entanto, as emoções são nossas reações mais diretas ao conceito que formamos a nosso respeito e ao mundo que nos cerca. Quer sejam eles positivos quer sejam negativos, os sentimentos nos colocam em contato com o “eu” verdadeiro. Eles não são bons nem ruins: apenas representam a verdade do que se passa dentro de nós.
O que fazemos com os sentimentos determinará se nossa vida será honesta ou baseada em falsidade. Quando submetidas ao juízo de um intelecto formado na fé, as emoções servem como indicadores confiáveis para uma iniciativa apropriada ou mesmo para nenhuma iniciativa. Negação, deslocamento e repressão de sentimentos impedem a intimidade pessoal.
O fariseu que vive em mim inventou um modo de desentranhar meu “eu” verdadeiro, negar minha humanidade e camuflar minhas emoções por meio de uma manobra mental fraudulenta chamada de “espiritualização”. O movimento esperto de minha mente rumo à religiosidade me protege de meus sentimentos, geralmente aqueles que mais me atemorizam: raiva, medo e culpa. Distancio-me de emoções, intuições e percepções negativas com um pé e, com o outro, entro num mundo de justificativas complicadas.
Certa vez, tive vontade de dizer a um fundamentalista: “Se você não se acalmar, vou estrangulá-lo e pendurá-lo como decoração em minha árvore de Natal”; em vez disso, pensei: “Deus colocou esse irmão pouco esclarecido em minha vida, e seu jeito detestável é, sem dúvida, resultado de traumas na infância. Preciso amá-lo, apesar de tudo”. (Quem pode argumentar contra isso? Se os fundamentalistas odeiam os negros e eu odeio os fundamentalistas, qual é a diferença?)
Mas, para falar a verdade, eu fugi de meus sentimentos, os envernizei com uma conversa fiada religiosa, reagi como um espírito desencarnado e alienei o verdadeiro “eu”. Quando um amigo diz: “Realmente não gosto mais de você. Você nunca me ouve e sempre me faz sentir inferior”, não me aflijo. Na mesma hora, dou as costas ao desgosto, à tristeza e à rejeição e concluo: “Essa é uma forma de Deus me testar”.
Quando o dinheiro falta e a ansiedade toma conta, lembro a mim mesmo: “Jesus disse para não ficarmos ansiosos pelo amanhã. Portanto, esse pequeno revés é apenas seu jeito de me provar”. Ao optar pelo “eu” mascarado e negar os sentimentos verdadeiros, deixamos de reconhecer as limitações humanas. Os sentimentos congelam até um estado de insensibilidade. As interações com pessoas e circunstâncias da vida são inibidas, convencionais e artificiais. Essa espiritualização tem mil faces, nenhuma delas justificável ou saudável. São disfarces que sufocam a criança interior.
Quando Roslyn era uma garotinha, criada em uma pequena vila de Columbia, em Louisiana (com novecentos habitantes), sua companheira de brincadeiras aos sábados era outra menina chamada Bertha Bee, filha da empregada doméstica negra, Ollie. Juntas, brincavam de boneca na varanda, faziam bolinhos de barro perto da margem do lago, comiam biscoitos, compartilhavam segredos e erguiam castelos no ar.
Certo sábado, Bertha Bee não apareceu. Nunca mais voltou. Roslyn sabia que ela não estava doente, machucada ou morta, porque Ollie teria lhe contado. Assim, Roslyn, aos nove anos, perguntou a seu pai por que Bertha Bee não aparecera mais para brincar. Ela nunca esqueceu a resposta: “Não convém”.
A face que uma criança usa é a própria, e seus olhos perscrutam o mundo sem se deixar atrair pelos rótulos: negro-branco, católico-protestante, asiático-latino, gay-heterossexual, capitalista-socialista. Rótulos criam impressões. “Essa pessoa é rica, a outra está bem de vida”; “Esse homem é brilhante, o outro não é muito esperto”; “Uma mulher é bela, a outra é cafona”.
Impressões formam imagens que, por sua vez, tornam-se ideias fixas que geram preconceitos. Anthony DeMello disse: “Se você é preconceituoso, enxergará as pessoas sob a ótica do preconceito. Em outras palavras, deixará de vê-las como pessoas”.[74] O fariseu interior gasta boa parte do tempo reagindo aos rótulos, os próprios e os das outras pessoas. Conta-se a história de um homem que procurou um sacerdote e disse:
— Padre, quero que reze uma missa por meu cachorro.
O sacerdote ficou indignado:
— Como assim? Uma missa para seu cachorro?
— É meu cachorro de estimação — disse o homem. — Eu amava aquele cachorro e gostaria que o senhor rezasse uma missa por ele.
— Não rezamos missas para cachorros aqui — disse o sacerdote. — Você pode tentar na denominação no fim da rua. Pergunte a eles se podem realizar um culto para você.
Enquanto saía, o homem comentou:
— Eu adorava mesmo aquele cachorro. Estava planejando dar uma oferta de um milhão de dólares pela missa.
Aí o sacerdote disse:
— Espere. Você não disse que seu cachorro era católico.

Naquela hora, aproximaram-se de Jesus os discípulos, perguntando: Quem é, porventura, o maior no reino dos céus? E Jesus, chamando uma criança, colocou-a no meio deles. E disse: Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos tornardes como crianças, de modo algum entrareis no reino dos céus. Portanto, aquele que se humilhar como esta criança, esse é o maior no reino dos céus.
Mateus 18:1-4
No jogo de tentar levar vantagem sobre o outro, a motivação dos discípulos é a necessidade de ser importante e relevante. Eles precisam ser alguém. De acordo com John Shea, “toda vez que essa ambição aparece, Jesus coloca entre eles uma criança ou fala a respeito de uma criança”.[75]
Nem todos gostam da perspicácia contida na resposta de Jesus em Mateus 18. Ele diz que não há “primeiro” no reino. Quem quer ser o primeiro deve se tornar servo de todos; volte à infância e então estará apto para ocupar o primeiro lugar. Jesus deixa pouco espaço para a ambição; o mesmo vale para o exercício do poder. “Servos e crianças não detêm o poder.”[76]
Os jogos de poder dos fariseus, explícitos ou sutis, têm como objetivo dominar pessoas e situações e, consequentemente, aumentar o prestígio, a influência e a reputação. As diversas formas de manipulação, controle e agressão passiva começam no centro de poder. A vida é uma série de manobras sagazes de ataque e defesa. O fariseu interior desenvolveu um sistema de radar sofisticado, ajustado para detectar as vibrações de qualquer pessoa ou situação que, mesmo remotamente, ameace sua posição de autoridade.
Aquilo que um amigo meu chama de “síndrome do reizinho” — a programação emocional que procura compensar a falta de poder da infância e da adolescência — pode levar à preocupação com símbolos de status, sejam eles bens materiais ou amizades com pessoas poderosas e influentes. A pessoa pode ser motivada a acumular dinheiro como fonte de poder, ou adquirir conhecimento como meio para alcançar reconhecimento.
O fariseu sabe que o conhecimento pode representar poder no meio religioso. O especialista deve ser consultado antes de qualquer julgamento definitivo. Esse jogo de levar vantagem impede a troca de ideias e introduz um espírito de rivalidade e competição que é a antítese da naturalidade da criança. Anthony DeMello explicou: “A primeira qualidade que impressiona alguém que olha nos olhos de uma criança é sua inocência; essa adorável incapacidade de mentir, usar máscaras ou fingir ser algo diferente do que é”.[77] As manobras de poder do fariseu são previsíveis. No entanto, o desejo de poder é sutil. Pode passar sem ser detectado e, portanto, sem contestação. O fariseu que devora tudo e consegue acumular poder, colecionar discípulos, adquirir conhecimento, alcançar status e prestígio, além de controlar o mundo que o cerca, está distanciado da criança interior. Ele se torna uma pessoa terrível quando um subordinado rouba a cena; cínica quando recebe comentários negativos; paranoica quando ameaçada; preocupada quando se sente ansiosa; hesitante quando desafiada; e louca quando derrotada. O impostor, enredado no jogo de poder, leva uma vida vazia, com grandes evidências exteriores de sucesso, embora seja infeliz, sem afeto e oprimido pela ansiedade por dentro. O reizinho tenta dominar Deus, em vez de ser dominado por ele.[78]
O “eu” verdadeiro é capaz de preservar a inocência infantil por meio da consciência inabalável a respeito da essência de sua identidade e da recusa firme em ser intimidado e contaminado pelos semelhantes...
... cujas vidas são gastas não em viver, mas em cortejar o aplauso e a admiração; não na alegria de ser quem se é, mas na comparação e na competição neurótica, lutando por coisas vazias chamadas “sucesso” e “fama”, mesmo se puderem ser alcançadas apenas às custas da derrota, da humilhação e da destruição do próximo.[79]
John Bradshaw, entre outros, forneceu uma compreensão aguda sobre a importância de entrar em contato com a criança interior. Nesta época de tanta sofisticação, grandes conquistas e sensibilidades enfastiadas, a redescoberta da infância é um conceito maravilhoso, e como William McNamara enfatizou, “somente pode ser desfrutada por crianças que não são mimadas, por santos não canonizados, sábios discretos e palhaços desempregados”.[80]
A não ser que recuperemos nossa infância, não teremos nenhuma noção do “eu” interior e, aos poucos, o impostor se torna quem realmente pensamos ser. Tanto os psicólogos quanto os que escrevem sobre espiritualidade ressaltam a importância de conhecer a criança interior tão bem quanto possível, e acolhê-la como parte adorável e preciosa de nós.
As qualidades positivas da criança (franqueza, dependência com confiança, capacidade de se divertir, simplicidade, sensibilidade em relação aos sentimentos) nos impedem de fechar o coração a ideias novas, a compromissos não lucrativos, às surpresas do Espírito e às oportunidades arriscadas de crescimento. A autenticidade nos afasta da introspecção mórbida, das infindáveis análises pessoais e do narcisismo fatal do perfeccionismo espiritual.
Assim, não podemos deixar de resgatar a criança interior. Como Jeff Imbach comentou, “antes de tudo, se a criança interior for tudo o que se encontra no lado de dentro, a pessoa continuará isolada e solitária. Não há intimidade pessoal definitiva se tudo o que reivindicamos somos nós mesmos”.[81] Quando buscamos a criança interior durante a jornada espiritual, descobrimos não somente a inocência, mas também aquilo que Jean Gill chamou de “a criança obscura”.[82] A criança interior obscura é indisciplinada e perigosa, narcisista e teimosa, travessa e capaz de machucar um filhotinho ou outra criança. Rotulamos essas características desagradáveis como “criancices” e as negamos, ou as mantemos no inconsciente.
Quando entrei em contato com o lado sombrio de minha infância, boa parte dela estava permeada pelo medo. Tinha medo dos meus pais, da igreja, do escuro e de mim. No romance Saint Maybe, Anne Tyler intercedia a favor de seu pai substituto, Ian Bedloe:
Parecia que somente Ian sabia como aquelas crianças se sentiam: como achavam assustador cada minuto em que estavam acordadas. Ora, ser uma criança, por si, já era assustador! Não era aquilo que os pesadelos dos adultos frequentemente refletiam: o pesadelo de correr sem chegar a lugar algum, o da prova para a qual não se estudou ou o da peça que não foi ensaiada? Impotência, estranheza. Murmúrios a respeito de algo que todos sabem, menos você.[83]
Nossa criança interior não é um fim em si, mas uma passagem para o aprofundamento de nossa união com o Deus que habita em nós, um mergulho na plenitude da experiência com o Deus, na consciência vívida de que minha criança interior é filha de Deus, e que ele a mantém junto a si tanto na luz quanto nas trevas. Pense nas palavras de Frederick Buechner:
Somos filhos, quiçá, no exato momento em que reconhecemos que é como filhos que Deus nos ama — não porque merecemos seu amor nem apesar disso; não porque tentamos nem porque reconhecemos a futilidade de nossa tentativa; mas simplesmente porque ele escolheu nos amar. Somos filhos porque ele é nosso Pai; e todos os nossos esforços, frutíferos ou infrutíferos, de fazer o bem, de falar a verdade, de compreender, são esforços de filhos que, por maior que seja sua precocidade, ainda são filhos, pois, antes de o amarmos, ele nos amou, como filhos, por meio de Jesus Cristo nosso Senhor.[84]

 (Brennan Manning - O Impostor que vive em mim)


NOTAS:

[64] Publicado no Brasil sob o título Por que não sou cristão, São Paulo, Exposição do Livro, 1960.
[65] Anthony DeMello, The Way to Love, p. 54.
[66] The Choice to Be Human, p. 211.
[67] Id., p. 128.
[68] The Care of the Soul, p. 166.
[69] Eugene Kennedy, op. cit., p. 211.
[70] Ibid.
[71] James Finley, Merton’s Palace of Nowhere, p. 54.
[72] Simon Tugwell, The Beatitudes, p. 138. Cheguei aqui por meio da citação a Teresa de Lisieux.
[73] Brennan Manning, A Stranger to Self-Hatred, p. 97.
[74] Awareness: A Spirituality Conference in His Own Words, p. 28.
[75] Starlight, p. 92. Um pensador sugestivo que me ensinou muito e aprofundou meu entendimento do Evangelho. O último livro de Shea desenvolve a ideia de que o Natal não é um dia de ingenuidade e idealismo num ano de realismo incessante. É o dia da realidade num ano de ilusão. Ao acordar na manhã de Natal, percebemos como andamos como sonâmbulos durante o resto do ano.
[76] John McKenzie, The Power and the Wisdom, p. 208.
[77] The Way to Love, p. 73.
[78] Brennan Manning, The Gentle Revolutionaries, p. 39.
[79] Citado por Anthony DeMello, The Way to Love, p. 76.
[80] Mystical Passion, p. 57.
[81] Jeffrey D. Imbach. The Recovery of Love, p. 103.
[82] Unless You Become Like a Child, p. 39.
[83] P. 124.
[84] The Magnificent Defeat, p. 135.

publicado às 14:07

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