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Na pós-modernidade, a utopia dos mercados livres e da globalização torna-se a referência. Mas o efêmero, o vazio, o simulacro, a complexidade e a crise flutuam como nuvens escuras. Sente-se um mundo fragmentado, seu sentido se perdendo nessas fraturas, com múltiplos significados, orientações e paradoxos.

 

 

Por que desejar mais uma vez ir tão longe? Por que, afinal, não ficar com Nietzsche e sua lucidez corrosiva? Por que não se contentar, como tantos fizeram, em desenvolver o programa dele, preencher os espaços ainda vazios e tecer sobre os temas que ele nos legou? E se não gostamos dele, se achamos que seu pensamento flerta um pouco demais com o cinismo e com as ideologias fascistas — vermelhas ou avermelhadas —, por que não voltar atrás, por exemplo, aos direitos dos homens, à república, às Luzes?

Essas perguntas não podem ser evitadas por uma história da filosofia, por mais simples que seja. Porque pensar a passagem de uma época a outra, de uma visão de mundo a outra, faz agora parte da própria filosofia.

Então, eu lhe direi simplesmente o seguinte: a desconstrução dos ídolos da metafísica revelou coisas demais para que não a levemos em consideração. Não me parece nem possível nem desejável voltar atrás. As “voltas a” não têm sentido. Se as posições anteriores eram tão fiáveis e tão convincentes, nunca teriam passado pelos rigores da crítica, nunca teriam deixado de ser oportunas. A vontade de restaurar paraísos perdidos se origina sempre da falta de sentido histórico. Sempre se pode querer a volta dos uniformes à escola, dos quadros-negros, dos tinteiros de porcelana e das penas, voltar às Luzes ou à ideia republicana, mas é somente uma postura, uma encenação pessoal que desdenha o tempo que ficou para trás, como se ele fosse vazio, nulo e não advindo — o que na verdade ele nunca é. Os problemas a serem resolvidos pelas democracias não são mais os do século XVIII: os comunitarismos não são mais os mesmos, as aspirações mudaram, nossas relações com as autoridades e nossos modos de consumo também; novos direitos e novos atores políticos (as minorias étnicas, as mulheres, os jovens...) surgiram, e de nada serve fechar os olhos a isso.

O mesmo acontece com a história da filosofia. Queiramos ou não, Nietzsche apresentou questões impossíveis de serem descartadas. Depois dele, não podemos mais pensar como antes, como se nada tivesse acontecido, como se seus célebres “ídolos” ainda estivessem de pé. Simplesmente porque não é o caso. Houve um abalo, e não somente com Nietzsche, aliás, mas com toda a pós-modernidade: as vanguardas passaram por isso, e hoje não podemos mais pensar, escrever, pintar ou cantar do mesmo modo que antes. Os poetas não celebram mais o luar nem o pôr do sol. Sobreveio um certo desencanto do mundo, mas novas formas de lucidez, de liberdade também, a ele se seguiram. Quem hoje gostaria de voltar de verdade ao tempo de Victor Hugo, à época em que as mulheres não tinham direito de voto, os operários não tinham férias, as crianças trabalhavam com 12 anos, época em que se colonizava
alegremente a África e a Ásia? Ninguém. E essa é a razão pela qual os paraísos perdidos são apenas uma pausa, uma veleidade mais do que uma vontade real.

Então, onde estamos? E, repito, se Nietzsche é tão “incontornável”, por que não ficamos por aí e nos contentamos, como fizeram inúmeros de seus discípulos, Michel Foucault ou Gilles Deleuze, por exemplo, em dar continuidade à obra do mestre?

De fato, é possível. E hoje nos encontramos bem no meio de uma alternativa que poderíamos resumir assim: continuar por um caminho aberto pelos pais fundadores da desconstrução ou retomar o caminho da procura.

 

Primeira possibilidade para a filosofia contemporânea: prosseguir no caminho da desconstrução aberto por Nietzsche, Marx e Freud

Certamente podemos dar continuidade, inclusive por outras vias, ao trabalho de Nietzsche, ou, de modo geral, à desconstrução. Digo “de modo geral” porque Nietzsche, embora eu o considere o maior, não é o único “genealogista”, o único “desconstrutor”, o único demolidor de ídolos. Houve também, como lhe disse, Marx e Freud. Desde o início do século XX, os três tiveram, se ouso dizer, alguns milhares de filhos. Sem contar que, a esses filósofos da suspeita, veio se juntar, para se ter uma ideia, a vasta corrente das ciências humanas, as quais, no que diz respeito ao essencial, deram continuidade à obra de desconstrução dos grandes materialistas.

Uma parte da sociologia, por exemplo, decidiu mostrar como os indivíduos que se creem autônomos e livres são, na verdade, inteiramente determinados por suas escolhas éticas, políticas, culturais, estéticas, ou mesmo de vestuário, por “hábitos de classe” — o que quer dizer, se deixarmos de lado o jargão, pelo meio familiar e social no qual se nasceu. As próprias ciências duras (exatas) se envolveram, começando pela biologia, o que serve para mostrar, num estilo nietzschiano, que nossos célebres “ídolos” são apenas um produto do funcionamento inteiramente material de nosso cérebro, ou então um puro e simples efeito das necessidades de adaptação da espécie humana à história de seu ambiente. Por exemplo, nossas decisões a favor da democracia e dos direitos do homem se explicariam, em última instância, não pela escolha intelectual sublime e desinteressada, mas pelo fato de que temos, em benefício da sobrevivência da espécie, mais interesse na cooperação e na harmonia do que no conflito e na guerra.

Podemos, assim, de mil maneiras, na verdade, continuar a pensar e a operar no estilo de filosofia inaugurado por Nietzsche. E, fundamentalmente, foi o que fez a filosofia contemporânea.

Não que esta seja unívoca, é claro. Ela é, ao contrário, rica e variada. Não poderíamos limitá-la à desconstrução. Você deve saber, por exemplo, que existe, oriunda da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos, uma corrente de pensamento chamada de “filosofia analítica”, que se interessa primordialmente pelo funcionamento das ciências, e que alguns consideram a mais importante de todas, embora se fale pouco dela entre nós. Num estilo bem diverso, filósofos como Jürgen Habermas, Karl Otto Appel, Karl Popper ou John Rawls tentaram, cada um a seu modo, dar continuidade à obra de Kant, ao mesmo tempo modificando-a e estendendo-a a questões do tempo presente. Por exemplo, a da sociedade justa, dos princípios éticos que devem regular a discussão entre seres iguais e livres, e ainda a da natureza da ciência e de suas ligações com a ideia democrática etc.

Mas na França, e em larga medida nos Estados Unidos, é a continuidade da desconstrução que no mais das vezes prevalece, pelo menos nos últimos anos, sobre outras correntes de pensamento. Como lhe disse, os “filósofos da suspeita”, Marx, Nietzsche e Freud, tiveram inúmeros discípulos. Os nomes de Althusser, Lacan, Foucault, Deleuze, Derrida e alguns outros que você provavelmente não conhece ainda pertencem, embora de modos diversos, a essa configuração. Cada um deles procurou desvendar o que há por trás de nossa crença nos ídolos, as lógicas escondidas, inconscientes, que nos determinam a despeito de nossa vontade. Com Marx, tende-se para a economia das relações sociais; com Freud, para a linguagem das pulsões ocultas em nosso inconsciente; com Nietzsche, para o niilismo e a vitória das forças reativas sob todas as formas...

No entanto, não é proibido questionar o interminável processo instaurado contra os “ídolos” do humanismo, em nome da lucidez e do espírito crítico. Aonde ele leva? E a que propósito ele serve? E por que não, já que essa questão é por excelência a da genealogia e nada impede de devolvê-la a ela: de onde ele vem? Porque, sob a aparência vanguardista e audaciosa da desconstrução, por trás da pretensão de elaborar uma “contracultura” que se opõe a “ídolos” aburguesados, paradoxalmente, o risco seria o triunfo da sacralização do real como ele é. O que, aliás, é bastante lógico: de tanto desqualificar esses famosos ídolos, de tanto só aceitar a “filosofia do martelo” como único horizonte possível para o pensamento, tínhamos mesmo de acabar como Nietzsche com seu célebre amor fati, se prostrando diante do real do jeito que ele é.

Nessas condições, como evitar o destino de ex-militantes da revolução convertidos ao business, tornados “cínicos”, no sentido mais trivial do termo: petulantes, privados de ambição a não ser a de uma eficaz adaptação ao real? E nessas condições, é mesmo preciso, em nome de uma lucidez cada vez mais problemática, nos resignarmos a abdicar da Razão, da Liberdade, do Progresso, da Humanidade? Há alguma coisa nessas palavras, que até pouco tempo traziam luz e esperança, que possa escapar ao rigor da desconstrução, que possa sobreviver a ela?

 

Se a desconstrução vira cinismo, se sua crítica aos “ídolos” sacraliza o mundo tal como ele é, como ultrapassá-la?

Tais são, a meu ver, as questões que abrem um novo caminho à filosofia contemporânea, que não a do prolongamento indefinido do “desconstrucionismo”. Você pode acreditar que não seria o da volta às Luzes, à razão, à república e ao humanismo, o que não teria, eu já lhe disse por que, nenhum sentido, mas uma tentativa de pensá-los por meio de novos investimentos, não “como antes”, mas, ao contrário, depois e à luz da desconstrução.

Porque, se não o fizermos, arriscamo-nos a ver o real levar a melhor. Nesse ponto, a desconstrução, que desejava liberar os espíritos e quebrar as correntes da tradição, tornou-se, involuntariamente, sem dúvida, seu contrário: um novo servilismo
— mais desencantado do que lúcido — à dura realidade do universo da globalização no qual mergulhamos. Não podemos, de fato, atuar continuamente nos dois campos: defender com Nietzsche o amor fati, por amor ao presente tal como ele é, pela morte feliz dos “ideais superiores” e, ao mesmo tempo, chorar lágrimas de crocodilo pelo desaparecimento das utopias e pela dureza do capitalismo triunfante!

Para perceber isso plenamente, foi-me preciso descobrir o pensamento daquele que, na minha opinião, ainda é o principal filósofo contemporâneo, Heidegger. No entanto, ele também foi um dos fundadores da desconstrução. Seu pensamento, contudo, não é um materialismo — ou seja, uma filosofia hostil à ideia de transcendência, uma “genealogia” preocupada em provar que as ideias são todas e sem exceção produzidas por interesses inconfessados e inconfessáveis.

Ele é, pelo que entendo, o primeiro que soube dar ao mundo de hoje — que ele chama de “mundo da técnica” — uma interpretação que possibilitasse compreender por que é impossível permanecer na atitude nietzschiana, pelo menos se não quisermos nos tornar pura e simplesmente cúmplices de uma realidade que hoje assume a forma da globalização capitalista. Pois esta, apesar de seus lados positivos — entre outros, o abrir-se aos outros e o formidável crescimento das riquezas que ela proporciona —, possui também efeitos devastadores sobre o pensamento, a política e sobre a vida dos homens.

Eis por que, para explorar o espaço da filosofia contemporânea, começo pela exposição desse aspecto fundamental do pensamento de Heidegger.

Inicialmente porque se trata, como você mesmo vai constatar, de uma ideia intrinsecamente genial, uma das que iluminam de modo poderoso, e até incomparável, o momento presente. Em seguida, porque ela permite, como nenhuma outra, não apenas compreender a paisagem econômica, cultural e política que nos cerca, mas também perceber por que a busca incansável da desconstrução nietzschiana só pode levar a uma sacralização obscena das realidades, ainda que bem triviais e muito pouco sagradas, de um universo liberal votado precisamente ao absurdo.

Muitos ecologistas e também os que se denominam “altermundialistas” pensam desse modo. Mas a originalidade de Heidegger e de sua crítica ao mundo da técnica é que ele não se limita às críticas rituais do capitalismo e do liberalismo. Habitualmente censuram-nas, aleatoriamente, por aumentar as desigualdades, devastar as culturas e as identidades regionais, reduzir de modo irreversível a diversidade biológica e das espécies, enriquecer os ricos e empobrecer os pobres... Tudo isso, na verdade, é não apenas contestável, como ainda fica à margem do essencial. Não é verdade, por exemplo, que a pobreza aumente no mundo, embora as desigualdades se aprofundem; também não é verdade que os países ricos estejam pouco preocupados com o meio ambiente. Muito pelo contrário, eles se preocupam muito mais do que os países pobres para os quais as necessidades do desenvolvimento se sobrepõem às da ecologia. Da mesma forma são os primeiros cuja opinião pública se preocupa verdadeiramente com a preservação das identidades e das culturas particulares.

Em todo caso, poderíamos discutir longamente a respeito do tema.

O que é certo, porém, e que Heidegger leva a compreender, é que a globalização liberal está traindo uma das promessas fundamentais da democracia: aquela segundo a qual poderíamos, coletivamente, fazer nossa história ou participar dela, interferir em nosso destino para tentar dirigi-lo rumo ao melhor. Ora, o universo no qual entramos não apenas nos escapa, mas se revela desprovido de sentido, na dupla acepção do termo: simultaneamente privado de significado e de direção.

Estou certo de que você já constatou que todos os anos seu celular, seu computador, os jogos que você utiliza, e tudo o mais, mudam: as funções se multiplicam, as telas aumentam, se colorem, as conexões da internet melhoram etc. Ora, você compreende que a marca que não acompanhasse o ritmo se suicidaria. Portanto, ela é forçada a fazê-lo, quer lhe agrade ou não, quer isso tenha ou não sentido. Não é uma questão de gosto, uma escolha entre outras, mas um imperativo absoluto, uma necessidade indiscutível, caso se queira apenas sobreviver. Nesse sentido, poderíamos dizer que na competição globalizada que hoje põe todas as atividades humanas num permanente estado de concorrência, a história se move longe da vontade dos homens. Ela se torna uma espécie de fatalidade e nada indica com certeza que se oriente para o melhor. Quem pode acreditar seriamente que vamos ser mais livres e mais felizes porque no ano que vem o peso de nosso aparelho de MP3 vai diminuir pela metade, ou sua memória duplicar? Conforme o desejo de Nietzsche, os ídolos morreram: de fato, nenhum ideal inspira mais o curso do mundo, só existe a necessidade absoluta do movimento pelo movimento.

Para usar uma metáfora banal, mas significativa: assim como uma bicicleta deve avançar para não cair, ou um giroscópio rodar sem parar para se manter no eixo e não se soltar, precisamos sempre “progredir”, mas esse progresso mecanicamente induzido pela luta em vista da sobrevivência não pode mais se situar no centro de um projeto mais vasto, integrado num grande desígnio. Ainda nesse aspecto, como você vê, a transcendência dos grandes ideais humanistas de que Nietzsche zombava desapareceu mesmo — de modo que em certo sentido, como pensa Heidegger, é seu programa que o capitalismo globalizado realiza perfeitamente.

O problema do capitalismo não é tanto, como pensam os ecologistas e os altermundialistas, o fato de empobrecer os pobres para enriquecer os ricos (o que é amplamente contestável), mas é que ele nos desapossa de qualquer influência sobre a história e a priva de qualquer finalidade visível. Desapossamento e absurdo são os dois termos que melhor o caracterizam — e, nesse ponto, segundo Heidegger, ele encarna perfeitamente a filosofia de Nietzsche, ou seja, um pensamento que assumiu como nenhum outro o programa da completa erradicação de todos os ideais e simultaneamente da lógica do sentido.

Como você vê, essa análise merece, pela amplidão da proposta, atenção e tempo para que possamos compreendê-la em profundidade. É perfeitamente possível, se abstrairmos o jargão tão inútil quanto impenetrável com o qual os tradutores franceses acharam necessário envolver o pensamento de Heidegger.

 

O surgimento do “mundo da técnica” segundo Heidegger: declínio da questão do sentido

Num pequeno ensaio intitulado Le Dépassement de la Métaphysique, ele descreve como o domínio da técnica, que para ele caracteriza o universo contemporâneo, é resultado de processo que ganha força na ciência do século XVII para aos poucos abranger todos os campos da vida democrática.

Gostaria de expor aqui, em linguagem simples, destinada a quem ainda nunca leu Heidegger, seus principais momentos. Previno-o mesmo assim: o que vou lhe dizer não se encontra dessa forma em Heidegger. Acrescentei inúmeros exemplos que não são dele, e encontrei meu próprio modo de apresentar a lógica técnica. Contudo, a ideia inicial vem dele e sempre achei que se deve dar a César o que é de César. O que importa, na verdade, não é esta ou aquela formulação particular, mas a ideia central que se pode extrair da análise heideggeriana: aquela segundo a qual o projeto de dominação da natureza e da história, que acompanha o nascimento do mundo moderno e que dá sentido à ideia de democracia, vai se transformar em seu contrário perfeito. A democracia nos prometia nossa participação na construção coletiva de um universo mais justo e mais livre; ora, já perdemos quase todo o controle sobre o desenvolvimento do mundo. Suprema traição das promessas do humanismo que apresenta inúmeras questões sobre as quais é necessário refletir profundamente.

Continuemos, pois.

O primeiro momento desse processo coincide com o aparecimento da ciência moderna, que, como vimos, rompeu inteiramente com a filosofia grega. Com ela, de fato, assistimos à emergência de um projeto de dominação da Terra, de controle total do mundo pela espécie humana. Segundo a célebre fórmula de Descartes, o conhecimento científico vai permitir ao homem se tornar “como se fosse senhor e proprietário da natureza”: “como se fosse” porque ele ainda não se assemelha inteiramente a Deus, seu criador, mas quase. Essa aspiração ao domínio científico do mundo pela espécie humana assume dupla forma.

De início, ela se exprime num plano apenas “intelectual”, teórico, por assim dizer: o do conhecimento do mundo. A física moderna vai se fundamentar inteiramente no postulado segundo o qual nada no mundo acontece sem razão. Em outras palavras, tudo nele deve poder ser explicado em algum momento, racionalmente; todo acontecimento possui uma causa, uma razão de ser, e o papel da ciência é descobri-las, de modo que seu progresso se confunda com a erradicação progressiva do mistério que os homens da Idade Média acreditavam inerente à natureza.

Mas uma outra dominação se delineia por trás do domínio do conhecimento. Trata-se agora de uma dominação inteiramente prática, que não provém mais do intelecto, e sim da vontade dos homens. De fato, se a natureza não é mais misteriosa, se ela não é mais sagrada, mas, ao contrário, se reduz a um estoque de objetos simplesmente materiais e em si mesmos completamente desprovidos de sentido ou valor, então nada nos impede mais de utilizá-la como quisermos, para realizar os nossos próprios fins. Imaginemos: se a árvore da floresta não é mais, como nos contos de fadas da nossa infância, um ser mágico suscetível de se transformar durante a noite em bruxa ou em monstro, mas só um pedaço de madeira totalmente desprovido de alma, nada mais nos impede de transformá-la em móvel ou de mandá-la para a lareira para nos aquecer. A natureza inteira perde seus encantos. Ela se torna uma gigantesca arena, uma espécie de loja enorme onde os humanos podem se abastecer à vontade, sem outra restrição além da imposta pelas necessidades de preservação do futuro.

Contudo, no momento do nascimento da ciência moderna, não nos encontramos ainda no que Heidegger chama de “mundo da técnica” propriamente dito, quer dizer, um universo no qual a preocupação com os fins, com os objetivos últimos da história humana, vai desaparecer totalmente em benefício único e exclusivo da atenção aos meios. De fato, no racionalismo dos séculos XVII e XVIII, em Descartes, nos enciclopedistas franceses ou em Kant, por exemplo, o projeto de um domínio científico do universo ainda possui um alcance emancipador. Com isso quero dizer que, em princípio, ele permanece submisso à realização de certas finalidades, de certos objetivos considerados vantajosos para a humanidade. O que interessa não são apenas os meios que nos permitirão dominar o mundo, mas os objetivos que esse domínio nos possibilitará, eventualmente, realizar: com isso, você vê que esse interesse não é puramente técnico. Caso se trate de dominar o universo teórica e praticamente, por meio do conhecimento científico e pela vontade dos homens, não é pelo simples prazer de dominar, por simples fascinação por nosso próprio poder. Não se visa dominar por dominar, mas para compreender o mundo e poder, ocasionalmente, servir-se dele com vistas a atingir certos objetivos superiores que se reagrupam finalmente em torno de dois temas principais: liberdade e felicidade.

Com isso, você deve compreender que a ciência moderna em estado nascente ainda não se reduz à pura técnica.

 

Sobre a diferença entre a ciência moderna e a técnica contemporânea

No século das Luzes, o projeto científico repousa ainda sobre dois credos, duas convicções que fundam o otimismo e a crença no progresso que então dominam os maiores espíritos.

A primeira convicção é aquela segundo a qual a ciência vai nos permitir libertar os espíritos, emancipar a humanidade dos grilhões da superstição e do obscurantismo medieval. A razão vai sair gloriosa do combate contra a religião e, geralmente, contra todas as formas de argumentos de autoridade — com isso, o racionalismo moderno prepara em espírito, como vimos a respeito de Descartes, a grande revolução de 1789.

A segunda é que o domínio do mundo vai nos libertar das servidões naturais e até mesmo revertê-las em nosso favor. Talvez você se lembre de que evocamos a comoção provocada em 1755 pelo famoso terremoto de Lisboa que, em algumas horas, fez milhões de mortos. Um debate foi instaurado entre os filósofos sobre a “maldade” dessa natureza que, decididamente, não tem nada de um cosmos harmonioso e bom. E todos, ou quase, pensam na época que a ciência vai nos salvar das tiranias naturais. Graças a ela,
será, enfim, possível prever e, consequentemente, prevenir as catástrofes que a natureza envia regularmente aos homens. Essa é a ideia moderna de uma felicidade conquistada pela ciência, de um bem-estar possibilitado pelo domínio do mundo, que faz sua entrada em cena.

Assim, é em relação a essas duas finalidades, liberdade e felicidade, que juntas definem o cerne da ideia de progresso, que o desenvolvimento das ciências aparece como o veículo de outro progresso, o da civilização. Pouco importa se essa visão das virtudes da razão seja ingênua ou não. O que conta é que nela a vontade de dominar se articula ainda com objetivos exteriores e superiores a ela e que, nesse sentido, não pode ser reduzida a uma pura razão instrumental ou técnica que leve em consideração apenas os meios em detrimento dos fins.

Para que nossa visão do mundo se torne plenamente tecnicista, é necessário, portanto, um passo a mais. É preciso que o projeto das Luzes se integre ao mundo da competição, “encaixado” nele, de modo que o motor da história, o princípio da evolução da sociedade, como no exemplo do telefone celular que lhe dei há pouco, não se associe mais à representação de um projeto, de um ideal, tornando-se o único e exclusivo resultado da própria competição.

 

A passagem da ciência à técnica: a morte dos grandes ideais ou o desaparecimento dos fins em proveito dos meios

Nessa nova perspectiva, a da concorrência generalizada — que hoje chamamos de “globalização” —, a noção de progresso muda totalmente de significado: em vez de se inspirar em ideais transcendentes, o progresso, ou mais exatamente o movimento das sociedades, vai pouco a pouco se restringir a ser apenas o resultado mecânico da livre concorrência entre seus diferentes componentes.

Nas empresas, mas também nos laboratórios científicos e nos centros de pesquisa, a necessidade de se comparar continuamente aos outros — o que hoje tem um nome bem feio: o benchmarketing —, de aumentar a produtividade, de desenvolver os conhecimentos e, sobretudo, suas aplicações à indústria, à economia, em síntese, ao consumo, tornou-se um imperativo absolutamente vital. A economia moderna funciona como a seleção natural em Darwin: de acordo com uma lógica de competição globalizada, uma empresa que não progrida todos os dias é uma empresa simplesmente destinada à morte. Mas o progresso não tem outro fim além de si mesmo, ele não visa a nada além de se manter no páreo com outros concorrentes.

Daí o formidável e incessante desenvolvimento da técnica preso ao crescimento econômico e largamente financiado por ele. Daí também o fato de que o aumento do poder dos homens sobre o mundo tornou-se um processo absolutamente automático, incontrolável e até mesmo cego, já que ultrapassa as vontades individuais conscientes. É simplesmente o resultado inevitável da competição. Nesse ponto, contrariamente às Luzes e à filosofia do século XVIII que, como vimos, visavam à emancipação e à felicidade dos homens, a técnica é realmente um processo sem propósito, desprovido de qualquer espécie de objetivo definido: na pior das hipóteses, ninguém mais sabe para onde o mundo nos leva, pois ele é mecanicamente produzido pela competição e não é de modo algum dirigido pela consciência dos homens agrupados coletivamente em torno de um projeto, no seio de uma sociedade que, ainda no século passado, podia se chamar res publica, república: etimologicamente, “negócio” ou “causa comum”.

Temos aqui, portanto, o essencial: no mundo da técnica, ou seja, a partir de agora, no mundo todo, já que a técnica é um fenômeno sem limites, planetário, não se trata mais de dominar a natureza ou a sociedade para ser livre e mais feliz. Por quê? Por nada, justamente, ou antes, porque é simplesmente impossível agir de modo diferente devido à natureza de sociedades animadas integralmente pela competição, pela obrigação absoluta de “progredir ou perecer”.

Você já pode compreender por que Heidegger chama de “mundo da técnica” o universo no qual vivemos hoje. Para isso basta que você pense um pouco no significado que envolve a palavra “técnica” na linguagem corrente.

Ela designa geralmente o conjunto dos meios que é preciso mobilizar para realizar um fim determinado. É nesse sentido, por exemplo, que se fala de um pintor ou de um pianista que possui uma “sólida técnica”, no sentido de que ele domina sua arte suficientemente bem para poder pintar ou tocar o que quiser. Você deve, antes de tudo, observar que a técnica concerne aos meios e não aos fins. Quero dizer que ela é uma espécie de instrumento que se põe a serviço de todos os tipos de objetivos, mas que ela mesma não os escolhe: é essencialmente a mesma técnica que servirá ao pianista para tocar tão bem o clássico quanto o jazz, música antiga ou moderna, mas saber que obras ele vai escolher para interpretar não provém absolutamente da competência técnica.

É por isso que se diz também que a técnica é uma “racionalidade instrumental”, justamente porque nos diz como realizar do melhor modo um objetivo, mas ela nunca o estabelece por si mesma. Ela se move na ordem do “se... então”: “se você quer isto, então faça aquilo”, nos diz ela, mas nunca determina o que é preciso escolher como fim. Um “bom médico”, no sentido do bom técnico da medicina, pode tanto matar o paciente quanto curá-lo — acontece mais facilmente a primeira e não a segunda opção... Mas decidir tratar ou assassinar é algo totalmente diferente da lógica técnica enquanto tal.

Nesse ponto é igualmente legítimo dizer que o universo da competição globalizada é, em sentido lato, “técnico”, pois, para ele, o progresso científico deixa certamente de visar a fins exteriores e superiores a si mesmo para se tornar uma espécie de fim — como se a multiplicação de meios, do poder ou do domínio dos homens sobre o universo se tornasse sua própria finalidade. É exatamente isso, essa “tecnicização do mundo” que ocorre, segundo Heidegger, na história do pensamento, com a doutrina nietzschiana da “vontade de poder”, na medida em que desconstrói e até destrói todos os “ídolos”, todos os ideais superiores. Na realidade — e não mais apenas na história das ideias —, essa mutação transparece no surgimento de um mundo onde o “progresso” (agora as aspas se impõem) se tornou um processo automático e sem finalidade, uma espécie de mecânica autossuficiente da qual os homens são totalmente desapossados. E é justamente esse desaparecimento dos fins em benefício apenas da lógica dos meios que constitui a vitória da técnica como tal.

 

Essa é a diferença última que nos separa das Luzes, que opõe o mundo contemporâneo ao universo dos Modernos: ninguém mais pode racionalmente ter certeza de que essas evoluções fervilhantes e desordenadas, esses movimentos incessantes que não são mais ligados por nenhum projeto comum, possam nos conduzir infalivelmente para o melhor. Os ecologistas têm sérias dúvidas, os críticos da globalização também, mas da mesma forma bom número de republicanos, ou mesmo de liberais que, por essa razão mesma, se tornam a contragosto nostálgicos de um passado ainda recente, mas, ao que parece, irremediavelmente perdido.

Daí também, entre os cidadãos, até os menos apaixonados pela história das ideias, o sentimento de dúvida. Pela primeira vez na história da vida, uma espécie viva detém os meios de destruir todo o planeta; e essa espécie não sabe para onde vai! Seus poderes de transformação e, eventualmente, de destruição do mundo são, a partir de agora, gigantescos, mas como um gigante que tivesse o cérebro de um recém-nascido, eles estão totalmente dissociados de uma reflexão sobre a sabedoria — enquanto a própria filosofia se afasta apressada, tomada que está, também ela, pela paixão técnica.

Ninguém hoje pode garantir a sobrevivência da espécie; muitos se inquietam, e nem por isso alguém sabe como “recuperar o controle”: do protocolo de Kyoto a cimeiras sobre ecologia, os chefes de Estado assistem, praticamente impotentes, às evoluções do mundo, mantendo um discurso moralizante, cheio de resoluções edificantes, mas sem efeito real sobre as situações, mesmo as mais bem-reconhecidas como potencialmente catastróficas. O pior nem sempre é certo, e nada impede, é claro, de se manter o otimismo. Mas é preciso dizer que isso provém mais da fé do que de uma convicção fundada na razão. Desse modo, o ideal das Luzes atualmente cede lugar a uma inquietação difusa e multiforme, sempre pronta a se cristalizar nesta ou naquela ameaça particular, de modo que o medo tende a se tornar a paixão democrática por excelência.

 

(continua)

publicado às 18:43

Críticas e interpretações de Nietzsche
Acredito ter-lhe apresentado o pensamento de Nietzsche sob seu melhor aspecto, sem nunca tentar criticá-lo — como fiz, aliás, quase sempre quanto aos grandes filósofos que abordamos juntos.
Estou, de fato, em parte convencido de que é preciso inicialmente compreendê-lo antes de fazer objeções, e de que isso leva tempo, muito tempo, às vezes, mas também, e sobretudo, de que é preciso aprender a pensar segundo outros e com outros, antes de se conseguir, tanto quanto possível, pensar por si mesmo. Por isso não gosto de denegrir um grande filósofo — mesmo quando, por vezes, sou levado a silenciar objeções que me vêm irresistivelmente ao espírito.
Não posso, contudo, omitir por mais tempo uma delas — naverdade, eu teria várias —, que fará com que você entenda por que, apesar de todo o interesse que demonstro pela obra de Nietzsche, nunca pude ser nietzschiano.
Essa objeção diz respeito à doutrina do amor fati, que se encontra, como você viu, em muitas tradições filosóficas, entre os budistas e estoicos notadamente, mas também no materialismo contemporâneo, como você verá no próximo capítulo.
A noção de amor fati se fundamenta no seguinte princípio: lamentar um pouco menos, esperar um pouco menos, amar um pouco mais o real como ele é e, se possível, amá-lo por inteiro! Compreendo perfeitamente quanta serenidade, alívio, reconforto, como tão bem diz Nietzsche, pode haver na inocência do devir. Acrescento que a injunção só vale, é claro, para os aspectos mais dolorosos do real: convidar-nos a amá-lo quando ele é amável não teria, de fato, sentido, já que isso seria natural. O que o sábio deve conseguir realizar em si é o amor pelo que ocorre, sem o que ele não é sábio, mas se encontra como todos, amando o que é amável e não amando o que não o é!
Ora, é aí que reside a dificuldade: se é preciso dizer sim a tudo, se não se pode, como se diz, “pegar e largar”, mas, ao contrário, assumir tudo, como evitar o que um filósofo contemporâneo, discípulo de Nietzsche, Clément Rosset, chamava tão acertadamente (mas para negar), o “argumento do carrasco”?
Esse argumento é mais ou menos enunciado da seguinte forma: existem na Terra, desde sempre, carrascos e torturadores. Sem dúvida alguma, eles fazem parte do real. Consequentemente, a doutrina do amor fati, que nos obriga a amar o real tal como ele é, nos pede também para amar os torturadores!
Rosset considera a objeção banal e risível. Quanto ao primeiro ponto, ele tem razão: o argumento, concordo, é trivial. Mas e quanto ao segundo? Uma palavra pode ser banal e, contudo, absolutamente verdadeira. Ora, acredito que seja este o caso.
Outro filósofo contemporâneo, Theodor Adorno, se perguntava se ainda poderíamos, depois de Auschwitz e do genocídio hitlerista perpetrado contra os judeus, convidar os homens a amar o mundo tal como é, com um sim sem restrição ou exceção. Será mesmo possível? Epicteto, por sua vez, declarou nunca ter encontrado em sua vida um sábio estoico, alguém que amasse o mundo em todos os momentos, mesmo os mais atrozes que se possa imaginar, que se abstivesse, em qualquer circunstância, de lamentar ou esperar. Devemos ver de fato nesse esmorecimento uma loucura, uma fraqueza passageira, uma falta de sabedoria, ou não seria um sinal de que a teoria vacila, que o amor fati não apenas é impossível, mas que às vezes se torna simplesmente obsceno? Se devemos aceitar tudo o que é como é, em toda a sua dimensão trágica de não sentido radical, como evitar a acusação de cumplicidade, ou de colaboração com o mal?
Mas ainda há mais — muito mais, mesmo. Se o amor ao mundo tal como ele anda não é realmente praticável nem entre os estoicos, nem entre os budistas, em Nietzsche, ele não corre o risco de retomar irresistivelmente a forma execrável de um novo ideal e, por isso mesmo, de uma nova figura do niilismo? Na minha humilde opinião, esse é o argumento mais forte contra a longa tradição que vai das sabedorias mais antigas do Oriente e do Ocidente até o materialismo mais contemporâneo: de que adianta pretender acabar com o “idealismo”, com todos os ideais e todos os “ídolos”, se esse grandioso programa filosófico permanece ele próprio... um ideal? De que adianta zombar de todas as figuras da transcendência e apelar para essa sabedoria que ama o real tal como ele é se esse amor permanece, por sua vez, perfeitamente transcendente, se ele permanece um objetivo radicalmente inacessível sempre que as circunstâncias, por menos que seja, são difíceis de serem vividas?
De qualquer modo, tais interrogações não poderiam nos levar a subestimar a importância histórica da resposta nietzschiana às três grandes perguntas de toda filosofia: a genealogia como nova teoria, o grande estilo como moral ainda inédita e a inocência do devir como doutrina da salvação sem Deus nem ideal formam um todo coerente sobre o qual você deverá refletir por muito tempo. Pretendendo desconstruir a própria noção de ideal, o pensamento de Nietzsche abre caminho para os grandes materialismos do século XX, para os pensamentos da imanência radical do ser no mundo que, por apresentarem os mesmos defeitos do modelo de origem, nem por isso deixarão de constituir uma longa e fecunda posteridade.
Gostaria ainda, a título de conclusão, de lhe dizer como a obra de Nietzsche será objeto de três interpretações (sem dúvida só me refiro às que valem a pena, às que se enraízam numa leitura séria).
Podemos ver nela uma forma radical de anti-humanismo, uma desconstrução sem precedente dos ideais da filosofia das Luzes. De fato, é certo que o progresso, a democracia, os direitos do homem, arepública, o socialismo etc., todos esses ídolos e ainda outros serão varridos por Nietzsche, de sorte que, quando Hitler encontrou Mussolini, não foi inteiramente por acaso que lhe ofereceu uma bela edição encadernada de suas obras completas... Também não foi acaso que ele tenha servido de modelo — num outro estilo, por vezes ligado ao primeiro, devido ao ódio à democracia e ao humanismo — ao esquerdismo cultural dos anos 1960.
Inversamente, podemos ver nele um continuador paradoxal da filosofia das Luzes, um herdeiro de Voltaire e dos moralistas franceses do século XVIII. O que não tem nada de absurdo, pois, em muitos aspectos, Nietzsche dá prosseguimento ao trabalho que eles inauguraram, ao criticar a religião, a tradição, o Antigo Regime ou ao colocar sempre em evidência, por trás dos grandes ideais anunciados, os interesses inconfessáveis e as hipocrisias escondidas.
Podemos, por fim, ler Nietzsche como aquele que acompanha o nascimento de um mundo novo, aquele no qual as noções de sentido e de ideal vão desaparecer em proveito apenas da lógica da vontade de poder. É a interpretação de Heidegger, como veremos no próximo capítulo, que vê Nietzsche como o “pensador da técnica”, o primeiro filósofo que vai destruir integralmente e sem o menor resquício da noção de “finalidade” a ideia de que haveria, na existência humana, um sentido a buscar, objetivos a perseguir, fins a realizar. Com o grande estilo, de fato, o único critério que subsiste ainda para definir a vida boa é o critério da intensidade, da força pela força, em detrimento de todos os ideais superiores.
Não seria, depois de esgotada a alegria de desconstruir, entregar o mundo contemporâneo ao puro cinismo, às leis cegas do mercado e da competição globalizada?
Como você vê, a pergunta merece pelo menos ser feita.


(Luc Ferry - Aprender a Viver)

NOTAS:

30 Le Crépuscule des Idoles, «Le cas Sócrates», § 2. [Crepúsculo dos Ídolos, “O problema de Sócrates”.]
31 Além do Bem e do Mal, § 289.
32 Ibid., tomo I, livro 2, § 51.
33 A Gaia Ciência, § 374.
34 Personagem do popular Columbo, seriado de tevê dos anos 1970 em que um desajeitado detetive desvenda crimes após dar ao assassino uma falsa sensação de segurança, pois faz perguntas tolas e aparentemente sem pretensão, enquanto se atém a detalhes. (N. da E.)
35 La Volonté de Puissance, 151 (tradução de Albert, “Le Livre de Poche”, p. 166. [A Vontade de Poder.]
36 Cf. sobre esse aspecto da personalidade de Nietzsche, Daniel Halévy, Nietzsche, Hachette, Co. “Pluriel”, 1986, p. 489 ss. [HALÉVY, Daniel. Nietzsche: uma Biografia. Tradução de Roberto Cortes de Lacerda e Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Campus, 1989.]
37 Crepúsculo dos Ídolos, Considerações Inatuais, § 34.
38 Humano, Demasiado Humano, § 276.
39 A Moral enquanto Manifestação Antinatural, § 1.
40 Ibid., § 3
41 Cf. A Vontade de Poder, op. cit., § 409: “Declarei guerra ao ideal anêmico do cristianismo (assim como ao que lhe diz respeito) não com o intuito de destruí-lo, mas para pôr fim à sua tirania [...] A continuação do ideal cristão faz parte das coisas mais desejáveis que existem: a não ser por causa do ideal que quer se valorizar a seu lado e, talvez, acima dele — pois este precisa de adversários, e adversários vigorosos para se fortalecer. É assim que nós, imoralistas, utilizamos o poder da moral: nosso instinto de conservação deseja que nossos adversários conservem suas forças — ele quer apenas se tornar o senhor desses adversários.”
42 A Vontade de Poder, op. cit., II, 152.
43 A Vontade de Poder, op. cit., p. 152.
44 Ibid., p. 172.
45 Ibid., p. 170.
46 A Vontade de Poder. Introdução, § 8.
47 O Anticristo, § 7.
48 Ibid., § 18.
49 Edição Schlechta, III, 560.
50 A Vontade de Poder, Bianquis, IV, 1.441-1.444. No mesmo sentido, ver também A Gaia Ciência, IV, § 341, assim como as célebres passagens do Zaratustra em que Nietzsche comenta sua fórmula segundo a qual “toda alegria [Lust] quer eternidade”.
51 Zaratustra, III, “Os sete selos”.
52 Ecce Homo, “Por que sou tão sábio”.
53 Tradução Bianquis, II, Introdução, § 14.
54 Tradução Bianquis, III, § 382.
55 Ibid., § 458.
56 Nesse ponto ele segue os epicuristas.

publicado às 00:14

As forças “ativas” ou a afirmação do corpo: como elas se exprimem na arte — não na ciência — e culminam numa visão “aristocrática” do mundo


Já comentei que, ao contrário das forças reativas, as ativas poderiam se instalar no mundo e nele empregar todos os seus esforços sem necessidade de alterar ou reprimir outras forças. É na arte, e não mais na filosofia ou na ciência, que essas forças encontram seu espaço de vida natural. Da mesma forma que existe uma equivalência secreta entre reação/busca da verdade/democracia/rejeição do mundo sensível em proveito do mundo inteligível, um fio de Ariadne une a arte, a aristocracia, o culto do mundo sensível ou corporal e as forças ativas.

Consideremos mais atentamente, para que você não apenas compreenda o juízo terrível de Nietzsche contra Sócrates, mas ainda perceba em que consiste sua “ontologia”, sua definição completa do mundo como conjunto de forças reativas e ativas.
Ao contrário do “homem teórico”, o filósofo ou cientista aos quais acabamos de nos referir, o artista é por excelência aquele que enuncia valores sem discutir, aquele que nos abre “perspectivas de vida”, que inventa mundos novos sem necessidade de demonstrar a legitimidade do que propõe, menos ainda de prová-la pela refutação de outras obras que precederam a sua. Como aristocrata, o gênio ordena sem argumentar contra qualquer um ou qualquer coisa — observe que é por isso que Nietzsche declara que “o que precisa ser demonstrado para ser acreditável não vale grande coisa”...

Evidentemente, você pode gostar de Chopin, de Bach, de rock ou de techno, dos pintores holandeses ou dos contemporâneos sem que ninguém pense em lhe impor a escolha de um deles em detrimento dos outros. Em compensação, no que se refere à verdade, uma hora ou outra é preciso escolher. Copérnico tem razão contra Ptolomeu, e a física de Newton é certamente mais verdadeira que a de Descartes. A verdade só se afirma quando afasta os erros que se encontram na história das ciências. A história da arte, ao contrário, é lugar de possível coexistência das obras, até mesmo das mais contrastantes. Não que as tensões e querelas estejam ausentes aí. Pelo contrário, os conflitos estéticos são, às vezes, os mais violentos e apaixonados que existem. Apenas, nunca são resolvidos em termos de “ter ou não razão”, eles deixam sempre em aberto, pelo menos depois do acontecido, a possibilidade de uma igual admiração por seus diferentes protagonistas. Ninguém pensaria em dizer, por exemplo, que Chopin tem “razão contra Bach” ou que Ravel “está errado em relação a Mozart”!

É por isso, sem dúvida, que desde a aurora da filosofia na Grécia, dois tipos de discursos, duas concepções do uso das palavras sempre se confrontaram.

De um lado, o modelo socrático e reativo que, pelo diálogo, busca a verdade e, para tanto, se opõe às diversas faces da ignorância, da estupidez ou da má-fé. De outro, o discurso sofístico sobre o qual eu lhe dizia há pouco que não visa absolutamente à verdade, mas simplesmente procura seduzir, persuadir, produzir efeitos quase físicos sobre um auditório que deve, pelo simples poder das palavras, ser levado à adesão. O primeiro registro é o da filosofia e da ciência: a linguagem é apenas um instrumento a serviço de uma realidade mais elevada que ela, a Verdade inteligível e democrática que se imporá, um dia ou outro, a cada um. O segundo é o da arte, da poesia: as palavras não são mais simples meios, mas fins em si; elas valem por si mesmas, já que produzem efeitos estéticos — quer dizer, de acordo com a etimologia (aisthésis é a palavra grega que designa a sensação), sensíveis, quase corporais — sobre aqueles que são capazes de distingui-los.

Uma das táticas empregadas por Sócrates nesses torneios oratórios contra os sofistas ilustra perfeitamente essa oposição: no momento em que um grande sofista, Górgias ou Protágoras, por exemplo, acaba de concluir uma deslumbrante narrativa, diante de um público ainda sob seu encanto, Sócrates finge incompreensão, ou, melhor ainda, chega atrasado de propósito, depois do espetáculo. Excelente pretexto para pedir ao retórico para “resumir sua apresentação”, para expor, se possível brevemente, o conteúdo essencial de seu discurso. Você entende que é impossível. O pedido  de Sócrates é motivado, segundo Nietzsche, por pura maldade! É o mesmo que reduzir uma conversa amorosa a seu “núcleo racional”, o mesmo que pedir a Baudelaire ou a Rimbaud que resumam um de seus poemas! O albatroz? Uma ave que tem dificuldade de levantar voo... O barco embriagado? Uma embarcação em perigo... Sócrates não tem nenhuma dificuldade em marcar pontos: assim que o adversário comete o erro de entrar no seu jogo, está perdido, pois evidentemente, no que se refere à arte, não é o conteúdo de verdade que importa, mas a magia das emoções sensíveis, que, é claro, não poderia resistir à prova, diminuidora por excelência, do resumo.
Você pode ver, por fim, o que Nietzsche quer dizer no texto que citei acima, quando evoca a “feiura” de Sócrates, quando o associa à ideologia democrática ou ainda quando estigmatiza, um pouco mais adiante no mesmo livro, a “maldade do raquítico” que se compraz em aplicar contra seus interlocutores a “facada do silogismo”. Não veja nisso tanto a expressão de fórmulas fascistizantes, mas antes uma aversão à vontade de verdade (pelo menos em suas formas racionalistas e reativas tradicionais — pois você entende que Nietzsche, num outro sentido, talvez, que ainda não foi definido, também procura uma espécie de verdade).

Da mesma forma, quando ele fala de “evolução cruzada” e associa a ideia de mestiçagem à de decadência, não pense que haja aí um cheiro de racismo — mesmo que as conotações de seu discurso nos façam pensar a respeito. Por mais ambígua e até desagradável que seja a formulação, ela quer significar algo de profundo, designar um fenômeno que precisaremos esclarecer, ou seja: o fato de que as forças que se entrechocam, que se contrapõem umas às outras — o que ele chama de “mestiçagem” —, enfraquecem a vida e a tornam menos intensa, menos interessante.

Porque, como agora compreendemos bem, aos olhos de Nietzsche — ou talvez devêssemos dizer “aos seus ouvidos”, a tal ponto ele suspeita do vocabulário da visão, da theoria —, o mundo não é um cosmos, uma ordem, nem natural como para os Antigos, nem construído pela vontade dos homens como para os Modernos. Ao contrário, é um caos, uma pluralidade irredutível de forças, de instintos, de pulsões que vivem em confronto. Ora, o problema é que, ao se entrechocar, essas forças ameaçam continuamente, em nós e fora de nós, opor-se e, por isso mesmo, bloquear-se, diminuir-se e se enfraquecer. É assim, no conflito, que a vida definha, torna-se menos viva, menos livre, menos alegre, em resumo, menos poderosa — é nesse aspecto que Nietzsche prenuncia a psicanálise. Segundo esta, com efeito, são os conflitos psíquicos inconscientes, os dilaceramentos internos, que nos impedem de viver bem, nos fazem adoecer e nos impossibilitam de, segundo a célebre fórmula de Freud, “fruir e agir”.

Muitos intérpretes de Nietzsche, sobretudo recentemente, cometeram um erro enorme a respeito de seu pensamento, e eu gostaria que você o evitasse: eles acreditaram ingenuamente que, para tornar a vida mais livre e mais alegre, Nietzsche propunha a rejeição das forças reativas com o fim de conservar apenas as forças ativas, liberar o sensível e o corpo, abandonando a “seca e fria razão”.

Com efeito, isso pode parecer bastante “lógico” à primeira vista. Saiba, no entanto, que tal “solução” é o arquétipo do que Nietzsche chama de “tolice”: pois, evidentemente, rejeitar as forças reativas seria naufragar numa outra figura da reação, já que nos colocaria em oposição a uma parte do real! Portanto, não é para uma forma qualquer de anarquia, de emancipação dos corpos ou de “liberação sexual” que ele vai nos convidar a segui-lo, mas, ao contrário, para uma intensificação e hierarquização, tão sujeitas quanto possível às múltiplas formas que constituem a vida.
A isso Nietzsche dá o nome de “grande estilo”.

E é com essa ideia que penetramos no cerne da moral do imoralista.

 

II. Além do bem e do mal: a moral do imoralista e o culto do “grande estilo”

Há paradoxo em querer encontrar uma moral em Nietzsche, da mesma forma que em buscar a natureza em sua theoria. Lembre-se — nós já falamos sobre isso — do modo como Nietzsche rejeita com violência todo projeto de melhoramento do mundo. Todos sabem, aliás, mesmo não sendo finos leitores de suas obras, que ele sempre se definiu como o “imoralista” por excelência, que ele sempre atacou a caridade, a compaixão, o altruísmo, sob todas as suas formas, cristãs ou não.

Como eu já disse, Nietzsche detesta a noção de ideal; ele é daqueles que não empalidecem diante das primeiras manifestações do humanitário moderno, nas quais vê apenas um leve cheiro de cristianismo:


Proclamar o amor universal da humanidade [escreve ele nesse contexto] é, na prática, dar preferência a tudo o que é doloroso, defeituoso, degenerado... Para a espécie, é necessário que o defeituoso, o fraco, o degenerado pereçam.35


Às vezes, sua paixão descaridosa ou seu gosto pela catástrofe se manifestam como um verdadeiro delírio. De acordo com seus próximos mesmos, ele não reprime a alegria quando fica sabendo que um tremor de terra destruiu algumas casas em Nice, cidade onde, no entanto, gosta de morar, mas, infelizmente, o desastre é menor do que o previsto. Felizmente, algum tempo depois, ele se recupera ao saber que um cataclismo arrasou a ilha de Java:


Duzentos mil seres aniquilados de uma só vez [diz ele ao amigo Lanzky] é magnífico! [sic!]... A destruição radical de Nice e dos nicenses é que seria necessária...36


Não é, portanto, aberrante falarmos de uma moral de Nietzsche? Aliás, o que poderia ele propor a respeito desse tema? Se a vida é apenas um tecido de forças cegas e dilaceradas, se nossos juízos de valor são apenas emanações mais ou menos decadentes, por vezes, mas sempre privados de qualquer significação exceto a de sintomáticos de nossos estados vitais, de que adianta esperar de Nietzsche a menor consideração ética?

Como lhe dizia há pouco, é verdade que uma hipótese seduziu alguns nietzschianos “de esquerda” — tão bizarra quanto possa parecer, essa estranha categoria, que o teria tornado ainda mais doente do que já era, existe mesmo. Eles se detiveram, de modo bem simplista, é preciso dizer, no seguinte raciocínio: se, entre todas as forças vitais, umas, as reativas, são “repressivas”, enquanto outras, as ativas, são libertadoras, não se deveria simplesmente aniquilar as primeiras em proveito das segundas? Não seria necessário até mesmo declarar finalmente que todas as normas enquanto tais devem ser proscritas, que é “proibido proibir”, que a moral é apenas uma invenção de padres, a fim de liberar as pulsões em jogo na arte, no corpo, na sensibilidade?
Acreditaram nisso. Parece que alguns ainda acreditam... Nas pegadas das contestações de 68, quis-se ler Nietzsche nesse sentido. Como um revoltado, um anarquista, um apóstolo da libertação sexual, da emancipação dos corpos...

Se não se pode compreender Nietzsche, basta lê-lo e constatar que essa hipótese não é apenas absurda, mas o antípoda de tudo aquilo em que ele próprio acreditava. Que ele seja tudo, menos um anarquista, é o que ele nunca deixou de afirmar alto e bom som, como prova, entre tantas outras, esta passagem do Crepúsculo:


Quando o anarquista, como porta-voz das camadas sociais em decadência, reclama, com toda a indignação, o “direito”, a “justiça”, os “direitos iguais”, ele se encontra sob a pressão de sua própria incultura que não entende por que, no fundo, sofre, em que sua vida é pobre... Há nele um instinto de causalidade que o força a raciocinar: é preciso que seja culpa de alguém se ele está tão pouco à vontade... essa “grande indignação” já lhe faz bem, é um verdadeiro prazer para um pobre-diabo poder injuriar, ele encontra nisso uma leve embriaguez de poder...37


Se quisermos, podemos contestar a análise (muito embora...). Não se poderia, em todo caso, fazer Nietzsche endossar a paixão libertária e as indignações juvenis de Maio de 68 que ele, sem dúvida, teria considerado uma emanação por excelência do que chama de “ideologia do rebanho”... Isso pode ser contestado, sem dúvida. Em todo caso, não podemos negar sua aversão explícita por toda forma de ideologia revolucionária, quer se trate do socialismo, do comunismo ou do anarquismo.

Não há dúvida também de que, por outro lado, a simples ideia de “liberação sexual” lhe causasse horror. Para ele é evidente que um verdadeiro artista, um escritor digno desse nome deve, nesse aspecto, procurar se poupar. Segundo um tema desenvolvido exaustivamente nos célebres aforismos sobre a “fisiologia da arte”, “a castidade é a economia do artista”, ele deve praticá-la sem fraqueza, “pois é uma única e mesma força que consumimos na criação artística e no ato sexual”. Aliás, Nietzsche tem palavras bastante duras contra a proliferação das paixões que caracteriza a vida moderna desde a emergência, em sua opinião altamente funesta, do romantismo.

É preciso, pois, ler Nietzsche antes de falar sobre ele e de fazê-lo falar.

Se, além do mais, quisermos compreendê-lo, é preciso acrescentar algo que seria evidente para um verdadeiro leitor, que é o seguinte: toda atitude “ética” que consiste em rejeitar uma parte das forças vitais, mesmo a que correspondesse às forças reativas, em proveito de outro aspecto da vida, fosse ele dos mais “ativos”, ela cairia ipso facto na mais patente reação! É claro que esse enunciado não apenas é uma consequência direta da definição nietzschiana das forças reativas como forças mutiladoras e castradoras, mas também sua tese mais explícita e mais constante, como prova essa passagem crucial e excepcionalmente límpida de Humano, Demasiado Humano:

Supondo-se que um homem experimente o amor das artes plásticas ou da música, tanto quanto se sinta atraído pelo espírito da ciência [ele é, pois, seduzido pelas duas faces das forças, a ativa e a reativa], e que considere impossível eliminar essa contradição pela supressão de um e a liberação completa do outro, só lhe resta fazer de si mesmo um edifício da cultura tão grande que esses dois poderes, embora em extremos opostos, possam nele habitar, enquanto entre eles os poderes conciliadores encontram morada, providos de uma força superior capaz de aplainar, em caso de dificuldade, a luta que viesse a surgir...


Essa conciliação é, aos olhos de Nietzsche, o novo ideal, o ideal enfim aceitável porque não é, como todos os outros, falsamente exterior à vida, mas, ao contrário, explicitamente sustentado nela. E é exatamente isso que Nietzsche chama de grandeza — um termo importante em sua obra —, o sinal da “grande arquitetura”, aquela no seio da qual as forças vitais, porque são, enfim, harmonizadas e hierarquizadas, atingem com um mesmo ímpeto a maior intensidade e simultaneamente a mais perfeita elegância. É apenas por essa harmonização e hierarquização de todas as forças, mesmo as reativas, que o poder desabrocha, e que a vida deixa de ser diminuída, enfraquecida ou mutilada. Assim, toda grande civilização, tanto em escala individual quanto na das culturas, “consistiu em forçar o entendimento entre os poderes opostos, por meio de uma forte coalizão das outras forças menos irreconciliáveis, sem, no entanto, sujeitá-las nem acorrentá-las”.38

A quem se interrogar sobre a “moral de Nietzsche”, aqui vai uma resposta possível: a vida boa é a vida mais intensa porque a mais harmoniosa; a vida mais elegante (no sentido em que se fala de uma demonstração matemática que não faz rodeios inúteis, desperdício de energia por nada), quer dizer, aquela na qual as forças vitais, em vez de se contrariarem, de se dilacerarem e de se combaterem ou de se esgotarem umas as outras, cooperam entre si, mesmo que seja sob o primado de umas, as forças ativas certamente, de preferência às outras, as reativas.

Segundo ele, esse é o “grande estilo”.

Nesse ponto, pelo menos, o pensamento de Nietzsche é perfeitamente claro; sua definição da “grandeza”, em toda a sua obra da maturidade, de uma univocidade sem defeito. Como explica muito bem um fragmento de seu grande livro póstumo A Vontade de Poder, “a grandeza de um artista não se mede pelos ‘bons sentimentos’ que ele suscita”, mas reside no “grande estilo”, quer dizer, na capacidade de “se tornar senhor do caos interior; em forçar seu próprio caos a assumir forma; agir de modo lógico, simples, categórico, matemático, tornar-se lei, eis a grande ambição”.

É preciso repetir: só ficarão surpresos com esse texto aqueles que cometem o erro, tão bobo quanto frequente, de ver no nietzschianismo um modo de anarquismo, um pensamento de “esquerda” antecipador de nossos movimentos libertários. Nada mais falso. A apologia do rigor “matemático”, o culto da razão clara e exata também encontram lugar no seio das forças múltiplas da vida. Lembremo-nos mais uma vez do motivo: se aceitamos que as forças “reativas” são as que não podem se desenvolver sem negar outras forças, é preciso convir que a crítica do platonismo e, de modo geral, do racionalismo moral em todas as suas formas, por mais justificada que seja aos olhos de Nietzsche, não poderia levar a uma simples eliminação da racionalidade. Tal eliminação seria ela mesma reativa. É preciso, se quisermos alcançar essa grandeza, sinal de uma expressão bem-sucedida das forças vitais, hierarquizar essas forças de tal modo que elas deixem de se mutilar reciprocamente — e nessa hierarquia, a racionalidade deve também encontrar seu lugar.
Nada excluir, portanto, e, no conflito entre a razão e as paixões, não escolher estas em detrimento daquela, sob pena de soçobrar em pura e simples “tolice”.

Não sou eu quem diz, mas Nietzsche, em muitas passagens de sua obra: “Todas as paixões têm um tempo em que são apenas nefastas, em que aviltam suas vítimas com o peso da tolice — e uma época tardia, muito mais tardia, em que elas esposam o espírito, em que elas se ‘espiritualizam’.”39 Tão surpreendente quanto possa parecer aos leitores libertários de Nietzsche, é exatamente dessa espiritualização que ele tira um critério ético; é ela que nos possibilita aceder ao “grande estilo”, permitindo-nos domesticar as forças reativas em vez de rejeitá-las “tolamente”, compreendendo tudo o que ganhamos ao integrar esse “inimigo interior” em vez de bani-lo e, por aí mesmo, nos enfraquecer.

Mais uma vez, não sou eu quem diz, mas Nietzsche, do modo mais simples:


A inimizade é outro triunfo de nossa espiritualização. Ela consiste em compreender profundamente o interesse que existe em se ter inimigos: nós, imoralistas e anticristãos, vemos nosso interesse em que a Igreja subsista... O mesmo acontece na grande política. Uma nova criação, por exemplo, um novo império, tem mais necessidade de inimigos que de amigos. É só pelo contraste que ela começa a se sentir, a se tornar necessária. Não nos comportamos de outro modo em relação ao inimigo interior: aí também espiritualizamos a inimizade, aí também compreendemos seu valor.40


Nesse contexto, Nietzsche não hesita em afirmar em alto e bom som, ele que é considerado o Anticristo e o mais encarniçado agressor dos valores cristãos, que a “continuação do ideal cristão faz parte das coisas mais desejáveis que possam existir”,41 já que nos oferece, para a confrontação que ele autoriza, um meio seguro de se tornar maior.

Se você entendeu bem o que foi exposto, e especialmente a significação exata da diferença entre o reativo e o ativo, você não pode mais se surpreender com esses textos que parecerão incompreensíveis e contraditórios aos maus leitores de Nietzsche. É essa “grandeza” que constitui o alfa e o ômega da “moral nietzschiana”, é ela que deve nos guiar na procura de uma vida boa, e isso devido a uma razão que aos poucos se torna evidente: só ela nos possibilita integrar em nós todas as forças; só ela, por isso mesmo, autoriza levarmos uma vida mais intensa, quer dizer, mais rica em diversidade, mas também mais “poderosa” — no sentido do que ele chama de “vontade de poder” —, porque mais harmoniosa. A harmonia não é aqui, diferentemente da harmonia dos Antigos, a condição da dor e da paz, mas nos protege dos conflitos que esgotam e das amputações que enfraquecem; ela é a da força maior.
Por isso a noção de “vontade de poder” não tem quase nada a ver com o que os leitores superficiais acreditaram compreender. É preciso que eu lhe fale a respeito, antes de continuarmos.

 

A vontade de poder como “essência mais íntima do Ser”. Verdadeira e falsa significação do conceito de “vontade de poder”

A noção de “vontade de poder” é de tal forma primordial que Nietzsche não hesita em fazer dela o núcleo de sua definição do real, o ponto último do que chamamos de sua “ontologia” ou, como ele mesmo diz em várias ocasiões, ela é “a essência mais íntima do Ser”.

É preciso esclarecer aqui um mal-entendido tão grande quanto frequente: a vontade de poder não tem relação com o desejo de ocupar sei lá que lugar “importante”. Trata-se de outra coisa. É a vontade que quer intensidade, que quer evitar a qualquer custo os dilaceramentos internos dos quais acabo de lhe falar e que, por definição mesmo, nos diminuem, já que as forças se anulam umas às outras, de modo que a vida em nós se estiola e apequena. Portanto, não é absolutamente vontade de conquistar, de ter dinheiro ou poder, mas o desejo profundo de uma intensidade máxima de vida, de uma vida que não seja mais empobrecida, enfraquecida porque dilacerada, mas, ao contrário, a mais intensa e a mais viva possível.

Quer um exemplo? Pense no sentimento de culpa quando, como se diz, “estamos ressentidos com nós mesmos”. Nada é pior do que esse dilaceramento interno, esse estado do qual não se consegue sair e que nos paralisa a ponto de eliminar em nós qualquer tipo de alegria. Mas pense também no fato de que há milhares de pequenas “culpas inconscientes”, que passam despercebidas, e que, contudo, não deixam de produzir efeitos devastadores em termos de “poder”. É nesse sentido que em certos esportes, por exemplo, “controlam-se os golpes” em vez de “dá-los”, como se houvesse uma espécie de remorso oculto, de temor inconsciente inscrito no corpo.

A vontade de poder não é a vontade de ter um poder, mas, como diz Nietzsche ainda, é a “vontade da vontade”, a vontade que se sente a si mesma, que quer sua própria força, e que, em compensação, não quer ser enfraquecida pelos dilaceramentos internos que nos esgotam, que nos “tornam pesados” e que nos impedem de viver com a leveza e a inocência de um “dançarino”.

Tentemos abordar mais concretamente o que isso pode significar.

 

Um exemplo concreto de “grande estilo”: o gesto livre e o gesto “bloqueado”. Classicismo e romantismo

Se você quiser ter uma imagem concreta desse “grande estilo”, só precisa pensar no que temos de viver quando exercitamos um esporte ou artes difíceis — e todos são — para conseguirmos um gesto perfeito.

Pensemos, por exemplo, no movimento do arco nas cordas do violino, dos dedos no braço de um violão ou, mais simplesmente ainda, num revés ou num saque no jogo de tênis. Quando se observa a trajetória de um campeão, parece de uma simplicidade, de uma facilidade literalmente desconcertantes. Sem o menor esforço aparente, na mais límpida fluidez, ele envia a bola com uma rapidez que confunde: é que nele, as forças em jogo no movimento são perfeitamente integradas. Todas cooperam para a mais perfeita harmonia, sem resistência alguma, sem desperdício de energia, logo, sem “reação”, no sentido que Nietzsche dá ao termo. Consequência: uma reconciliação admirável da beleza e do poder que já se nota nos mais jovens, desde que dotados de algum talento.

Ao contrário, aquele que começou tarde demais terá, com a idade, um gesto irreversivelmente caótico, desintegrado, ou, como se diz, “bloqueado”. Ele freia os lances, hesita em enviá-los... e se aborrece sempre, a ponto de insultar a si mesmo todas as vezes que erra. Permanentemente dilacerado, é mais contra si próprio do que contra seu adversário que ele luta. Não apenas a elegância desaparece, como também falta poder, e isso por um motivo bem simples: as forças em jogo, em vez de cooperarem, se contrapõem, se mutilam e se bloqueiam, de modo que, à deselegância do gesto, responde sua impotência.

É isso o que Nietzsche propõe que seja ultrapassado. Nesse ponto, você compreende que ele não sugere que se produza um novo “ideal”, um ídolo a mais — o que seria contraditório —, já que o modelo que esboça, diferentemente de todos os ideais conhecidos até então, é preso à vida. Ele não pretende absolutamente ser “transcendente”, situado acima dela numa posição de exterioridade e de superioridade qualquer. Trata-se antes de imaginar o que seria uma vida que tomasse como modelo o “gesto livre”, o gesto do campeão ou do artista que produz nele grande diversidade até atingir, com harmonia, o maior poder, sem esforço laborioso, sem desperdício de energia. Tal é, no fundo, a “visão moral” de Nietzsche, aquela em nome da qual ele denuncia todas as morais “reativas”, todas aquelas que, desde Sócrates, pregam a luta contra a vida, seu apequenamento.

Assim, ao contrário do grande estilo, se situam todos os comportamentos que se revelam como incapazes de conquistar o domínio de si que apenas uma hierarquização e uma harmonização perfeitas das forças que se agitam em nós possibilitam realizar.

A esse respeito, a expansão das paixões que algumas ideologias da “liberação dos costumes” quiseram valorizar é das piores coisas, já que essa expansão é sempre sinônimo de mutilação recíproca das forças e, por aí mesmo, do primado da reação.

Tal mutilação define exatamente o que Nietzsche chama de feiura. Esta surge sempre que as paixões desencadeadas se entrechocam e se enfraquecem umas às outras: “Quando há contradição e coordenação insuficientes das aspirações interiores, é preciso concluir que há diminuição da força organizadora, da vontade...”42 E, nessas condições, a vontade de poder definha, e a alegria dá lugar à culpa que, por sua vez, engendra o ressentimento. 

 

Evidentemente, o exemplo que dei para que você compreendesse o “grande estilo”, a ideia de que só uma síntese reconciliadora das forças ativas e reativas possibilita alcançar o “poder” autêntico — o do revés de um campeão de tênis —, não é do próprio Nietzsche. Ele tem outras imagens, outras referências em mente, e é útil, se você quiser mesmo lê-lo um dia, que conheça pelo menos uma delas, porque é a mais importante para ele. Trata-se da oposição entre classicismo e romantismo.

Para simplificar, podemos dizer que o classicismo designa o essencial da arte grega, mas também a arte clássica francesa do século XVII — as peças de Molière ou de Corneille, assim como a arte dos jardins “geométricos” com suas árvores podadas como figuras matemáticas.

Se você visitar um dia, nos museus franceses, uma sala destinada às antiguidades, observará que as estátuas gregas — ilustrações perfeitas da arte clássica — se caracterizam, sobretudo, por dois traços absolutamente típicos: as proporções dos corpos são perfeitas, harmoniosas como desejável, e os rostos são de uma calma e de uma serenidade absolutas. O classicismo é uma arte que confere um lugar primordial à harmonia e à razão. Ele desconfia como da própria sombra da expansão sentimental que vai, ao contrário, caracterizar em grande medida o romantismo.

Poderíamos desenvolver longamente essa oposição, mas, aqui, o essencial é que você compreenda como Nietzsche a pensa e por que ela é tão importante para ele.

Segundo um tema constante em sua obra, a “simplicidade lógica” própria dos clássicos é a melhor aproximação dessa hierarquização “grandiosa” que o “grande estilo” concretiza. Ainda aí, Nietzsche não faz mistério:


O embelezamento é consequência de uma força maior. Pode-se considerar o embelezamento como a expressão de uma vontade vitoriosa, de uma coordenação mais intensa, de uma harmonização de todos os desejos violentos, de um infalível equilíbrio perpendicular. A simplificação lógica e geométrica é uma consequência do aumento da força.43


Espero que você avalie novamente o quanto Nietzsche pega no contrapé todos os que gostariam de ver nele um adversário da razão, um apóstolo da emancipação dos sentidos e dos corpos contra o primado da lógica. Nietzsche proclama em alto e bom som: “Somos os adversários das emoções sentimentais!”44 O artista digno desse nome é aquele que sabe cultivar “o ódio ao sentimento, à sensibilidade, à fineza de espírito, o ódio ao que é múltiplo, incerto, vago, feito de pressentimentos...”45 Pois, para ser clássico, é preciso ter todos os dons, todos os desejos violentos e contraditórios na aparência, mas de tal modo que eles caminhem juntos, sob o mesmo jugo, de forma que se tenha necessidade de “frieza, lucidez, dureza, lógica, antes de tudo”.

Não se poderia ser mais claro: o classicismo é a encarnação mais perfeita do “grande estilo”. Eis por que, contra Victor Hugo, que ele considera um romântico sentimental, Nietzsche reabilita Corneille, para ele, um cartesiano racionalista, como um desses poetas


pertencentes a uma civilização aristocrática... que tinham como ponto de honra submeter a um conceito [grifo de Nietzsche] seus sentidos talvez mais vigorosos ainda, e impor às pretensões brutais das cores, dos sons e das formas a lei de uma intelectualidade refinada e clara; nesse ponto, parece-me, eles seguiam os grandes gregos...


O triunfo dos clássicos gregos e franceses consiste em combater vitoriosamente o que Nietzsche chama ainda, de modo significativo, de “plebe sensual”, que os pintores e músicos “modernos”, quer dizer, os românticos, transformam facilmente em personagens de suas obras.

Ao contrário do gênio clássico, o herói romântico é então pintado como um ser dilacerado e consequentemente enfraquecido por suas paixões interiores. Ele é infeliz no amor, suspira, chora, arranca os cabelos, se lamenta e só abandona os tormentos da paixão para recair nos da criação. Por isso, em geral, o herói romântico é doente, desbotado mesmo, e acaba sempre morrendo jovem, corroído por dentro por essas forças que o habitam e minam porque não se conciliam. Eis por que Nietzsche tem horror a isso, eis por que ele vai detestar Wagner e Schopenhauer, por que ele vai sempre preferir Mozart ou Rameau a Schumann e a Brahms, quer dizer, a música “clássica e matemática” à música “romântica e sentimental”.

No fim, você notará, e é um aspecto essencial de toda filosofia, que o ponto de vista prático encontra o da teoria, e que a ética é inseparável da ontologia, pois, nessa moral da grandeza, é a intensidade que tem primazia, é a vontade de poder que se sobrepõe a qualquer outra consideração. “Nada na vida vale mais do que o grau de poder!”,46 diz Nietzsche. O que significa que há valores, uma moral, para o imoralista.

Como aquele que pratica com prazer as artes marciais, o homem do grande estilo move-se com elegância, a léguas de qualquer aparência laboriosa. Ele não transpira, e, se ultrapassa montanhas, é sem esforço aparente, com serenidade. Assim como o verdadeiro conhecimento, o saber alegre, zomba da teoria e da vontade de verdade em nome de uma verdade mais alta, Nietzsche não zomba da moral senão em nome de uma outra moral.

O mesmo acontece no que diz respeito à sua doutrina da salvação.

 

III. Um pensamento inédito da doutrina da salvação: a doutrina do amor fati (o amor do momento presente, do “destino”), a “inocência do devir” e o eterno retorno

Mais uma vez lhe dirão que é inútil procurar um pensamento da salvação em Nietzsche.

E de fato, quaisquer que elas sejam, as doutrinas da salvação para ele são uma expressão acabada do niilismo, quer dizer, como agora você sabe, da negação “deste mundo bem vivo” em nome de um pretenso “além ideal” que lhe seria superior. Certamente, declara Nietzsche para caçoar dos promotores de tais doutrinas, não se confessa espontaneamente que se é “niilista”, que se adora o nada de preferência à vida: “Não se diz ‘o nada’. Diz-se o ‘além’, ou então ‘Deus’, ou ainda ‘a verdadeira vida’, ou o nirvana, a salvação, a beatitude...”, mas “essa inocente retórica, que penetra o reino da idiossincrasia religiosa e moral, parecerá muito menos inocente assim que compreendermos que tendência se reveste de um manto de palavras sublimes: a inimizade com relação à vida”.47 Procurar a salvação num Deus, ou em qualquer outra figura da transcendência que se queira pôr em seu lugar, é, diz ele ainda, “declarar guerra [...] à vida, à natureza, à vontade de viver!”, é a fórmula de todas as calúnias “deste mundo”, de todas as mentiras do “além”.48
Nessas declarações, você vê o quanto a crítica nietzschiana do niilismo se aplica por excelência à ideia de doutrina da salvação, ao projeto de querer encontrar num “além”, qualquer que ele seja, num “ideal”, alguma coisa que possa “justificar” a vida, dar-lhe um sentido, e, assim, de qualquer modo salvá-la da desgraça de ser mortal. Tudo isso começa agora a fazer sentido, a lhe parecer familiar.

No entanto, isso significa que toda aspiração à sabedoria e à beatitude deva, na opinião de Nietzsche, ser rejeitada? Nada é menos certo. Acredito, ao contrário, que Nietzsche, como todo verdadeiro filósofo, visa à sabedoria.

É o que prova, entre outros, o primeiro capítulo de Ecce Homo, intitulado — com toda a modéstia: “Por que sou tão sábio.” Ora, essa passagem, como ele próprio nos revela em suas últimas obras, é encontrada em sua célebre — mas, à primeira abordagem, bastante obscura — doutrina do “eterno retorno”. Ela também se prestou a tantas interpretações, a tantos mal-entendidos, que é importante retomá-la.

 

O sentido do eterno retorno: uma doutrina da salvação enfim totalmente terrestre, sem ídolos e sem Deus

É preciso dizer que Nietzsche mal teve tempo de formular o pensamento do eterno retorno antes que a doença o impedisse para sempre de afiná-lo e desenvolvê-lo como desejaria. No entanto, ele estava absolutamente convencido de que era nessa última doutrina que residia seu mais original aporte, sua verdadeira contribuição à história das ideias.

Contudo, a questão central nos interessa. Ela concerne a todos aqueles que não são mais “crentes”, no sentido que quisermos — a maioria de nós, é preciso que se diga. Se não existem mais além, nem cosmos nem divindade, se os ideais fundadores do humanismo estão comprometidos, como distinguir não apenas o bem do mal, ou, ainda mais profundamente, o que vale a pena ser vivido e o que é medíocre? Para operar essa distinção, não seria necessário elevar os olhos para um céu qualquer e nele procurar um critério que transcendesse este mundo? E se o céu estiver desesperadamente vazio, onde procurar?

É para oferecer uma resposta a essa pergunta que a doutrina do eterno retorno foi inventada por Nietzsche. Para nos fornecer um critério, finalmente terrestre, de seleção do que merece e do que não merece ser vivido. Para aqueles que creem, ela permanecerá letra morta. Mas para os outros, para aqueles que não creem mais, para aqueles que também não pensam que os engajamentos militantes, políticos ou outros bastam, é preciso admitir que a questão é interessante...

 

Que, por outro lado, ela corresponda à problemática da salvação, não há nenhuma dúvida. Para se convencer disso, basta observar rapidamente o modo como Nietzsche a apresenta, em comparação com as religiões. Ela contém, ele afirma, “mais do que todas as religiões que ensinaram a desprezar a vida como passagem, a cobiçar uma outra vida”, de modo que ela vai se tornar “a religião das almas mais sublimes, mais livres, mais serenas”. Nessa ótica, Nietzsche chega a propor explicitamente que se ponha a “doutrina do eterno retorno no lugar da ‘metafísica’ e da religião”49 — como ele colocou a genealogia no lugar da theoria, e o grande estilo no lugar dos ideais da moral. A menos que se suponha que ele empregue termos tão pesados levianamente, o que é pouco provável, devemos nos perguntar por que ele os aplica à sua própria filosofia, e, além disso, ao que ela tem de mais original e de mais forte a seus próprios olhos.

O que ensina, então, o pensamento do eterno retorno? Em que ponto ele retoma, nem que seja por um viés, as questões da sabedoria e da salvação?

Proponho-lhe uma resposta breve, que vamos desenvolver em seguida: se não há mais transcendência, mais ideais, mais fuga possível num além, mesmo depois da morte de Deus, “humanizado” em forma de utopia moral ou política (a “humanidade”, a “pátria”, a “revolução”, a “república”, o “socialismo” etc.), é no seio deste mundo, permanecendo nesta terra e nesta vida, que é preciso aprender a distinguir o que vale ser vivido e o que merece perecer. É aqui e agora que se deve saber separar as formas de vida frustradas, medíocres, reativas e enfraquecidas, das formas de vida intensas, grandiosas, corajosas e ricas em diversidade.

Primeiro ensinamento a guardar, portanto: a salvação, segundo Nietzsche, não poderia ser outra senão decididamente terrestre, enraizada num tecido de forças que constitui a trama da vida. Não se trataria, uma vez mais, de inventar um novo ideal, um ídolo a mais que servisse pela enésima vez a julgar, rejulgar e condenar a existência em nome de um princípio pretensamente superior e exterior a ela.

É o que indica claramente um texto crucial do prólogo de Assim Falou Zaratustra, um dos últimos livros de Nietzsche. Fiel a seu estilo iconoclasta, ele convida o leitor a inverter o sentido da noção de blasfêmia:


Eu vos conjuro, ó meus irmãos, permaneçam fiéis à terra e não creiam naqueles que vos falam de esperança supraterrestre. Voluntariamente ou não, são envenenadores.

São contendores da vida, moribundos, intoxicados dos quais a terra está cansada: que pereçam, portanto!

Blasfemar contra Deus era outrora a pior das blasfêmias, mas Deus está morto, e com ele mortos seus blasfemadores. De agora em diante, o crime mais terrível é blasfemar contra a terra e conceder mais apreço às entranhas do insondável do que ao sentido da terra.


Em poucas linhas, Nietzsche define como ninguém o programa que se tornará, no século XX, o de toda filosofia de inspiração “materialista”, quer dizer, de todo pensamento que recusa deliberadamente o “idealismo”, entendido no sentido de umafilosofia que enuncia ideais superiores a esta realidade que é a vida ou a vontade de poder. De imediato, como você vê, a blasfêmia muda de sentido: ainda no século XVII, e até no XVIII, quem fazia publicamente profissão de ateísmo podia ser mandado para a prisão, ou condenado à morte. Hoje, segundo Nietzsche, o inverso deveria ser a regra: blasfemar não é mais dizer que Deus está morto, mas, pelo contrário, é ceder ainda às bobagens metafísicas e religiosas segundo as quais haveria um “além”, ideais superiores, mesmo irreligiosos como o socialismo ou o comunismo, em nome dos quais seria preciso “transformar o mundo”.
É o que ele explica de modo quase límpido num fragmento datado de 1881, no qual, de passagem, ele se diverte parodiando Kant:


Se, em tudo o que você quer fazer, começar perguntando: “Tenho certeza de que desejo fazê-lo infinitas vezes?”, isso se tornará o centro de gravidade mais sólido para você... Eis o ensinamento de minha doutrina: “Viva de forma a ter de desejar reviver — é o dever —, pois, em todo caso, você reviverá! Aquele para quem o esforço é a alegria suprema, que se esforce! Aquele que ama antes de tudo o repouso, que repouse! Aquele que ama antes de tudo se submeter, obedecer e seguir, que obedeça! Mas que saiba para o que dirige sua preferência, e não recue diante de nenhum meio! É a eternidade que está em jogo!” Essa doutrina é suave para aqueles que nela não têm fé. Ela não tem nem inferno nem ameaças. Aquele que não tem fé não sentirá em si senão uma vida fugidia.50


Aqui, finalmente a significação da doutrina do eterno retorno aparece com toda a clareza.

Ela não é nem uma descrição do curso do mundo, nem uma “volta aos Antigos”, como por vezes se acreditou tolamente, nem muito menos uma profecia. Ela não é, no fundo, nada além de um critério de avaliação, um princípio de seleção dos momentos de nossas vidas que valem ou não a pena ser vividos. Trata-se, graças a ela, de interrogar nossas existências, a fim de fugir das falsas aparências e das meias medidas, de todas essas covardias que, ainda segundo Nietzsche, nos levariam a desejar esta ou aquela coisa “só uma vez”, como uma concessão, todos esses momentos em que nos abandonamos à facilidade de uma exceção, sem a querer realmente.

Nietzsche nos convida, ao contrário, a viver de tal modo que nem os arrependimentos nem os remorsos tenham mais nenhum espaço, nenhum sentido. Essa é a verdadeira vida. E quem, de fato, poderia querer seriamente que os momentos medíocres, todos os dilaceramentos, todas as culpas inúteis, todas as fraquezas inconfessáveis, as mentiras, as covardias, os jeitinhos consigo mesmo se repetissem eternamente? Mas também, quantos momentos de nossas vidas persistiriam se aplicássemos honestamente, com rigor, o critério do eterno retorno? Alguns momentos de alegria, sem dúvida, de amor, de lucidez, de serenidade, sobretudo...

Você objetará talvez que tudo isso é muito interessante, eventualmente útil, é verdade, mas sem nenhuma relação nem com uma religião, mesmo de um tipo radicalmente novo, nem com uma doutrina da salvação. Que eu possa me exercitar em refletir nos momentos de minha vida, utilizando o critério do eterno retorno? Por que não? Mas como isso pode me salvar dos medos de que falávamos no início deste livro? Que relação tem com a “finitude humana”, com as angústias que ela suscita e das quais as doutrinas da salvação pretendem nos curar?

É a noção de eternidade que pode nos mostrar o caminho. Pois você notará que, mesmo na ausência de Deus, existe eternidade, e, para se chegar a ela, é preciso, afirma estranhamente Nietzsche — estranhamente porque isso parece quase cristão —, ter fé e cultivar o amor.


Ah! Como não me consumiria de desejo de eternidade, de desejo do anel dos anéis, do anel nupcial do Retorno? Ainda não encontrei a mulher de quem eu quisesse filhos, a não ser esta mulher que amo, pois eu te amo, ó eternidade! Pois eu te amo, ó eternidade!51


Concordo que essas formulações poéticas nem sempre facilitam a leitura.

Se você quer compreendê-las e compreender também em que aspecto Nietzsche se reconcilia com as doutrinas da salvação, é importante que você perceba em que ponto ele alcança uma dessas intuições profundas que vimos atuar nas sabedorias antigas: aquela segundo a qual a vida boa é a que consegue viver o instante sem referência nem ao passado nem ao futuro, sem condenação pessoal, com leveza absoluta, com o sentimento perfeito de que não há mais diferença real entre o passado e a eternidade.

 

A doutrina do amor fati (amor do que é no presente): fugir do peso do passado, assim como das promessas do futuro

Vimos, ao evocar os exercícios de sabedoria recomendados pelos estoicos, como esse tema era essencial para os Antigos, mas também para os budistas. Nietzsche o retoma por seus próprios meios, acompanhando a progressão de seu pensamento, como bem indica essa magnífica passagem de Ecce Homo:


Minha fórmula para o que há de grande no homem é amor fati: nada desejar além daquilo que é, nem diante de si, nem atrás de si, nem nos séculos dos séculos. Não se contentar em suportar o inelutável, e ainda menos dissimulá-lo — todo idealismo é uma maneira de mentir diante do inelutável —, mas amá-lo.52


Nada desejar além daquilo que é! A fórmula poderia ser assinada por Epicteto ou Marco Aurélio — aqueles de cuja cosmologia ele não se cansou de zombar. E, no entanto, Nietzsche insiste, como neste fragmento de A Vontade de Poder:


Uma filosofia experimental como a que eu vivo começa suprimindo, a título de experiência, até a possibilidade do pessimismo absoluto... Ela quer antes atingir o extremo oposto, uma afirmação dionisíaca do universo tal como ele é, sem possibilidade de subtração, de exceção ou de escolha. Ela quer o ciclo eterno: as mesmas coisas, a mesma lógica ou o mesmo ilogismo dos encadeamentos. Estado mais elevado a que possa um filósofo atingir: minha fórmula para isso é o amor fati. Isso implica que os aspectos até então negados da existência sejam concebidos não apenas como necessários, mas como desejáveis...53


 Esperar um pouco menos, lamentar um pouco menos, amar um pouco mais. Nunca permanecer nas dimensões não reais do tempo, no passado e no futuro, mas tentar, ao contrário, habitar tanto quanto possível o presente, dizer-lhe sim com amor (numa “afirmação dionisíaca”, diz Nietzsche, referindo-se a Dioniso, o deus grego do vinho, da festa e da alegria, aquele que, por excelência, ama a vida).


Por que não?

Mas talvez você ainda faça uma objeção.

Admite-se, a rigor, que o presente e a eternidade se assemelham, já que nenhum deles é relativizado ou diminuído pela preocupação com o passado ou o futuro. Compreende-se também, com os estoicos e budistas, como aquele que consegue viver no presente pode extrair de semelhante atitude meios de escapar das angústias da morte. Que seja. Mas não é menos verdade que há uma contradição perturbadora entre as duas passagens de Nietzsche: de um lado, na doutrina do eterno retorno, ele nos pede para escolher o que queremos viver e reviver, em função do critério da repetição eterna do mesmo; e de outro, ele nos recomenda amar todo o real, qualquer que seja, sem nada tomar ou abandonar, e, sobretudo, nada querer além daquilo que é, sem nunca procurar escolher ou selecionar no interior do real! O critério do eterno retorno nos convidava à seleção apenas dos momentos dos quais desejássemos a infinita repetição, e eis que a doutrina do amor fati, que diz sim ao destino, não deve fazer nenhuma exceção para tudo tomar e tudo compreender num mesmo amor ao real. Como conciliar as duas teses?

Se admitirmos, tanto quanto possível, que este amor ao destino só vale depois de serem postas em prática as exigências seletivas do eterno retorno; se vivêssemos segundo esse critério de eternidade, se nos encontrássemos, enfim, no grande estilo, na mais alta das intensidades tudo seria bom. Os infortúnios da sorte não teriam mais lugar, tampouco os acontecimentos felizes. Poderíamos, enfim, viver todo o real, como se a cada instante ele fosse a eternidade mesma, e isso por um motivo que budistas e estoicos já tinham compreendido: se tudo é necessário, se compreendemos que o real se reduz de fato ao presente, o passado e o futuro perderão sua inesgotável capacidade de nos culpar, de nos persuadir de que teríamos podido e, consequentemente, devido, agir de outro modo. Atitude do remorso, da nostalgia, dos arrependimentos, mas também das dúvidas e das hesitações em face do futuro, que conduz sempre ao dilaceramento interior, à oposição de si contra si, logo, à vitória da reação, já que ela leva nossas forças vitais a se enfrentarem.


A inocência do devir ou a vitória sobre o medo da morte

Se a doutrina do eterno retorno repercute como um eco na do amor fati, esta, por sua vez, culmina no ideal de uma inculpabilidade total. Pois a culpabilidade, como vimos, é o máximo do reativo, do conflito interior [entre si e si mesmo]. Somente o sábio, aquele que ao mesmo tempo pratica o grande estilo e segue os princípios do eterno retorno, poderá alcançar a verdadeira serenidade. É ela exatamente que Nietzsche designa pela expressão “inocência do devir”:


Há quanto tempo me esforço para demonstrar a mim mesmo a total inocência do devir! [...] e tudo isso por que motivo? Não será para conquistar o sentimento de minha completa irresponsabilidade, para escapar a todo louvor e a toda reprovação...?54


Pois é assim e apenas assim que podemos, por fim, ser salvos. De quê? Como sempre, do medo. Por meio do quê? Como sempre, pela serenidade. Eis por que, simplesmente,


queremos devolver ao devir sua inocência: não existe ser que se possa tornar responsável do fato de que alguém exista, possua esta ou aquela qualidade, nasceu em tais circunstâncias, em tal meio. É um grande reconforto que não exista ser semelhante [grifo de Nietzsche]... Não existe nem lugar, nem fim, nem sentido ao qual possamos imputar nosso ser e nossa maneira de ser... E uma vez mais é um grande reconforto, nisso consiste a inocência de tudo o que é.55


Diferentemente dos estoicos, sem dúvida, Nietzsche não pensa que o mundo seja harmonioso e racional. A transcendência do cosmos foi abolida. Mas, como eles, ele convida a viver no instante,56 a nos salvar por nós mesmos, amando tudo o que existe; a fugir da distinção dos acontecimentos felizes e infelizes, a nos libertar, sobretudo, dos dilaceramentos que uma má compreensão do tempo introduz fatalmente em nós: remorsos associados a uma visão indeterminada do passado (“eu deveria ter agido de modo diferente...”), hesitações em face do futuro (“eu não deveria fazer uma outra escolha?”). Pois é quando nos libertamos dessa dupla face insidiosa das forças reativas (qualquer dilaceramento é essencialmente reativo), quando nos libertamos dos pesos do passado e do futuro, que alcançamos a serenidade e a eternidade, aqui e agora, já que não há nada mais, já que não há referência a “possíveis” que venham relativizar a existência presente e semear em nós o veneno da dúvida, do remorso ou da esperança.

 



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Para começar, uma observação sobre terminologia: na filosofia contemporânea, adquiriu-se o hábito de chamar de “pós-modernas” as ideias que, a partir dos meados do século XIX, se empenharam em fazer a crítica do humanismo moderno e, em especial, da filosofia das Luzes. Do mesmo modo que esta rompeu com as grandes cosmologias da Antiguidade e inaugurou uma crítica da religião, os “pós-modernos” vão atacar duas das mais importantes convicções que animavam os Modernos do século XVII ao XIX: aquela segundo a qual o ser humano seria o centro do mundo, o princípio de todos os valores morais e políticos; aquela que considera a razão um formidável poder libertador, e que, graças ao progresso das “Luzes”, seremos, enfim, mais livres e mais felizes.
A filosofia pós-moderna vai contestar esses dois postulados. Ela será, pois, ao mesmo tempo crítica do humanismo e crítica do racionalismo. Sem sombra de dúvida, é em Nietzsche que ela vai atingir seu ponto culminante. Por outro lado, qualquer que seja nossa posição — e você verá que é possível fazer restrições a Nietzsche —, o radicalismo, até mesmo a violência de seus ataques contra o racionalismo e o humanismo só se igualam à genialidade com que ele soube apresentá-los.
Mas, afinal, por que essa necessidade de “desconstruir”, como dirá Heidegger, um grande filósofo contemporâneo, o que o humanismo moderno teve tanto trabalho para construir? Por que, mais uma vez, passar de uma visão de mundo a outra? Por que motivos as Luzes vão ser vistas como insuficientes e ilusórias; que razões vão levar a nova filosofia a querer ir “mais longe”?
Se nos ativermos ao essencial, a resposta será breve. Como vimos, a filosofia moderna destituiu o cosmos e criticou as autoridades religiosas substituindo-as pela razão e pela liberdade humana, pelo ideal democrático e humanista de valores morais construídos sobre a humanidade do homem, sobre o que constituía sua diferença específica em relação a todas as outras criaturas, a começar pelo animal. Mas, como você se lembra, isso foi feito com base numa dúvida radical, a mesma dúvida que Descartes apresentou em suas obras, quer dizer, com base numa verdadeira sacralização do espírito crítico, numa liberdade de pensamento que chega a fazer tábula rasa de todas as heranças passadas, de todas as tradições. A própria ciência inspirou-se totalmente nesse princípio, de modo que, desde então, nada a detém na sua busca da verdade.
Ora, foi isso que os Modernos não avaliaram plenamente. Como o aprendiz de feiticeiro que desencadeia forças que logo fugirão ao seu controle, Descartes e os filósofos das Luzes também liberaram um espírito, o espírito crítico, que, posto em ação, não pode ser detido. Ele é como um ácido que corrói os materiais em que toca, mesmo que se tente pará-lo, jogando-lhe água. A razão e os ideais humanistas não se sustentarão, de modo que o mundo intelectual por eles edificado vai finalmente ser vítima dos próprios princípios nos quais repousava.
Sejamos um pouco mais precisos.
A ciência moderna, fruto do espírito crítico e da dúvida metodológica, destruiu as cosmologias e enfraqueceu consideravelmente, pelo menos num primeiro momento, as bases da autoridade religiosa. É um fato. Por isso, como vimos no fim do capítulo anterior, o humanismo não chegou a destruir inteiramente uma estrutura religiosa fundamental, muito pelo contrário: a do além, oposta a deste mundo, a do paraíso oposta à realidade terrestre ou, se você preferir, a do ideal oposto à realidade. Eis por que, aos olhos de Nietzsche, quando nossos republicanos herdeiros das Luzes se dizem ateus, ou mesmo materialistas, na verdade, permanecem crentes! Naturalmente, não por rezarem a Deus, mas porque não deixam de venerar quimeras, já que continuam a acreditar que alguns valores são superiores à vida, que o real deve ser julgado em nome do ideal, que é necessário transformá-lo para moldá-lo aos ideais superiores: os direitos do homem, a ciência, a razão, a democracia, o socialismo, a igualdade de oportunidades etc.
Ora, essa visão das coisas é fundamentalmente herdeira da teologia, mesmo e especialmente quando não se dá conta disso e se quer revolucionária ou irreligiosa! Em resumo, aos olhos dos pós-modernos, e particularmente de Nietzsche, o humanismo das Luzes, sem perceber, permanece prisioneiro das estruturas essenciais da religião que ele rechaçou, no ponto mesmo em que supõe tê-las ultrapassado. Eis por que, de algum modo, será necessário dirigir-lhe as críticas que ele havia desencadeado contra os outros, partidários das cosmologias antigas ou dos pensamentos religiosos.
No prefácio de Ecce Homo, um de seus raros livros em forma de confissões, Nietzsche descreveu sua atitude filosófica em termos que marcam perfeitamente a ruptura que estabelece com o humanismo moderno. Este afirmava reiteradamente sua crença no progresso, sua convicção de que a difusão das ciências e das técnicas iria produzir dias melhores, que a história e a política deveriam ser guiadas por um ideal, ou utopia, que permitiria tornar a humanidade mais respeitosa em relação a si mesma etc. Temos aqui exatamente o tipo de crença, de religiosidade sem Deus ou, como diz Nietzsche em seu vocabulário bastante peculiar, de “ídolos”, que ele pretende desconstruir, “filosofando com um martelo”. Vamos ouvi-lo:
Melhorar a humanidade? Eis a última coisa que eu prometeria. Não esperem de mim que eu erija novos ídolos! Que os antigos aprendam antes quanto custa ter pés de barro! Derrubarídolos” — é assim que chamo todos os ideais —, esse é meu verdadeiro ofício. É inventando a mentira de um mundo ideal que se tira o valor da realidade, sua significação, sua veracidade... A mentira do ideal foi até agora a maldição que pesou sobre a realidade, a própria humanidade se tornou mentirosa e falsa até o mais fundo de seus instintos — até a adoração dos valores opostos àqueles que poderiam lhe garantir um belo crescimento, um futuro...
Não se trata, pois, de reconstituir um mundo humano, um “reino dos fins” onde os homens seriam finalmente iguais em dignidade como Kant e os republicanos queriam. Na opinião dos pós-modernos, a democracia, qualquer que seja o conteúdo que lhe dermos, não é senão uma nova ilusão religiosa entre outras, e mesmo uma das piores, já que ela se dissimula frequentemente sob a aparência de uma ruptura com o mundo religioso, habitualmente declarando-se “laica”. Nietzsche retoma esse tema, e do modo mais claro possível, como, exemplo entre muitos, na passagem de seu livro intitulado Além do Bem e do Mal:
Nós que reivindicamos uma outra fé, nós que consideramos a tendência democrática não apenas como uma forma degenerada da organização política, mas como uma forma decadente e diminuída da humanidade que ela reduz à mediocridade e cujo valor ela diminui, onde depositaremos nossas esperanças?
Em todo caso, não na democracia! É absurdo tentar negá-lo: Nietzsche é o contrário de um democrata e, infelizmente, não é por acaso que ele foi considerado pelos nazistas um de seus inspiradores.
Contudo, se quisermos compreendê-lo antes de julgá-lo, é preciso ir além, muito além mesmo, e particularmente no seguinte aspecto: se ele detesta os ideais como tais, se quer quebrar os ídolos com seu martelo filosófico, é porque, para ele, todos provêm de uma negação da vida, daquilo que ele chama de “niilismo”. Antes de avançar por sua obra, é essencial que você tenha uma ideia dessa noção central na construção das utopias morais e políticas modernas.
Nietzsche pensa que todos os ideais, explicitamente religiosos ou não, de direita ou de esquerda, conservadores ou progressistas, espiritualistas ou materialistas, possuem a mesma estrutura, a mesma finalidade: fundamentalmente eles partem, como lhe expliquei, de uma estrutura teológica, já que se trata sempre de inventar um além melhor do que este mundo, de imaginar valores pretensamente superiores e exteriores à vida ou, no jargão dos filósofos, de valores “transcendentes”. Ora, para Nietzsche, tal invenção é sempre secretamente, é claro, motivada por “más intenções”. Seu verdadeiro objetivo não é ajudar a humanidade, mas apenas conseguir julgar e finalmente condenar a própria vida, negar o verdadeiro real em nome de falsas realidades, em lugar de assumi-la e aceitá-la tal como é.
É essa negação do real em nome de um ideal que Nietzsche chama de “niilismo”. Como se, graças a essa ficção de pretensos ideais e utopias, nos situássemos fora da realidade, fora da vida, ao passo que o pensamento nietzschiano, seu ponto extremo, é que não há transcendência, que todo juízo é um sintoma, uma emanação da vida que faz parte da vida e nunca se situa fora dela.
Essa é a tese central do pensamento de Nietzsche, e se você a compreender bem, nada o impedirá de lê-lo: não existe nada fora da realidade da vida, nem acima nem abaixo, nem no céu nem no inferno, e todos os célebres ideais da política, da moral e da religião são apenas “ídolos”, inchaços metafísicos, ficções, que não visam nada a não ser fugir da vida, antes de se voltar contra ela. É sempre o que fazemos quando julgamos a realidade em nome do ideal, como se ele fosse transcendente, exterior a ela, enquanto tudo lhe é, do princípio ao fim e sem a menor sobra, imanente.
Vamos voltar a essa ideia, examiná-la com precisão, oferecer exemplos concretos para que você compreenda bem — pois ela não é fácil —, mas, de início, você já pode perceber por que a filosofia pós-moderna inevitavelmente iria criticar a dos Modernos, ainda muito marcada pelo gosto das utopias religiosas.
Poderíamos dizer que os Modernos são como o regador regado: eles inventaram o espírito crítico, a dúvida e a razão lúcida... e todos esses ingredientes essenciais à filosofia deles se voltam contra eles! Os principais pensadores “pós-modernos”, Nietzsche, certamente,
mas ainda pelo menos em parte Marx e Freud, vão ser justamente definidos como “filósofos da suspeita”: o fim da filosofia agora é desconstruir as ilusões que embalaram o humanismo clássico. Os “filósofos da suspeita” são os pensadores que adotam como princípio de análise o pressentimento de que há sempre, por trás das crenças tradicionais, por trás dos “velhos e bons valores” que se pretendem nobres, puros e transcendentes, interesses escusos, escolhas inconscientes, verdades mais profundas... e frequentemente inconfessáveis. Como o psicanalista, que procura buscar e compreender o inconsciente por trás dos sintomas de seu paciente, o filósofo pós-moderno aprende, antes de qualquer outra coisa, a desconfiar das evidências primeiras, das ideias prontas, para ver o que há por trás, por baixo, de viés se for preciso, a fim de detectar os preconceitos dissimulados que os fundamentam em última instância.
Eis por que Nietzsche não gosta das grandes avenidas nem dos “consensos”. Ele prefere os atalhos, as margens e os sujeitos que se zangam. No fundo, como os pais fundadores da arte contemporânea, como Picasso na pintura ou Schönberg na música, Nietzsche é um vanguardista, alguém que pretende acima de tudo inovar, fazer tábula rasa do passado. O que vai caracterizar com perfeição o ambiente pós-moderno é o lado irreverente, o estar enjoado dos bons sentimentos, dos valores burgueses, seguros de si e bem-estabelecidos: curvamo-nos diante da verdade científica, da razão, da moral de Kant, da democracia, do socialismo, da república... Que não seja por isso! Os vanguardistas, Nietzsche à frente, vão se empenhar em quebrar tudo, para desvendar diante do mundo o que se esconde por trás! Eles têm, por assim dizer, um lado um pouco hooligan (em versão mais culta...) tanto mais audacioso quanto para eles o humanismo perdeu todos os poderes de destruição e de criação que ainda possuía na origem, quando quebrava os ídolos da cosmologia grega ou da religião cristã, antes, se ouso dizer, de, por sua vez, aburguesar-se.
Isso também explicará o radicalismo, a brutalidade e mesmo os terríveis desvarios da pós-modernidade filosófica: sim, é preciso que se diga tranquilamente, sem polemizar, não foi por acaso que Nietzsche foi o pensador fetiche dos nazistas, tampouco que Marx se tornou o dos stalinistas e dos maoistas... Nem por isso o pensamento de Nietzsche, às vezes insuportável, deixa de ser genial, tão abrasivo quanto possível. Podemos não partilhar suas ideias; podemos até detestá-las, mas, depois dele, não podemos mais pensar como antes. O que é a marca incontestável do gênio.
Para lhe expor os principais motivos de sua filosofia, vou me apoiar mais uma vez nos três grandes eixos aos quais você já se habituou: theoria, praxis e doutrina da salvação.
Alguns especialistas em Nietzsche — ou que se pensam como tais — não deixarão de afirmar que é absurdo querer encontrar alguma coisa semelhante a uma theoria nele que foi por excelência — acabo, aliás, de lhe dizer por quê — o espancador do racionalismo, o crítico incansável de toda “vontade de verdade”, num pensador que sempre caçoou do que chamava de “homem teórico” — filósofo ou cientista — animado pela “paixão do conhecimento”. Parecerá ainda mais sacrílego aos nietzschianos ortodoxos — pois essa estranha espécie, que teria feito Nietzsche rir muito, existe — falar a respeito de uma “moral”, quando Nietzsche sempre se autodenominou “imoralista”, de uma sabedoria tal e a respeito de quem as pessoas têm o prazer de lembrar que morreu louco. E o que dizer de uma doutrina da salvação no pensador da “morte de Deus”, num filósofo que teve a audácia de se comparar ao Anticristo e de zombar explicitamente de qualquer espécie de “espiritualidade”?
Dou-lhe novamente este conselho: não ouça tudo o que lhe dizem, e julgue antes por si mesmo. Leia as obras de Nietzsche — sugiro que comece por Crepúsculo dos Ídolos, e especialmente pelo pequeno capítulo intitulado “O problema de Sócrates” do qual lhe falarei adiante. Compare as diferentes interpretações, depois forme sua própria opinião.
Apesar disso, vou lhe contar um segredo que com certeza é uma evidência que salta aos olhos do primeiro leitor que aparece: não encontramos em Nietzsche uma theoria, uma praxis e uma doutrina da salvação no sentido em que as encontramos nos estoicos, nos cristãos ou mesmo em Descartes, Rousseau e Kant. Nietzsche é o que chamamos de “genealogista” — é assim que ele próprio se designava —, um “desconstrutivista”, alguém que passou a vida dando surras nas ilusões da tradição filosófica, o que não escapa a ninguém.
Isso significa que não encontramos em sua obra um pensamento que pudesse ocupar o lugar das ideias antigas, que substituísse os “ídolos” da metafísica tradicional? Evidentemente que não, e, como você vai ver, Nietzsche não desconstrói a cosmologia grega, o cristianismo ou a filosofia das Luzes pelo simples prazer de negar ou destruir, mas para abrir espaço a pensamentos novos, radicais, que vão efetivamente constituir, embora em sentido inédito, uma theoria, uma praxis e até mesmo um pensamento da salvação de novo gênero.
Apesar disso, ele continua sendo um filósofo.
Analisemos com atenção, sem nos deixar impressionar por inúteis advertências, retomando nossos três eixos: theoria, praxis, doutrina da salvação, para ver o que Nietzsche pôde inventar de novo em lugar e na situação delas, para modificá-las de dentro para fora.
 
I. Para além da theoria: um “alegre saber” livre do cosmos, de Deus e dos “ídolos” da razão
Perdoe-me por voltar a esse ponto, mas é tão importante que preciso ter certeza de que você compreendeu que há sempre, na theoria filosófica, dois aspectos. Há o theion e o orao, o divino que tentamos encontrar no real e o ver que o contempla; o que queremos conhecer e aquilo com o qual tentamos alcançá-lo (os instrumentos dos quais nos servimos para consegui-lo). Em outras palavras, a teoria compreende sempre, de um lado, a definição da essência mais íntima do ser, daquilo que é mais importante no mundo que nos cerca (o que chamamos de ontologiaonto remete à palavra grega que significa “ente”) e do outro, a da visão ou, pelo menos, dos meios de conhecimento que nos permitem apreendê-lo (o que chamamos de teoria do conhecimento).
Por exemplo, nos estoicos, você deve se lembrar, a “ontologia” consiste em definir a essência mais íntima do Ser, aquilo que, no real, é mais real ou mais “divino”, como harmonia, cosmos, ordem harmoniosa, justa e boa. Quanto à teoria do conhecimento, ela reside nessa contemplação que, graças à atividade do intelecto, consegue captar o lado “lógico” do universo, o logos do universo que estrutura o mundo todo. Para os cristãos, o Ser supremo, o que é mais “ente”, não é o cosmos, mas um Deus pessoal, e o instrumento adequado para pensá-lo, a bem dizer o único meio de encontrá-lo, não é mais a razão, e sim, a fé. Ou ainda, para os Modernos, notadamente em Newton e Kant, o universo deixa de ser cósmico ou divino para se tornar um tecido de forças que o sábio tenta pensar racionalmente, extraindo dele as grandes leis, como a da causalidade, por exemplo, que governam as relações entre os corpos...
São esses dois eixos constitutivos da theoria que vamos acompanhar em Nietzsche para ver que distorções ele lhes impõe e como ele os reordena de modo inédito.
Como você verá, sua theoria, sem trocadilho, é antes uma “a-theoria” — no sentido em que se diz que um homem que não crê em Deus é a-teu: sem Deus (em grego, o prefixo a quer dizer simplesmente “sem”). Porque para Nietzsche, de um lado, o fundamento do real, a essência mais íntima do ser, nada tem de cósmico nem de divino, ao contrário; de outro, o conhecimento não parte das categorias de visão — do orao grego. Não é uma contemplação ou um espetáculo passivo como para os Antigos. Também não é, como para os Modernos, uma tentativa de, apesar de tudo, estabelecer relações entre as coisas com o fim de encontrar uma nova forma de ordem e de sentido. Mas, como eu já havia proposto, é, ao contrário, uma “desconstrução” à qual o próprio Nietzsche chamou de “genealogia”.
A palavra é em si bastante sugestiva: como na atividade que consiste em recuperar as filiações de uma família, a raiz, o tronco e os ramos de sua árvore, a verdadeira filosofia deve, segundo Nietzsche, trazer à tona a origem escondida dos valores e das ideias que se acreditam imutáveis, sagrados, vindos do céu... para devolvê-los à Terra e desvendar o modo, o mais das vezes efetivamente bem terrestre (é um dos motivos favoritos de Nietzsche), como eles foram engendrados.
 
Vamos considerar o fato com atenção, antes de voltarmos à ontologia.
 
A. Teoria do conhecimento: como a “genealogia” assume o lugar da theoria
Como já comecei a lhe explicar, a tese mais profunda de Nietzsche, a que vai fundamentar toda a sua filosofia — todo o seu “materialismo”, se com isso se entende a rejeição de todos os “ideais” —, é que não existe absolutamente nenhum ponto de vista exterior e superior à vida, nenhum ponto de vista que tenha, no que quer que seja, o privilégio de se abstrair do tecido de forças que constituem o fundamento do real, a mais íntima essência do ser.
Consequentemente, nenhum juízo sobre a existência em geral tem o menor sentido, a não ser como ilusão, puro sintoma exprimindo apenas certo estado das forças vitais daquele que o carrega consigo.
Eis o que Nietzsche enuncia com a maior clareza nessa passagem decisiva do Crepúsculo dos Ídolos:
Juízos, juízos de valor sobre a vida, a favor ou contra, nunca podem ser, em última instância, verdadeiros: não possuem outro valor senão o de sintomas — em si, tais juízos são imbecilidades. É, pois, necessário estender os dedos para tentar apreender essa fineza extraordinária que reside no fato de que o valor da vida não pode ser avaliado. Não por um vivente, pois ele é parte, e até mesmo objeto de litígio; não por um morto, por uma outra razão. Da parte do filósofo, ver no valor da vida um problema significa uma dúvida contra ele, um ponto de interrogação em relação à sua sabedoria, uma falta de sabedoria.30
Para o desconstrutivista, para o genealogista, não apenas não poderia haver nenhum juízo de valor “objetivo”, “desinteressado”, quer dizer, independente dos interesses vitais daquele que o carrega em si — o que já supõe a ruína das concepções clássicas do direito e da moral —, mas, pelas mesmas razões, não poderia também haver nem “sujeito em si”, autônomo e livre, nem “fatos em si”, objetivos e absolutamente verdadeiros. Pois todos os nossos juízos, todos os nossos enunciados, todas as frases que pronunciamos ou as ideias que emitimos são expressões de nossos estados vitais, de emanações da vida em nós e de modo algum entidades abstratas, autônomas, independentes das forças vitais que nos habitam. E toda a obra da genealogia vai provar essa verdade nova, mais elevada que todas as outras.
Eis também por que, segundo uma das fórmulas mais célebres de Nietzsche, “não existem fatos, apenas interpretações”: assim como nunca poderíamos ser indivíduos autônomos e livres, transcendendo o real no seio do qual vivemos, mas apenas produtos históricos, inteiramente imersos nesta realidade que é a vida, da mesma forma, contrariando o que pensam os positivistas ou os cientistas, não existem “estados de fato em si”. O erudito diz habitualmente: “Os fatos aí estão!”, para afastar uma objeção ou simplesmente para manifestar o sentimento que experimenta diante do constrangimento da “verdade objetiva”. Mas os “fatos” aos quais ele pretende se submeter como a um dado intangível e incontestável nunca são, se nos situamos num nível de reflexão mais profundo, nada além do produto, ele próprio flutuante, de uma história da vida em geral e das forças que compõem este ou aquele instante particular.
A filosofia autêntica leva, portanto, a um ponto de vista abissal: a tarefa de desconstrução que anima o genealogista acaba constatando que por trás das avaliações não existe fundo, mas um abismo; por trás dos próprios abismos, outros abismos, para sempre inacessíveis. Sozinho, à margem do “rebanho”, cabe então ao filósofo autêntico enfrentar a tarefa angustiante de olhar face a face esse abismo:
O solitário [...] duvida até que um filósofo possa ter opiniões “verdadeiras e últimas”; ele se pergunta se não há nele, necessariamente, por trás de cada caverna uma outra que se abre, mais profunda ainda, e abaixo de cada superfície um mundo subterrâneo mais vasto, mais estranho, mais rico, e sob todos os fundos, sob todas as fundações, um âmago mais profundo ainda. “Toda filosofia é uma fachada” — tal é o juízo do solitário [...]. Toda filosofia dissimula uma outra filosofia, toda opinião é um esconderijo, toda palavra pode ser uma máscara.31
Mas se o conhecimento jamais alcança a verdade absoluta, se seu horizonte é continuamente recuado, impedindo que atinja a rocha sólida e definitiva, é porque, evidentemente, o próprio real é um caos que não se parece em nada com o sistema harmonioso dos Antigos, nem mesmo com o universo ainda mais ou menos “racionalizável” dos Modernos.
É com essa nova ideia que você vai entrar de fato no cerne do pensamento nietzschiano.

B. Ontologia: uma definição do mundo como um caos que nada tem de cósmico ou de divino
Se você quer compreender bem Nietzsche, tem apenas de partir da ideia de que ele pensa o mundo quase que de modo oposto aos estoicos. Estes faziam do mundo um cosmos, uma ordem harmoniosa e boa que nos convidavam a tomar como modelo para que nela encontrássemos nosso justo lugar. Nietzsche, ao contrário, pensa o mundo tanto orgânico quanto inorgânico, tanto em nós quanto fora de nós, como um vasto campo de energia, um tecido de forças ou de pulsões cuja multiplicidade infinita e caótica é irredutível à unidade. Em outras palavras, o cosmos dos gregos é para ele a mentira por excelência, uma bela invenção, de fato, mas simplesmente destinada a consolar e a tranquilizar os homens:
Sabem o que é o “mundo” para mim? Querem que eu o mostre em meu espelho? Esse mundo é um monstro de forças, sem começo nem fim, uma soma fixa de forças, dura como o bronze, [...] um mar de forças tempestuosas, um fluxo perpétuo.32
Você talvez me diga, depois de ter lido a citação, que o cosmos dos gregos havia explodido já com os Modernos, por exemplo, com Newton e Kant. E você me perguntará em que Nietzsche vai ainda mais longe que eles na desconstrução da ideia de harmonia.
Respondendo brevemente, posso dizer que a diferença entre o pós-moderno e o moderno, a diferença entre Nietzsche e Kant (ou Newton e Claude Bernard), é que estes ainda procuram com todas as forças encontrar unidade, coerência e ordem no mundo, nele injetar racionalidade, lógica. Você se lembra do exemplo de Claude Bernard e seus coelhos: o cientista procura desesperadamente explicações; quer dar sentido, razão ao curso das coisas. E o mundo de Newton, mesmo sendo um tecido de forças e de objetos que se entrechocam, não deixa de ser, no fim das contas, um universo coerente, unificado e regido por leis — como a da gravitação universal que possibilita encontrar certa ordenação das coisas.
Para Nietzsche, tal empreitada é perda de tempo. Ela continua vítima das ilusões da razão, do sentido e da lógica, pois nenhuma reunificação das forças caóticas do mundo é mais possível. Como os homens do Renascimento, que viam o cosmos desabar sob os golpes da física nova, somos tomados de pavor, mas nenhum “consolo” é possível:
O grande frisson se apodera de nós mais uma vez — mas quem teria vontade de recomeçar logo a divinizar este monstro de mundo desconhecido à maneira antiga... Ah, essa coisa desconhecida compreende excessivas possibilidades de interpretações não divinas, diabrura demais, estupidez, palhaçada...33
O racionalismo científico dos Modernos é nada mais que uma ilusão, um modo de, no fundo, perseguir a ilusão das cosmologias antigas, uma “projeção” humana (e Nietzsche já emprega palavras que logo Freud usará), quer dizer, um modo de tomar nossos desejos por realidades, de nos oferecer um simulacro de poder sobre uma matéria insensata, multiforme, caótica, que na verdade nos escapa totalmente.
Há pouco eu lhe falava de Picasso e Schönberg, pais fundadores da arte contemporânea. No fundo, eles estão em sintonia com Nietzsche. Se você olhar para seus quadros ou escutar sua música, verá que o mundo que eles nos apresentam é também um mundo desestruturado, caótico, fragmentado, ilógico, despojado da “bela unidade” que a perspectiva e o respeito às regras da harmonia conferiam às obras de arte do passado. Isso lhe dará uma ideia exata do que Nietzsche tenta pensar cinquenta anos antes deles. E você observará que a filosofia, mais do que as artes, sempre esteve à frente de seu tempo.
Como você vê, nessas condições, há poucas chances de que a atividade filosófica consista na contemplação de sei lá que ordem divina, estruturante do universo. É impossível que ela assuma, em sentido estrito — pelo menos se levarmos em consideração a etimologia —, a forma de uma theoria, de uma visão do que quer que seja “divino”. A ideia de um universo único e harmonioso é a ilusão suprema. Para o genealogista, é sem dúvida arriscado, mas, apesar disso, necessário dissipá-la.
Contudo, nem por isso Nietzsche deixa de ser filósofo. Portanto, como todo filósofo, ele deverá tentar compreender o real que nos cerca, apreender a natureza profunda desse mundo no qual, mesmo e sobretudo se ele for caótico, temos de aprender a nos situar!
Mas, em vez de procurar a todo custo uma racionalidade no caos, esse tecido de forças contraditórias que é o universo e que ele chama de Vida, Nietzsche vai propor a distinção entre duas ordens, dois grandes tipos de força — ou, como ele diz, “pulsões” ou “instintos”: de um lado, as forças “reativas”; do outro, as forças “ativas”.
É baseado nessa distinção que todo o seu pensamento vai se fundamentar. É preciso bastante atenção para que você compreenda em profundidade, pois suas raízes e ramificação são muito extensas, mas, como você verá, por isso mesmo tanto mais esclarecedoras.
Numa primeira abordagem, pode-se dizer que as forças reativas tomam como modelo, no plano intelectual, a “vontade de verdade” que anima a filosofia clássica e a ciência; no plano político, elas tendem a realizar o ideal democrático. As forças ativas, ao contrário, agem especialmente na arte, e seu universo natural é o da aristocracia.
Vejamos com atenção.
 
As forças “reativas” ou a negação do mundo sensível: como elas se exprimem na “vontade de verdade” cara ao racionalismo moderno e culminam no ideal democrático
Comecemos pela análise das forças “reativas”: são aquelas que só podem se expandir no mundo e produzir todos os seus efeitos, reprimindo, aniquilando e mutilando outras forças. Ou melhor, elas só conseguem se instalar opondo-se; elas partem da lógica do “não” mais do que do “sim”, do “contra” mais do que “a favor”. Toma como modelo a busca da verdade, pois esta se conquista sempre mais ou menos negativamente, pela refutação dos erros, das ilusões, das falsas opiniões. E essa lógica vale tanto para a filosofia quanto para as ciências positivas.
O exemplo em que Nietzsche pensa, aquele que tem em mente quando se refere a essas conhecidas forças reativas, é o dos grandes diálogos de Platão. Não sei se você já reparou num desses diálogos, mas é importante saber que eles se desenvolvem quase sempre do seguinte modo: os leitores — ou espectadores, pois eles podiam também ser encenados diante do público, como uma peça de teatro
— assistem às conversas entre um personagem central, quase sempre Sócrates, e interlocutores, ora receptivos e ingênuos, ora mais ou menos hostis e ansiosos por contradizer Sócrates. Isso acontece, sobretudo, quando este se opõe aos chamados “sofistas”, quer dizer, os mestres do discurso, da “retórica”, que não pretendem, diferentemente de Sócrates, buscar a verdade, mas apenas ensinar os meios de seduzir e persuadir pela arte da oratória.
Depois de ter escolhido um tema de discussão filosófica — do tipo: o que é a coragem, a beleza, a virtude etc. —, Sócrates sugere que seus interlocutores busquem em conjunto os “lugares-comuns”, as opiniões correntes sobre o assunto, a fim de tomá-los como ponto de partida, e se erguerem acima deles, até atingirem, se possível, a verdade. Assim que essa verificação é concluída, a discussão começa: é o que chamamos de “dialética”, a arte do diálogo no decorrer do qual Sócrates não para de fazer perguntas a seus interlocutores, o mais das vezes para lhes mostrar que se contradizem, que suas ideias ou suas convicções primeiras não se sustentam, e que é preciso que eles reflitam mais se quiserem avançar.
Você precisa saber uma coisa sobre os diálogos de Platão, importante para podermos voltar às “forças reativas” que estão em jogo, segundo Nietzsche, na busca da verdade tal como Sócrates a pratica: é que essa troca entre Sócrates e seus interlocutores é, na verdade, desigual.
Sócrates sempre ocupa uma posição deslocada em relação àquele que está sendo interrogado e com quem dialoga. Sócrates finge não saber, faz papel de ingênuo — ele tem, se ouso dizer, um lado de “inspetor Columbo”34 — quando na verdade sabe perfeitamente para onde vai. O deslocamento em relação ao interlocutor se deve ao fato de que eles não estão no mesmo nível; ao fato de que Sócrates pretende se colocar em pé de igualdade com ele, mas de fato está ali como o mestre diante do discípulo. É o que os românticos alemães chamaram de “ironia socrática”: ironia, porque Sócrates joga, porque ele não apenas está deslocado em relação àqueles que o cercam, mas, sobretudo, consigo mesmo, já que ele conhece perfeitamente, ao contrário de quem está diante dele, o papel que representa.
É também nesse ponto que Nietzsche considera sua atitude essencialmente negativa ou reativa: não apenas a verdade que ele busca não consegue se impor senão por meio da refutação de outras opiniões, mas ainda ele próprio não afirma nada de arriscado, ele não se expõe, não propõe nada de positivo. Contenta-se, seguindo o célebre método da “maiêutica” (da “arte do parto”), em pôr o interlocutor em dificuldade, em levá-lo a cair em contradição, a fim de fazê-lo parir a verdade.
No pequeno capítulo do Crepúsculo dos Ídolos dedicado a Sócrates que há pouco o aconselhei a ler, Nietzsche o compara a um treme-treme, peixe elétrico que paralisa suas presas. Porque é na contestação que o diálogo avança, para, afinal, tentar chegar a uma ideia mais acertada. Esta se apresenta, pois, contra lugares-comuns aos quais ela se opõe, considerando o que “se sustenta” ou “não se sustenta”, o que é coerente ou contraditório; ela nunca aparece direta ou imediatamente, mas sempre indiretamente, por meio da rejeição das forças da ilusão.
A essa altura, você já percebe o laço que existe no espírito de Nietzsche entre a paixão socrática do verdadeiro, a vontade de busca da verdade, filosófica ou científica, e a ideia de “forças reativas”.
Para Nietzsche, a busca da verdade revela-se até duplamente reativa, pois o conhecimento verdadeiro não se constrói apenas num combate contra o erro, a má-fé e a mentira, mas numa luta contra as ilusões inerentes ao mundo sensível enquanto tal. A filosofia e a ciência só podem de fato funcionar na oposição do “mundo inteligível” ao “mundo sensível”, de tal sorte que o segundo será inevitavelmente desvalorizado pelo primeiro. É um ponto crucial para Nietzsche, e é importante que você o compreenda bem.
Nietzsche critica todas as grandes tradições científicas, metafísicas e religiosas — ele pensa especialmente no cristianismo — por terem continuamente “desprezado” o corpo e a sensibilidade em benefício da razão. Pode parecer estranho que ele ponha no mesmo saco as ciências e as religiões. Mas o pensamento de Nietzsche não se perde, e essa aproximação não é incoerente. Com efeito, a metafísica, a religião e a ciência, apesar de tudo o que as separa e até mesmo do que as opõe, têm em comum o fato de pretenderem ascender às verdades ideais, a entidades inteligíveis que não se tocam concretamente nem se veem, a noções que não pertencem ao universo corporal. É, pois, também contra ele — aí reencontramos a ideia de “reação” — que elas atuam, pois os sentidos, como sabemos, nos enganam o tempo todo.
Você quer uma prova bem simples? Aqui vai uma: se nos apoiássemos apenas nos dados sensoriais — a visão, o tato etc. —, a água, por exemplo, poderia muito bem se mostrar em formas múltiplas, diferentes e mesmo contraditórias — a água fervente queima; a chuva é fria, a neve é mole, o gelo é duro etc. —, quando, na verdade, trata-se sempre de uma única e mesma realidade. Por isso é necessário saber se elevar acima do sensível, e até mesmo pensar contra ele — o que de novo depende de uma força reativa — se quisermos atingir o “inteligível”, alcançar a “ideia da água”, ou, diríamos hoje, essa abstração científica, puramente intelectual e não sensível, designada por uma fórmula química como H2O.
Do ponto de vista da “vontade de verdade”, como diz Nietzsche, do ponto de vista do cientista ou do filósofo que quer alcançar um conhecimento verdadeiro, é preciso, consequentemente, rejeitar todas as forças que provêm da mentira e da ilusão, mas também todas as pulsões que dependem exclusivamente da sensibilidade, do corpo. Em resumo, é preciso desconfiar de tudo o que é essencial à arte. E, com certeza, Nietzsche suspeita que por trás dessa “reação” se esconda uma dimensão inteiramente outra além da preocupação com a verdade. Talvez uma opção ética inconfessada, a escolha de alguns valores em detrimento de outros, um preconceito escondido em benefício do “além” contra “este mundo”...
Em todo caso, o ponto é essencial. De fato, se nos recusarmos não apenas a buscar a verdade, mas, com ela, o ideal do humanismo democrático, então, a crítica da filosofia moderna e dos “valores burgueses” sobre as quais ela repousa estará completa para Nietzsche: teremos desconstruído ao mesmo tempo o racionalismo e o humanismo! Porque as verdades que a ciência quer alcançar são “intrinsecamente democráticas”; são daquelas que pretendem valer para todos, em qualquer tempo e em qualquer lugar. Uma fórmula como 2 + 2 = 4 não conhece fronteiras, nem a das classes sociais nem as do tempo e do espaço, da geografia e da história. Ela tende, em outras palavras, à universalidade, e nisso — e me parece que o diagnóstico nietzschiano é pouco discutível nesse ponto — as verdades científicas estão no cerne da humanidade, ou, como ele gosta de dizer, elas são “rústicas”, “plebeias”, fundamentalmente “antidemocráticas”.
Aliás, é isso que os cientistas, frequentemente republicanos, apreciam na ciência de cada um deles: ela se dirige tanto aos poderosos como aos fracos, tanto aos ricos quanto aos pobres, tanto ao povo quanto aos príncipes. Por isso Nietzsche se diverte, às vezes, sublinhando a origem plebeia de Sócrates, o inventor da filosofia e da ciência, o primeiro promotor das forças reativas orientadas para o ideal do verdadeiro. Por isso também a equivalência que estabelece, no capítulo do Crepúsculo dos Ídolos dedicado ao “problema de Sócrates”, entre o mundo democrático e a recusa da arte, entre a vontade de verdade socrática e a feiura, de fato legendária, do herói dos diálogos de Platão, que assinala o fim de um mundo aristocrático ainda moldado em “distinção” e “autoridade”.
Vou citar uma passagem desse texto para que você reflita. Em seguida, vou explicá-lo detalhadamente para lhe mostrar como é difícil ler Nietzsche mesmo quando parece simples, pois o sentido verdadeiro do que escreve é, às vezes, o contrário do que ele parece dizer. Eis o texto:
Sócrates pertencia, por sua origem, à mais baixa camada do povo: Sócrates era o populacho. Sabe-se, vê-se ainda como era feio... Afinal, Sócrates era grego? A feiura é frequentemente a expressão de uma evolução cruzada, entravada pela mestiçagem... Com Sócrates, o gosto grego se altera em benefício da dialética. O que acontece exatamente? Antes de tudo, é um gosto distinto que é derrotado. Com a dialética, o povo consegue levar vantagem... O que precisa ser demonstrado para convencer não vale grande coisa. Em todo lugar onde a autoridade ainda é de bom-tom, em todo lugar em que não se “raciocina”, mas se ordena, a dialetização é uma espécie de polichinelo. Riem dele, não o levam a sério. Sócrates foi o polichinelo que conseguiu ser levado a sério...
É difícil, hoje, ignorar o que um discurso como esse pode ter de desagradável. Todos os ingredientes da ideologia fascista parecem estar aí entrelaçados: culto da beleza e da “distinção” do qual o “populacho” está por natureza excluído, classificação dos indivíduos segundo suas origens sociais, equivalência entre povo e feiura, valorização da nação, no caso, a Grécia, suspeitas dolorosas de uma impossível mestiçagem, supostamente explicativa não se sabe de que decadência... Não falta nada. Não fique, contudo, com essa primeira impressão. Não que ela seja — que pena! — inteiramente falsa. Como, aliás, já lhe disse, não foi por acaso que os nazistas retomaram Nietzsche. No entanto, a passagem não faz justiça ao que, apesar de tudo, pode haver de profundo na interpretação que ele dá à figura de Sócrates. Antes de rejeitá-la em bloco, sugiro que consideremos juntos, com mais atenção, o sentido de suas palavras, para extrair delas, tanto quanto possível, sua significação profunda.
Para tanto, precisamos enriquecer ainda mais nossa reflexão e levar em conta, agora, o outro componente do real, ou seja, essas célebres forças ativas que completam, ao lado das reativas, a definição do mundo, do real, que Nietzsche tenta alcançar.
 

publicado às 00:10


DAR E RECEBER

por Thynus, em 14.08.16
Nós falamos com os outros todos os dias 
Nós lhes damos atividades todos os dias
 
Eles trabalham para nós todos os dias. Eles nos ajudam quando ficamos cansados. Todos estamos
dispostos a ajudar uns aos outros, ainda que sejamos apenas colegas de trabalho.
Se pensarmos que compartilhamos do mesmo caminho na vida com todos os nossos colegas,
somos amigos para sempre e deveríamos cuidar uns dos outros.
Porque, se eles ficam doentes ou faltam no trabalho, não somos capazes de realizar nosso trabalho
sozinhos.

Me sinto prestativa no ar
 
Um barcodepende                                                               de um rio
Um tigredepende                                                                 de uma floresta
Um compradordepende                                                       de um vendedor
Um chefedepende                                                                de um subordinado
Uma mulher grávidadepende                                              de uma parteira
Um valentãodepende                                                           de uma vítima
Um padredepende                                                                de um evangelho
Uma piadepende                                                                  de água
Uma avódepende                                                                 de um avô
Um item pesadodepende                                                      de uma balança
Uma árvoredepende                                                             de solo
Um homem loucodepende                                                   de um psiquiatra
Uma facadepende                                                                de uma tábua de corte
Um candidatodepende                                                         de um voto
 
café bem acompanhado....
 
 
VOCÊ GOSTARIA DE UM CAFÉ OU DE MIM???
(Sempre perguntado por uma aeromoça no avião) 
 
Se por um ano um subordinado faz um café para você,
Pegue um bom dia entre 365 dias para fazer uma xícara de café para ele.
Isso vai surpreendê-lo e você provavelmente será lembrado e mais
amado.

(Apenas tente!!!)
 
 
(Pinkoon, Damrong - 40 ideias do pensamento positivo)

publicado às 16:28

Moral aristocrática e moral meritocrática: as duas definições da virtude e a valorização moderna do trabalho
 
Vimos claramente por que modelo natural algum não pode mais responder à pergunta clássica “O que devo fazer?”. Não apenas a natureza não é absolutamente vista como boa em si mesma, mas, na maior parte do tempo, temos de nos opor a ela e combatê-la para conseguir algum bem. E isso é verdade tanto em nós quanto fora de nós.
Fora de nós? Pense, por exemplo, no famoso terremoto de Lisboa que, em 1755, provocou vários milhares de mortes. Na época, impressionou a todos, e a maioria dos filósofos foi interrogada sobre o sentido das catástrofes naturais: seria essa natureza hostil e perigosa, para não dizer malvada, que deveríamos tomar como modelo, como recomendavam os Antigos? Certamente que não.
E em nós, as coisas são, se possível, piores ainda: se atendo à minha natureza, é contínua e fortemente o egoísmo que fala em mim, que me ordena seguir meus interesses em detrimento do interesse dos outros. Como poderia eu por um instante imaginar conseguir alcançar o bem comum, o interesse geral, se é apenas minha natureza que me contento em ouvir? A verdade é que, para ela, os outros sempre podem esperar...
Donde a questão crucial da ética num universo moderno que abdicou das cosmologias antigas: em que realidade enraizar uma nova ordem; como refazer um mundo coerente entre os humanos, sem para isso recorrer à natureza — que não é mais um cosmos —, nem à divindade, que só vale para os crentes?
Resposta que funda o humanismo moderno tanto no plano moral quanto no político e no jurídico: exclusivamente na vontade dos homens, desde que eles aceitem se restringir a si mesmos, estabelecer seus limites, compreendendo que a liberdade de cada um deve, às vezes, terminar onde começa a liberdade do outro. É apenas dessa limitação voluntária de nossos infinitos desejos de expansão e conquista que pode nascer uma relação pacífica e respeitosa entre os homens — poderíamos dizer “um novo cosmos”, mas agora ideal e não mais natural, a ser construído pelo homem, e não fato pronto.
Essa “segunda natureza”, essa coerência inventada e produzida pela vontade livre dos seres humanos em nome de valores comuns, Kant designa “reino dos fins”. Por que essa formulação? Simplesmente porque nesse “novo mundo”, mundo da vontade e não mais da natureza, os seres humanos serão, enfim, tratados como “fins” e não mais como meios; como seres de dignidade absoluta que não poderiam ser usados para a realização de objetivos pretensamente superiores. No mundo antigo, no Todo cósmico, o humano não era senão um átomo entre outros, um fragmento de uma realidade muito superior a ele. Agora ele se torna o centro do universo, o ser por excelência digno de respeito absoluto.
Isso pode lhe parecer evidente, mas não se esqueça de que, na época, foi uma revolução extraordinária.
 
Se você quiser avaliar o quanto a moral de Kant é revolucionária em relação à dos Antigos, e notadamente à dos estoicos, nada é mais esclarecedor do que verificar a que ponto a definição da noção de “virtude” se inverteu, na passagem de um momento a outro.
Indo diretamente ao ponto: as sabedorias cosmológicas definiam de bom grado a virtude ou a excelência como um prolongamento da natureza, como a realização tão perfeita quanto possível para cada ser daquilo que constitui a natureza, e indica, assim, sua “função” ou sua finalidade. Era na natureza inata de cada um que se devia ler seu destino último. Essa é a razão pela qual Aristóteles, por exemplo, na Ética a Nicômaco, que muitos consideram o mais representativo livro de moral da Antiguidade grega, começa com uma reflexão sobre a finalidade específica do homem entre os outros seres: “Da mesma forma que no caso de um tocador de flauta, de um escultor ou de um artista qualquer e, em geral, para todos os que têm uma função ou atividade determinada, é na função que reside, segundo a opinião corrente, o bem, o ‘sucesso’; pode-se pensar que é assim para o homem, se é verdade que exista uma função especial para o homem” — o que não constitui, evidentemente, nenhuma dúvida, pois seria absurdo pensar “que um carpinteiro ou sapateiro tenham uma função e uma atividade a exercer, mas que o homem não tenha nenhuma, e que a natureza o tenha dispensado de qualquer obra a realizar” (1.197 b 25).
É, portanto, a natureza que estabelece os fins do homem e à ética sua direção. Nesse sentido, Hans Jonas tem razão ao dizer que, no pensamento antigo da cosmologia, os fins “moram na natureza”, se inscrevem nela. O que não significa que, na realização de sua tarefa própria, o indivíduo não encontre dificuldades, não tenha necessidade de exercer sua vontade e suas faculdades de discernimento. Mas acontece com a ética o mesmo que com qualquer outra atividade, por exemplo, a aprendizagem de um instrumento musical: é preciso, sem dúvida, exercício para alguém se tornar o melhor, o excelente, mas acima de tudo é preciso talento.
Mesmo que o mundo aristocrático não exclua certo uso da vontade, só um dom natural pode indicar o caminho a ser seguido e eliminar as dificuldades que o cobrem. Tal é também a razão pela qual a virtude ou a excelência (essas palavras são aqui sinônimas) se define, como eu disse antes com o exemplo do olho, como uma “justa medida”, um intermediário entre os extremos. Se se trata de realizar com perfeição nossa destinação natural, é claro que ela só pode se situar numa posição mediana: assim, por exemplo, a coragem que se situa entre a covardia e a temeridade, ou a boa visão, entre a miopia e a presbiopia, de modo que, no caso, a justa medida não tem nada a ver com uma posição “centrista” ou moderada, mas, ao contrário, com a perfeição.
Pode-se dizer, nesse sentido, que um ser que realiza perfeitamente sua natureza ou sua essência situa-se num ponto equidistante em relação aos polos opostos que, por estarem no limite de sua definição, confinam com a monstruosidade. De fato, o ser monstruoso é aquele que, de tanto “extremismo”, acaba por escapar à sua própria natureza. Assim, por exemplo, um olho cego, ou um cavalo de três patas.

Como eu já disse, senti, no início de meus estudos de filosofia, a maior dificuldade em compreender em que sentido Aristóteles podia falar seriamente a respeito de um cavalo ou de um olho “virtuoso”. Este texto, entre outros, extraído também de Ética a Nicômaco, mergulhava-me num abismo de perplexidade: “Devemos observar que toda virtude, para a coisa da qual ela é virtude, tem como efeito, ao mesmo tempo, manter a coisa em bom estado e lhe permitir realizar bem sua obra própria: por exemplo: a virtude do olho torna o olho e sua função igualmente perfeitos, pois é pela virtude do olho que a visão se completa em nós como deve. Do mesmo modo, a virtude do cavalo torna um cavalo ao mesmo tempo perfeito em si mesmo e bom para a corrida, para levar seu cavaleiro e enfrentar o inimigo” (1.106 a 15). Muito naturalmente marcado pela perspectiva moderna, meritocrática, não via o que a ideia de “virtude” vinha fazer ali.

Mas, numa perspectiva aristocrática, tais palavras nada têm de misteriosas: o ser “virtuoso” não é aquele que atinge um certo nível graças a esforços livremente consentidos, mas aquele que funciona bem, e até excelentemente, segundo a natureza e as finalidades que lhe são próprias. E isso vale tanto para as coisas e animais quanto para os seres humanos cuja felicidade está associada a essa realização de si.
No seio de tal visão da ética, a questão dos limites que não devem ser ultrapassados tem assim uma solução “objetiva”: é na ordem das coisas, na realidade do cosmos, que se deve procurar seu traço, como o fisiologista que, ao perceber a finalidade dos órgãos e dos membros, também percebe em que limites eles devem exercer sua atividade. Assim como não se poderia, sem dano, trocar um fígado por um rim, cada um, no espaço social, deve encontrar seu lugar e se manter nele, sem o que o juiz deverá intervir para restabelecer a ordem harmoniosa do mundo e dar, segundo a célebre fórmula do direito romano, “a cada um o que é seu”.
Toda a dificuldade para nós, Modernos, vem de que tal leitura cósmica tornou-se impossível, simplesmente por falta de cosmos a ser escrutado e de natureza a ser decodificada. Poderíamos caracterizar assim a oposição cardeal que separa a ética cosmológica dos Antigos da ética meritocrática e individualista dos republicanos modernos, tomando como base a antropologia anunciada por Rousseau: para os Antigos, como acabo de lhe dizer por quê, a virtude, entendida como excelência num gênero, não está em oposição à natureza, mas, ao contrário, não é senão uma atualização bem-sucedida das disposições naturais de um ser, uma passagem, como diz Aristóteles, da “potência ao ato”. Para as filosofias da liberdade, ao contrário, e especialmente para Kant, a virtude aparece em exata oposição como uma luta da liberdade contra a naturalidade em nós.
Nossa natureza, volto a insistir, é naturalmente inclinada ao egoísmo, e se quero dar espaço para os outros, se quero limitar minha liberdade às condições de sua integração com a de outrem, então é preciso que eu faça um esforço, é preciso mesmo que eu me violente. E é somente com essa condição que uma nova ordem de coexistência pacífica dos seres humanos é possível. Aí está a virtude, e não mais, de modo algum, como você vê, na realização de uma natureza bem-dotada. É por ela, e apenas por ela, que um novo cosmos, uma nova ordem do mundo, fundada no homem e não mais no cosmos ou num Deus, se torna possível.
No plano político, esse novo espaço de vida comum terá três marcas características, diretamente opostas ao mundo aristocrático dos Antigos: a igualdade formal, o individualismo e a valorização da ideia de trabalho.

Sobre a igualdade serei breve, pois já lhe disse o essencial. Caso se identifique a virtude aos talentos naturais, então, com efeito, nem todos os seres se equivalem. Nessa perspectiva, é normal que se construa um mundo aristocrático, quer dizer, um universo fundamentalmente não igualitário, que postula não apenas uma hierarquia natural dos seres, mas que também insiste em fazer com que os melhores fiquem “no alto”, e os menos bons, “embaixo”. Se, ao contrário, situa-se a virtude não mais na natureza, mas na liberdade, então todos os seres se equivalem, e a democracia se impõe.

O individualismo é consequência desse raciocínio. Para os Antigos, o Todo, o cosmos, é infinitamente mais importante do que suas partes, do que os indivíduos que o compõem. É o que se chama de “holismo” — que vem do grego holos, que quer dizer “tudo”. Para os Modernos, a relação se inverte: o Todo não tem mais nada de sagrado, já que para eles não existe cosmos divino e harmonioso no seio do qual seria necessário encontrar um lugar a se inserir. Apenas o indivíduo conta, de tal modo que, a rigor, uma desordem é melhor do que uma injustiça. Não se tem mais o direito de sacrificar os indivíduos para proteger o Todo, pois o Todo não é nada mais do que a soma dos indivíduos, uma construção ideal na qual cada ser humano, porque é “um fim em si”, não pode mais ser tratado como um simples meio.
Você vê que o termo individualismo não designa, como se pensa habitualmente, o egoísmo, mas quase o oposto, o nascimento de um mundo moral no seio do qual indivíduos, pessoas, são valorizados na medida de suas capacidades de se desprenderem da lógica do egoísmo natural para construir um universo ético artificial.
Enfim, na mesma perspectiva, o trabalho se torna o próprio do homem, até o ponto em que um ser humano que não trabalhe não é apenas um homem pobre, porque não tem salário, mas um pobre homem, no sentido em que não pode se realizar e realizar sua missão na Terra: construir-se, construindo o mundo, transformando-o para torná-lo melhor apenas pela força de sua boa vontade. No universo aristocrático, o trabalho era considerado defeito, uma atividade, no sentido próprio do termo, servil, reservada aos escravos. No mundo moderno, ao contrário, ele se torna um veículo essencial da realização de si, um meio não apenas de se educar — não há educação moderna sem trabalho —, mas também para se desabrochar e se cultivar.
Como você vê, estamos agora nos antípodas do mundo antigo que lhe descrevi.
 
Façamos um resumo para que você não perca o fio: vimos até agora como as morais modernas deixaram de se basear na imitação do cosmos — a ciência moderna fez com que ele explodisse — ou na obediência aos mandamentos divinos — também eles fragilizados pelas conquistas cada vez mais críveis das ciências positivas. Você compreendeu também que as morais estavam em grande dificuldade. Vimos ainda como, a partir da nova definição do homem proposta pelo humanismo moderno — notadamente por Rousseau —, novas morais iam se construir, começando pela de Kant e a dos republicanos franceses.
É, pois, o ser humano, ou, como se diz no jargão filosófico, o “sujeito”, que desde então assumiu o lugar das entidades antigas, cosmos ou divindade, para se tornar progressivamente o fundamento último de todos os valores morais. É ele, de fato, que aparece como objeto de todas as atenções, como o único ser, afinal, verdadeiramente digno de respeito no sentido moral do termo.

Mas isso tudo ainda está mal situado historicamente. Com efeito, comecei essa apresentação da filosofia moderna por Rousseau e Kant, logo, por filósofos do século XVIII, ao passo que a ruptura com o mundo antigo ocorreu na filosofia já no século XVII, com Descartes.

É preciso que eu lhe diga uma palavra sobre ele, pois é o verdadeiro fundador da filosofia moderna, e é útil ter ao menos uma ideia das razões pelas quais ele marca simultaneamente uma ruptura e um ponto de partida.
 
O “cogito” de Descartes ou a primeira origem da filosofia moderna
Cogito ergo sum, “penso, logo existo”: talvez você já tenha ouvido essa fórmula. Se não, saiba que ela é, entre todas as sentenças filosóficas, uma das mais célebres do mundo. Com justa razão, porque ela marca uma data na história do pensamento, porque ela inaugura uma nova época: a do humanismo moderno, no seio do qual vai reinar o que será designado “subjetividade”. O que isso significa exatamente?
No início deste capítulo, eu lhe expliquei por que, após o desmoronamento do cosmos dos Antigos e o início da crise das autoridades religiosas, com o estímulo da ciência moderna, o homem ficou entregue à dúvida, submetido a interrogações intelectuais e existenciais de uma amplitude até então desconhecida. Vimos como o poema de John Donne, em especial, tentava traduzir o estado de espírito dos cientistas da época. Tudo devia ser reconstruído, a teoria do conhecimento, com certeza, mas também a ética e, mais ainda, talvez, a doutrina da salvação. E por isso é necessário um princípio novo, que não pode mais ser o cosmos, nem a divindade; será o homem ou, como dizem os filósofos, o “sujeito”.
Pois bem, é Descartes quem “inventa” esse princípio novo antes de Rousseau e Kant o terem explicitado, notadamente no debate sobre o animal, como vimos anteriormente. É ele quem vai fazer da fraqueza, que a priori parece ser a terrível dúvida ligada ao sentimento do desaparecimento dos mundos antigos, uma força, um formidável meio de reconstruir com novas apostas todo o edifício do pensamento filosófico.
Em suas duas obras fundamentais, o Discurso do Método (1637) e as Meditações Metafísicas (1641), Descartes imagina, sob diversas formas, uma espécie de ficção filosófica: ele se obriga, por princípio, ou como ele mesmo diz, “por método”, a pôr em dúvida absolutamente todas as suas ideias, tudo aquilo em que ele acreditou até então, mesmo as coisas mais certas e evidentes — como, por exemplo, o fato de que existem objetos fora de mim, que escrevo sobre uma mesa, sentado numa cadeira etc. Para ter certeza de duvidar de tudo, ele imagina até mesmo a hipótese de um “gênio maligno” que se divertiria em enganá-lo em qualquer situação, ou ainda se lembra de como, às vezes, em seus sonhos, acreditou que estava acordado, lendo ou passeando, quando de fato estava “inteiramente nu, na cama”!

Em resumo, ele adota uma atitude de ceticismo total que o leva a não considerar nada mais como certo... Salvo que, no final das contas, há uma certeza que resiste a tudo e permanece válida, uma convicção que resiste à prova mesma da dúvida mais radical: aquela segundo a qual se penso, e até se duvido, devo ser algo que existe! Pode ser que eu me engane o tempo todo, que todas as minhas ideias sejam erradas, que eu seja enganado permanentemente por um gênio maligno, mas, para que eu me engane ou seja enganado, ainda assim é preciso que eu seja algo que existe! Uma convicção resiste pois à dúvida, mesmo à mais total, é a certeza de minha existência!

Donde a fórmula agora canônica com a qual Descartes conclui seu raciocínio: “Penso, logo existo.” Mesmo que meus pensamentos sejam do princípio ao fim errôneos, pelo menos aquele segundo o qual eu existo é forçosamente correto, já que é preciso no mínimo existir, nem que fosse só para delirar.
Estou certo de que seus professores de filosofia lhe falarão um dia da famosa dúvida cartesiana e de seu não menos famoso cogito. Certamente eles lhe explicarão por que, apesar da aparente simplicidade, suscitou tantos comentários e interpretações diversas.
Gostaria agora que você se lembrasse do seguinte: por meio da experiência da dúvida radical que Descartes inventa totalmente — e que a você parecerá um pouco exagerada à primeira vista — há três ideias fundamentais que aparecem pela primeira vez na história do pensamento, três ideias destinadas a uma formidável posteridade, que são, no sentido próprio, fundadoras da filosofia moderna.
Vou me limitar a indicá-las, mas saiba que poderíamos dedicar-lhes, sem dificuldade, um livro inteiro.
 
Primeira ideia: se Descartes põe em cena a ficção da dúvida, na verdade não é apenas para alcançar uma nova definição da verdade. Pois, ao examinar cuidadosamente a única certeza que resiste a qualquer prova — no caso, o cogito —, ele está certo de conseguir descobrir um critério confiável da verdade. Pode-se até dizer que esse método de raciocínio vai levar a definir a verdade como aquilo que resiste à dúvida, como aquilo de que o sujeito humano está absolutamente seguro. Assim, é um estado de nossa consciência subjetiva, a certeza, que vai se tornar o novo critério da verdade. Isso já mostra o quanto a subjetividade se torna importante para os  Modernos, já que, a partir daí, é exclusivamente nela que se encontra o critério mais seguro da verdade. Enquanto os Antigos a definiam inicialmente em termos objetivos, por exemplo, como a adequação de um julgamento às realidades que ele descreve: quando digo que é noite, essa oração é verdadeira se, e apenas se, corresponde à realidade objetiva, aos fatos reais, tenha eu certeza ou não. Seguramente os Antigos não desconheciam o critério subjetivo da certeza. Nós o encontramos especialmente nos diálogos de Platão. Mas com Descartes, ele vai se tornar primordial e se sobrepor aos outros.
 
A segunda ideia fundamental será ainda mais decisiva no plano histórico e político: é a da “tábula rasa”, a da rejeição absoluta de todos os preconceitos e de todas as crenças herdadas das tradições e do passado. Pondo radicalmente em dúvida, sem distinção, a totalidade das ideias prontas, Descartes simplesmente inventa a noção moderna de revolução. Como dirá, no século XIX, outro grande pensador francês, Tocqueville, os homens que fizeram a revolução de 1789, aqueles que chamamos de “jacobinos”, não são nada mais do que “cartesianos que saíram das escolas” e “desceram à rua”.
Com efeito, poderíamos dizer que os revolucionários repetem, na realidade histórica e política, o mesmo gesto de Descartes quanto ao pensamento: assim como este decreta que todas as crenças anteriores, todas as ideias herdadas da família, da nação, ou transmitidas desde a infância pelas “autoridades” como as dos mestres ou da Igreja, por exemplo, devem ser postas em dúvida, criticadas, examinadas com toda a liberdade por um sujeito que se posiciona como soberano autônomo, capaz de decidir sozinho sobre o que é verdadeiro ou não, da mesma forma os revolucionários franceses decretam que é preciso acabar com todas as heranças do Antigo Regime. Como diz um deles — Rabaud Saint-Etienne — por meio de uma fórmula perfeitamente “cartesiana” e que também fará época, a Revolução pode ser resumida numa frase: “Nossa história não é nosso código.”
Esclarecendo: não é porque sempre vivemos sob um regime, o da aristocracia e da realeza, das desigualdades e dos privilégios instituídos, que somos obrigados a continuar a fazer o mesmo para sempre. Ou, melhor dizendo: nada nos obriga a respeitar para sempre as tradições. Ao contrário, quando elas não são boas, é preciso rejeitá-las e mudá-las. Ou seja, é preciso saber “fazer tábula rasa do passado” para reconstruir tudo de novo — tal como Descartes, que depois de ter posto todas as crenças anteriores em dúvida, toma a iniciativa de reconstruir a filosofia inteira sobre algo sólido: uma certeza inquebrantável, a do sujeito que toma posse de si mesmo, em transparência total, e que a partir daí só confia em si.
Você observará que, nos dois casos, tanto para Descartes quanto para os revolucionários franceses, é o homem, o sujeito humano, que se torna o fundamento de todos os pensamentos e de todos os projetos; da filosofia nova com a experiência decisiva do cogito, assim como da democracia e da igualdade com a abolição dos privilégios do Antigo Regime, e a declaração, na época absolutamente extraordinária, da igualdade de todos os homens entre si.
Note também que há uma ligação direta entre a primeira e a segunda ideia, entre a definição da verdade como certeza do sujeito e a fundação da ideologia revolucionária. Porque, se é preciso fazer tábula rasa do passado e submeter à dúvida mais rigorosa opiniões, crenças e preconceitos que não passaram pelo crivo do exame crítico, é porque não convém acreditar, não convém “dar crédito”, como diz Descartes, senão àquilo de que podemos estar absolutamente certos por nós mesmos. Daí a natureza nova, fundada na consciência individual, e não mais na tradição, da única certeza que se impõe antes de todas as outras: a do sujeito em sua relação consigo mesmo. Não é mais, portanto, a confiança, a fé, que permite alcançar, como vimos no cristianismo, a verdade última, mas a consciência de si.
 
Donde a terceira ideia que eu gostaria de evocar, e que você nem consegue imaginar como era revolucionária na época de Descartes: aquela segundo a qual é preciso rejeitar todos os “argumentos de autoridade”. Chamamos “argumentos de autoridade” as crenças impostas de fora como verdades absolutas por instituições dotadas de poderes que não se tem o direito de discutir, ainda menos de questionar: a família, os professores, os sacerdotes etc. Se a Igreja decreta, por exemplo, que a Terra não é redonda e que não gira em torno do Sol, pois bem, é preciso que você aceite; e, se se recusar, corre o risco de acabar na fogueira, como Giordano Bruno, ou de ser obrigado, como Galileu, a declarar publicamente que está errado, mesmo que esteja absolutamente certo.
É o que Descartes abole com sua famosa dúvida radical. Em outras palavras, ele simplesmente inventa o “espírito crítico”, a liberdade de pensamento e, com isso, funda a filosofia moderna. A ideia de que deveriam aceitar uma opinião porque seria a mesma das autoridades, quaisquer que elas fossem, repugna tão fundamentalmente aos Modernos que ela praticamente acaba por defini-los como tais. De fato, acontece que às vezes confiamos numa pessoa ou instituição, mas esse gesto em si perdeu o sentido tradicional: se aceito seguir a opinião de alguém, é, em princípio, porque elaborei “boas razões” para fazê-lo, não porque essa autoridade se impôs a mim de fora, sem o reconhecimento prévio, oriundo de minha certeza pessoal, subjetiva, de minha convicção íntima e, se possível, refletida.
Parece-me que com essas poucas explicações você já pode perceber melhor em que sentido se diz que a filosofia moderna é uma filosofia do “sujeito”, um humanismo, e até mesmo um antropocentrismo, quer dizer, no sentido etimológico, uma visão do mundo que coloca o homem (anthropos, em grego) — e não o cosmos ou a divindade — no centro de tudo.
Já vimos como esse princípio novo dá lugar a uma nova theoria e simultaneamente a uma nova moral. Falta-nos dizer algumas palavras sobre as doutrinas modernas da salvação. A tarefa, como você talvez já pressinta, é um tanto mais difícil do que na ausência do cosmos e de Deus; logo, a se ater ao humanismo estrito, a ideia da salvação é aparentemente quase impensável.
E, de fato, morais sem ordenação do mundo e mandamentos divinos são tão impensáveis quanto difíceis de compreender. Considerando que o princípio do mundo moderno é o homem — e que os homens são mortais —, tais concepções não podem ser aquelas em que o humanismo poderia se apoiar, ainda que fosse para ultrapassar, ao menos, o medo da morte. A partir disso, a questão da salvação irá desaparecer para muitos. E ela tenderá a se confundir com a ética, o que é ainda mais deplorável.
Essa confusão é tão frequente hoje que eu gostaria, antes mesmo de abordar as respostas propriamente modernas para a antiga questão da salvação, de tentar dissipá-la do modo mais claro possível.
 
III. Da interrogação moral à questão da salvação: o ponto em que essas duas esferas jamais poderiam se confundir 
Se quiséssemos resumir as ideias modernas que acabamos de examinar, poderíamos simplesmente definir as morais laicas como um conjunto de valores expressos por deveres ou imperativos que nos pedem um mínimo de respeito pelo outro, sem o qual uma vida comum pacificada é impossível.
O que nossas sociedades, que fazem dos direitos do homem um ideal, nos pedem para respeitar nos outros é a igual dignidade, o direito ao bem-estar e à liberdade, especialmente de opinião. A famosa fórmula segundo a qual “minha liberdade acaba quando começa a do outro” é, no fundo, o axioma primeiro desse respeito pelo outro sem o qual não existe coexistência pacífica possível.
Ninguém pode duvidar de que as regras morais sejam rigorosamente indispensáveis. Pois, em sua ausência, é imediatamente a guerra de todos contra todos que se delineia no horizonte. Elas constituem a condição necessária da vida comum pacificada que o mundo democrático visa engendrar. Elas não são, porém, a condição suficiente, e eu gostaria que você compreendesse bem em que ponto os princípios éticos, por mais importantes que sejam, não determinam em absoluto as questões existenciais que outrora as doutrinas da salvação haviam assumido.
Para convencê-lo, gostaria que você refletisse um pouco sobre a seguinte ficção: imagine que você dispusesse de uma varinha mágica que lhe permitisse fazer com que todos os indivíduos que vivem hoje neste mundo começassem a observar perfeitamente o ideal do respeito pelo outro, tal como se encarnou nos princípios humanistas. Suponhamos que no mundo todo os direitos dos homens fossem conscienciosamente aplicados. A partir de então, cada um de nós levaria em conta a dignidade de todos e, ao mesmo tempo, o direito igual de cada um de alcançar os dois bens fundamentais que são a liberdade e a felicidade.
Temos dificuldade em avaliar as profundas perturbações, a incomparável revolução que tal atitude introduziria em nossos costumes. A partir daí não haveria mais guerra nem massacre, nem genocídio nem crime contra a humanidade, nem racismo nem xenofobia, nem violação nem roubo, nem dominação nem exclusão, e as instituições repressivas ou punitivas, tais como o exército, a polícia, a justiça ou as prisões, poderiam praticamente desaparecer.
Isso significa que a moral não deve ser negligenciada; quer dizer que ela é extremamente necessária à vida comum, e o quanto estamos longe de sua realização, mesmo que aproximada.
Contudo, nenhum, é o que digo, nenhum de nossos mais profundos problemas existenciais estaria mesmo assim resolvido. Nada, nem mesmo a mais perfeita realização da mais sublime moral nos impediria de envelhecer, de assistir impotentes ao aparecimento das rugas e dos cabelos brancos, de adoecer, de viver separações dolorosas, de saber que vamos morrer e assistir à morte daqueles que amamos, de hesitar sobre as finalidades da educação e de nos empenhar para desenvolver os meios de realizá-las, ou até, mais simplesmente, de nos entediar e descobrir que a vida cotidiana é sem graça...

Inútil sermos santos, apóstolos perfeitos dos direitos do homem e da ética republicana, nada nos garantiria o sucesso da vida afetiva. A literatura fervilha de exemplos que mostram como a lógica da moral e a da vida amorosa obedecem a princípios heterogêneos. A ética nunca impediu ninguém de ser traído ou abandonado. Salvo engano, nenhuma das histórias de amor representada nas grandes obras romanescas depende da ação humanitária... Se a aplicação dos direitos do homem permite uma vida comum pacificada, eles não oferecem por si mesmos nenhum sentido, nem mesmo nenhuma finalidade ou direção à existência humana.

Eis por que, no mundo moderno assim como nos tempos passados, foi preciso inventar, para além da moral, algo que ocupasse o lugar de uma doutrina da salvação. O problema é que sem cosmos e sem Deus a coisa parece particularmente difícil de se pensar. Como enfrentar a fragilidade e a finitude da existência humana, a mortalidade de todas as coisas neste mundo, na falta de qualquer princípio exterior e superior à humanidade?
É essa a equação que as doutrinas modernas da salvação tiveram que, bem ou mal — antes mal do que bem, é preciso que se diga —, tentar resolver.
 
A emergência de uma espiritualidade moderna:
como pensar a salvação se o mundo não é mais uma ordem harmoniosa e se Deus está morto? 
Para alcançar tal objetivo, os Modernos seguiram duas grandes linhas.
A primeira — não nego que sempre a considerei um pouco ridícula, mas, enfim, ela foi tão dominante nos dois últimos séculos que não se pode omiti-la — é a das “religiões de salvação terrestre”, especialmente o cientificismo, o patriotismo e o comunismo.
O que isso quer dizer?
Grosso modo, o seguinte: não podendo sustentar-se numa ordem cósmica, não podendo mais acreditar em Deus, os Modernos inventaram religiões de substituição, espiritualidades sem Deus ou, para ser direto, ideologias que, professando com frequência um ateísmo radical, agarraram-se, apesar de tudo, a ideais capazes de dar um sentido à existência humana, ou de justificar que se morra por eles.
Do cientificismo à Júlio Verne até o comunismo de Marx, passando pelo patriotismo do século XIX, essas grandes utopias humanas — por demais humanas — tiveram pelo menos o mérito, um pouco trágico, é verdade, de tentar o impossível: reinventar ideais superiores, sem por isso sair, como faziam os gregos com o cosmos e os cristãos com Deus, dos quadros da própria humanidade. Dito claramente, três modos de salvar a vida, ou de justificar a morte, dá no mesmo, sacrificando-a em benefício de uma causa superior: a revolução, a pátria, a ciência.
Com esses três “ídolos”, como dirá Nietzsche, foi possível salvar a fé: conciliando a vida e o ideal, sacrificando-a eventualmente por ele, foi possível preservar a certeza de se “salvar”, passando pela última via de acesso à eternidade.
Para lhe dar um exemplo caricatural, mas altamente significativo dessas religiões de salvação terrestre — dessas religiões sem ideal exterior à humanidade —, citarei um grande momento da história da imprensa francesa. Trata-se da primeira página de France Nouvelle, principal publicação do partido comunista, imediatamente após a morte de Stalin.

Você sabe que Stalin foi o chefe da União Soviética, o papa, por assim dizer, do comunismo mundial, e que todos os fiéis  consideravam, apesar de todos os seus crimes, como um verdadeiro herói.

Na época, pois — estamos em 1953 —, o Partido Comunista Francês redige a primeira página de seu principal órgão de propaganda em termos que hoje parecem estarrecedores, mas que traduzem perfeitamente o caráter ainda religioso da relação com a morte no seio de uma doutrina que, no entanto, desejava ser radicalmente materialista e ateísta. Aqui vai o texto:
O coração de Stalin, ilustre companheiro de armas e prestigioso continuador de Lenin, o chefe, amigo e irmão dos trabalhadores de todos os países, cessou de bater. Mas o stalinismo vive, ele é imortal. O nome sublime do genial mestre do comunismo mundial resplandecerá com uma chamejante claridade pelos séculos, e será sempre pronunciado com amor pela humanidade reconhecida. A Stalin, para todo o sempre seremos fiéis. Os comunistas se esforçarão para merecer, por sua dedicação incansável à causa sagrada da classe trabalhadora [...], o título de honra de stalinistas. Glória eterna ao grande Stalin, cujas magistrais e imperecíveis obras científicas nos ajudarão a reunir a maioria do povo...( Capa de France Nouvelle de 14 de março de 1953)

Como você vê, o ideal comunista era tão forte, tão “sagrado”, como diz a redação ateísta de France Nouvelle, que permitia ultrapassar a morte, justificar que se dê a vida sem temor e sem remorso por ele. Não é, pois, exagero dizer que estamos diante de uma verdadeira doutrina da salvação. Ainda hoje, último vestígio de uma religião sem deuses, o hino nacional cubano estende essa esperança aos simples cidadãos, desde que tenham sacrificado cada destino particular à causa suprema, pois “morrer pela pátria”, afirma ele, “é entrar na eternidade”...

Como você sabe, encontraremos na direita formas de patriotismo equivalentes. É o que comumente se chama de “nacionalismo”, e a ideia de que vale a pena dar a vida pela nação de que se é membro se evidencia também nessa tendência.
Num estilo bastante parecido com o do comunismo e o do nacionalismo, o cientificismo ofereceu também razões para se viver e morrer. Se você já leu um livro de Júlio Verne, constatou como os “cientistas e construtores”, tal como se dizia ainda na escola primária quando eu era criança, tinham a impressão de que, ao descobrir uma terra desconhecida ou uma nova lei científica, ao inventar uma máquina para explorar o céu ou o mar, inscreviam o nome na eternidade da grande história e justificavam assim toda a sua existência...
Melhor para eles.
Se há pouco lhe disse que sempre achei essas novas religiões um pouco ridículas — e muito mesmo, às vezes —, não é apenas devido ao grande número de mortos que produziram. Elas mataram muito, é fato, especialmente as duas primeiras, mas é sobretudo a ingenuidade delas que me desconcerta. Porque você compreende, é claro, que a salvação do indivíduo, apesar de todos os seus esforços, não poderia se confundir com a da humanidade. Mesmo que nos dedicássemos a uma causa sublime, com a convicção de que o ideal é infinitamente superior à própria vida, no final, é sempre o indivíduo que sofre e morre enquanto ser particular, não outro em seu lugar. Em face da morte pessoal, o comunismo, o cientificismo, o nacionalismo e todos os outros “ismos” que se queira pôr no lugar correm o grande risco de revelarem-se, qualquer dia desses, apenas como abstrações desesperadamente vazias.
Como dirá o maior pensador “pós-moderno”, Nietzsche, cujo pensamento estudaremos no próximo capítulo, a paixão pelos “grandes projetos” supostamente superiores ao indivíduo, ou à própria vida, não seria uma última esperteza das grandes religiões que quisemos superar?
No entanto, por trás desses esforços desesperados que às vezes parecem derrisórios, opera, apesar de tudo, uma revolução de amplitude considerável. Pois o que as falsas religiões tramam por trás de sua banalidade aparente ou real é simplesmente a secularização ou a humanização do mundo. Na falta de princípios cósmicos ou religiosos, é a própria humanidade que se sacraliza, a ponto de ascender, por sua vez, ao estatuto de princípio transcendente. A execução, aliás, é possível: afinal, ninguém pode negar que a humanidade em sua totalidade seja, em certo sentido, superior a cada um dos indivíduos que a compõem, da mesma forma que o interesse geral deve, em princípio, prevalecer sobre os interesses particulares.
Sem dúvida é a razão pela qual essas novas doutrinas da salvação sem Deus nem ordem cósmica conseguiram convencer tantos novos fiéis.
Mas além dessas formas de religiosidade até então inéditas, a filosofia moderna também conseguiu, como sugeri antes, pensar de outro modo, de modo muitíssimo mais profundo, a questão da salvação.
Não quero desenvolver agora detalhadamente o conteúdo dessa nova abordagem humanista. Falarei melhor a respeito no capítulo dedicado ao pensamento de Nietzsche.
Digo-lhe apenas uma palavra, para que você não tenha a impressão de que o pensamento moderno se reduz às banalidades mortíferas do comunismo, do cientificismo ou do nacionalismo.
É Kant, na linha de Rousseau, quem lança pela primeira vez a ideia crucial de “pensamento alargado” como sentido da vida humana. O pensamento alargado, para ele, é o contrário do espírito limitado, é o pensamento que consegue se libertar da situação particular de origem para se elevar até a compreensão do outro.
Para lhe dar um exemplo simples, quando você aprende uma língua estrangeira, é preciso que ao mesmo tempo você se afaste de si e de sua condição particular de partida, o francês, por exemplo, para entrar numa esfera mais larga, mais universal, onde vive uma outra cultura e, se não uma outra humanidade, ao menos uma outra comunidade humana diferente daquela a que você pertence e da qual, de algum modo, você começa a se desprender, sem, contudo, renegar.
Desprendendo-se das particularidades iniciais, entra-se, pois, em mais humanidade. Ao aprender uma outra língua, você pode não apenas comunicar-se com um número maior de seres humanos, mas ainda descobre, por meio da linguagem, outras ideias, outras formas de humor, outras modalidades de relação com o outro e com o mundo. Você alarga a visão e afasta os limites naturais do espírito atado à sua própria comunidade — que é o arquétipo do espírito limitado.
Além do exemplo específico das línguas, é todo o sentido da experiência humana que está em jogo. Se conhecer e amar são uma só coisa, você entra, alargando o horizonte, cultivando-se, numa dimensão da existência humana que a “justifica” e lhe dá um sentido — simultaneamente uma significação e uma direção.
De que serve “crescer”, perguntamo-nos às vezes. A isso, talvez, e mesmo se essa ideia não nos salva mais da morte — mas que ideia poderia fazê-lo? —, ela ao menos dá um sentido ao fato de enfrentá-la.
Voltaremos a essa ideia mais adiante, para completá-la como necessário, e indicar com maior precisão em que sentido ela assume o lugar das antigas doutrinas da salvação.
Por agora, e justamente para compreender a necessidade de um discurso, enfim, sem ilusão, é preciso passar ainda por nova etapa: a da “desconstrução”, da crítica das ilusões e das ingenuidades das antigas visões de mundo. Nesse projeto, Nietzsche é o maior, o mestre da suspeita, o pensador mais devastador, aquele que dá impulso a toda filosofia por vir: impossível, depois dele, voltar às crenças passadas.
Está na hora de você compreender por si mesmo.
 
 
(Luc Ferry - Aprender a Viver)

publicado às 22:58

A diferença entre animalidade e humanidade segundo Rousseau: o nascimento da ética humanista
Se eu tivesse de conservar um texto da filosofia moderna, um texto a ser levado para uma ilha deserta, como se diz, seria ele, sem dúvida, que escolheria: trata-se de uma passagem do Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens, que Rousseau publicou em 1755. Vou citá-lo daqui a pouco, para que você possa lê-lo e meditar sobre ele sozinho. Mas, para compreendê-lo bem, é preciso primeiramente que você saiba que, na época de Rousseau, existiam dois critérios clássicos para distinguir o animal do homem: de um lado, a inteligência; de outro, a sensibilidade, a afetividade, a sociabilidade (o que inclui também a linguagem).
Para Aristóteles, por exemplo, o homem é definido como “animal racional”, quer dizer, como um ser vivo (o ponto em comum com os “outros” animais), certamente, mas que teria, além disso (sua “diferença específica”), uma característica própria: a capacidade de raciocinar.
Para Descartes e os cartesianos, não apenas se mantém o critério da razão e da inteligência, mas se acrescenta o da afetividade: para Descartes, de fato, os animais são comparáveis a máquinas, a autômatos, e é um erro acreditar que tenham sentimentos — o que explica, aliás, que não falam por falta de emoções a exprimir, conquanto disponham de órgãos que lhes permitiriam fazê-lo.
Rousseau vai além dessas distinções clássicas, ao propor outra, até então inédita sob essa forma (embora se encontrem vez por outra, por exemplo, em Pico della Mirandola, no século XV, algumas antecipações). Ora, é essa nova definição do humano que vai se revelar verdadeiramente genial, no sentido em que vai possibilitar identificar o que, no homem, permite fundar uma nova moral, uma ética não mais “cósmica” ou religiosa, mas humanista — e até, por mais estranho que possa parecer, um pensamento inédito da salvação “acósmica” e “não ateia”.
Para Rousseau, antes de tudo, é evidente que o animal, mesmo que se pareça com uma “máquina engenhosa”, como diz Descartes, possui mesmo assim uma inteligência, uma sensibilidade, até mesmo uma faculdade de comunicar. Não são, portanto, a razão, a afetividade, nem mesmo a linguagem que distinguem, em última instância, os seres humanos, mesmo que, à primeira vista, esses diversos elementos possam parecer discriminatórios. De fato, quem tem um cão sabe perfeitamente que o cão é mais sociável e até muito mais inteligente... do que alguns seres humanos! Nesses dois aspectos, só diferimos dos animais pelo grau, do mais ao menos, mas não de modo radical, qualitativo. A etologia contemporânea — quer dizer, a ciência que estuda o comportamento animal — confirma amplamente esse diagnóstico. Sabemos hoje com certeza que existe uma inteligência e uma afetividade animais muito desenvolvidas, podendo mesmo chegar, nos grandes macacos, até a aquisição de elementos de linguagem bastante sofisticados.
É, pois, com razão, que Rousseau rejeita tanto as teses cartesianas — que reduzem o animal a uma máquina, a um autômato desprovido de sensibilidade — quanto as teses antigas que situam o próprio do homem no fato de que só ele possuiria a razão.
O critério de diferenciação entre o homem e o animal reside em outro ponto.

Rousseau vai situá-lo na liberdade, ou, como exprime por meio de uma palavra que vamos analisar, na “perfectibilidade”. Mais adiante vou lhe explicar esses dois termos, depois que você tiver lido o texto de Rousseau. Digamos apenas, por ora, que essa “perfectibilidade” designa, numa primeira abordagem, a faculdade de se aperfeiçoar ao longo da vida, enquanto o animal, guiado desde a origem e de modo seguro pela natureza, como se dizia na época, pelo “instinto”, é, por assim dizer, perfeito “de imediato”, desde o nascimento. Observando-o objetivamente, constatamos que o animal é conduzido por um instinto infalível, comum à sua espécie, como por uma norma intangível, uma espécie de software do qual nunca pode desviar-se. É por isso que, num mesmo processo e por uma mesma razão, ele é simultaneamente privado de liberdade e da capacidade de se aperfeiçoar. Privado de liberdade porque está, por assim dizer, preso a seu programa, “programado” pela natureza de modo que esta lhe serve integralmente de cultura. Privado da capacidade de se aperfeiçoar porque, guiado por uma norma intangível, não pode evoluir indefinidamente e fica, de certo modo, limitado por essa naturalidade mesma.

O homem, ao contrário, vai se definir ao mesmo tempo por sua liberdade, por sua capacidade de se libertar do programa do instinto natural e, consequentemente, por sua faculdade de ter uma história cuja evolução é, a priori, indefinida.
Rousseau exprime essas ideias num texto realmente magnífico. Agora, é preciso que você leia, antes que prossigamos. Ele oferece vários exemplos que, embora no início tenham certo valor retórico, não deixam de ter uma profundidade extraordinária.
Eis a passagem:
Em cada animal não vejo senão uma máquina engenhosa, à qual a natureza ofereceu sentidos para recompor-se por si mesma, e para defender-se, até certo ponto, de tudo o que tende a destruí-la ou estragá-la. Percebo exatamente as mesmas coisas na máquina humana, com a diferença de que a natureza faz tudo nas ações do animal, enquanto o homem concorre para as suas, na qualidade de agente livre. Um escolhe ou rejeita por instinto, e o outro, por um ato de liberdade: o que faz com que o animal não se afaste da regra que lhe é prescrita, mesmo quando lhe fosse vantajoso fazê-lo, e que o homem se afaste frequentemente dela, em seu prejuízo. Assim é que um pombo morreria de fome perto de uma vasilha repleta das melhores carnes, e um gato, diante de uma porção de frutos ou de grãos, embora tanto um quanto o outro pudesse perfeitamente se nutrir com o alimento que desdenha, se ousasse experimentá-lo. É assim que os homens dissolutos se entregam a excessos que lhes provocam febre e morte porque o espírito deprava os sentidos, e a vontade fala ainda quando a natureza se cala... Mas, mesmo que as dificuldades que cercam todas essas questões permitissem a discussão sobre essa diferença entre o homem e o animal, há outra qualidade muito específica que os distingue, e sobre a qual não pode haver contestação: é a faculdade de se aperfeiçoar, faculdade que, com a ajuda de circunstâncias, desenvolve sucessivamente todas as outras e reside em nós, tanto na espécie quanto no indivíduo. Enquanto um animal é, ao fim de alguns meses, o que será durante toda a sua vida, e sua espécie, ao fim de mil anos, o que era no primeiro desses mil anos. Por que o homem está sujeito a se tornar imbecil? Não é absolutamente porque retorna assim a seu estado primitivo, e o animal, que nada adquiriu e nada tem a perder, permanece sempre com seu instinto, e o homem, perdendo com a velhice e outros acidentes tudo o que sua perfectibilidade lhe havia feito adquirir, torna a cair mais baixo do que o próprio animal?
Essas poucas frases merecem reflexão.
Comecemos examinando o exemplo do gato e do pombo. O que Rousseau quer dizer exatamente?
Antes de tudo, que a natureza constitui para esses animais códigos intangíveis, espécies de softwares, como eu lhe dizia há pouco, dos quais são incapazes de fugir: é essa a marca da liberdade deles. Tudo acontece como se o pombo estivesse preso, cativo de seu “programa” de granívoro, e o gato, do de carnívoro, e que para eles não houvesse praticamente nenhuma variação possível (ou muito pouca!). Sem dúvida, um pombo pode absorver alguns pequenos bocados de carne, ou o gato mordiscar, como se vê às vezes nos jardins, algumas hastes de relva, mas no geral, seus programas naturais não lhes deixam praticamente nenhuma margem de manobra.
Ora, a situação do ser humano é inversa — e é por isso que ele pode se dizer livre e, consequentemente, perfectível, (já que, diferentemente do animal limitado por uma natureza quase eterna, ele vai poder evoluir). Ele é mesmo tão pouco programado pela natureza que pode se afastar de todas as regras que ela prescreve aos animais. Por exemplo, ele pode cometer excessos, beber ou fumar até morrer, o que os animais não podem fazer. Ou, como diz ainda Rousseau, por meio de uma fórmula que anuncia toda a política moderna, no homem, “a vontade fala ainda quando a natureza se cala”.
Poderíamos fazer o seguinte comentário: no animal, a natureza fala o tempo todo e fortemente, tão fortemente que ele não tem a liberdade de fazer nada além de obedecer-lhe. No homem, ao contrário, domina certa indeterminação: a natureza está presente, de fato, e muito, como nos ensinam todos os biólogos. Nós também temos um corpo, um programa genético, o do nosso DNA, do genoma transmitido por nossos pais. Contudo, o homem pode afastar-se das regras naturais, e até mesmo criar uma cultura que se opõe a elas quase termo a termo — por exemplo, a cultura democrática que vai tentar resistir à lógica da seleção natural para garantir a proteção dos mais fracos.
Outro exemplo do caráter antinatural da liberdade humana — do afastamento ou do excesso, quer dizer, da transcendência da vontade em relação aos “programas naturais” — é muito mais marcante. Infelizmente, é um exemplo paradoxal que não defende efetivamente a humanidade do homem, já que se trata do fenômeno do mal naquilo que ele tem de mais assustador. Você precisa refletir por um tempo sobre isso para formar uma opinião. Mas, como você vai ver, ele confirma fortemente a argumentação de Rousseau em prol do caráter antinatural, e por isso mesmo, não animal, da vontade humana. Com efeito, parece que só o ser humano é capaz de se mostrar realmente diabólico.
Já posso ouvir a objeção que logo vem à mente: os animais não são, afinal de contas, tão agressivos e cruéis quanto os homens?
À primeira vista, sem dúvida, e poderíamos dar uma infinidade de exemplos que os defensores da causa animal frequentemente omitem. Eu, que em minha casa, quando era criança, no campo, tive uns vinte gatos, vi-os despedaçar suas presas com uma crueldade aparentemente inqualificável, comer camundongos vivos, brincar durante horas com pássaros dos quais tinham quebrado as asas ou furado os olhos...

Mas o mal radical, a respeito do qual se pode pensar, na perspectiva de Rousseau, que os animais desconhecem e que é um feito apenas dos humanos, está em outra coisa: ele reside no fato não mais simplesmente de “fazer maldade”, mas de fazer uso do mal como projeto, o que não tem nada a ver. O gato maltrata o camundongo, mas tanto quanto se possa afirmar, não é o motivo de sua tendência natural para caçar. Ao contrário, tudo indica que o ser humano é capaz de se organizar conscientemente para fazer tanto mal quanto possível a seu próximo. É, aliás, o que a teologia tradicional denomina de maldade, como próprio do demoníaco em nós.

Ora, esse demoníaco, lamentavelmente, parece ser específico do homem. A prova é o fato de que não existe nada no mundo animal, no universo natural, portanto, que se aparente à tortura.
Como lembra um de nossos melhores historiadores da filosofia, Alexis Philonenko, no início de seu livro L’Archipel de la Conscience Européenne [O arquipélago da consciência europeia], pode-se até hoje visitar em Gand, na Bélgica, um museu que faz pensar: o museu da tortura, exatamente. Veem-se, expostos em vitrines, os espantosos produtos da imaginação humana nessa matéria: tesouras, furadores, facas, tenazes, constritores de cabeça, arrancadores de unha, esmagadores de dedos e outras mil doçuras mais. Nada falta ali.
Os animais, como eu disse, devoram, às vezes, um dos seus ainda vivo. Eles nos parecem então cruéis. Mas basta refletir para compreender que não é ao mal enquanto mal que eles visam, e que a crueldade deles só se deve, é claro, à indiferença que sentem quanto ao sofrimento do outro. E no momento em que eles parecem matar “por prazer”, eles só estão, na verdade, exercendo do melhor modo um instinto que os guia e os mantém na guia, por assim dizer. Todas as pessoas que tiveram gatos, por exemplo, sabem que se os filhotes “se divertem” “torturando” suas presas é porque, ao fazê-lo, exercitam-se e aperfeiçoam a aprendizagem da caça, enquanto o animal adulto se contenta no mais das vezes em matar o mais rapidamente possível os camundongos ou os pássaros que captura. Mais uma vez o que nos parece tão cruel está ligado ao reino da indiferença total de que esses seres de natureza, os animais, dão prova nas relações do predador com sua presa, e não a uma vontade consciente de fazer o mal.
Mas o ser humano não é indiferente. Ele faz o mal e sabe que o faz e, às vezes, ele se compraz com isso. É claro que, diferentemente do animal, acontece de ele fazer do mal um objetivo consciente.
Ora, tudo parece indicar que essa tortura gratuita está em excesso em relação a toda lógica natural. Poderão objetar que o sadismo é, afinal, um prazer como qualquer outro, e que como tal se inscreve em algum ponto da natureza do ser humano. Mas isso não é uma explicação. É um sofisma, uma tautologia digna dos sábios de Molière que “explicam” os efeitos de um soporífero pela “virtude dormitiva” que há nele: acredita-se dar conta do sadismo invocando-se o gozo obtido com o sofrimento de outrem... quer dizer, invocando-se o próprio sadismo! A verdadeira questão é a seguinte: por que tanto prazer gratuito em transgredir o interdito; por que esse excesso no mal, mesmo que ele seja inútil?

Poderíamos dar exemplos infinitamente. O homem tortura seus semelhantes sem nenhum objetivo além do da própria tortura. Por que milicianos sérvios obrigam — como se lê nos relatórios de crimes de guerra cometidos nos Bálcãs — um infeliz avô croata a comer o fígado de seu neto ainda vivo? Por que os hútus cortam os membros dos recém-nascidos tútsis para se divertirem, apenas para nivelarem suas caixas de cerveja? Por que, exatamente, a maioria dos cozinheiros trincha com tanto prazer as rãs vivas, fatia uma enguia começando pela cauda, quando seria mais simples e mais lógico matá-las imediatamente? O fato é que se joga facilmente a culpa
sobre o animal quando a matéria humana falha, mas não, como já observavam os críticos da teoria cartesiana dos animais-máquinas, sobre os autômatos que não sofriam. Já se viu, por acaso, um homem ter prazer em torturar um relógio de pulso ou de pêndulo? Temo que para isso não haja resposta “natural” convincente: a escolha do mal, o demoníaco, parece pertencer a uma ordem outra que não a da natureza. De nada serve, e na maioria das vezes é contraprodutivo.

É essa vocação antinatural, essa constante possibilidade de excesso que lemos no olho humano: porque ele não reflete apenas a natureza; nele podemos descobrir o pior, mas também, pela mesma razão, o melhor; o mal absoluto e a mais espantosa generosidade. É esse excesso que Rousseau chama de liberdade: é sinal de que não estamos, ou, em todo caso, não inteiramente, aprisionados em nosso programa natural de animal, por outro lado, semelhante aos outros animais.
 
Três consequências maiores da nova definição das diferenças entre animalidade e humanidade: os homens, únicos seres portadores de história, de igual dignidade e de inquietação moral 
As consequências dessa constatação são profundíssimas. Eu lhe indicarei apenas as três que vão ter penetração considerável nos planos moral e político.
Primeira consequência: os humanos serão, diferentemente dos animais, dotados do que se poderia chamar de dupla historicidade. De um lado, haverá a história do indivíduo, da pessoa, e é o que chamamos habitualmente de educação; de outro, haverá também a história da espécie humana, ou, se você preferir, a história das sociedades humanas, o que habitualmente chamamos de cultura e política.(Ainda aí se trata de uma ideia que Alexis Philonenko desenvolveu com muita profundidade e inteligência em suas obras sobre Rousseau e Kant) Observe, ao contrário, o caso dos animais e verá que é inteiramente diferente. Desde a Antiguidade temos descrições das “sociedades animais”, por exemplo, a dos cupins, das abelhas ou das formigas. Ora, tudo leva a pensar que o comportamento desses animais é o mesmo, exatamente o mesmo, há milhares de anos: seu habitat não mudou nem uma vírgula, assim como não mudou o modo de providenciarem a alimentação, de alimentarem a rainha, de dividirem as funções etc. As sociedades humanas, ao contrário, não param de mudar: se voltássemos 10 mil anos atrás, seria impossível reconhecer Paris, Londres ou Nova York. Em contrapartida, não teríamos nenhuma dificuldade em reconhecer um formigueiro e tampouco ficaríamos surpresos com o modo como os gatos caçavam os camundongos ou ronronavam no colo dos donos...
Você me dirá, talvez, que se considerássemos não mais as espécies em geral, mas os indivíduos em particular, veríamos que os animais se beneficiam de algumas aprendizagens. Por exemplo, eles aprendem a caçar com os pais. Não seria uma forma de educação que contradiz o que acabei de afirmar? Sem dúvida, mas, por um lado, não se pode confundir aprendizagem e educação: a aprendizagem dura apenas um tempo, e é interrompida assim que o objetivo estabelecido é alcançado, enquanto a educação humana não tem fim e só é interrompida pela morte. Por outro lado, essa pretensa constatação não é exata, longe disso, no que se refere a todos os animais. Alguns, de fato, e não encontramos equivalência nos humanos, não precisam de nenhum período de adaptação para se comportarem desde o nascimento como adultos em miniatura.

Considere, por exemplo, o caso dos filhotes das tartarugas marinhas. Assim como eu, você já viu essas imagens em documentários sobre animais: logo que saem do ovo, eles sabem instintivamente, sem nenhum tipo de ajuda, encontrar o caminho do mar. Imediatamente conseguem realizar os movimentos que os levam a andar, nadar, comer, em resumo, a sobreviver... ao passo que um filhote de homem permanece no espaço familiar até a idade de 21 anos! Fico encantado com isso, é claro, mas espero que você avalie a diferença...

Ora, esses poucos exemplos — poderíamos oferecer muitos outros e comentá-los longamente — já bastam para lhe mostrar como Rousseau tocou num ponto crucial ao falar de liberdade e de perfectibilidade, quer dizer, no fundo, de historicidade. De fato, como dar conta dessa diferença entre as pequenas tartarugas e os filhotes dos homens, se não se postula uma forma de liberdade, um afastamento possível em relação à norma natural que orienta em todos os aspectos os animais e, por assim dizer, a proibição que têm de variar? O que faz com que a pequena tartaruga não possua nem história pessoal (educação) nem história política e cultural é que ela é desde o início e desde sempre guiada pelas regras da natureza, pelo instinto, e que lhe é impossível se afastar deles. O que, ao contrário, permite ao ser humano ter essa dupla historicidade é justamente o fato de que, estando em excesso em relação aos “programas” da natureza, pode evoluir indefinidamente, educar-se “ao longo da vida”, e entrar numa história da qual ninguém pode dizer hoje quando e onde acabará. Em outras palavras, a perfectibilidade, a historicidade, como queira, é consequência direta de uma liberdade em si mesma definida como possibilidade de afastamento em relação à natureza.
Segunda consequência: como diz Sartre — que sem saber repetia Rousseau —, se o homem é livre, então não existe “natureza humana”, “essência do homem”, definição de humanidade, que precederia e determinaria sua existência. Num pequeno livro que o aconselho a ler, O Existencialismo É um Humanismo, Sartre desenvolve essa ideia, afirmando (ele gostava muito de usar o jargão filosófico) que, no homem, “a existência precede a essência”. De fato, por trás de uma aparência sofisticada, é exatamente a ideia de Rousseau, quase palavra por palavra. Os animais têm uma “essência” comum à espécie, que precede neles a existência individual: há uma “essência” do gato ou do pombo, um programa natural, o do instinto, de granívoro ou de carnívoro, e esse programa, essa “essência”, como queira, é tão perfeitamente comum a toda a espécie que determina a existência particular de cada indivíduo que a ela pertence e é por ela inteiramente determinada. Nenhum gato, nenhum pombo pode escapar dessa essência que o determina completamente e que, assim, suprime nele qualquer tipo de liberdade.

Com o homem, acontece o inverso: nenhuma essência o predetermina, nenhum programa jamais consegue prendê-lo inteiramente, nenhuma categoria o aprisiona tão absolutamente que ele não possa, pelo menos em parte — a da liberdade —, dela se emancipar por pouco que seja. Evidentemente, nasço homem ou mulher, francês ou estrangeiro em relação à França, num meio rico ou pobre, elitista ou popular etc. Mas nada prova que essas características do início me prendam a elas por toda a vida. Posso, por exemplo, ser uma mulher como Simone de Beauvoir e, no entanto, renunciar a ter filhos, ser pobre, de um meio desfavorecido, enriquecer, ser francês, mas aprender uma língua estrangeira, mudar de nacionalidade etc. O gato não pode deixar de ser carnívoro, nem o pombo, granívoro...

Daí, com base na ideia de que não existe natureza humana, que a existência do homem precede sua essência, como diz Sartre, temos uma magnífica crítica ao racismo e ao sexismo.
O que é o racismo, e o sexismo, que não são mais do que a ideia do clone entre muitos? É a ideia de que existe uma essência própria a cada raça, a cada sexo, da qual os indivíduos são inteiramente prisioneiros. O racismo diz que “o africano é jogador”, “o judeu, inteligente”, “o árabe, preguiçoso” etc., e só com o emprego do artigo “o” sabe-se que estamos lidando com um racista, um ser convencido de que todos os indivíduos de um mesmo grupo partilham a mesma “essência”. O mesmo vale para o sexista que facilmente pensa que está na “natureza” da mulher ser mais sensível do que inteligente, mais terna do que corajosa, para não dizer “feita para” ter filhos e ficar em casa, grudada no fogão...
É exatamente esse tipo de pensamento que Rousseau desqualifica, destruindo-o na base: já que não há natureza humana, já que nenhum programa natural ou social pode prendê-lo totalmente, o ser humano, homem e mulher, é livre, indefinidamente perfectível, e não é absolutamente programado pelas pretensas determinações ligadas à raça ou ao sexo. Certamente, como dirá Sartre, diretamente na linha de Rousseau, ele está “em situação”. É verdade, e mesmo indiscutível, que pertenço a um meio social e sou homem ou mulher. Mas, como você já compreendeu, do ponto de vista filosófico inaugurado por Rousseau, essas qualidades não são comparáveis às dos softwares: elas deixam, para além das pressões que impõem, sem dúvida, uma margem de manobra, um espaço de liberdade. E é essa margem, esse afastamento que é próprio do homem que o racismo, nesse aspecto “desumano”, quer, a qualquer preço, eliminar.
Terceira consequência: é porque é livre, porque não é prisioneiro de nenhum código natural ou histórico determinante, que o ser humano é um ser moral. Como poderíamos, aliás, lhe imputar boas ou más ações se ele não fosse de algum modo livre para escolher? Em contrapartida, quem pensaria em condenar o tubarão que acaba de devorar um surfista? E quando um caminhão provoca um acidente, é o motorista que é julgado, não o caminhão. Nem o animal nem a coisa são moralmente responsáveis pelos efeitos, mesmo danosos, que possam causar ao ser humano.
Tudo isso pode lhe parecer evidente, para não dizer meio bobo. Mas pense e interrogue-se sobre por que isso acontece.
Você verá que a resposta se impõe, e nos leva mais uma vez a Rousseau: é preciso, de fato, afastar-se do real para avaliá-lo como bom ou mau, do mesmo modo que é preciso distanciar-se dos pertencimentos naturais ou históricos para adquirir o que comumente se chama de “espírito crítico”, fora do qual não há julgamento de valor possível.

Kant disse uma vez que Rousseau era o “Newton do mundo moral”. Com isso ele queria particularmente(Ele queria também dizer que o homem é continuamente dividido entre o egoísmo e o altruísmo, como o mundo de Newton o é entre as forças centrípetas e centrífugas) dizer que, com sua ideia sobre a liberdade do homem, Rousseau foi para a ética moderna o que Newton tinha sido para a física nova: um pioneiro, um pai fundador sem o qual nunca teríamos podido nos libertar dos princípios antigos, os do cosmos e da divindade. Ao identificar na raiz, com uma acuidade incomparável, a diferenciação entre o humano e o animal, Rousseau tornou possível descobrir no homem a pedra angular sobre a qual uma nova visão moral do mundo ia poder se reconstruir. Adiante, veremos como.

Mas é útil, para que você avalie melhor ainda toda a importância dessa análise rousseauniana, que você tenha uma pequena ideia da posteridade que ela teve...
 
A herança de Rousseau: uma definição do homem como “animal desnaturado” 
Você encontrará no século XX um avatar divertido das ideias de Rousseau num livro de Vercors intitulado Os Animais Desnaturados.(VERCORS. Os Animais Desnaturados. Tradução de Alcântara Silveira. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1956) Falarei um pouco sobre ele, antes de tudo porque é muito fácil e interessante de se ler, e também porque a ação principal apresenta ficcionalmente a problemática filosófica que acabamos de evocar em termos conceituais.
Aqui vai toscamente resumida a trama do romance: nos anos 1950, uma equipe de cientistas britânicos parte para a Nova Guiné à procura do famoso “elo perdido”, quer dizer, do ser intermediário entre o homem e o animal. Eles esperam descobrir algum fóssil de grande macaco ainda desconhecido — o que já os deixaria loucos de alegria —, mas topam, pelo maior dos acasos, e para imensa surpresa, com uma colônia vivíssima de seres “intermediários”, que designam logo como “Tropis”. São quadrúmanos, logo, macacos. Mas eles vivem como trogloditas em cavernas de pedra... e, sobretudo, enterram seus mortos. É o que deixa nossos exploradores perplexos, e você entende por quê: isso não se assemelha a nenhum costume animal. Além do mais, eles parecem dispor de um embrião de linguagem.
Como então situá-los: entre o humano e o animal? A questão é tanto mais urgente porque um homem de negócios pouco escrupuloso pensa em domesticá-los e escravizá-los! Se forem animais, até passa, mas se forem classificados como homens, será inaceitável e, de resto, ilegal. Mas como saber, como decidir?
O herói do livro se empenha: engravida uma fêmea (ou mulher?) tropi, o que prova tratar-se de uma espécie mais próxima da nossa (já que, como você talvez saiba, os biólogos consideram que, salvo exceção, apenas seres da mesma espécie podem se reproduzir entre si).
Como, então, classificar a criança: homem ou animal? É necessário a qualquer custo decidir, pois esse estranho pai resolveu matar o próprio filho, exatamente para obrigar a justiça a se pronunciar.
Abre-se, pois, um processo que apaixona toda a Inglaterra e imediatamente ocupa a primeira página da imprensa mundial. Os melhores especialistas são convocados a depor: antropólogos, biólogos, paleontólogos, filósofos, teólogos... A dissensão é absoluta, e nenhum de seus argumentos, embora extraordinários em cada uma das especialidades, consegue vencer.

É a esposa do juiz quem encontra o critério decisivo: se eles enterram seus mortos, diz ela, é porque os tropis são humanos. Porque essa cerimônia comprova uma interrogação metafísica, no sentido literal (em grego, meta quer dizer “acima”, e physis significa “natureza”), uma distância, portanto, em relação à natureza. Como ela disse ao marido: “Para se interrogar, é preciso dois, aquele que interroga e aquilo que é interrogado. Confundido com a natureza, o animal não pode se interrogar. Eis aí, me parece, o ponto que procuramos. O animal e a natureza são um só. O homem e a natureza são dois.”Não se poderia traduzir melhor o pensamento de Rousseau: o animal é um ser da natureza, inteiramente confundido com ela; o homem é, ao contrário, um excesso; ele é, por excelência, o ser antinatural.

Esse critério exige mais um comentário. Porque você poderia, é claro, imaginar outros mil: afinal, os animais não usam relógio, não utilizam guarda-chuva, não dirigem carros, não ouvem um MP3 nem fumam cachimbo ou cigarro... Por que, nesse caso, o critério da distância em relação à natureza seria mais importante do que qualquer outro?
A questão é absolutamente pertinente. A resposta, porém, não deixa dúvida: é assim porque se trata do único critério inteiramente distintivo no plano ético e cultural. É por causa dessa distância que nos é possível entrar na história da cultura, não ficar preso à natureza, como lhe expliquei há pouco. Mas é também graças a ela que podemos interrogar o mundo, julgá-lo, transformá-lo e, como tão bem se diz, inventar “ideais”, uma distinção entre o bem e o mal. Sem ela, nenhuma moral seria possível. Se a natureza fosse nosso código, nenhum julgamento ético jamais teria vindo à luz. É verdade que vemos humanos se preocuparem com a sorte dos animais, mobilizarem-se, por exemplo, para salvar uma baleia mas, exceto nos contos de fada, alguma vez vimos uma baleia se preocupar com a sorte de um ser humano?
Com essa nova “antropologia”, essa nova definição do próprio homem, Rousseau vai abrir caminho para o fundamento da filosofia moderna. É a partir dela, notadamente, que a mais importante moral laica dos dois últimos séculos vai nascer: trata-se da moral do maior filósofo alemão do século XVIII, Immanuel Kant, moral cujos prolongamentos terão projeção considerável na tradição republicana francesa.
Se você compreendeu bem o que vimos em Rousseau, não terá nenhuma dificuldade em compreender também os grandes princípios dessa moral totalmente inédita na época, nem em avaliar o rompimento de capital importância que ela estabelece com relação às cosmologias antigas.
 
A moral kantiana e os fundamentos da ideia republicana: a “boa vontade”, a ação desinteressada e a universalidade dos valores 
Com efeito, é a Kant e aos republicanos franceses que se aproximam dele que caberá expor, de modo sistemático, as duas consequências morais mais marcantes da nova definição rousseauniana do homem pela liberdade: a ideia de que a virtude reside na ação ao mesmo tempo desinteressada e orientada não para o interesse particular e egoísta, mas para o bem comum e “universal” — quer dizer, falando simplesmente, para o que não vale apenas para mim, mas também para todos os outros.
São esses os dois principais pilares — o desinteresse e a universalidade — da moral que Kant vai expor em sua famosa Crítica da Razão Prática (1788). Eles serão até nossos dias tão universalmente aceitos — especialmente por intermédio da ideologia dos direitos do homem que poderosamente contribuíram para fundar — que chegaram quase a definir o que se poderia nomear, sem quaisquer formalidades, de A moral moderna.

Comecemos pela ideia de desinteresse e vejamos como ela decorre diretamente da nova concepção do homem elaborada por Rousseau.

A ação verdadeiramente moral, a ação verdadeiramente “humana” (e é significativo que os dois termos comecem a se confundir) será, primeiramente e antes de tudo, a ação desinteressada, quer dizer, aquela que dá testemunho desse próprio do homem que é a liberdade entendida como faculdade de se libertar da lógica das tendências naturais. Porque é preciso reconhecer que estas nos levam sempre ao egoísmo. A capacidade de resistir às tentações às quais ele nos expõe é exatamente o que Kant chama de “boa vontade”, ponto em que ele vê o novo princípio de toda moralidade verdadeira. Enquanto minha natureza — já que sou também um animal — tende apenas à satisfação de meus interesses pessoais, tenho igualmente, pelo menos essa é a primeira hipótese da moral moderna, a possibilidade de escapar ao programa da natureza para admitir que podemos, às vezes, pôr de lado nosso “querido eu”, como diz Freud.
O que talvez seja mais marcante nessa nova perspectiva moral, antinatural e antiaristocrática (já que, contrariamente aos talentos naturais, essa capacidade é supostamente igual em cada um de nós) é que o valor ético do desinteresse se impõe a nós com tal evidência, que não nos damos mais o trabalho de pensar nele. Se descubro que uma pessoa que se mostra acolhedora comigo age assim na expectativa de obter uma vantagem qualquer que ela dissimula (por exemplo, minha herança), é evidente que o valor moral atribuído por hipótese a seus atos desaparece imediatamente. No mesmo sentido, não atribuo nenhum valor moral particular ao motorista de táxi que aceita me levar, porque sei que ele o faz, e é normal, por interesse. Em contrapartida, não posso deixar de agradecer, como se tivesse agido humanamente, à pessoa que, sem interesse particular, ao menos aparentemente, tem a amabilidade de me dar uma carona num dia de greve dos transportes.
Esses exemplos e todos os que você possa imaginar numa perspectiva análoga apontam para a mesma ideia: do ponto de vista do humanismo nascente, virtude e ação desinteressada são inseparáveis. Ora, é apenas com base numa definição rousseauniana do homem que essa ligação ganha sentido. É preciso, de fato, poder agir livremente, sem ser programado por um código natural ou histórico, para aceder à esfera do desinteresse e da generosidade voluntária.
A segunda dedução ética fundamental a partir do pensamento rousseauniano está diretamente ligada à primeira: trata-se da insistência no ideal do bem comum, na universalidade das ações morais entendidas como a superação dos exclusivos interesses particulares. O bem não está mais associado ao meu interesse particular, ao da minha família ou da minha tribo. Evidentemente ele não os exclui, mas deve também ter em conta os interesses de outrem, até mesmo o da humanidade inteira — como o exige a grande Declaração dos Direitos do Homem.

Aí também a ligação com a ideia de liberdade é clara: a natureza, por definição, é particular; sou homem ou mulher (o que já é uma particularidade), tenho tal corpo, com tais gostos, paixões, desejos que não são obrigatoriamente (trata-se de um eufemismo) altruístas. Se eu seguisse sempre a minha natureza animal, é provável que o bem comum e o interesse geral teriam de esperar muito até que eu me dignasse a considerar sua eventual existência (a menos, é claro, que se confundissem com meus interesses particulares, por exemplo, meu conforto moral pessoal). Mas, se sou livre, se tenho a faculdade de me afastar das exigências de minha natureza, de lhe resistir por menos que seja, então, nesse afastamento e porque eu me distancio por assim dizer de mim, posso me aproximar dos outros para entrar em comunhão com eles e, por que não, levar em consideração suas próprias exigências — o que é, você há de convir, a condição mínima de uma vida comum respeitosa e pacificada.

Liberdade, virtude da ação desinteressada (“boa vontade”), preocupação com o interesse geral: eis as três palavras-chave que definem as modernas morais do dever — do “dever”, justamente, porque elas nos ordenam uma resistência, até mesmo um combate contra a naturalidade ou animalidade em nós.
 
 
Por isso a definição moderna da moralidade vai, segundo Kant, se expressar daí em diante sob forma de ordens indiscutíveis ou, para empregar seu vocabulário, de imperativos categóricos. Dado que não se trata mais de imitar a natureza, de tomá-la como modelo, mas quase sempre de combatê-la e especialmente de lutar contra o egoísmo natural em nós, é claro que a realização do bem, do interesse geral, não é mais evidente, que ela esbarra, ao contrário, em resistências. Daí seu caráter imperativo.
Se fôssemos naturalmente bons, naturalmente orientados para o bem, não haveria necessidade de recorrer a ordens imperativas. Mas, como você sem dúvida observou, não é nem de longe o caso... Contudo, na maior parte do tempo, não temos nenhuma dificuldade em saber o que seria necessário fazer para agir bem, mas nos concedemos sempre exceções, simplesmente porque nos preferimos aos outros. É por isso que o imperativo categórico pede, como se diz para as crianças, “faça um esforço”, para tentarmos continuamente progredir e melhorar.
Os dois momentos da ética moderna — a intenção desinteressada e a universalidade do fim escolhido — se reúnem, assim, na definição do homem como “perfectibilidade”. É nela que eles encontram a fonte última: pois a liberdade significa, antes de tudo, a capacidade de agir além da determinação dos interesses “naturais”, quer dizer, particulares. Distanciando-nos do particular, é na direção do universal, portanto, para o reconhecimento do outro, que nos elevamos.
Daí também o fato de que essa ética repouse inteiramente na ideia de mérito: todos nós temos dificuldade em realizar nosso dever, em seguir os mandamentos da moral, apesar de reconhecermos sua legitimidade. Há, pois, mérito em agir bem, em preferir o interesse geral ao interesse particular, o bem comum ao egoísmo. Nisso a ética moderna é fundamentalmente uma ética meritocrática de inspiração democrática. Ela se opõe em tudo às concepções aristocráticas da virtude.
A razão é muito simples, e nós já a vimos em processo com o nascimento da moral cristã — na qual o republicanismo se inspira profundamente. Enquanto a desigualdade reina sem restrição no que diz respeito aos talentos inatos — a força, a inteligência, a beleza e muitos outros dons naturais são desigualmente repartidos entre os homens —, em se tratando do mérito, estamos todos em igualdade. Porque, como diz Kant, trata-se apenas de “boa vontade”. Ora, esta é própria de todo homem, seja ele forte ou não, belo ou não etc.

Para que você apreenda bem toda a novidade da ética moderna, é, portanto, necessário considerar a grandeza da revolução que representa a ideia da meritocracia em relação às definições antigas, aristocráticas, da virtude.

 

(Continua)

publicado às 22:56

Façamos um resumo.
Vimos como a filosofia antiga constituiu a base da doutrina da salvação, levando em consideração o cosmos. Para um aluno das escolas estoicas, era evidente que, para ser salvo, para vencer o medo da morte, seria necessário primeiramente esforçar-se para compreender a ordem cósmica; em seguida, fazer tudo para imitá-la e finalmente fundir-se nela, aí encontrar seu lugar e assim alcançar uma forma de eternidade.
Examinamos juntos, também, o modo como a doutrina cristã superou a filosofia grega, e como, para conseguir a salvação, um cristão devia, inicialmente, entrar em contato com o Verbo encarnado na humildade da fé; em seguida, observar seus mandamentos no plano ético e, por fim, praticar o amor em Deus ao mesmo tempo que o amor de Deus, para que com seus próximos pudesse entrar no reino da vida eterna.
O mundo moderno vai nascer com o desmoronamento da cosmologia antiga e com o nascimento de uma extraordinária reavaliação das autoridades religiosas. Esses dois movimentos possuem, se remontarmos à sua raiz, uma origem intelectual comum (mesmo que outras causas mais materiais, econômicas e, sobretudo, políticas, tenham contribuído para a dupla crise): em menos de um século e meio, uma revolução científica sem precedente na história da humanidade vai acontecer na Europa. Que eu saiba, nenhuma civilização conheceu ruptura tão profunda e tão radical em sua cultura.
Para lhe dar algumas referências históricas, essa perturbação moderna se estende, de modo geral, do período que vai da publicação da obra de Copérnico, Sobre a Revolução dos Orbes Celestes (1543), até os Principia Mathematica de Newton (1687), passando pelos Princípios de Filosofia de Descartes (1644) e pela publicação das teses de Galileu, Diálogo sobre os Dois Principais Sistemas de Mundo (1632).
Sei perfeitamente que você ainda não conhece todos esses nomes, e que não vai ler todas essas obras, pelo menos não de imediato. Mesmo assim eu as indico para que você saiba que essas quatro datas e esses quatro autores vão marcar a história do pensamento como nenhum antes deles. A partir desses trabalhos, uma era nova nasceu, na qual, sob muitos aspectos, ainda vivemos. Não foi apenas o homem, como se diz às vezes, que “perdeu seu lugar no mundo”, mas foi o próprio mundo, pelo menos o cosmos que formava o quadro fechado e harmonioso da existência humana desde a Antiguidade, que se volatilizou, pura e simplesmente, deixando os espíritos daquela época num estado de confusão que dificilmente podemos imaginar.
Ao mesmo tempo em que aniquilava os princípios das cosmologias antigas — afirmando, por exemplo, que o mundo não é acabado, fechado, hierarquizado e ordenado, mas um caos infinito e desprovido de sentido, um campo de forças e de objetos que se entrechocam sem qualquer harmonia —, a física moderna também fragilizou consideravelmente os princípios da religião cristã.
Com efeito, não apenas a ciência reavalia as posições que a Igreja havia imprudentemente fixado a respeito de temas nos quais teria sido preferível que ela não tivesse tocado — a idade da Terra, sua situação em relação ao Sol, a data de nascimento do homem e das espécies animais etc. —, mas também em seus fundamentos, ela convida os seres humanos a adotar uma atitude permanente de dúvida e de espírito crítico bem pouco compatível, sobretudo na época, com o respeito pelas autoridades religiosas. A crença, então presa ao jugo rígido que a Igreja lhe impunha, vai começar a enfraquecer, de modo que os espíritos mais esclarecidos se encontrarão numa situação especialmente dramática em relação às antigas doutrinas da salvação que se tornavam cada vez menos críveis.
Tornou-se obrigatório hoje em dia falar de “crise das referências” e, ao mesmo tempo, insinuar que entre os jovens, em especial, é “que se dane tudo”: a polidez e a civilidade, o sentido da história e o interesse pela política, os mínimos conhecimentos sobre literatura, religião, arte... Mas posso lhe dizer que esse pretenso eclipse dos “fundamentais”, esse suposto declínio em relação aos “bons velhos tempos” é perfumaria, para não dizer brincadeira, em relação ao que devem ter sentido os homens dos séculos XVI e XVII diante da reavaliação, ou simplesmente da ruína de estratégias de salvação que tinham provado seu valor durante séculos. Desorientados, no sentido literal do termo, os humanos devem ter se preparado para encontrar por si mesmos, e talvez em si mesmos — eis por que falamos de “humanismo” para designar esse período em que o homem se encontra só, privado do socorro do cosmos e de Deus —, as novas referências sem as quais é impossível aprender a viver livremente e sem temor.
Para se conceber plenamente o abismo que se abre então, é necessário que você se ponha na pele de um ser que toma consciência do fato de que as descobertas científicas mais recentes e mais confiáveis invalidam a ideia de que o cosmos é harmonioso, justo e bom e que, consequentemente, será impossível daí em diante tomá-lo como modelo no plano ético; e, além disso, para aumentar a dificuldade, a crença em Deus, que poderia lhe servir de tábua de salvação, faz água por todos os lados!
Se considerarmos os três grandes eixos que estruturam o questionamento filosófico, será necessário retomar completamente, com esforços renovados, a questão da teoria, da ética, assim como a da salvação. De modo geral, é assim que o problema se apresenta depois do desmoronamento do cosmos e da dúvida lançada sobre a religiosidade.
No plano teórico: como pensar o mundo, como compreendê-lo, mesmo simplesmente, para poder se situar nele, se ele não é mais acabado, ordenado e harmonioso, mas caótico, como nos ensinam os novos físicos? Um dos maiores historiadores da ciência, Alexandre Koyré, descreveu tão bem essa revolução científica dos séculos XVI e XVII, que sugiro que você mesmo o leia. Segundo ele, ela está simplesmente na origem da
destruição da ideia de cosmos [...], da destruição do mundo concebido como um todo acabado e bem-ordenado, no qual a estrutura espacial encarnava a hierarquia dos valores e de perfeição... e da substituição deste por um Universo indefinido, e mesmo infinito, não comportando mais nenhuma hierarquia natural, e unido apenas pela identidade das leis que o regem em todas as suas partes assim como pela de seus componentes últimos situados todos no mesmo nível ontológico... Isso agora está esquecido, mas os espíritos da época foram literalmente perturbados pela emergência dessa nova visão de mundo, como dizem os célebres versos que John Donne escreveu em 1611, depois de ter tomado conhecimento dos princípios da revolução copernicana:
A nova filosofia torna tudo incerto
O elemento do fogo está completamente extinto
O sol se perdeu, e a terra; e ninguém hoje
Pode mais nos dizer onde encontrá-la [...]
Tudo está em pedaços, toda coerência desaparecida.
Nenhuma relação justa, nada se ajusta mais
.(
Citado em Du Monde Clos à L’univers Infini, Gallimard, coleção “Tel”, 1973, p. 11 e 47. [KOYRÉ, ALEXANDRE. Do Mundo Fechado ao Universo Infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.])

“Nada se ajusta mais”: nem o mundo consigo mesmo, nem a harmonia do cosmos, nem os humanos com o mundo numa visão moral natural. É verdade, não temos mais ideia da angústia que se apoderou dos homens do Renascimento quando começaram a pressentir que o mundo não era mais um casulo, nem uma casa, que ele não era mais habitável.
No plano ético, a revolução teórica possui um efeito tão evidente quanto devastador: não tendo o universo mais nada de um cosmos, fica impossível considerá-lo um modelo a ser imitado no plano moral. Mas se, além disso, o próprio cristianismo vacila em suas bases, se a obediência a Deus não é mais indiscutível, onde procurar os princípios de uma nova concepção das relações entre os homens, um novo fundamento da vida comum? Esclarecendo: será necessário empreender de A a Z a reforma da moral que tinha servido de modelo durante séculos. Apenas isso!
Quanto à doutrina da salvação, é inútil insistir: você vê que, pelas mesmas razões, a dos Antigos, bem como a dos cristãos, não é mais fiável para espíritos esclarecidos, pelo menos tal como elas eram, sem reformulação.
Talvez você possa avaliar melhor agora os desafios que a filosofia moderna teve de enfrentar nesses três planos. Eles apresentavam dificuldade e amplitude jamais vistas — e, contudo, tanto mais urgentes quanto, como indica o poema de Donne, a humanidade jamais havia estado ao mesmo tempo tão perturbada e desprovida nos planos intelectual, moral e espiritual.
Como você vai ver, a grandeza da filosofia moderna está à altura desses desafios. Comecemos, para tentar entendê-la, pela primeira esfera, a da teoria.
 
I. Uma nova teoria do conhecimento: uma ordem do mundo que não é mais dada, e sim construída
As causas da passagem do mundo fechado ao universo infinito são de extrema complexidade e diversidade. Como você pode supor, inúmeros fatores contribuíram, e não pretendemos enumerá-los agora, muito menos analisá-los detalhadamente. Digamos apenas que, entre vários outros, é preciso lembrar os progressos técnicos, notadamente o aparecimento de novos instrumentos astronômicos, como o telescópio, que possibilitaram observações impossíveis de serem explicadas no contexto das cosmologias antigas.
Para lhe dar apenas um exemplo, mas que impressionou os espíritos da época: a descoberta das novae, quer dizer, de estrelas novas, ou, ao contrário, o desaparecimento de algumas estrelas já existentes, não se enquadrava com o dogma da “imutabilidade celeste”, cara aos Antigos, ou seja, com a ideia de que a perfeição absoluta do cosmos residia no fato de que ele era eterno e imutável, que nada poderia mudá-lo. Para os gregos, era algo de absolutamente essencial — já que, em última instância, a salvação dependia dele — e, no entanto, os astrônomos modernos descobriram que essa crença era errônea, simplesmente contestada pelos fatos.
Houve, sem dúvida, muitas outras causas para o declínio das cosmologias antigas, especialmente nos planos econômico e sociológico, mas as que resultam das evoluções técnicas não são desprezíveis. Porque antes mesmo de considerar as perturbações que o desaparecimento do cosmos provoca no plano ético, é preciso ver que é principalmente a theoria que será a primeira a mudar totalmente de sentido.
O principal livro sobre o assunto, o livro que vai marcar toda a filosofia moderna e que permanecerá como verdadeiro monumento na história do pensamento, é a Crítica da Razão Pura de Kant (1781). É claro que não vou resumi-lo em algumas linhas. Mas, mesmo tratando-se de um livro terrivelmente difícil, gostaria de lhe dar uma ideia do modo como ele vai basear, em termos totalmente inéditos, a questão da theoria. Logo voltaremos a temas mais fáceis.
Retomemos o fio do raciocínio que você já começa a dominar: se o mundo, daí em diante, não é mais um cosmos, mas um caos, um tecido de forças que entram permanentemente em conflito, é claro que o conhecimento não pode mais assumir a forma de uma theoria em sentido próprio. Você se lembra da etimologia da palavra: theion orao, “vejo o divino”. Desse ponto de vista, pode-se dizer que, depois do desmoronamento da bela ordem cósmica e de sua substituição por uma natureza completamente desprovida de sentido e conflituosa, não há mais nada de divino no universo ao qual o espírito humano possa se dedicar a ver, contemplar. A ordem, a harmonia, a beleza e a bondade não são mais dadas de imediato, não se inscrevem mais a priori no seio do próprio real.
Consequentemente, para encontrar alguma coisa coerente, para que o mundo no qual os homens vivem continue a ter mesmo assim um sentido, será necessário que o próprio ser humano, no caso, o sábio, por assim dizer, de fora, introduza a ordem nesse universo que, à primeira vista, não oferece nenhuma.
Daí a nova tarefa da ciência moderna: não residirá mais na contemplação passiva de uma beleza dada, já inscrita no mundo, mas no trabalho, na elaboração ativa, ou na construção de leis que permitam dar a um universo desencantado um sentido que, a princípio, ele não mais tem. Portanto, ela não é mais um espetáculo passivo, mas uma atividade do espírito.
Para não ficar em fórmulas gerais e abstratas, gostaria de lhe oferecer pelo menos um exemplo dessa passagem do passivo ao ativo, do dado ao construído, da theoria antiga à ciência moderna.
Considere o princípio da causalidade, quer dizer, o princípio segundo o qual todo efeito possui uma causa ou, se você preferir, todo fenômeno deve poder se explicar racionalmente, no sentido próprio: encontrar sua razão de ser, sua explicação.
Em lugar de se contentar em descobrir a ordem do mundo pela contemplação, o sábio “moderno” vai tentar introduzir, com a ajuda de tal princípio, coerência e sentido no caos dos fenômenos naturais. É ativamente que ele vai estabelecer laços “lógicos” entre alguns deles, que vai considerar como efeitos; em alguns outros, ele vai tentar descobrir causas. Dito de outro modo, o pensamento não é mais um “ver”, um orao, como a palavra “teoria” leva a pensar, mas um agir, um trabalho que consiste em ligar fenômenos naturais entre si de modo que eles se encadeiem e se expliquem uns pelos outros. É o que vai ser chamado de “método experimental”, praticamente desconhecido pelos Antigos, e que vai se tornar o método fundamental da ciência moderna.
Para lhe explicar um caso concreto de funcionamento desse método, falarei um pouco sobre Claude Bernard, um de nossos maiores médicos e biólogos, que publicou no século XIX um livro que se tornou célebre: a Introdução à Medicina Experimental. Ele ilustra perfeitamente a teoria do conhecimento que Kant elaborou, e que vai ocupar o lugar da antiga theoria tal como acabei de descrever rapidamente.
Nele, Claude Bernard conta detalhadamente uma de suas descobertas, a da “função glicogênica do fígado” — quer dizer, da capacidade que tem o fígado de fabricar açúcar. Com efeito, ao fazer análises, Bernard tinha observado que havia açúcar no sangue dos coelhos que dissecava. Então ele se perguntou qual seria a origem daquele açúcar: vinha ele dos alimentos ingeridos, ou era fabricado pelo organismo, e, em caso afirmativo, por qual órgão? Separou então os coelhos em vários grupos: alguns comiam alimentos doces, outros, alimentos não doces, outros ainda (os coitados!) ficaram de dieta. Ao final de alguns dias, ele analisou o sangue dos coelhos e descobriu que continha, em todos os gráficos, não importando o grupo considerado, o mesmo açúcar. Consequentemente, isso significava que a glicose não vinha dos alimentos, mas era produzida pelo organismo.
Deixo de lado os detalhes a respeito do modo como Bernard chegou a descobrir que o açúcar é produzido pelo fígado. Pouco importa aqui. Em compensação, o que conta é que o trabalho da theoria mudou completamente desde os gregos. Não se trata mais de contemplar; a ciência não é mais um espetáculo, mas, como você vê nesse exemplo, um trabalho, uma atividade que consiste em ligar fenômenos entre si, em associar um efeito (o açúcar) a uma causa (o fígado). É exatamente o que Kant, antes de Claude Bernard, havia formulado e analisado na Crítica da Razão Pura, a saber, a ideia de que a ciência vai se definir desde então como um trabalho de associação ou, como ele diz em seu vocabulário, de “síntese” — a palavra significa em grego “dispor junto”, “pôr junto”, logo, ligar: como a explicação em termos de causa e efeito liga dois fenômenos, no caso do exemplo de Claude Bernard, o açúcar e o fígado.
Preciso lhe dizer ainda algumas palavras a respeito do livro de Kant, antes de chegar ao essencial, quer dizer, ao que o humanismo vai significar no plano ético e não apenas teórico.
Quando eu tinha a sua idade, e abri a Crítica da Razão Pura pela primeira vez, fiquei muitíssimo decepcionado. Disseram-me que era talvez o maior filósofo de todos os tempos. Ora, não apenas eu não compreendia nada daquilo, absolutamente nada, como não via por que, desde as primeiras páginas daquela obra mítica, ele fazia uma pergunta que me pareceu totalmente bizantina e, para resumir, sem o menor interesse: “Juízos sintéticos a priori são possíveis?” Como você vê, não se pode dizer que se trata de um tema de reflexão particularmente estimulante, nem à primeira vista, nem à segunda...
Durante anos, praticamente não compreendi nada de Kant. Conseguia, é claro, ler as palavras e as frases, conseguia dar um significado quase plausível a cada conceito, mas o todo continuava sem fazer sentido, muito menos apresentar qualquer revelação existencial.
Foi apenas quando tomei consciência do problema radicalmente inédito que Kant tentava resolver depois do desmoronamento das cosmologias antigas que percebi o valor dessa pergunta que me parecia até então puramente “técnica”. Ao se interrogar sobre nossa capacidade de fabricar “sínteses”, “juízos sintéticos”, Kant simplesmente apresentava o problema da ciência moderna, o problema do método experimental, ou seja, saber como se elaboram as leis que estabelecem associações, ligações coerentes e esclarecedoras entre fenômenos dos quais a ordenação não é mais dada, mas deve ser introduzida por nós, de fora.
 
II. Uma revolução ética paralela à da teoria: se o modelo a ser imitado não é mais dado, como era a natureza dos Antigos, agora é preciso inventá-lo... 
Como você pode imaginar, a revolução teórica que Kant inicia vai ter consequências consideráveis no plano moral. A nova visão do mundo forjada pela ciência moderna não tem quase mais nada a ver com a dos Antigos. Especialmente o universo que Newton nos descreve não é absolutamente um universo de paz e harmonia. Não é mais uma esfera fechada sobre si mesma como uma casa aconchegante onde seria bom viver desde que tivéssemos encontrado nela nosso justo lugar, mas é um mundo de forças e de choques onde os seres não podem mais se situar verdadeiramente, pelo simples e bom motivo de que, desde então, ele é infinito, sem limites no espaço e no tempo. Por conseguinte, você entende que ele não pode mais em coisa alguma servir de modelo para que se pense a moral.
Todas as questões filosóficas devem, pois, ser retomadas de alto a baixo.
Indo diretamente ao ponto, pode-se dizer que o pensamento moderno vai colocar o homem no lugar e na posição do cosmos e da divindade. É sobre a ideia de humanidade que os filósofos vão empreender a reconstrução da teoria, da moral e até mesmo das doutrinas da salvação. Ao evocar o pensamento de Kant, acabei de lhe dar uma síntese do que isso significa no plano do conhecimento: a partir daí cabe ao homem, pelo esforço de seu pensamento, introduzir sentido e coerência num mundo que parece a priori não possuir nenhum, contrariamente ao cosmos dos Antigos.
Se você quer ter uma ideia do que essa fundamentação dos valores no homem significa no plano moral, basta pensar na famosa Declaração dos Direitos do Homem, de 1789, que sem dúvida alguma é a imagem exterior mais visível e mais conhecida dessa revolução sem precedente na história das ideias. Ela instala o homem no centro do mundo, enquanto para os gregos era o próprio mundo que era, de longe, essencial. Ela faz dele não apenas o único ser sobre a Terra, verdadeiramente digno de respeito, mas também propõe a igualdade de todos os seres humanos, sejam eles ricos ou pobres, homens ou mulheres, brancos ou negros... Nisso a filosofia moderna, para além das diversidades das correntes que a compõem, é em primeiro lugar e antes de tudo um humanismo.
A bem dizer, essa mutação estabelece uma questão essencial: admitindo-se que os princípios antigos, cósmicos e religiosos estejam ultrapassados, supondo-se que se compreenda por que eles se eclipsaram, o que pode haver de tão extraordinário no ser humano que permita que se fundamentem nele uma theoria, uma moral e uma doutrina da salvação comparáveis às que permitiam conceber o cosmos e a divindade?
É para responder a essa interrogação que a filosofia moderna passou a fazer, no centro de suas reflexões, uma pergunta aparentemente bem estranha: a da diferença entre o homem e o animal. Você talvez pense que se trate de um assunto menor, até mesmo marginal. Na verdade, ele está no centro do humanismo nascente, e por uma razão superior e muito profunda. Se os filósofos dos séculos XVII e XVIII se apaixonam pela definição do animal, por saber o que distingue essencialmente a humanidade da animalidade, não é por acaso nem por motivos superficiais, mas porque é sempre comparando um ser ao que lhe está mais próximo que melhor se pode delimitar sua “diferença específica”, o que propriamente o caracteriza.
Ora, retomando a fórmula de um grande historiador do século XIX, Michelet, os animais seriam como nossos “irmãos inferiores”. Eles são, na ordem do vivente, os seres mais próximos de nós; e você compreende que a partir do momento em que a ideia de cosmos desmorona, a partir do momento em que a religião vacila e que propõe estabelecer o ser humano no centro do mundo e da reflexão filosófica, a questão do “próprio do homem” se torna intelectualmente crucial.
Se os filósofos modernos comungam a ideia de que não apenas o homem tem direitos, mas que ele é a partir daí o único ser a possuí-los — como afirma a grande Declaração de 1789 —, do momento em que o situam acima de todos os seres, que o consideram em muito o mais importante, não só mais importante que os animais, mas também do que o falecido cosmos e até do que uma divindade que se tornou duvidosa, é porque deve haver alguma coisa nele que o distingue de todo o restante da criação. Ora, é justamente essa diferença, essa especificidade radical que deve ser trazida à luz, caso se queira extrair, em seguida, os princípios do restabelecimento da theoria, da moral e das doutrinas da salvação.
É, pois, partindo do debate sobre o animal e, por consequência, sobre a humanidade do homem, que se pode entrar o mais diretamente possível no espaço da filosofia moderna. Ora, a respeito desse tema, é sem dúvida Rousseau, no século XVIII, ao retomar as discussões abertas especialmente por Descartes e seus discípulos, quem vai apresentar a contribuição mais decisiva.
Por isso, sugiro começar por ele. E você vai ver que, seguindo o fio condutor da animalidade, vamos chegar aos fundamentos das novas apostas da filosofia moderna.
 

publicado às 18:51


O nascimento dos deuses e do mundo 2

por Thynus, em 13.08.16
CONTINUAÇÃO
A divisão original e o nascimento da ideia de cosmos
E então Zeus finalmente se casou com Hera, que se manterá para sempre sua última e verdadeira esposa. É preciso que você saiba, porém, que ele não só teve inúmeras aventuras com outras mulheres, mortais e imortais, mas que também foi casado duas vezes antes. É importante, pois esses dois casamentos têm um sentido “cósmico”, um significado essencial na construção do mundo que nos interessa aqui. De fato, Zeus se casou primeiro com Métis e depois com Têmis, ou seja, a deusa da astúcia ou, se preferir, da inteligência, e, em seguida, com a da justiça.

Por que Métis? Métis, a astúcia, a inteligência, era filha de Tétis, uma Titânida, e de um dos primeiros Titãs, Oceano — o oceano, isto é, na visão do mundo que se lê no poema de Hesíodo, o gigantesco rio que circunda a totalidade da Terra. De Métis, Hesíodo nos diz que ela sabe mais coisas do que todos os outros deuses e, é claro, do que todos os homens mortais: é a própria inteligência, a astúcia personificada. Em seguida, ela engravida: espera uma filha de Zeus, a futura Atena, que, justamente, será ao mesmo tempo a deusa da astúcia, da inteligência, das artes e da guerra — mas, como eu disse, da guerra estratégica e tática mais do que dos conflitos brutais e violentos, que ficam reservados para Ares. Os avós de Zeus, Gaia e Urano — e lembro que eles o salvaram de ser engolido por Cronos, aconselhando Reia, sua mãe, a escondê-lo numa gigantesca gruta —, novamente o preveniram dos perigos que o aguardavam: se um dia Métis tivesse um filho, ele também destronaria o pai, como Cronos fizera com Urano... e o próprio Zeus com Cronos! Por quê? Hesíodo nada diz, mas podemos supor que o filho de Zeus e de Métis certamente reuniria as qualidades dos seus pais: ao mesmo tempo a maior força existente, a do raio, e uma inteligência semelhante à da mãe, ou seja, superior à dos demais Imortais e mortais. Todo cuidado é pouco: tal menino pode se tornar um adversário realmente temível, até mesmo para o rei dos deuses. Observe que os gregos não são tão misóginos ou “antimulheres” como às vezes dizem: com frequência a mulher encarna a inteligência sem nem por isso deixar de ter outras qualidades, inclusive aquelas relacionadas aos dotes físicos.

De qualquer maneira, para evitar ter um filho que o destrone, Zeus resolveu simplesmente engolir sua mulher (trata-se realmente de uma mania na família), a pobre Métis. Uma lenda mais tardia conta que Métis, entre suas astúcias, era capaz de mudar à vontade de forma e de aparência. Podia se transformar quando quisesse em objeto ou em animal. Zeus fez exatamente como o Gato de Botas enfrentando o ogro: você deve se lembrar que, nesse conto de fadas, o gato pede ao ogro que se transforme em leão, o que o deixa apavorado. Depois, como quem não quer nada, pede que se transforme em camundongo — para saltar sobre ele e devorá-lo. Zeus fez o mesmo: pediu a Métis que se transformasse em gota-d’água e bebeu-a! Quanto a Atena, que já estava em gestação no momento em que Métis foi bebida, como já lhe disse, acaba nascendo diretamente da cabeça do rei dos deuses. Escapole do seu crânio e se torna, à imagem do pai, a deusa ao mesmo tempo mais temível em combate e a mais inteligente.
Dito isso, não esqueça um detalhe importante nessa história toda: engolir não significa comer, mastigar, dilacerar. Quem é engolido não só se mantém vivo, como não se machuca. Assim como os filhos de Cronos permanecem vivos na barriga do pai — prova disso é que quando Cronos vomita, eles saem gozando de plena saúde —, também Métis, engolida por Zeus, permanece viva e, por assim dizer, em bom estado. A mesma ideia aparece em nossos contos; por exemplo, nos três porquinhos ou nos sete cabritinhos que, apesar de engolidos pelo lobo, saem bem vivos e nada machucados assim que se abre a barriga do malvado animal! No caso específico de Métis, ser engolida significa, simbolicamente é claro, que Zeus assume ele próprio, com o estratagema, todas as qualidades que sem dúvida iriam para o filho que nasceria daquela união. Ele tinha a força oferecida pelos Ciclopes ao lhe presentearem com o trovão, o relâmpago e o raio, mas, além disso, passou a ter, graças a Métis escondida em suas profundezas, uma inteligência superior a todas que se encontram em nosso mundo, e mesmo fora dele.
E com isso Zeus passa a ser imbatível — é o rei dos deuses, é o mais forte e o mais inteligente, o mais brutal se necessário, e também o mais sábio. E é justamente essa sabedoria que o levará a praticar, ao contrário do avô, Urano, e do pai, Cronos, a mais estrita justiça na organização do recentíssimo cosmos e na distribuição das honrarias e dos encargos que caberão a cada um dos que o ajudaram a vencer a geração dos primeiros deuses, a geração dos Titãs.
Esse ponto é absolutamente crucial na mitologia: é sempre com a justiça que se acaba vencendo, pois a justiça nada mais é, no fundo, que uma forma de se manter fiel à ordem cósmica, de se ajustar a ela. Toda vez que um ser negligencia ou vai contra a ordem, ela acaba se recuperando contra ele e o arrasa. É uma bela lição de vida que já se esboça em filigrana: apenas uma ordem justa é viável, a injustiça só pode ser provisória.

Este é o motivo pelo qual, tendo se casado com Métis e tendo, por assim dizer, incorporado-a — no sentido próprio, abrigada em seu próprio corpo —, Zeus se casa com uma segunda mulher, tão importante quanto a primeira no que se refere à conservação do poder no centro da nascente ordem cósmica: Têmis, a justiça. Têmis é uma das filhas de Urano e Gaia. É portanto uma Titânida. Com ela, Zeus terá filhos que também simbolizam as virtudes necessárias à construção e, em seguida, à manutenção de uma ordem cósmica harmoniosa e equilibrada — o que continua sendo, aproveito para lembrar, a meta de toda essa história, da qual você já começa a perceber com clareza que narra a passagem através do caos inicial a uma ordem cósmica viável e magnificamente bem-organizada. Dentre seus filhos, de fato, há Eunomia, que significa em grego “a boa lei”, e Diké, quer dizer a justiça entendida no sentido de justa divisão das coisas. Há também as divindades denominadas “Moiras”, isto é, as deusas do destino — são chamadas ainda “Destinos”. Têm como tarefa distribuir boa sorte e azar entre os mortais, mas também decidem qual tempo de vida cabe a cada um.17 Muitas vezes, elas se juntam para fazer essa distribuição ao acaso, ou seja, por aquilo que, para os gregos, é uma forma suprema de justiça: afinal, na loteria do acaso, estamos todos em pé de igualdade, sem haver privilegiados, fura-filas nem “pistolões”, como se diz no coloquial. E há ainda uma série de deusas com nomes que evocam a harmonia, como, por exemplo, as três Graças, Esplendor, Bom Humor e Festa...

Compreende-se facilmente, então, o significado desse segundo casamento: assim como não é possível ser rei dos deuses e senhor do mundo apenas pela força bruta, sem ajuda da inteligência simbolizada por Métis, não é possível também assumir tal tarefa sem justiça, isto é, faltando Têmis, essa segunda esposa que se torna tão útil quanto a primeira. Ao contrário de Urano e de Cronos — seu avô e seu pai —, Zeus compreende então que é preciso ser justo para reinar. Antes até do fim da guerra contra os Titãs, a promessa já fora feita a todos que a ele se juntassem no combate contra os primeiros deuses: a divisão do mundo se faria com toda justiça, de maneira harmoniosa e equilibrada. Quem já gozava de privilégios os manteria, e quem ainda não, os ganharia.
Hesíodo conta com os seguintes termos essa decisão de Zeus:
O Olímpico, senhor do raio, chamou todos os deuses imortais para as alturas do Olimpo e lhes disse que daqueles que se colocassem a seu lado no combate aos Titãs ele não retiraria os privilégios, quaisquer que fossem, e, muito pelo contrário, todos no mínimo manteriam as distinções de que já se beneficiavam como deuses imortais. E Zeus acrescentou que todos aqueles, perseguidos por Cronos, que se encontravam sem honrarias próprias e sem privilégios os obteriam, como exige a justiça (Têmis).
Ou seja, Zeus propôs a todos os deuses uma divisão igualitária dos direitos e deveres, das missões e também das honrarias que, mais tarde, os homens lhes prestariam sob a forma de culto e sacrifícios — os deuses gregos adoram ser venerados e, muito particularmente, apreciam o aroma da carne grelhada que os humanos lhes preparam em belas “hecatombes”, isto é, em belos sacrifícios. Continuando o texto, Hesíodo relata como Zeus imagina recompensar tanto os Cem-Braços quanto os Ciclopes e os Titãs, que, como Oceano, não se aliaram a Cronos. Oceano, de fato, teve o bom discernimento de fazer com que a filha, Estige, a deusa que é também o rio dos infernos (mais uma vez, uma divindade coincide com um pedaço da ordem cósmica), se aliasse ao campo de Zeus, com seus filhos Cratos e Bia, o poder e a força. Como recompensa, Estige se tornou para sempre homenageada, e seus dois filhos ganharam a insigne honra de em todas as circunstâncias estar ao lado de Zeus. Sem entrar muito em detalhes, tudo isso significa que Zeus entendeu a necessidade, para instituir uma ordem cósmica duradoura, de fundamentá-la na justiça: deve-se atribuir a cada um a sua parte justa e somente a esse preço o equilíbrio obtido será estável. Justiça e inteligência são necessárias para guardar do poder, além da força, não só os Ciclopes e os Cem-Braços, mas também Têmis e Métis. 
O nascimento de Tífon e sua guerra contra Zeus: uma ameaça máxima, mas também a oportunidade de integração do tempo e da vida numa ordem finalmente equilibrada
Poderíamos achar que as guerras estavam terminadas. Infelizmente não, e um temível adversário ainda aguarda Zeus no caminho. Trata-se de Tifão ou Tífon (Hesíodo usa os dois nomes), que Gaia gerou com o terrível Tártaro. De todos os monstros, ele é o mais pavoroso: imagine que dos seus ombros brotam cem cabeças de serpente cujos olhos cospem fogo. Além disso, conta com algo ainda mais aterrorizador, se possível, pois dessas cabeças saem sons incríveis. Ele pode imitar todas as linguagens, falar aos deuses com sons inteligíveis, mas também emitir o mugido do touro, o rugir do leão ou, pior ainda, pois o contraste é horrível, os adoráveis guinchos de filhotinhos de cachorro! O monstro, enfim, tem mil facetas — o que simbolicamente significa sua familiaridade com o caos — e, como Hesíodo indicou, se vencesse o combate contra Zeus, para o qual ele se prepara, e tomasse o poder sobre o mundo, tornando-se senhor dos mortais e dos Imortais, nada nunca mais se poderia fazer contra ele. Pode-se facilmente adivinhar a catástrofe que se esboça: com Tífon, as forças caóticas triunfariam sobre as do cosmos, a desordem sobre a ordem, a violência sobre a harmonia...
Dito tudo isso, por que Tífon? Como se explica que Gaia, que sempre se mostrara favorável a Zeus, que o salvou do pai, Cronos, que avisou sobre o perigo que corria tendo um filho, o qual o destronaria por sua vez, e sugeriu que engolisse Métis, essa mesma Gaia que também aconselhara, da maneira mais judiciosa, libertar os Ciclopes e os Cem-Braços se quisesse vencer a guerra contra os Titãs, por que, então, essa querida vovó procura agora prejudicar o neto, lançando contra ele um monstro apavorante, propositadamente engendrado com o horrível Tártaro? Não é nada óbvio. Ainda mais porque Hesíodo nada nos diz, literalmente, o que motivou a terra.

Podemos, mesmo assim, levantar duas hipóteses, que parecem pelo menos plausíveis: a primeira e mais evidente é que Gaia não ficou satisfeita com o destino que Zeus reservou a seus primeiros filhos, os Titãs, trancando-os no Tártaro. Apesar de ela nem sempre defendê-los, eles são, no final das contas, seus filhos, e ela não pode aceitar impassivelmente o horrível destino a eles reservado. Pode ser — mas essa forma psicológica de ver as coisas não é tão satisfatória; trata-se aqui de um assunto sério, da construção do mundo, do cosmos, e os estados d’alma, nesse estágio, não entram em consideração. A segunda hipótese é bem mais verossímil: Gaia fabricou Tífon para usá-lo contra Zeus porque o equilíbrio do cosmos não será perfeito enquanto as forças de desordem e de caos não estiverem todas canalizadas. Lançando um novo monstro, ela na verdade dá a Zeus a oportunidade de definitivamente integrar na o
rdem cósmica os elementos caóticos. O que comprova, como já foi tantas vezes dito, não se tratar nessa narrativa mitológica apenas de conquista do poder político, mas sim de cosmologia. O que Tífon encarna é também o tempo, as gerações, a história e a vida. É preciso aliar cosmos e caos, sem dúvida é o que deseja Gaia, pois a se manterem apenas as “forças da ordem”, o mundo inteiro fica paralisado e sem vida.

Em Hesíodo, a narrativa do combate que opõe Tífon aos olímpicos é, então, crucial, mesmo que rápida e pouco circunstanciada: sabe-se apenas que o combate é terrível, de incrível violência, e que a terra treme até no Tártaro, a ponto de o próprio Hades, o deus dos infernos que habita nas mais profundas trevas, ter medo, assim como acontece com os Titãs, Cronos antes de todos, trancados no inferno desde que perderam a guerra contra os olímpicos. Sabe-se ainda que, sob os efeitos do raio de Zeus e do fogo cuspido por Tífon, a terra se incendeia, se transforma em lava e derrete como metal fundido. Tudo isso, é claro, tem um sentido: trata-se, para o poeta, de sugerir ao leitor que o que está em jogo nessa terrível luta é nada menos que o próprio cosmos. Com Tífon, o universo inteiro passa a estar ameaçado em sua harmonia e na ordem. No final, porém, quem vence é Zeus, graças às armas que os Ciclopes lhe deram: o trovão, o relâmpago e o raio. Uma de cada vez, as cabeças de Tífon são fulminadas, e o monstro infernal é expedido para onde bem merece: o inferno!
Com muita razão Jean-Pierre Vernant insistiu em mostrar não ter sido à toa que a breve narrativa de Hesíodo foi enriquecida e dramatizada por mitógrafos posteriores. O que está em jogo nessa última etapa da construção do mundo é essencial — trata-se de saber quem, o caos ou a ordem, finalmente venceria, mas também compreender como a vida pode se integrar à ordem, e o tempo ao equilíbrio eterno —, sendo normal que o tema se enriquecesse no decorrer dos anos. Se Tífon ganhasse, seria o fim da edificação do cosmos harmonioso e justo. Com a vitória de Zeus, pelo contrário, a justiça passa a reinar sobre o universo. A aposta é tal que seria realmente surpreendente, e uma pena, não dar ao conflito uma versão mais volumosa, de certa maneira mais empolgante e dramática do que a de Hesíodo, que de fato é bem ligeira. Mitógrafos tardios então não fizeram cerimônia e é interessante seguir em duas obras o resultado desses sucessivos enriquecimentos. Em seu próprio gênero, cada uma se esforça em fazer uma síntese das narrativas mitológicas anteriores.
A primeira delas se chama Biblioteca, de Apolodoro. Preciso dizer uma palavra sobre esse título e também sobre o autor, pois voltaremos a encontrá-los várias vezes, e isso pode gerar uma certa confusão. Primeiramente, tenho certeza de que, para você, uma “biblioteca” não é um livro... e sim o lugar — um móvel ou aposento — em que se organizam livros. Aliás, se nos referirmos à origem da palavra, você tem toda razão: em grego, a palavra thekê designa uma “arca” ou uma “caixa” em que “se deixa” alguma coisa, no caso, livros (biblios). No entanto, nos tempos antigos, o termo “biblioteca” muitas vezes era utilizado de maneira figurada, referindo-se a um apanhado de textos que, como o móvel, reunia em si tudo que se pudesse saber, pelos livros, sobre determinado assunto. E é exatamente o que faz Biblioteca: nela se encontra uma espécie de resumo de todo o saber mitológico disponível na sua época. É então um livro que reúne em si vários outros livros e, por essa razão, era comparado a uma “biblioteca”. Segunda dificuldade: por muito tempo se acreditou que a obra, tão útil para um melhor conhecimento dos mitos gregos, tinha sido escrita no século II a.C., por um certo Apolodoro de Atenas, um erudito apaixonado por gramática e por mitologia. Sabe-se hoje que não, e Biblioteca foi sem dúvida redigido no século II, só que não antes e sim depois de Cristo, por um autor do qual, na verdade, ignoramos tudo. E como nada se sabe a seu respeito e o hábito já estava criado, continuamos hoje, na falta de melhor solução, a chamar o livro “Biblioteca de Apolodoro”... mesmo não sendo uma biblioteca e não sendo de Apolodoro! Viu? É meio complicado, mas foi a história que resolveu assim, e prefiro lhe dizer as coisas como elas são. A obra nem por isso deixa de ser muito preciosa para nós, pois seu autor, quem quer que tenha sido, teve acesso a textos hoje em dia perdidos e dos quais às vezes temos conhecimento apenas graças a ele.
Mas voltemos à nossa narrativa e à versão dada por nosso “pseudo” (falso) Apolodoro. Com ele, o suspense se mantém bem mais do que com Hesíodo. O que em teatro se chama “dramaturgia”, isto é, a encenação da ação, se torna bem mais intenso, pois, num primeiro momento, ao contrário do que se passa em Hesíodo, é Tífon quem consegue demolir Zeus. Esse infeliz — fato raro — “perdeu os nervos”, literalmente. Tífon, como você sabe, é de fato monstruoso, tão assustador que, para dizer a verdade, os próprios deuses do Olimpo ao vê-lo entram em pânico! Fogem para o Egito e, tentando passar despercebidos e escapar dos golpes de Tífon, se transformam em animais — algo, diga-se, nada glorioso para os olímpicos... mas pelo menos Zeus se mantém firme. Cheio de coragem, ele ataca Tífon com o raio, mas também à mão, tendo como arma um podão — quem sabe o mesmo com que seu pai, Cronos, cortou o sexo do pobre Urano. Mas Tífon desarma Zeus e, apoderando-se da lâmina, corta-lhe os tendões dos braços e das pernas, de modo que o rei dos deuses, é verdade, não morre — o que seria impossível, pois ele é imortal —, mas fica reduzido quase ao estado de um legume. Incapaz de se mover, fica jogado no chão como um verdadeiro trapo e ainda por cima bem guardado: Delfineia, uma assustadora mulher-serpente a serviço de Tífon, o vigia de perto.

Mas felizmente Hermes está por perto e, como você vai ver, não à toa ele é considerado também o deus dos ladrões. Egipã — sem dúvida outro nome do deus Pã, um dos filhos de Hermes, conhecido como deus dos pastores e dos rebanhos — o ajuda. Dizem ainda que esse mesmo deus inventou uma flauta feita com sete canas, por ele chamada “siringe”, nome da ninfa por quem tinha se apaixonado, mas que se transformara em cana para fugir das suas investidas. Imagine que é com a suave música tirada dessa flauta que Pã consegue distrair a atenção de Tífon. Nesse meio-tempo, Hermes aproveita para habilmente roubar os divinos tendões e corre para devolvê-los a Zeus. Novamente de pé, este último volta ao combate e parte no encalço de Tífon, com seu raio. Uma vez mais, ganha uma ajuda externa indispensável. As três Moiras — suas filhas, divindades que regulam o destino dos homens, mas às vezes também o destino dos deuses, pois, sendo ele a lei do mundo, rege inclusive os Imortais — fazem o monstruoso Tífon cair numa armadilha: dão-lhe frutas para comer, garantindo que com isso será invencível. Na verdade, são drogas que diminuem as suas forças, e Tífon, enfraquecido, finalmente é vencido por Zeus. É derrotado e preso sob um vulcão, o Etna, cujas erupções são o sinal dos últimos sobressaltos desse monstro aterrorizador!

Querendo mostrar como esses mitos eram contados na época — século II —, vou citar o próprio texto de Apolodoro. Em seguida veremos como, três séculos mais tarde, com outro mitógrafo, chamado Nono, a mesma história se enriqueceu e se desenvolveu ainda consideravelmente.
Depois de lembrar que Gaia se indigna com o tipo de tratamento que Zeus reserva a seus primeiros filhos, nosso falso/pseudo Apolodoro nos faz o seguinte relato (como sempre, ponho meus próprios comentários entre parênteses e em itálico):
Ainda mais irritada, Gaia se uniu a Tártaro e, na Cilícia, gerou Tífon, em quem se misturavam as naturezas do homem e da fera. Pelo tamanho e pela força, ele superava todos os filhos de Gaia. Tinha uma forma humana até as coxas, mas suas dimensões eram tão desmedidas que ele ultrapassava todas as montanhas, e sua cabeça muitas vezes, inclusive, encostava nos astros. Estendidos, um braço alcançava o poente e o outro o oriente, e desses braços emergiam cem cabeças de serpente. A partir das coxas, o corpo era um entrelaçamento de enormes víboras que estendiam seus anéis até a cabeça e lançavam fortes assovios. Em cima da cabeça e nas faces crescia uma juba imunda. Os olhos dardejavam fogo. Eram estes o aspecto e o tamanho de Tífon ao atacar o próprio céu, lançando rochedos inflamados, numa balbúrdia de gritos e assovios, enquanto sua boca cuspia poderosas línguas de fogo. Os deuses, vendo sua figura projetada contra o céu, se exilaram no Egito, onde, ainda perseguidos, tomaram a forma de animais. Com Tífon ainda distante, Zeus lançou-lhe raios, e quando o monstro se aproximou, ele o atacou a golpes de podão de aço, perseguindo-o em fuga até o monte Casios, que domina a Síria. Ali, vendo-o coberto de ferimentos, Zeus decidiu-se pelo corpo a corpo, mas Tífon, enrolando seus anéis a seu redor, o imobilizou, arrancou o podão e cortou seus tendões das mãos e dos pés. Tífon em seguida ergueu Zeus sobre os ombros, atravessou o mar até a Cilícia e, chegando ao antro Coriciano (a gruta em que ele morava), deixou-o ali. Foi também onde escondeu os tendões, sob uma pele de urso. Deixou de guarda um dragão-fêmea, Delfineia, que era meio besta e meio mulher. Mas Hermes e Egipã furtivamente roubaram os tendões e os recolocaram em Zeus, sem serem vistos. Assim que recuperou as forças, Zeus partiu rápido para o céu, num carro atrelado a cavalos alados e, dardejando raios, perseguiu Tífon até o monte denominado Nisa (o mesmo monte em que nasce Dioniso, cujo nome significa “o deus de Nisa”), onde as Moiras enganaram o fugitivo: persuadido de que frutas efêmeras o tornariam mais forte, ele comeu-as. Ainda perseguido, Tífon chegou à Trácia e, no combate que teve início perto do monte Hemos, pôs-se a lançar montanhas inteiras. Mas como elas voltavam contra ele rechaçadas pelo raio, uma onda de sangue logo inundou a montanha, e é por isso, dizem, que ela se chama Hemos — o “monte sangrento”. Tífon fugiu novamente, atravessando o mar da Sicília, mas Zeus lançou em cima dele o monte Etna, que fica na Sicília. É uma enorme montanha da qual ainda hoje partem erupções de fogo que vêm, ao que dizem, dos raios lançados por Zeus.18

Esse texto mostra bastante bem como as histórias míticas eram contadas na época. De fato, há suficientes detalhes “instigantes” para que os contadores — aedos, como eram chamados na Grécia — tivessem assunto para elaborar a trama básica, de forma a manter a atenção do público!

Pode-se encontrar um roteiro mais ou menos semelhante, mas infinitamente ainda mais desenvolvido e enriquecido com pequenos desvios paralelos e múltiplos diálogos em nosso segundo autor, Nono de Panópolis, numa longa obra mitográfica intitulada As Dionisíacas, cujos dois primeiros cantos abordam o combate entre Tífon e Zeus. Nono é sobretudo conhecido como autor desse poema épico dedicado, essencialmente, às aventuras de Dioniso, como aliás indica o título. A obra foi redigida em grego, no século V d.C. — ou seja, mais ou menos três séculos depois de Biblioteca de Apolodoro e 12 séculos após as obras de Hesíodo, com o que você pode, mais uma vez, ter ideia do tempo preciso para constituir o que lemos hoje em dia sob o rótulo “mitologia grega”, como se fosse uma única obra e não uma compilação de inúmeras narrativas. O texto de Nono é preciosíssimo para nós, pois constitui uma verdadeira mina de informações sobre os mitos gregos.
Na verdade, a história agora se passa de maneira um pouco diferente da que é apresentada por Apolodoro. Principalmente é mais rica, mais intensa e mais dramática, como você vai poder constatar por si mesmo. Pois Nono o tempo todo sublinha as disputas “cósmicas” do conflito, com um luxo de detalhes que muito utilmente nos informa hoje em dia sobre a maneira como esses mitos eram entendidos na sua época. Fica bastante claro ser pura e simplesmente a sobrevivência do cosmos que está em jogo na batalha: com a vitória de Tífon, todos os deuses do Olimpo estariam definitivamente submetidos a ele, que tomaria o lugar de Zeus, inclusive junto de sua mulher, Hera, que Tífon cobiça e quer tomar do então senhor do Olimpo.
Vejamos mais de perto como, segundo ele, as coisas aconteceram.
Do mesmo modo que em Apolodoro, os deuses do Olimpo inicialmente se assustam com a chegada de Tífon e, ainda como em Biblioteca, eles fogem, literalmente apavorados. Zeus, igualmente, “perde os nervos”: seus tendões são arrancados e escondidos por Tífon num lugar secreto. Mas não é mais Hermes quem vai ter o papel principal na vitória de Zeus. Ele próprio concebe um plano de batalha e, para colocá-lo em prática, convoca Eros, o confidente de Afrodite, e Cadmos, o rei astucioso, fundador da legendária cidade de Tebas e irmão da bela Europa, a quem Zeus raptara se metamorfoseando em touro. Para recompensar Cadmos pelos serviços prestados, Zeus promete-lhe em casamento a encantadora Harmonia, que é, simplesmente, filha de Ares, o deus da guerra, e Afrodite. Promete também a honrosa homenagem da presença de todos os deuses do Olimpo no casório (note, de passagem, como todas essas histórias se costuram entre si: uma das filhas de Cadmos com Harmonia, Semelê, se apaixonará por Zeus, se tornando mãe de seu filho Dioniso).

O estratagema imaginado por Zeus merece toda atenção; é bastante significativo do que está em jogo, do ponto de vista cósmico, em sua luta contra Tífon. De fato, Zeus pede a Cadmos que se disfarce de pastor. Usando a siringe de Pã, a maravilhosa flauta que emite sons melífluos, e ajudado por Eros, ele deve tocar uma música tão suave e envolvente que faça Tífon cair sob o seu encanto. Tífon então promete mundos e fundos a Cadmos — entre os quais a mão de Atena — para que ele continue a tocar e que seja também o músico das suas futuras núpcias com Hera, a mulher de Zeus, com quem ele espera se casar, assim que liquidar seu ilustre marido. Achando estar ganha a partida, Tífon cai na armadilha e adormece, ninado pelos sons da siringe. Cadmos então procura e acha os tendões de Zeus, que os coloca em seus devidos lugares e está pronto para conquistar a vitória. Essa versão, como eu disse, é repleta de significados; sobretudo chama a atenção que seja pela música que o cosmos se salve, isto é, pela mais cósmica das artes, fundada na organização dos sons que devem, por assim dizer, “rimar” uns com os outros. E o fato da recompensa de Cadmos ser, justamente, a mão da própria Harmonia sublinha muito bem esse ponto.

Novamente prefiro citar o texto original para que você entenda por si próprio os termos utilizados por Zeus para pedir a Cadmos e a Eros que montem a armadilha para Tífon: 
Querido Cadmos, toque a siringe e o céu voltará a estar tranquilo. Se demorar, o céu vai gemer sob o açoite, pois Tífon tem a arma dos meus dardos celestes (além dos tendões de Zeus, Tífon de fato lhe roubou o raio, o relâmpago e o trovão. Zeus, como você pode imaginar, quer recuperá-los o mais rapidamente possível)[...] Torne-se boiadeiro por uma só aurora e, com a música enfeitiçante da flauta pastoril, salve o pastor do cosmos (isto é, Zeus, o senhor do Olimpo, que fala na terceira pessoa)[...] Pela melodia da siringe sedutora, encante o espírito de Tífon. Como justo pagamento para tal risco, lhe darei uma dupla recompensa: ao mesmo tempo farei de você o salvador da harmonia universal e o marido de Harmonia. Quanto a você, Eros, semente primeira e princípio das uniões fecundas, distenda seu arco e o cosmos não ficará mais à deriva (pois Tífon, encantado não só pela música, mas também pelas flechas de Eros, cairá na armadilha dos dois comparsas, assim permitindo a salvação do cosmos).
É literalmente o cosmos inteiro então que parece estar ameaçado de destruição por Tífon, e é ao cosmos que se quer salvar, por intermédio de Zeus, com a harmonia da música que a deusa Harmonia consagraria se casando com Cadmos. Desse modo Cadmos se serve da flauta, e Tífon, a besta mais brutal, cai sob o seu charme como se fosse uma mocinha romântica. Como já disse, o monstro faz mil promessas a Cadmos para que ele cante a sua vitória no dia das suas núpcias com a mulher do inimigo. E Cadmos usa a esperteza: diz que com outro instrumento musical, a lira, um instrumento de cordas, poderia fazer algo ainda melhor do que com a flauta de Pã. Conseguiria inclusive superar Apolo, o deus dos músicos. Mas simplesmente precisa de cordas adequadas, cordas feitas, se possível, com tendões divinos, resistentes o bastante para a execução daquilo que realmente se chama tocar! A lira, de fato, é um instrumento harmônico: com ela, ao contrário do que se passa com uma simples flauta, várias cordas podem ser tocadas ao mesmo tempo e, consequentemente, assim realizar acordes que “põem juntos” vários sons diferentes. A lira se mostra um instrumento mais harmonioso e, nesse sentido, mais “cósmico” do que a flauta, quaisquer que sejam os méritos desta última (você vai ver que vamos encontrar a mesma oposição entre os instrumentos melódicos e os instrumentos harmônicos no mito de Midas). É claro, o ardil de Cadmos tem como meta a obtenção dos nervos de Zeus:

E com um sinal das suas terríveis sobrancelhas, Tífon concorda;

sacode o cacheado da sua cabeleira de víboras e elas cospem veneno, fazendo-o cair como chuva sobre as montanhas. Ele corre até o seu antro, busca os nervos que tinham ficado no chão durante o combate travado contra Zeus e os entrega ao astucioso Cadmos, como presente de hospitalidade. O falso pastor agradece a divina oferta. Tateia com todo cuidado os nervos e, a pretexto de usá-los mais tarde como cordas para a sua lira, esconde no buraco de uma rocha o material a ser guardado para Zeus, o matador do Gigante. Depois, com um tom moderado, de lábios fechados, apoiando nos tubos que formam a sua flauta, põe em surdina as suas vozes, tornando a música ainda mais suave. E Tifão ouve com todas as suas inúmeras orelhas. Ouve a harmonia sem compreendê-la. O Gigante está sob encanto: o falso pastor o enfeitiça com a siringe. Ela aparentemente fala da fuga dos deuses, mas é a futura vitória de Zeus, bem próxima, que se celebra. A Tífon, sentado a seu lado, Cadmos canta a morte de Tífon.

 Assim que Zeus novamente se põe de pé, a guerra retoma seu curso, que mais do que nunca ameaça a ordem cósmica inteira:

Sob os projéteis do Gigante, a terra se fende, e seus flancos, desnudados, libertam uma veia líquida: do abismo entreaberto se derrama o fluxo dos canais subterrâneos que lançam a água retida no seio do solo. E os rochedos lançados caem como torrentes de pedra do alto dos ares. E afundam no mar[...] Esses projéteis terrestres geram novas ilhas, cujas bases se fixam espontaneamente no mar para ali criar raiz[...] A essa altura, os imutáveis alicerces do cosmos já vacilavam sob os braços de Tífon[...] Dissolviam-se os laços da indissolúvel harmonia.
Dando-nos uma preciosa ajuda para a compreensão do sentido de toda essa narrativa, a deusa Vitória, que acompanha Zeus, apesar de ser uma descendente direta dos Titãs, assustada declara ao senhor do Olimpo:
Apesar de me darem o nome de Titânida (isto é, filha de Titã), não quero ver os Titãs reinando no Olimpo, que sejam você e seus filhos.

Isso de novo indica claramente a meta do conflito: se Tifão ganhar, são as forças do caos, aquelas dos primeiros deuses, que vencem, e o cosmos vai estar definitivamente aniquilado! E Tífon, lançando-se na batalha, não esconde isto, como se pode ver pela maneira como mobiliza “suas tropas”, isto é, no caso, os inúmeros membros que formam o seu corpo. Ele não hesita em mandar que destruam a ordem e, inclusive, em alto e bom som, declara que no final do conflito há de libertar os deuses do caos aprisionados por Zeus no Tártaro, a começar por Atlas, um dos filhos do Titã Jápeto, obrigado a sustentar o cosmos inteiro em suas costas, e Cronos:

Ó braços meus, ataquem a morada de Zeus, sacudam os alicerces do cosmos e os Bem-aventurados, arrebentem o divino ferrolho do Olimpo que se move por si só. Derrubem o pilar do Éter e que Atlas, com essa reviravolta, fuja e deixe cair o orbe constelado do Olimpo, sem mais se preocupar com seu curso circular[...] E Cronos, o comedor de carnes cruas (não esqueça que ele devorou os próprios filhos[...]), é também do meu sangue (todos, na verdade, são descendentes de Gaia e das divindades “caóticas”); para fazer dele um aliado, vou trazê-lo dos abismos subterrâneos novamente para a luz, libertando-o  das cadeias que o oprimem (exatamente como fizera Zeus com relação aos Ciclopes e Hecatonquiros: Tifão compreendeu que também precisava de aliados!). Farei com que os Titãs voltem ao Éter (isto é, o céu luminoso em contraste com as trevas do Tártaro); e levarei para debaixo do meu telhado, no céu, os Ciclopes, esses filhos da terra, e os farei fabricar outros dardos de fogo, pois preciso de muitos raios, já que tenho duzentas mãos para combater e não apenas duas, como o Cronida (refere-se a Zeus, pois a palavra significa simplesmente “filho de Cronos”).
Observe como a história se transformou desde Apolodoro, mas também como as transformações são, por assim dizer, “lógicas” e totalmente significativas. Por exemplo, o personagem-chave não é mais Pã, e sim Cadmos. No entanto, pode-se notar que se parecem como dois irmãos: Pã é o deus dos pastores e inventor da siringe, e Cadmos se disfarça de pastor e graças à siringe ele triunfa sobre Tífon! Podemos facilmente imaginar como, ao fio das narrações que eram transmitidas mais pela via oral do que pela escrita, tais transformações se fizeram.
No final, é claro, como em Hesíodo e no nosso falso Apolodoro, Zeus acaba vencendo. Mantendo o mesmo espírito dos seus antecessores, Nono contudo insiste na volta da harmonia e na restauração da ordem cósmica, que ficara bem abalada no decorrer do conflito. Pedaços inteiros de terra, assim como os astros do céu, recuperam seus lugares, e a natureza os reúne de novo harmoniosamente, para formar um verdadeiro cosmos:
No final, a gestão do cosmos, regenerada a natureza primordial, volta a cicatrizar os flancos abertos da terra violentada. Fixa novamente os cimos das ilhas despregadas das suas bases, amarrando-as com laços indissolúveis. A desordem deixa de reinar entre os astros: o Sol restabelece, perto da Virgem com sua Espiga, o Leão de espessa juba, que tinha deixado a trilha do zodíaco. A Lua faz recuar o Câncer, que tinha dado um salto adiante do Leão celeste, e o fixa nos antípodas do gélido Capricórnio.
Ou seja, se traduzirmos essa linguagem figurada, isso quer dizer que tudo volta à ordem, com os astros recuperando suas posições originais, de forma que Zeus pode cumprir suas promessas e celebrar o casamento de Cadmos e Harmonia.

No final, o que sobrou de Tífon? Dois flagelos para os seres humanos, e Nono, nesse ponto, se mantém totalmente fiel a Hesíodo. No mar, os furacões, as tempestades que chamamos “tufões”, ou seja, os ventos nefastos contra os quais os infelizes mortais nada podem — senão, justamente, morrer. E na terra, as terríveis tempestades que destroem de maneira irremediável áreas cultivadas em que os homens investiram todo o seu amor. O que significa, e isso é um ponto importante, essencialmente para os deuses, mais do que para os homens, que o cosmos atingiu uma forma de perfeição. Todas as forças do caos passam a estar sob controle, e os pequenos contratempos que porventura ainda subsistem recaem exclusivamente sobre os humanos. Como sublinhou Jean-Pierre Vernant, a vitória sobre Tífon, com os restos dos seus poderes nocivos afetando apenas a terra, significa que o tempo, a desordem e a morte foram expedidos para o mundo dos mortais, ficando o dos deuses ao abrigo de todas as intempéries. Para ele, pode-se dizer, as imperfeições remanescentes são menores, não essenciais. Na verdade, se pensar bem, isso nem significa que sejam imperfeições reais: sem o tempo, sem a história, e com isso uma certa desordem, alguma desarmonia e desequilíbrio, nada mais aconteceria! O cosmos perfeitamente harmonioso e equilibrado seria imóvel. Nada se mexeria, ele estaria confinado na mais total imobilidade, tornando-se um tédio mortal. Nesse sentido, felizmente se manteve algum caos, com o derrotado Tífon fazendo ainda ouvir de vez em quando a sua voz; talvez seja o significado último desses lançamentos de fumaça e sopro intempestivos que subsistem no final desse último episódio da cosmogonia.

Seguindo Hesíodo, fizemos o giro pelas etapas por que passaram os deuses do Olimpo para criar o cosmos. Porém, segundo algumas tradições mais tardias, que Apolodoro como sempre menciona, houve ainda uma ocorrência intermediária entre a titanomaquia e a guerra contra Tífon — a “gigantomaquia”, isto é, o “combate contra os Gigantes”. De fato, segundo essa versão, Gaia, antes de “fabricar” Tífon com Tártaro, teria defendido os Gigantes revoltados contra os deuses e foi, aliás, pelo fato de esses seus filhos terem sido aniquilados pelos olímpicos que ela criou Tífon, em represália.
Insisto, porém, que não se veem traços dessa “gigantomaquia” nos tempos mais recuados, nem com Hesíodo, nem com Homero. A hipótese, no entanto, não é absurda: ela se encaixa bem com o episódio de Tífon, quer dizer, com a ideia da necessidade de progressivamente se dominarem todas as forças do caos — inclusive esta representada pelos Gigantes — para o perfeito equilíbrio do cosmos.
Por isso, pode ser útil que eu fale um pouco dessa famosa disputa.
 
A gigantomaquia: o combate entre os deuses e os Gigantes
Você certamente se lembra da origem dos Gigantes (se não, dê uma olhada no quadro-resumo que fiz ainda há pouco): eles nasceram do sangue de Urano, espalhado pela terra por seu filho, Cronos. Pertencem então, como Tífon e os Titãs, ao círculo das mais arcaicas divindades, ainda próximas de Caos e que incessantemente ameaçam a construção da ordem cósmica harmoniosa, equilibrada e justa que Zeus almeja. Para Hesíodo, a edificação desse belo universo manifestamente se conclui com a vitória de Zeus sobre Tífon. Como acabo de dizer, porém, alguns autores mais tardios consideraram que ele precisou anteriormente dar cabo dos Gigantes para conseguir um cosmos perfeito. Dominados pela arrogância propriamente desmedida e louca que os gregos chamam hybris, os Gigantes simplesmente tentam se apoderar do Olimpo. O poeta Píndaro faz alusão a isso em várias ocasiões.19
Mas, como já é de praxe, foi preciso esperar Apolodoro para uma narrativa mais detalhada dessa guerra. Esse último episódio, no entanto, já se encontrava em Ovídio, um grande poeta latino do século I, cuja obra, intitulada Metamorfoses, foi uma das primeiras a nos dar uma versão coerente disso tudo. Os dois autores situam a gigantomaquia em época anterior à do combate contra Tífon. Em Apolodoro, como acabo de dizer, é por estar furiosa com Zeus, que tinha exterminado os Gigantes, que Gaia concebe Tífon — para que as forças caóticas e titânicas, de que também é mãe, não desapareçam totalmente diante da ordem imutável e imóvel.
É sob essa perspectiva que devem ser lidas as duas narrativas, igualmente interessantes e significativas quanto ao problema que surge da necessidade de integrar todas as forças anticósmicas, sem exceção alguma.

Comecemos por Ovídio: o combate se desenvolve numa época em que a terra é povoada por uma certa raça humana, a raça de ferro, particularmente corrupta, desonesta e violenta. Ovídio acrescenta, porém, que as alturas superiores do Éter — isto é, os píncaros do Olimpo, onde vivem os deuses — não se comportam melhor do que as regiões inferiores. Nem representam um asilo seguro, pois os Gigantes resolvem invadi-las. Como de fato são gigantescos e têm uma força prodigiosa, eles pura e simplesmente juntam montanhas, uma em cima das outras, fazendo uma espécie de escada para poder subir até o Olimpo e desafiar os deuses! Ovídio não nos diz grande coisa sobre a guerra propriamente, a não ser que Zeus apela para a sua arma favorita, o raio, e derruba as montanhas sobre os Gigantes, que ficam soterrados sob uma massa colossal de terra. Feridos, eles perdem rios de sangue, e Gaia, querendo evitar que sua raça desapareça totalmente — apesar de tudo, são seus filhos —, fabrica, com a mistura de sangue e de terra que escapa desses restos, uma nova espécie viva, com “face humana”, mas vivendo na violência e no gosto pela carnificina, tendo em vista as suas origens.

A narrativa de Apolodoro é mais circunstanciada. Descreve em detalhe como cada um dos deuses do Olimpo assume sua tarefa para, juntos, dar conta dos Gigantes: Zeus, é claro, mas também Apolo, Hera, Dioniso, Poseidon, Hermes, Ártemis, as Moiras etc. O combate é de extrema violência, terrivelmente sangrento. Para que se tenha uma ideia, Atena não se contenta, por exemplo, de matar o Gigante chamado Palas, mas o esfola vivo para fazer com sua pele uma espécie de escudo que ela cola a seu próprio corpo! Quanto a Apolo, o deus literalmente acerta uma das suas flechas no olho direito de um dos adversários, enquanto Héracles, por sua vez, envia-lhe outra no olho esquerdo! Resumindo, não há trégua. Principalmente, como dissera Píndaro, é preciso, para real e definitivamente dar cabo dos Gigantes, que um semideus ajude os olímpicos no combate: trata-se de Héracles, que, toda vez que um Gigante é derrubado por um deus, ajuda na conclusão. Como sempre, entretanto, apenas a força não basta. Com seu habitual jogo duplo, Gaia — ela quer a construção do cosmos equilibrado, mas, ao mesmo tempo, não admite que as forças primordiais do caos sejam totalmente eliminadas — planeja ajudar os Gigantes, dando-lhes uma erva que os tornaria imortais. Afinal de contas, os Gigantes são seus filhos e é normal que ela os proteja. Como é sempre o caso, porém, uma razão mais forte a estimula: sem as forças caóticas, o mundo morre e nada mais acontece. O equilíbrio e a ordem são, sem dúvida alguma, coisas necessárias, mas se houver somente isto, o universo se paralisa. Ela precisa, então, preservar também essa sua descendência que encarna, mesmo que às custas da violência, o movimento indispensável à vida.
Zeus, no entanto, que tudo sabe e vê, toma a dianteira — é uma prova da sua inteligência astuciosa, de sua métis —, indo pessoalmente cortar todas as ervas da imortalidade que Gaia faz crescer, e assim os Gigantes perdem todas as chances de ganhar o combate.

Com essa última peripécia se conclui toda a cosmogonia. Essa guerra, de fato, é o último episódio a marcar a história da construção do mundo. Após a morte dos Gigantes e a vitória de Zeus sobre Tífon, as forças caóticas que vimos em ação ao longo desse relato primordial são enfim definitivamente silenciadas ou, melhor dizendo, integradas ao conjunto e, na concepção forte do termo, “postas em seu lugar”, sob a terra. O cosmos está, enfim, solidamente estabelecido. Sem dúvida restam ainda, para os humanos, alguns ventos ruins, alguns terremotos acompanhados eventualmente de erupções vulcânicas. Mas, grosso modo, o cosmos está edificado, finalmente sobre bases sólidas.Resta saber qual lugar vão poder nele ocupar os mortais que somos. Resta ver também como e por que eles nascem.

(Luc Ferry - A sabedoria dos mitos gregos)

NOTAS:

12 Exceto duas outras divindades, filhas de Caos, que vamos por enquanto deixar de lado: Érebo, as trevas, e Nyx, a noite. Elas designam duas diferentes escuridões. Érebo é antes de tudo o escuro reinante no subsolo, por exemplo, no Tártaro. Noite é a obscuridade de fora, não a que se encontra sob a terra, mas acima dela, sob o céu. Ela, então, não é absoluta, mas relativa ao dia que a sucede, todos os dias, justamente! Érebo e Noite fazem amor e dão origem a duas outras criaturas divinas. Uma delas é Éter, a bruma luminosa que envolve o alto das montanhas, lugar sempre deslumbrante de brilho, situado acima das nuvens. É a luz que ilumina a morada dos deuses, o Olimpo, e, de certa maneira, constitui o contrário absoluto de Érebo, a escuridão das profundezas. Ao lado de Éter nasce também Hemera, que é justamente o dia que toda manhã sucede a noite. 
 

13 Cito os seus nomes — mas saiba desde já que é principalmente o do caçula, Cronos, que se deve guardar, pois vai ter um dos principais papéis na história que vem a seguir. Temos então por ordem de nascimento: Oceano, o rio-oceano que a mitologia descreve dando a volta completa na Terra, depois Ceo, Crio, Hipériom, Jápeto e, volto a insistir, Cronos “de curvo pensar”, como sempre diz Hesíodo, logo veremos por quê. Do lado das moças, houve Teia — o que em grego quer dizer “a divina” —, Reia, Têmis (a justiça), Mnemósine (a memória), Febe (a luminosa) e Tétis, que inspira amor.

14 Hesíodo não nos diz quantas são nem cita nomes. Será preciso esperar seis séculos para saber um pouco mais, graças ao grande poeta latino Virgílio, que viveu no século I a.C. — dou tal precisão para que você tenha uma ideia do tempo que foi necessário para a constituição dessas famosas narrativas mitológicas. Não nasceram de uma só vez, nem vieram de um único autor, mas foram incessantemente completadas por poetas e filósofos, no decorrer dos séculos!
 
15 A história foi contada sobretudo por um certo Apolodoro, um escritor — um mitógrafo — do século II d.C.
 
16 Listo a seguir, para ser mais completo, a linhagem dos filhos que Caos “fabrica” sozinho e a dos filhos que Gaia igualmente concebe sozinha. Pelo lado de Caos, temos Érebo, as trevas que reinam sob a terra, e Nyx, a noite que reina acima. Depois, dos amores de Érebo e Nyx, nascem os primeiros netos de Caos, Éter, a bruma luminosa que vai dominar a futura morada dos deuses no alto do Olimpo, e Hemera, o dia que sucede a noite. Ninguém de toda essa linhagem terá qualquer papel particular na próxima guerra dos deuses. Você pode então deixá-la de lado por enquanto, e eu a menciono apenas para que a tenha na memória. 
 
17 Segundo a lenda, as Moiras são três irmãs, Átropos, Cloto e Láquesis, que regulam a duração da vida de cada mortal através de um fio que a primeira delas tece, a segunda enrola e a terceira corta, no momento da morte. Em latim, as Moiras foram chamadas “Parcas”.
 
18 Cito a bela tradução francesa de dois professores pesquisadores da Universidade de Besançon, Jean-Claude Carrière e Bertrand Massonie, que tiveram a feliz ideia de traduzir Biblioteca e publicá-la nos anais literários da universidade (distribuição Belles Lettres). Encontra-se facilmente na internet o texto grego.
 
19 Sobretudo na primeira Nemeia, em que Gaia previne os deuses de que não ganhariam a guerra sem a ajuda de dois semideuses, Dioniso e Héracles.

publicado às 01:19

"O que você deixa para trás não é o que é gravado em monumentos de pedra, 
mas o que é tecido nas vidas de outros."
(Péricles) 


Hoje acordei com vontade de filosofar. Filosofar sobre a vida. E como filosofar sobre a vida sem falar da morte? Aliás, esta é uma temática que, quando mencionada, muita gente “bate na madeira” ou se desvia do assunto, justamente pelo medo de tratar de um assunto que, a meu ver, é uma temática extremamente normal, natural.

Para falar sobre estas questões, é preciso que entendamos a vida. A vida não é nada mais que um breve “ciclo” de qualquer coisa que nasce, cresce, reproduz e morre. E, vista como um ciclo fechado sobre si mesmo, é uma coisa extremamente natural. Sem a morte, a vida simplesmente perderia sua beleza, sua razão de ser, enfim, deixaria de existir. A beleza da vida reside exatamente na essência da morte. Pensem sobre isto!

Grande quantidade de pessoas, para não dizer a maioria delas, foge desse assunto, esquiva-se, justamente porque não compreende a verdadeira essência de sua existência. O que separa o homem do restante dos seres vivos é exatamente sua capacidade de raciocinar. Isto é, sua capacidade de adquirir, compilar, reproduzir e organizar conhecimentos e saberes. Diante dessa condição e, em interação com a natureza e com os aspectos sócio-históricos, o homem forma sua consciência de estar no mundo, de “ser” em um mundo, onde, nos tempos atuais, predomina, equivocadamente o “ter”, em detrimento do “ser”. Existe aí a inversão total de uma lógica que se torna “ilógica” dentro da concepção de uma sociedade plural, composta por um coletivo, e não pela soma de “múltiplos individualismos”, como querem fazer crer alguns.

A única coisa que, de fato, consegue explicar as razões da vida, da existência humana, é a própria morte. Na verdade, aqueles que têm medo da morte, que se esquivam diante dela, só podem ter uma explicação: passaram pela vida simplesmente por passar. E isto é muito triste; passar pela vida simplesmente por passar! Não construir nenhum projeto coletivo, priorizar o individualismo, o consumismo, enfim, o “ter” em detrimento do “ser”. É, no mínimo, passar pela vida de uma maneira imensamente e gigantescamente covarde. Também aqueles que deixam as coisas ir como acham que já está determinado, “guiadas por um destino previamente traçado”, talvez passem pela vida de maneira ainda mais covarde que no primeiro caso. Aceitar as coisas como predeterminadas, como predestinadas, é se convencer de sua mediocridade, de sua incapacidade de criação, de enfrentamento das adversidades, enfim, é aceitar sua inferioridade de forma deprimente e grandiosamente covarde diante da vida, do mundo e das coisas do mundo. Esses sim! Esses têm que temer a morte, porque no final das contas jogaram fora sua única vida, jogaram no lixo toda sua única existência. E a vida, uma vez jogada fora, não há como voltar atrás.

Então, a morte é o ápice de uma existência, é o ápice da vida, de todo um processo de busca interior, de construção de projetos coletivos. Quem pensa nesta direção, quem possui esta compreensão, jamais temerá a morte, jamais terão medo dela, ao contrário, a respeitarão, darão a ela o respeito e dignidade que merece como o ápice de toda uma existência. Pois a morte é o momento de profunda reflexão, é o momento de se fazer o balanço de toda uma vida! E quem sabe que seu balanço é extremamente negativo, de fato, terá que temê-la, pois terá jogado fora a vida, no rejeito de sua efêmera existência. Por fim, meus caros (as) leitores (as), aqueles que temem a morte são os que, de fato, nunca viveram. Na verdade, estes já estavam mortos a longo tempo e sequer sabiam disso. Esses, verdadeiramente, nunca estiveram vivos, já nasceram mortos!

Valter Machado da Fonseca - Escritor, geógrafo, mestre e doutorando em Educação pela UFU, pesquisador das temáticas ambientais, professor da Universidade de Uberaba (Uniube)

A transfiguração da morte

publicado às 16:22



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