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De tudo e de nada, discorrendo com divagações pessoais ou reflexões de autores consagrados. Este deverá ser considerado um ficheiro divagante, sem preconceitos ou falsos pudores, sobre os assuntos mais variados, desmi(s)tificando verdades ou dogmas.
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Entender o Mundo que nos espera |
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Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma Mesmo quando o corpo pede um pouco mais de alma Eu sei, a vida não para. A vida não para não’. |
(Para encontrar o nosso lugar no cosmos), para aprender a nele viver e nele inscrever as ações, é necessário antes conhecer o mundo que nos cerca. Essa é, como lhe disse, a primeira tarefa da teoria filosófica.
Em grego, ela se chama também theoria, e a etimologia da palavra merece nossa atenção: to theion ou ta theia orao significa “eu vejo (orao) o divino (theion)”, “eu vejo as coisas divinas (theia)”. Para os estoicos, de fato, a the-oria consiste exatamente em esforçar-se por contemplar o que é “divino” no real que nos cerca. Em outras palavras, a tarefa primeira da filosofia é ver o essencial do mundo, o que nele é mais real, mais importante, mais significativo. Ora, pela tradição que culmina no estoicismo, a essência mais íntima do mundo é a harmonia, a ordem, simultaneamente justa e bela, que os gregos designam pelo nome de cosmos.
Quando eu era estudante — é preciso dizer que comecei meus estudos em 1968 e que, naquele tempo, as questões religiosas não estavam na moda — praticamente não se abordava a história das ideias da Idade Média. Isso significa que zapeávamos alegremente todas as grandes religiões monoteístas. Apenas isso! Prestávamos exames e até mesmo nos formávamos professores sem saber nada de judaísmo, islamismo ou mesmo cristianismo. Precisávamos, é claro, escolher cursos sobre a Antiguidade — sobretudo grega — e, em seguida, passávamos diretamente a Descartes. Sem transição. Saltavam-se 15 séculos, de uma vez, do fim do século II, quer dizer, dos últimos estóicos, até o início do século XVII. De modo que, durante anos, eu não sabia praticamente nada da história intelectual do cristianismo — a não ser o que a cultura comum nos permite aprender, ou seja, sobretudo banalidades.
É um absurdo, e não gostaria que você cometesse esse erro. Mesmo quando não se é crente, com muito mais razão quando se é hostil às religiões, como veremos em Nietzsche, não temos o direito de ignorá-las. Mesmo que seja para criticá-las, é preciso ao menos conhecê-las e saber um pouco do que falam. Sem contar que elas ainda explicam uma infinidade de aspectos do mundo no qual vivemos, que saiu inteiramente do universo religioso. Não existe museu de obras de arte, mesmo contemporâneo, que não exija um mínimo de conhecimento teológico. Não há também um só conflito no mundo que não esteja mais ou menos secretamente ligado à história das comunidades religiosas: católicas e protestantes na Irlanda, muçulmanas, ortodoxas e católicas nos Bálcãs, animistas, cristãs e islamitas na África etc.
Apesar de tudo, segundo a definição que eu mesmo dei da filosofia no início deste livro, não deveria incluir um capítulo dedicado ao cristianismo. Não apenas a noção de “filosofia cristã” dá a impressão de ficar “à margem do tema”, mas parece até contraditória com o que lhe expliquei longamente, já que a religião é exemplo de uma busca da salvação não filosófica, porque é realizada por Deus, pela fé — e não pelo indivíduo e pela razão.
Então, por que falar dela aqui?
Em virtude de quatro razões muito simples que merecem, contudo, uma breve explicação.
A primeira, como sugeri no fim do capítulo anterior, é que a doutrina cristã da salvação, embora fundamentalmente não filosófica, até mesmo antifilosófica, vai competir com a filosofia grega. Vai, por assim dizer, aproveitar-se das lacunas que enfraquecem a resposta estóica sobre a questão da salvação para subvertê-la internamente. Vai até, como logo vou demonstrar, alterar o vocabulário filosófico em seu próprio proveito, dar-lhe significações novas, religiosas, e propor, por sua vez, uma resposta inédita, inteiramente nova, para a questão de nossa relação com a morte e com o tempo — o que lhe permitirá suplantar durante séculos, quase que sem restrições, as respostas da filosofia. Merece, portanto, nosso interesse.
A segunda razão é que, embora a doutrina cristã da salvação não seja filosófica, não deixará de haver, no seio do cristianismo, lugar para o exercício da razão. Ao lado da fé, a inteligência racional vai encontrar modo de se exercer pelo menos em duas direções: por um lado, para compreender os grandes textos evangélicos, quer dizer, para meditar e interpretar a mensagem do Cristo, mas, por outro, para conhecer e explicar a natureza que, enquanto obra de Deus, deve certamente trazer em si algo como a marca de seu criador. Vamos voltar ao assunto, mas isso já basta para que você compreenda que, paradoxalmente, vai haver, no seio do cristianismo, um lugar subalterno e modesto, no entanto real, para um momento de filosofia — se com isso se designa o uso da razão humana destinada a esclarecer e reforçar uma doutrina da salvação que, certamente, continuará, em seu princípio religioso, fundada na fé.
A terceira razão decorre diretamente das duas primeiras: não há nada mais esclarecedor para se compreender a filosofia do que compará-la ao que ela não é e ao que ela se opõe radicalmente, embora lhe seja tão próximo, ou seja, a religião! Tão próximo, porque ambas visam, em última instância, à salvação, à sabedoria entendida como uma vitória sobre as inquietações associadas à finitude humana; tão opostas, já que os caminhos seguidos por cada uma delas não são apenas diferentes, mas, na verdade, contrários e incompatíveis. Os Evangelhos, o quarto em particular, redigido por João, comprovam certo conhecimento da filosofia grega, especialmente do estoicismo. Houve, pois, efetivamente, uma confrontação, para não dizer competição, entre duas doutrinas da salvação, a dos cristãos e a dos gregos, de modo que o entendimento dos motivos pelos quais a primeira se sobrepôs à segunda é altamente esclarecedor para que se perceba não apenas a exata natureza da filosofia, mas também como, depois do grande período de dominação de ideias cristãs, ela vai abrir-se a novos horizontes — os da filosofia moderna.
Por fim, existem no conteúdo do cristianismo — especialmente no plano moral, das ideias que, mesmo para os incrédulos, têm ainda hoje enorme importância — ideias que, uma vez separadas de suas fontes puramente religiosas, vão adquirir tal autonomia que serão retomadas pela filosofia moderna, e mesmo por ateus. Por exemplo, a ideia de que o valor moral de um ser humano não depende de seus dons ou de seus talentos naturais, mas do uso que ele faz deles, de sua liberdade e não de sua natureza, foi oferecida à humanidade pelo cristianismo, e muitas morais modernas, não cristãs e até mesmo anticristãs, vão adotá-la apesar de tudo. Eis por que seria inútil querer passar sem transição do momento grego à filosofia moderna sem dizer uma palavra sobre o pensamento cristão.
Gostaria, para começar, de retomar o assunto a que nos referimos no último capítulo, e lhe explicar por que o pensamento cristão se sobrepôs à filosofia grega a ponto de dominar a Europa até o Renascimento. Não é pouca coisa: deve haver alguns motivos para tal hegemonia que mereçam que nos interessemos — e deixemos de guardar silêncio sobre uma história do pensamento cujos efeitos profundos se prolongam até nossos dias. A bem da verdade, como você logo verá, os cristãos inventaram respostas para as nossas interrogações sobre a finitude, que não têm equivalência entre os gregos; respostas, se ouso dizer, tão “eficientes”, tão “tentadoras”, que se impuseram a uma boa parte da humanidade como literalmente incontornáveis.
Para que a comparação entre essa doutrina da salvação religiosa e os pensamentos filosóficos da salvação sem Deus se torne mais cômoda, vou retomar nossos três grandes eixos — teoria, ética, sabedoria. Assim, não perderemos o fio do que já vimos. E para ir diretamente ao essencial, eu lhe indicarei primeiramente cinco traços fundamentais que estabelecem uma ruptura radical do cristianismo com o mundo grego — cinco traços que vão fazer você compreender como, a partir de uma nova theoria, o cristianismo vai também elaborar uma moral totalmente inédita e, em seguida, uma doutrina da salvação fundada no amor, o que lhe possibilitará conquistar o coração dos homens e reduzir, por longo tempo, a filosofia ao estatuto subalterno de simples “serva da religião”.
I. Theoria: como o divino deixa de se identificar com a ordem cósmica para se encarnar numa pessoa — o Cristo; como a religião nos convida a limitar o uso da razão para dar lugar à fé
Primeiro traço, o mais fundamental de todos: o logos que, como vimos, para os estóicos se confundia com a estrutura impessoal, harmoniosa e divina do cosmos todo, para os cristãos vai se identifícar com uma pessoa singular, o Cristo . Para escândalo dos gregos, os novos crentes vão afirmar que o logos, ou seja, o divino, não é absolutamente, como afirmam os estóicos, idêntico à ordem harmoniosa do mundo enquanto tal, mas é encarnado num ser excepcional, o Cristo!
A priori, talvez você me diga que o acontecimento o deixa petrificado. Afinal, que diferença faz, sobretudo para nós, hoje, que o logos, que designava para os estóicos a ordem “lógica” do mundo, se identifique, para os crentes, com o Cristo? Eu poderia responder que ainda existem mais de um bilhão de cristãos pelo mundo afora e que, só por esse motivo, entender o que os anima, captar os motivos, o conteúdo e a significação de sua fé não é necessariamente absurdo para quem se interessa, mesmo que só um pouco, por seus semelhantes. Mas seria uma resposta que, embora correta, não deixaria de ser insuficiente. Pois o que está em jogo nesse debate aparentemente muito abstrato, para não dizer bizantino, sobre saber onde e em que se encarna o divino — o logos —, se é a estrutura do mundo ou, ao contrário, uma pessoa excepcional, é simplesmente a passagem de uma doutrina da salvação anônima e cega à promessa de que vamos ser salvos não apenas por uma pessoa, o Cristo, mas também enquanto pessoa.
Ora, essa “personalização” da salvação, como você verá, permite logo compreender, por meio de um exemplo concreto, como se pode passar de uma visão de mundo a outra; como uma resposta nova consegue suplantar outra mais antiga porque contém um “mais”, um poder de convicção maior, e também vantagens consideráveis em relação à precedente. E mais ainda: apoiando-se na definição da pessoa humana e num pensamento inédito do amor, o cristianismo vai deixar marcas incomparáveis na história das ideias. Não compreendê-las é também não se permitir qualquer entendimento do mundo intelectual e moral no qual vivemos ainda hoje. Para lhe dar um único exemplo, é perfeitamente claro que, sem essa valorização tipicamente cristã da pessoa humana, do indivíduo como tal, jamais a filosofia dos direitos do homem, à qual damos tanta importância ainda hoje, teria vindo à luz.
É, pois, essencial, ter uma ideia mais ou menos exata da argumentação com a qual o cristianismo vai romper radicalmente com a filosofia estoica.
Para tanto, é preciso antes que você saiba, do contrário não compreenderá nada, que na versão francesa dos Evangelhos que contam a vida de Jesus, o termo logos, diretamente tomado aos estóicos, é traduzido pela palavra “Verbo”. Para os pensadores gregos em geral, e para os estóicos em particular, a ideia de que o logos, o “Verbo”, possa designar outra coisa além da organização racional, bela e boa do conjunto do universo não tem rigorosamente nenhum sentido. Para eles, supor que um homem, qualquer um, mesmo o Cristo, seja o logos, o “Verbo encarnado” segundo a fórmula do Evangelho, é puro delírio: é atribuir o caráter de divindade a um simples humano, enquanto o divino, você se lembra, só pode ser algo de grandioso, já que se confunde com a ordem cósmica universal, mas em hipótese alguma com uma pessoa, com uma pequena pessoa particular, quaisquer que sejam seus méritos.
Os romanos — notadamente sob Marco Aurélio, o último grande pensador estóico e imperador de Roma no fim do século II, período em que o cristianismo ainda é muitíssimo malvisto no império — vão massacrar os cristãos por causa desse insuportável “desvio”. Porque na época não se brincava com as ideias...
Por que, exatamente, e o que é que está em discussão por detrás dessa mudança aparentemente inocente do sentido de uma simples palavra? Nada menos do que uma verdadeira revolução na definição do divino. Ora, hoje sabemos que tais revoluções não acontecem sem sofrimento.
Voltemos um pouco ao texto no qual João, autor do quarto Evangelho, opera esse desvio em relação aos estóicos. Eis o que ele diz — e que comento livremente entre colchetes:
“No princípio era o Verbo [logos], e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito.” [ Até aí, tudo bem, e os estóicos podem estar de acordo com João, especialmente com a ideia de que o logos e o divino são uma única e mesma realidade.] “E o Verbo se fez carne [agora ficou ruim!] e habitou entre nós [daí em diante, piorou: o divino tornou-se homem, encarnado em Jesus, o que não tem nenhum sentido aos olhos dos estóicos!] e nós vimos a sua glória, glória que ele tem junto ao Pai como filho único, cheio de graça e de verdade [Do ponto de vista dos sábios gregos, o delírio agora é total, já que os discípulos do Cristo são apresentados como testemunhas da transformação do logos/Verbo=Deus, em homem=Cristo, como se este fosse o filho do primeiro!].”
O que isso significa? Simplesmente, se ouso dizer, mas na época era uma questão de vida ou morte, que o divino, como demonstrei acima, mudou de sentido, não é mais uma estrutura impessoal, mas, ao contrário, uma pessoa singular, a de Jesus, o “Homem-Deus”. Mudança de sentido abissal, que vai levar a humanidade europeia por um caminho completamente diferente do preconizado pelos gregos. Em algumas linhas, as primeiras de seu Evangelho, João nos convida a acreditar que o Verbo encarnado, o divino como tal, não designa mais a estrutura racional e harmoniosa do cosmos, a ordem universal enquanto tal, mas um simples ser humano. Como um estóico, por menos sensato que fosse, poderia admitir que caçoassem tanto dele, que zombassem de tudo aquilo em que ele acreditava? Porque, evidentemente, esse desvio não tem nada de inocente. Terá forçosamente consequências consideráveis para a doutrina da salvação, para a questão de nossa relação com a eternidade, e até mesmo com a imortalidade.
Veremos adiante de que modo, nesse contexto, Marco Aurélio ordenará a morte de São Justino, ex-estóico que se tornou o primeiro Pai da Igreja e primeiro filósofo cristão.
Aprofundemos um pouco mais os aspectos novos dessa theoria inédita. Você se lembra de que a theoria compreende sempre dois aspectos: de um lado, a estrutura essencial do mundo que ela desvela (o divino); de outro, os instrumentos de conhecimento que ela mobiliza para alcançá-lo (a visão). Ora, não é apenas o divino, o theion, que muda completamente ao se tornar um ser pessoal, mas também o orao, o ver, ou, se você assim preferir, o modo de contemplá-lo, de compreendê-lo e aproximar-se dele. A partir daí, não será mais a razão a faculdade teórica por excelência, mas a fé. Nesse ponto, a religião vai rapidamente pretender, e com todas as suas forças, opor-se ao racionalismo que estava no centro da filosofia e com isso destronar a própria filosofia.
E agora, o segundo traço: a fé vai ocupar o lugar da razão, e mesmo levantar-se contra ela. De fato, para os cristãos, o acesso à verdade não passa mais — em todo caso, não em primeiro lugar, como para os filósofos gregos — pelo exercício de uma razão humana que conseguia captar a ordem racional, “lógica”, do Todo cósmico, porque ela própria seria um emérito componente dele. O que vai permitir a aproximação do divino, seu conhecimento e contemplação é, a partir de então, de uma ordem inteiramente outra. O que conta, antes de tudo, não é mais a inteligência, mas a confiança dada à palavra de um homem, o Homem-Deus, o Cristo, que tem a pretensão de ser o filho de Deus, o logos encarnado. Acreditarão nele, porque ele é digno de fé — e os milagres realizados por Ele aumentarão a confiança que depositam n’Ele.
Lembre-se ainda de que confiança, originalmente, também significa “fé”. Para contemplar Deus, o instrumento teórico adequado é a fé, não a razão. Para isso, é preciso depositar confiança na palavra do Cristo que anuncia a “Boa-nova”: aquela segundo a qual seremos salvos exatamente pela fé, e não por nossas próprias “obras”, quer dizer, por nossas ações demasiado humanas, mesmo as mais admiráveis. Não se trata mais tanto de pensar por si mesmo, mas de ter confíança num Outro. Sem dúvida, é nisso que reside a diferença profunda e significativa entre filosofia e religião.
Donde também a importância do testemunho, que deve ser o mais direto possível para ser crível, como insiste, no Novo Testamento, a Primeira Epístola de João: O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os olhos, o que contemplamos e nossas mãos apalparam no tocante ao Verbo da vida — porque a vida se manifestou e nós vimos e testemunhamos, anunciando-vos a vida eterna que estava com o Pai e nos foi manifestada —, o que vimos e ouvimos, nós também anunciamos a fim de que também vós vivais em comunhão connosco. É certamente do Cristo que João fala aqui, e você vê que o estatuto de seu discurso repousa sobre uma lógica diferente da que pertence à reflexão e à razão; não se trata de argumentar a favor ou contra a existência de um Deus que se fez homem, pois, evidentemente, tal argumentação excede a razão e se mostra impossível. Mas, primordialmente, trata-se de testemunhar e crer, de dizer que o “Verbo encarnado”, o Cristo, foi visto, “apalpado”, tocado, ouvido; que conversaram com ele, e que esse testemunho é digno de fé. Você pode acreditar ou não, isso depende de você, que o logos divino, a vida eterna que estava com o Pai, encarnou-se no Homem-Deus descido à Terra. De qualquer modo, não é mais uma questão de inteligência ou de raciocínio. A rigor, trata-se do contrário: “bem-aventurados os pobres de espírito”, diz o Cristo nos Evangelhos, pois eles acreditarão e verão a Deus. Ao passo que os “inteligentes”, os “soberbos”, como diz Santo Agostinho ao se referir aos filósofos, atarefados com seus raciocínios, passarão, com orgulho e arrogância, à margem do essencial...
Donde o terceiro traço: o requisito para se aplicar e praticar convenientemente a nova teoria não é mais o entendimento dos fílósofos, mas a humildade das pessoas simples . Justamente porque não se trata de pensar por si mesmo, mas de acreditar por meio de outro. O tema da humildade é onipresente entre aqueles que, sem dúvida, foram, com São Tomás, os dois maiores filósofos cristãos: Santo Agostinho, que viveu no Império romano, no século IV depois de Cristo, e Pascal, na França, no século XVII. Ambos fundamentam a crítica que fazem da filosofia — e eles nunca deixam de criticá-la, tanto que percebemos que, para eles, ela é a inimiga por excelência — no fato de que ela seria, por natureza, orgulhosa.
Podemos citar inúmeras passagens em que Agostinho, em especial, denuncia o orgulho e a vaidade dos filósofos que não quiseram aceitar que Cristo pudesse ser a encarnação do Verbo, do divino, que não admitiram a modéstia de uma divindade reduzida ao estatuto de humilde mortal, suscetível ao sofrimento e à morte. Como diz num de seus principais livros, A Cidade de Deus, dirigindo-se aos filósofos: “Os soberbos desdenharam de tomar esse Deus como senhor, porque o ‘Verbo se fez carne e habitou entre nós’”, e isso eles não podiam admitir. Por quê? Porque seria necessário que eles deixassem a inteligência e a razão no vestiário e as substituíssem pela confiança e pela fé.
Se você pensar bem, há, portanto, na religião, uma dupla humildade que se opõe de saída à filosofia grega, e que corresponde, como sempre, aos dois momentos da theoria, ao divino (theion) e ao ver (orao). Por um lado a humildade, se ouso dizer, “objetiva”, de um logos divino que fica “reduzido”, com Jesus, ao estatuto de modesto ser humano (o que parece muito pouco para os gregos). Por outro, a humildade “subjetiva” de nosso próprio pensamento que é obrigado pelos crentes a “se soltar”, a abandonar a razão para ter confiança, para dar lugar à fé. Nesse aspecto, nada é mais significativo do que os termos utilizados por Agostinho para caçoar dos filósofos:
Inchados de orgulho pela alta opinião que têm de sua ciência, eles não ouvem o Cristo quando diz: aprendei de mim porque sou manso e humilde de coração, e encontrareis repouso para vossas almas.
O texto fundador, aqui, se encontra no Novo Testamento, na primeira Epístola aos Coríntios, redigida por São Paulo. É um pouco difícil, mas terá tamanha posteridade, uma importância tão considerável no desenvolvimento da história cristã, que vale a pena lê-lo com atenção. Ele mostra como a ideia de encarnação do Verbo, a ideia, portanto, de que o logos divino se fez homem e que o Cristo é o Filho de Deus, é inaceitável, tanto para os judeus como para os gregos. Para os judeus, porque um Deus fraco, que se deixa martirizar e pregar na cruz sem reagir, parece desprezível e contrário à imagem do Deus deles, cheio de poder e cólera. Para os gregos, porque uma encarnação tão medíocre contradiz a grandeza do logos tal como a concebe a “sabedoria do mundo” dos filósofos estóicos. Aqui vai o texto:
Deus não tornou louca a sabedoria deste século? Com efeito, visto que o mundo por meio da sabedoria não reconheceu a Deus na sabedoria de Deus, aprouve a Deus pela loucura da pregação salvar aqueles que crêem. Os judeus pedem sinais, e os gregos andam em busca da sabedoria; nós, porém, anunciamos Cristo crucificado que para os judeus é escândalo, para os gregos é loucura, mas para aqueles que são chamados, tanto judeus como gregos, é Cristo poder de Deus e sabedoria de Deus. Pois o que é loucura de Deus é mais sábio do que os homens, e o que é fraqueza de Deus é mais forte do que os homens.
Paulo descreve a imagem, inaudita na época, de um Deus que não é mais grandioso: não é nem colérico, nem terrível, nem cheio de poder como o dos judeus, mas fraco e misericordioso a ponto de se deixar crucificar — o que, aos olhos do judaísmo da época, bastaria para provar que não tinha nada de divino! Mas ele também não é nem cósmico nem sublime como o dos gregos que, de modo panteísta, fazem dele a estrutura perfeita do Todo do universo. E é justamente esse escândalo e essa loucura que constituem sua força: é por sua humildade, e exigindo-a dos que vão crer nele, que ele vai se tornar o porta-voz dos fracos, dos pequenos, dos subalternos. Centenas de milhões de pessoas se reconhecem, ainda hoje, na estranha força dessa fraqueza.
Ora, é justamente isso o que, segundo os crentes, os filósofos não souberam aceitar. Voltarei ao assunto para que você possa avaliar a amplitude do tema da humildade religiosa oposta à arrogância filosófica. Está presente em toda A Cidade de Deus (livro X, capítulo 29), na qual Santo Agostinho se volta contra os filósofos mais importantes de seu tempo (no caso, discípulos tardios de Platão) que se recusam a aceitar que o divino tenha podido se fazer homem (o Verbo se tornar carne) exatamente quando o pensamento deles deveria, segundo Santo Agostinho, levá-los a concordar com os cristãos. Mas, para consentir nessa verdade, precisaríeis de humildade, virtude tão difícil de incutir em vossas cabeças altivas. O que há de inacreditável, sobretudo para vós, cujas doutrinas vos convidam mesmo a essa crença; o que há de inacreditável quando dizemos que Deus assumiu a alma e o corpo do homem?... Sim, por que as opiniões que são as vossas e que aqui vós combateis vos impedem de ser cristãos, senão porque o Cristo veio na humildade e que vós sois soberbos?
Onde encontramos a dupla humildade de que lhe falava há pouco: a de um Deus que aceita se “rebaixar” até se fazer homem entre os homens; a do crente que renuncia ao uso da razão para depositar toda a confiança na palavra de Jesus, e assim dar lugar à fé...
Como agora você percebe claramente, os dois momentos da theoria cristã, definição do divino, definição da atitude intelectual que permite entrar em contato com ele, são antípodas daqueles da filosofia grega a que Agostinho visa. É o que explica perfeitamente o quarto traço que eu gostaria de apresentar.
Quarto traço: nessa perspectiva que atribui primazia à humildade e à fé sobre a razão, o “pensar por meio de Outro” de preferência a “pensar por si mesmo” , a filosofia não vai desaparecer inteiramente, mas vai se tornar “serva da religião”. A fórmula aparece no século XI, na escrita de São Pedro Damião, teólogo cristão ligado ao papa. Ela terá enorme posteridade porque significa que a partir daquele momento, na doutrina cristã, a razão deve ser inteiramente submissa à fé que a conduz.
À pergunta “Existe uma filosofia cristã?” deve se dar uma resposta nuançada. É preciso dizer: não e sim.
Não, na medida em que as mais altas verdades são, no cristianismo, bem como nas grandes religiões monoteístas, o que chamamos de “Verdades elevadas”, quer dizer, verdades transmitidas pela palavra de um profeta, de um messias, no caso, pela revelação do próprio filho de Deus, o Cristo. É a esse título, em razão da identidade Daquele que as anuncia e revela, que essas verdades são objeto de adesão, de crença ativa. Poderíamos, então, ser tentados a dizer que não há mais lugar para a filosofia no seio do cristianismo, já que tudo o que é essencial se decide pela fé, de modo que a doutrina da salvação — vamos voltar a isso adiante — é inteiramente uma doutrina da salvação por Outro, pela graça de Deus e de modo algum por nossas próprias forças.
Em outro sentido, porém, pode-se, apesar de tudo, afirmar que resta uma atividade filosófica cristã, embora num lugar secundário, que não é o da doutrina da salvação propriamente dita. Para que serve ela nesse quadro onde é subalterna, mas por vezes importante?
Em diversas ocasiões, São Paulo acentua em suas epístolas: resta um duplo lugar para a razão e, consequentemente, para a atividade puramente filosófica. Por um lado, como você deve saber, se por acaso alguma vez abriu um dos Evangelhos, o Cristo sempre se exprime por símbolos e parábolas. Ora, sobretudo elas devem ser interpretadas, se quisermos absorver-lhes o sentido mais profundo. As parábolas do Cristo, mesmo tendo a particularidade, como as lendas orais e os contos de fadas, de falar para todos, não deixam de exigir um esforço de reflexão e de inteligência para que se consiga compreendê-las em profundidade. Essa será a nova tarefa da filosofia tornada serva da religião.
Mas não se trata apenas de ler as Escrituras. É necessário também descodificar a natureza, quer dizer, a “criação”, da qual uma abordagem racional deve ressaltar o fato de que ela “demonstra”, por assim dizer, a existência de Deus pela bondade e beleza de suas obras. Notadamente a partir de São Tomás, no século XIII, a atividade da filosofia cristã vai se tornar cada vez mais importante. Ela levará à elaboração daquilo que os teólogos vão chamar de “provas da existência de Deus”, particularmente a que consiste em tentar mostrar que, por ser o mundo perfeitamente bem-feito — no que os gregos não estavam totalmente errados —, é preciso admitir que existe um criador inteligente de todas essas maravilhas.
Não entro aqui em detalhes, mas agora você vê em que sentido se pode, ao mesmo tempo, dizer que existe e que não existe uma filosfia cristã. É claro que sobra pouco espaço para a atividade da razão que deve, fundamentalmente, interpretar as Escrituras e compreender a natureza, a fim de retirar dela ensinamentos divinos. Mas também, evidentemente, a doutrina da salvação não é mais apanágio da filosfia, e, embora em princípio não haja contradição entre elas, as verdades reveladas pela fé precedem as verdades da razão.
Daí, o quinto e último traço: por não ser mais a doutrina da salvação, mas apenas uma serva, a filosofia vai se tornar uma “escolástica”, quer dizer, no sentido literal , uma disciplina escolar, não mais uma sabedoria ou uma disciplina de vida. O ponto é absolutamente crucial, pois explica em grande parte que ainda hoje, no momento em que muitos pensam ter definitivamente deixado a era cristã, a maioria dos filósofos continua a rejeitar a ideia de que a filosofia possa ser uma doutrina da salvação ou até mesmo uma aprendizagem da sabedoria. No colégio, bem como na universidade, ela se tornou basicamente uma história das ideias acompanhada de um discurso reìexivo, crítico ou argumentativo. Nesse aspecto, ela continuou sendo uma aprendizagem puramente “discursiva” (quer dizer: da ordem exclusiva do discurso) e, nesse sentido, uma escolástica, contrariamente ao que era na Grécia antiga.
Ora, é incontestavelmente com o cristianismo que a ruptura se instaura, e que a filosofia deixa de chamar seu discípulo para participar da prática dos exercícios de sabedoria que constituíam o essencial no ensino das escolas gregas. E isso é perfeitamente compreensível, já que a doutrina da salvação, fundada na fé e na Revelação, não pertence mais ao domínio da razão. A partir daí, é natural que ela escape à filosofia. Esta vai, então, com frequência, se reduzir a um simples esclarecimento de conceitos, a um comentário erudito de realidades que a ultrapassam e lhe são, em todo caso, externas: filosofa-se sobre o sentido das Escrituras ou sobre a natureza como obra de Deus, mas não mais sobre as finalidades últimas da vida humana. Ainda hoje parece óbvio que a filosofia deve, ao mesmo tempo, partir e falar de uma realidade exterior a ela: é a filosofia das ciências, do direito, da linguagem, da política, da arte, da moral etc., mas quase nunca, sob pena de parecer ridícula ou dogmática, amor à sabedoria. Com raras exceções, a filosofia contemporânea, embora não seja mais cristã, assume, sem desconfiar, o estatuto servil e secundário a que a submeteu a vitória do cristianismo sobre o pensamento grego.
Pessoalmente, acho uma pena — e tentarei lhe dizer por quê, no capítulo dedicado à filosofia contemporânea.
Mas, por enquanto, vejamos como, baseado nessa nova theoria, ela mesma fundada numa concepção radicalmente inédita do divino e da fé, o cristianismo vai desenvolver também uma moral em ruptura, em vários pontos decisivos, com o mundo grego.
II. Ética: Liberdade, Igualdade, Fraternidade — o nascimento da ideia moderna de humanidade
Poderíamos esperar que o confisco do pensamento pela religião e a relegação da filosofia a segundo plano tivessem como consequência uma regressão no plano ético. Em muitos aspectos, pode-se pensar que aconteceu o inverso. O cristianismo vai trazer, no plano moral, pelo menos três novas ideias não gregas — ou não essencialmente gregas —, todas ligadas à revolução teórica que acabamos de ver em ação. Ora, essas ideias são de uma modernidade espantosa. Não podemos, de fato, conceber, mesmo com enorme esforço de imaginação, o quanto elas pareceram perturbadoras para os homens da época. O mundo grego era basicamente aristocrático, um universo hierarquizado no qual os melhores por natureza deviam, em princípio, estar “acima”, enquanto se reservavam aos menos bons os níveis inferiores. Não se esqueça de que a pólis grega se baseava na escravidão.
O cristianismo vai trazer até ela a noção de que a humanidade é fundamentalmente uma e que os homens são iguais em dignidade — ideia incrível na época, e da qual nosso universo democrático será em parte herdeiro. Mas essa ideia de igualdade veio de algum lugar e é importante compreender bem como a teoria que acabamos de ver em ação trazia em germe o nascimento desse novo mundo de igual dignidade dos homens.
Mais uma vez, para lhe apresentar as coisas do modo mais simples, vou me limitar a apontar três traços característicos da ética cristã, decisivos para sua boa compreensão.
Primeiro traço: a liberdade de escolha, o “livre-arbítrio”, se torna fundamento da moral, e a noção de igual dignidade de todos os seres humanos faz sua primeira aparição. Vimos em que sentido os grandes cosmólogos gregos tomavam a natureza como norma. Ora, a natureza é profundamente hierarquizada, quer dizer, desigual: para cada categoria de seres ela desenvolve gradações que vão desde a excelência mais sublime até a maior mediocridade. Com efeito, é evidente que somos, se nos colocarmos apenas sob o ponto de vista do natural, muito desigualmente dotados: mais ou menos fortes, rápidos, grandes, belos, inteligentes etc. Todos os dons naturais são suscetíveis de uma distribuição desigual. No vocabulário moral dos gregos, a noção de virtude está diretamente ligada às de talento ou dom naturais. A virtude é, antes de tudo, a excelência de uma natureza bem-dotada. Eis por que — para lhe dar um exemplo bem típico do pensamento grego — Aristóteles pode tranquilamente falar, num de seus livros dedicados à ética, de “olho virtuoso”. Para ele, isso significa apenas olho “excelente”, um olho que vê perfeitamente, que não é nem hipermetrope, nem míope.
Em outras palavras, o mundo grego é um mundo aristocrático, quer dizer, um universo que repousa inteiramente sobre a convicção de que existe uma hierarquia natural dos seres. Olhos, plantas ou animais, certamente, mas também homens: alguns são naturalmente feitos para comandar, outros, para obedecer — e é por isso, aliás, que a vida política grega se adapta, sem dificuldade, à escravidão.
Para os cristãos, e nisso eles anunciam as morais modernas das quais falarei no próximo capítulo, essa convicção é ilegítima, e falar de um “olho virtuoso” não tem nenhum sentido. Porque o importante não são os talentos naturais em si, os dons recebidos no nascimento. É claro, e quanto a isso não há dúvida, que eles são muito desigualmente repartidos entre os homens, e alguns, com certeza, são mais fortes e inteligentes do que outros, exatamente como existem, por natureza, olhos mais ou menos bons.
Mas, no plano moral, essas desigualdades não têm nenhuma importância. Porque importa apenas o uso que fazemos das qualidades recebidas no início, não as qualidades em si. O que é moral ou imoral é a liberdade de escolha, o que os filósofos vão chamar de “livre-arbítrio”, e, de modo algum, os talentos da natureza enquanto tais. Esse ponto pode lhe parecer secundário ou evidente. Na verdade, é literalmente extraordinário na época, pois, com ele, é todo um mundo que oscila. Para falar com clareza: com o cristianismo, saímos do universo aristocrático para entrar no da “meritocracia”, quer dizer, num mundo que vai, inicialmente e antes de tudo, valorizar não as qualidades naturais da origem, mas o mérito que cada um desenvolve ao usá-las. Assim, saímos do mundo natural das desigualdades para entrar no mundo artificial, no sentido em que é construído por nós, da igualdade. Pois a dignidade dos seres humanos é a mesma para todos, quaisquer que sejam as desigualdades de fato, já que ela repousa, desde então, na liberdade e não mais nos talentos naturais.
A argumentação cristã — que será retomada pelas morais modernas, inclusive as mais laicas — é, ao mesmo tempo, simples e forte.
Substancialmente, ela nos diz o seguinte: existe uma prova indiscutível de que os talentos herdados naturalmente não são intrinsecamente virtuosos, que não têm nada de moral em si mesmos, e que todos, sem exceção, podem ser utilizados tanto para o bem como para o mal. A força, a beleza, a inteligência, a memória etc., em resumo, todos os dons naturais, herdados no nascimento, são, com certeza, qualidades, mas não no plano moral, pois todos podem ser postos a serviço do pior ou do melhor. Se você utiliza sua força, inteligência ou beleza para realizar o crime mais abjeto, você demonstra por esse fato mesmo que os talentos naturais não têm absolutamente nada de virtuosos em si!
Porque apenas o uso que se faz deles pode ser chamado de virtuoso, como, aliás, indica uma das mais célebres parábolas do Evangelho, a parábola dos talentos. Você pode fazer dos seus dons naturais o uso que quiser, bom ou mau. Mas é o uso que é moral ou imoral, não os dons em si! Falar de um olho virtuoso se torna, portanto, um absurdo. Apenas uma ação livre pode ser chamada de virtuosa, não uma coisa da natureza. Assim é que a partir de então o “livre-arbítrio” é posto no princípio de todo julgamento sobre a moralidade de um ato.
No plano moral, o cristianismo opera, portanto, uma verdadeira revolução na história do pensamento, uma revolução que ainda se fará sentir até na grande Declaração dos Direitos do Homem, de 1789, cuja herança cristã, nesse aspecto, é indubitável. Pois, talvez, pela primeira vez na história da humanidade, é a liberdade e não mais a natureza que se torna o fundamento da moral.
Ao mesmo tempo, como eu dizia há pouco, a ideia de igual dignidade de todos os seres humanos faz sua primeira aparição: então, o cristianismo estará mais ou menos secretamente na origem da democracia moderna. Paradoxalmente, embora a Revolução Francesa seja por vezes fortemente hostil à Igreja, ela não deixa de dever ao cristianismo uma parte essencial da mensagem igualitária que vai contrapor ao Antigo Regime. Aliás, constatamos ainda hoje o quanto as civilizações que não conheceram o cristianismo têm dificuldade em dar à luz regimes democráticos, porque a ideia de igualdade, em especial, não é evidente para elas.
A segunda perturbação está diretamente ligada à primeira: consiste em estabelecer que, no plan o moral , o espírito é mais importante do que a letra, o “foro íntimo” mais decisivo do que a observância literal da lei da cidade, que é sempre uma lei exterior . Ainda há pouco evoquei a parábola dos talentos. Outro episódio dos Evangelhos pode servir como modelo: trata-se da famosa passagem em que o Cristo toma a defesa de uma mulher adúltera a quem a multidão, segundo o costume, se prepara para apedrejar. É certo que o adultério, o fato de enganar o marido ou a mulher, é considerado por todos naquela época como um pecado. Evidentemente existe uma lei que ordena que a mulher adúltera seja apedrejada. É essa a letra do código jurídico em vigor. Mas e o espírito, o “foro íntimo”? O Cristo se coloca à margem da multidão. Sai do círculo dos conformistas, daqueles que só pensam na aplicação estrita, mecânica da norma. E apela para as consciências, e lhes diz o seguinte: no fundo de suas consciências, vocês têm certeza de que está certo o que estão fazendo? E se vocês se examinassem, seriam capazes de se considerar melhores do que esta mulher que estão prestes a matar, e que talvez tenha pecado apenas por amor? Que aquele que nunca pecou lhe atire a primeira pedra... E todos aqueles homens, em vez de seguirem a letra da lei, olham para dentro de si mesmos para entender o sentido daquilo, para refletir, também, sobre seus próprios defeitos e começar a duvidar, a partir daí, de que eles pudessem ser juízes impiedosos...
Por aí talvez você possa avaliar tudo o que o cristianismo possui de inovador, não apenas em relação ao mundo grego, porém mais ainda em relação ao mundo judaico. É porque o cristianismo concede esse enorme lugar à consciência, ao espírito, mais do que à letra, que ele não vai impor praticamente nenhuma juridicidade à vida cotidiana. Os rituais despojados de sentido do tipo “peixe da sexta-feira” são invenções tardias, frequentemente do século XIX, que não têm nenhuma raiz nos Evangelhos. Você pode lê-los e relê-los, não encontrará nada, ou praticamente nada sobre o que se deve comer ou não, sobre o modo como deve ser o casamento, sobre os rituais que é preciso realizar para provar e se provar ainda que é um bom crente etc. Enquanto a vida dos judeus e dos muçulmanos ortodoxos é cheia de imperativos exteriores, de deveres referentes às ações a se realizar na cidade dos homens, o cristianismo se contenta em remetê-los a eles mesmos para que se descubra o que é bom ou não; remete-os ao espírito do Cristo e à sua mensagem, e não à letra cerimonial dos rituais que são respeitados sem que se preste atenção a eles...
Também nesse ponto essa atitude favorecerá consideravelmente a passagem para a democracia, o surgimento de sociedades laicas, não religiosas: na medida em que a moral se tornou, no que tange ao essencial, uma questão interior, ela tem ainda menos razão para entrar em conflito com as convenções exteriores. Pouco importa que se reze uma ou cem vezes ao dia, pouco importa que seja proibido ou não comer isto ou aquilo. Todas as leis, ou quase todas, são aceitáveis, desde que não ataquem o fundo, o espírito de uma mensagem crística que não tem nada a ver com o que comemos, com as roupas que vestimos ou com os rituais que respeitamos.
Terceira inovação fundamental: é simplesmente a ideia moderna de humanidade que entra em cena. Não é que ela seja desconhecida dos gregos ou de outras civilizações, é claro. Ninguém, sem dúvida, ignorava que existia uma “espécie humana”, diferente das espécies animais. Os estóicos, em especial, eram muito apegados à ideia de que todos os homens pertenciam à mesma comunidade. Eles eram, como se dirá depois, “cosmopolitas”.
Com o cristianismo, porém, a ideia de humanidade adquire uma dimensão nova. Fundada na igual dignidade de todos os seres humanos, ela vai assumir uma conotação ética que não possuía antes. E isso pela razão profunda que acabamos de ver juntos: uma vez que o livre-arbítrio é posto como fundamento da ação moral, uma vez que a virtude reside não nos talentos naturais que são distribuídos desigualmente, mas no uso que se decide fazer deles, numa liberdade em face da qual estamos todos em igualdade, então, é óbvio que todos os homens se equivalem. Pelo menos, é certo que de um ponto de vista moral — pois é evidente que os dons naturais continuam tão desigualmente distribuídos quanto antes. Mas, no plano ético, isso não tem nenhuma importância.
Fica transparente que, a partir daí, a humanidade não poderia ser dividida, segundo uma hierarquia natural e aristocrática, entre melhores e menos bons, entre superdotados e ineptos, entre senhores e escravos. Eis por que, segundo os cristãos, é preciso que se diga que somos todos “irmãos”, todos situados no mesmo patamar enquanto criaturas de Deus, dotadas das mesmas capacidades de escolher livremente o sentido de suas ações. Que os homens sejam ricos ou pobres, inteligentes ou néscios, bem-nascidos ou não, dotados ou não, não importa mais. A ideia de uma igual dignidade dos seres humanos vai levar a fazer da humanidade um conceito ético de importância primordial. Com ela, a noção grega de “bárbaro” — sinônimo de estrangeiro — tende a desaparecer em benefício da convicção de que a humanidade é UNA, ou não existe. No jargão filosófico, e aqui ele ganha todo o sentido, pode-se dizer que o cristianismo é a primeira moral universalista.
Apesar de tudo, a questão da salvação, como sempre, não segue a da moral, com a qual ela não se confunde. Ora, é justamente nesse campo, mais ainda talvez do que no da ética, que a religião cristã vai inovar de modo extraordinário, desferindo, assim, um golpe mortal na filosofia. É preciso dizer que em relação aos termos da questão inicial — grosso modo: como vencer as inquietações que a consciência da finitude suscita no homem — o cristianismo vem com força total. Enquanto os estóicos nos apresentavam a morte como a passagem de um estado pessoal a um estado impessoal, como uma transição do estatuto de indivíduo consciente para o de fragmento cósmico inconsciente, o pensamento cristão da salvação não hesita em nos prometer categoricamente a imortalidade pessoal.
Como resistir? Além do mais, essa promessa, como você vai ver, não é feita irrefletidamente, de modo superficial. Ao contrário, está integrada num dispositivo intelectual de imensa profundidade, no pensamento do amor e da ressurreição dos corpos, que, como se diz, é nota dez. De resto, se não fosse o caso, não se compreenderia por que a religião cristã teve um sucesso colossal, sempre confirmado até os dias de hoje.
III. Sabedoria: uma doutrina da salvação pelo amor que nos promete, enfim, a imortalidade pessoal
O fundamento da doutrina cristã da salvação está diretamente ligado à revolução teórica que vimos em ação na passagem de uma concepção cósmica a uma concepção pessoal do logos, ou seja, do divino. Donde decorrem diretamente os três principais traços que lhe são mais característicos. Na apresentação do primeiro deles, você poderá avaliar plenamente como a doutrina cristã da salvação tinha argumentos bastante fortes para suplantar a dos estóicos.
Primeiro traço: se o logos , o divino, se encarna numa pessoa, a do Cristo, a providência muda de sentido. Ela deixa de ser, como era para os estóicos, um destino anônimo e cego, par a se tornar uma atenção pessoal e benigna, comparável à de um pai para com os filhos. Nessa medida, a salvação à qual podemos almejar se nos ajustarmos não mais à ordem cósmica, mas aos mandamentos dessa pessoa divina, será, também, pessoal. É a imortalidade singular que nos será prometida pelo cristianismo, e não mais uma espécie de eternidade anônima e cósmica na qual não somos senão um pequeno fragmento inconsciente de uma totalidade que nos engloba e ultrapassa.
Essa virada crucial é perfeitamente descrita desde a segunda metade do século II depois de Cristo (no ano de 160, para ser exato) numa obra do primeiro Pai da Igreja, São Justino. Trata-se de um diálogo com um rabino — sem dúvida Trifão — que Justino conheceu em Éfeso. O emocionante no livro de Justino é que ele escreve de modo incrivelmente pessoal para a época. Justino conhece bem a filosofia grega e se preocupa em situar a doutrina cristã da salvação, comparando-a com as principais obras de Platão, de Aristóteles e dos estóicos. Mas, sobretudo, ele conta, se ouso dizer, como “testou para nós” as diferentes doutrinas pagãs da salvação (hoje, diríamos “laicas”, não religiosas), como e por que ele foi sucessivamente estóico, aristotélico, pitagórico e fervoroso platônico antes de se tornar cristão. Seu testemunho é, pois, extremamente precioso para entendermos como, para um homem daquela época, a doutrina cristã da salvação podia ser sentida em relação àquelas que a filosofia tinha elaborado até então. É por isso que vale a pena lhe dizer em poucas palavras quem foi Justino e em que contexto ele publica o diálogo.
Ele pertence ao movimento dos primeiros cristãos que chamamos de “apologistas”. Na verdade, é seu principal representante no século II. De que se trata, e o que quer dizer a palavra “apologia”? Se você se lembra das aulas de história antiga, deve saber que, naquela época, no Império Romano, as perseguições aos cristãos ainda eram muito frequentes. Além das perseguições das autoridades romanas, o cristianismo provocava a hostilidade dos judeus, de modo que os primeiros teólogos cristãos escreveram “apologias” da religião, quer dizer, espécies de defesas dirigidas aos imperadores romanos, a fim de proteger a comunidade dos rumores que pesavam sobre o culto. De fato, acusavam-nos, erradamente, é claro, de todos os tipos de horrores que encontravam eco na opinião pública, entre outros, o de adorar um deus com cabeça de burro, fazer sacrifícios em ritos antropofágicos (praticar o canibalismo), cometer assassinatos rituais, entregar-se a todo tipo de devassidão, como o incesto, o que não tinha, evidentemente, nenhuma ligação com o cristianismo.
As apologias redigidas por Justino tinham como objetivo dar testemunho, para se opor a essa difamação, da realidade da prática cristã. A primeira, que data do ano 150, foi enviada ao imperador Antonino, e a segunda, a Marco Aurélio, aquele que, como você deve se lembrar, foi um dos maiores representantes do pensamento estóico. Aproveitando a ocasião, devo lembrar que não era proibido ser político e filósofo.
Na época, a lei romana ordenava que os cristãos não fossem perturbados, salvo se denunciados por pessoa “digna de confiança”. Foi um filósofo pertencente à escola dos cínicos, Crescêncio, que exerceu esse papel sinistro: adversário irredutível de Justino, invejoso da repercussão de seu ensino, fez com que ele fosse condenado junto com seus seis alunos, decapitados com ele, em 165... sob o reino do mais eminente entre os filósofos estóicos da época imperial, Marco Aurélio, o que é bastante emblemático. A narrativa do processo foi conservada. É o único documento autêntico que reporta o martírio de um pensador cristão na Roma do século II.
É, portanto, particularmente interessante ler o que declara Justino diante dos estóicos que vão executá-lo. O pomo da discórdia, no fundo, diz respeito à doutrina da salvação e corresponde ao que já vimos. Se o Verbo é encarnado, a providência muda totalmente de sentido: de anônima e impessoal, como era para os estóicos, torna-se pessoal não apenas devido Àquele que a exerce, mas também para aquele a quem ela se dirige. Assim sendo, de acordo com Justino, a doutrina cristã da salvação é de longe superior à dos estoicos, bem como a imortalidade consciente de uma pessoa individual, singular, é superior à de um fragmento inconsciente do cosmos:
Certamente — escreve ele — os pensadores gregos tentam nos convencer de que Deus cuida do universo, dos gêneros e das espécies como um todo. Mas a mim, a ti, a cada um em particular, não é o que acontece, pois, de outro modo, não rezaríamos a ele dia e noite!
O destino implacável e cego dos Antigos cede lugar à sabedoria benigna de uma pessoa que nos ama como pessoa, nos dois sentidos da expressão. É assim que o amor se torna a chave da salvação.
Como você vai ver, não se trata de um amor qualquer; trata-se do que os filósofos cristãos vão chamar de “amor em Deus”. Uma vez mais precisamos compreender o que designa a expressão, a fim de perceber em que ponto essa forma de amor vai não apenas se distinguir das outras, mas também nos permitir alcançar a salvação — quer dizer, ultrapassar o medo da morte e, se possível, a própria morte.
Segundo traço: o amor é mais forte que a morte. Talvez você me pergunte que ligação pode haver entre o sentimento do amor e o debate sobre o que pode nos salvar da finitude e da morte. Você tem razão. Não é evidente, a priori. Para compreender isso, o mais simples é partir da ideia de que, na verdade, existem três figuras do amor, que formam como que um “sistema” coerente, uma configuração que esgotaria todas as possibilidades.
Há um amor que poderíamos chamar de “amor-apego”: é o que experimentamos quando nos sentimos, como se diz tão bem, ligados a alguém a ponto de não poder imaginar a vida sem esse alguém. Pode-se conhecer esse amor tanto em relação à família quanto em relação a alguém por quem nos apaixonamos. É uma das faces do amor-paixão. Ora, nesse ponto, os cristãos se aproximam dos estóicos e dos budistas por pensarem que esse amor é o mais perigoso, o menos sábio de todos. Não é apenas porque com ele corremos o risco de nos afastar dos verdadeiros deveres para com Deus, mas, sobretudo, porque, por definição, ele não suporta a morte, não tolera rupturas e mudanças, embora elas sejam inevitáveis. Além do fato de ser de modo geral possessivo e ciumento, o amor-apego nos prepara os piores sofrimentos que existem. Já havíamos evocado esse raciocínio; por isso, não o desenvolvo.
No extremo oposto, encontra-se o amor ao próximo em geral, o que se chama também de “compaixão”: é o que nos leva a cuidar até daqueles que não conhecemos quando estão em desgraça, o que vemos ainda hoje tanto nos gestos da caridade cristã quanto no universo, embora muitas vezes ateu, da ação caridosa ou, como se diz, “humanitária”. A esse respeito, você notará que, curiosamente, apesar de ser quase a mesma palavra, o prochain, o “próximo”, é o contrário perfeito do proche, do “achegado”: o próximo é o outro em geral, o anônimo, aquele a quem não se é apegado, que mal conhecemos, ou não conhecemos, e a quem ajudamos, por assim dizer, por dever; enquanto o achegado, no mais das vezes, é o principal objeto do amor-apego.
Em seguida, a igual distância dessas duas faces do amor, há o “amor em Deus”. Ora, é ele e apenas ele que vai ser a fonte última da salvação, é ele e apenas ele que, para os cristãos, vai se revelar mais forte do que a morte.
Examinemos mais detalhadamente essas definições do amor, pois elas são tanto mais interessantes quanto atravessaram os séculos e continuam tão presentes quanto eram na época em que foram criadas. Comecemos retomando as críticas do amor-apego para avaliar bem em que o cristianismo vai se encontrar, nesse ponto, com alguns grandes temas do estoicismo e do budismo, antes de novamente se afastar deles.
Você se lembra de que o estoicismo, que nisso se aproxima do budismo, considera o medo da morte o pior entrave à vida bem-aventurada. Ora, essa angústia evidentemente não deixa de ter ligação com o amor. Podemos dizer que existe uma contradição aparentemente intransponível entre o amor, que leva quase que obrigatoriamente ao apego, e a morte, que é separação. Se a lei deste mundo é a da finitude e da mudança; se, como dizem os budistas, tudo é “impermanente”, quer dizer, perecível e mutável, é pecar por falta de sabedoria apegar-se às coisas ou aos seres que são mortais. Não é que se deva cair na indiferença, é claro, o que nem os estoicos nem os budistas recomendariam. A compaixão, a benevolência e a solicitude para com os outros, até mesmo para com todas as formas de vida, devem ser a regra ética mais elevada de nosso comportamento. Mas a paixão, no mínimo, não é conveniente para o sábio, e os laços familiares, quando se tornam muito “apertados”, devem ser, se necessário, afrouxados.
É por isso também que, como o sábio grego, o monge budista tem interesse em viver tanto quanto possível em certa solidão. Aliás, a palavra “monge” vem do grego monos, que quer dizer “solitário”. E é na solidão que a sabedoria pode desabrochar, sem ser estragada pelos tormentos relativos a todas as formas de apego, quaisquer que eles sejam. De fato, é impossível ter mulher ou marido, ëlhos ou amigos sem se apegar a eles. É preciso preterir esses laços se quisermos vencer o medo da morte. Como afirma à saciedade a sabedoria budista,
a condição ideal para morrer é ter abandonado tudo, interna e externamente, a ëm de que haja, no momento essencial, o menos possível de vontade, o menos de desejo e de apego ao qual o espírito possa se agarrar. Por isso, antes de morrer, deveríamos nos libertar de todos os bens, amigos e família. 17
Propósito que, certamente, não pode ser realizado no último momento, pois exige toda uma vida anterior de sabedoria.
Já nos referimos a esses temas e não voltarei mais longamente a eles. Gostaria apenas que você observasse bem que, desse ponto de vista, a argumentação cristã se liga, pelo menos num primeiro momento, à das sabedorias antigas.
Como diz o Novo Testamento (Epístola aos Gálatas, VI, 8):
Quem semear na sua carne, da carne colherá corrupção; quem semear no espírito, do espírito colherá a vida eterna.
Santo Agostinho, na mesma linha, condena aqueles que se apegam por amor às criaturas mortais:
Procurais uma vida feliz na região da morte: não a encontrareis ali. Pois, como encontrar a vida feliz onde nem sequer há vida? 18
O mesmo se encontra em Pascal, que expõe de modo luminoso, num fragmento dos Pensamentos (471), as razões pelas quais é indigno não apenas apegar-se aos outros, mas até mesmo permitir que alguém se apegue a si. Eu o aconselho a ler toda esta passagem extremamente reveladora da argumentação cristã desenvolvida contra os apegos por seres finitos e mortais, portanto, decepcionantes em algum momento:
É injusto que se apeguem a mim, embora o façam com prazer e voluntariamente. Eu iludiria aqueles em quem eu despertasse desejo, pois não sou o fim de ninguém e não tenho com o que satisfazê-los. Não estou eu pronto a morrer? E assim, o objeto do apego dessas pessoas morrerá. Logo, quando não seria eu culpado por fazer crer numa falsidade, embora eu a adoçasse e acreditasse nela com prazer, e que ela me desse prazer; ainda assim sou culpado de me fazer amar. E se atraio as pessoas para que se apeguem a mim, devo advertir aqueles que estariam prontos a consentir na mentira de que não devem acreditar, qualquer que seja a vantagem que daí me advenha; e, da mesma forma, de que não devem se apegar a mim, pois é preciso que vivam a vida e seus cuidados agradando a Deus ou procurando-o.
Exatamente no mesmo sentido Agostinho conta em suas Confissões como, quando jovem e ainda não cristão, teve o coração literalmente partido ao se prender a um amigo que a morte levou bruscamente. Toda a sua infelicidade era consequência da falta de sabedoria relacionada aos apegos a seres perecíveis:
De onde vinha aquela aflição que tão facilmente penetrou em meu coração, senão de haver disposto minha alma sobre a instabilidade da areia movediça, amando uma pessoa mortal como se ela fosse imortal?
Essa é a desgraça a que se destinam todos os amores humanos quando são por demais humanos e não procuram no outro senão os “testemunhos de afeição” que nos valorizam, nos tranquilizam e satisfazem apenas ao nosso ego:
É o que transforma em amargura as doçuras de que antes gozávamos. É o que afoga nosso coração em lágrimas, e faz com que a perda da vida daqueles que morrem se torne a morte daqueles que ficam vivos.
É preciso, pois, resistir aos apegos quando são exclusivos, já que “tudo perece neste mundo, tudo está sujeito ao declínio e à morte”. Quando se trata de criaturas mortais, é preciso que:
minha alma não se apegue a esse amor que a mantém cativa quando ela se abandona aos prazeres dos sentidos. Porque, como criaturas perecíveis que passam e correm para o próprio fim, ela é dilacerada pelas diversas paixões que sente por elas e que a atormentam incessantemente; porque a alma, desejando naturalmente repousar sobre aquilo que ama, não pode repousar em coisas passageiras, já que essas não têm subsistência e vivem num fluxo e num movimento perpétuo. 19
Não há como dizer melhor. E o sábio estóico e o budista poderiam, na minha opinião, assinar essas palavras de Agostinho.
Mas quem disse que o homem é mortal? Aí reside fundamentalmente toda a inovação da interrogação cristã. Muito bem, não podemos nos apegar ao que é passageiro. Mas por que não me prenderia ao que não passa? A recíproca se destaca como uma lacuna no raciocínio: se o objeto de meu apego não fosse mortal, em que aspecto seria ele culpado ou desarrazoado? Se meu amor fosse dirigido à eternidade no outro, por que não deveria ele me prender?
Estou certo de que você já sabe aonde quero chegar: toda a originalidade da mensagem cristã reside justamente na “boa-nova” da imortalidade real, quer dizer, da ressurreição, não apenas a das almas, mas a dos corpos singulares, das pessoas como tais. Quando se afirma que os humanos são imortais desde que respeitem os mandamentos de Deus, desde que vivam e amem “em Deus”; quando se estabelece que essa imortalidade não apenas é compatível com o amor, mas que é um de seus efeitos possíveis, então, por que se privar disso? Por que não nos apegarmos aos nossos próximos, se o Cristo promete que vamos reencontrá-los após a morte biológica e nos comunicar com eles numa vida eterna, desde que tenhamos ligado nossos atos a Deus nesta vida?
Assim, entre o amor-apego e a simples compaixão universal, que jamais poderia prender-se a um ser singular, abre-se espaço para uma terceira forma de amor: amor “em” Deus das criaturas, elas mesmas eternas. É aí que Agostinho certamente quer chegar: Senhor, bem-aventurado aquele que vos ama e ama seu amigo em vós, e seu inimigo por amor a vós. Pois só não perde nenhum de seus amigos aquele que só ama alguém Naquele que não se pode perder nunca. E quem é Ele, senão nosso Deus... Só vos perde, Senhor, aquele que vos abandona.
Podemos acrescentar, segundo essas palavras, que ninguém perde os seres singulares que ama, a não ser aquele que deixa de amá-los em Deus, quer dizer, naquilo que têm de eterno, porque ligado ao divino e protegido por ele.
Admita que a promessa é, no mínimo, tentadora. Ela vai encontrar sua forma acabada no último extremo da doutrina cristã da salvação, ou seja, na doutrina, única entre todas as religiões, da ressurreição, não só das almas, mas também dos corpos.
Terceiro traço: uma imortalidade enfím singular. A ressurreição dos corpos como ponto culminante da doutrina cristã da salvação. No ponto em que, para o sábio budista, o indivíduo não é nada mais que uma ilusão, um agregado provisório destinado à dissolução e à impermanência, no ponto em que, para o estóico, o eu é destinado a se fundir na totalidade do cosmos, o cristianismo promete, ao contrário, a imortalidade da pessoa singular. Com sua alma, é certo, mas, sobretudo, com seu corpo, seu rosto, sua voz animada, já que essa pessoa será salva pela graça de Deus. Eis aí uma promessa tanto mais original, tanto mais aliciante — eu ousaria dizer — quanto é por amor, não apenas a Deus, não apenas ao próximo, mas também aos achegados, que se ganha a salvação! Assim, o amor — e todo o milagre cristão reside nisso, todo o seu poder de sedução também —, de problema que era para os budistas e estoicos (amar é se preparar para os piores sofrimentos que possam existir), se torna, por assim dizer, solução para os cristãos. Contanto que não seja exclusivo de Deus, mas, ao contrário, tendo como objeto criaturas singulares, pessoas, não faltará amor “em Deus”, ou seja, amor ligado a ele e dirigido sobre o que, na pessoa amada, permanece.
Eis por que Agostinho, depois de ter feito uma crítica radical do amor-apego em geral, não o exclui quando seu objeto é divino, do próprio Deus, certamente, mas também das criaturas em Deus, já que elas mesmas escapam à ënitude para entrar na esfera da eternidade:
Se as almas te agradam, ama-as em Deus, porque elas são errantes e mutáveis em si mesmas, e ëxas e imóveis Nele, de quem elas obtêm toda a solidez de sua existência, e sem o qual elas desmoronariam e pereceriam... Segurai-vos ërmemente Nele, e sereis inabaláveis. 20
A esse respeito, não há nada mais impressionante do que a serenidade com a qual Agostinho evoca os lutos que sofreu, não mais antes da conversão ao cristianismo, mas depois, começando pela morte da mãe de quem era, contudo, muito próximo: Algo semelhante acontece em meu coração onde o que era fraqueza e pertencia à infância, entregando-se ao pranto, era reprimido pela força da razão, e se calava. Pois não acreditávamos que fosse justo acompanhar seu funeral com lágrimas, lamentos e suspiros, porque dele nos servimos habitualmente para deplorar a infelicidade dos mortos, como se fosse seu total aniquilamento: em vez disso, a morte de minha mãe não era desgraça, ela ainda estava viva na principal parte de si mesma. 21 Nesse mesmo sentido, Agostinho não hesita em evocar “a aventurada morte de dois amigos” muito queridos, mas que ele teve a felicidade de ver convertidos a tempo, e que puderam, consequentemente, beneficiar-se da “ressurreição dos justos”. 22 Como sempre, Agostinho encontra a palavra certa, pois é a ressurreição que, em última instância, inaugura a terceira forma de amor que é o amor em Deus. Nem apego às coisas mortais, pois ele é funesto e condenado aos piores sofrimentos — e nesse ponto, budistas e estoicos têm razão —, nem compaixão vaga e generalizada por esse tão falado “próximo” que designa deus e o mundo, mas amor apegado, carnal e pessoal por seres singulares, achegados, e não apenas próximos, desde que esse amor se realize “em Deus”, quer dizer, numa perspectiva de fé que fundamenta a possibilidade de uma ressurreição.
Daí o laço indissolúvel entre amor e doutrina da salvação. É por e no amor em Deus que o Cristo se revela, fazendo “morrer nossa morte” e “tornando imortal a carne mortal”, 23 o único que nos promete que nossa vida de amor não se acabará com a morte terrestre.
Não tenha dúvida de que, evidentemente, a ideia da imortalidade dos seres já estava presente sob múltiplas formas em inúmeras ëlosoëas e religiões anteriores ao cristianismo.
Todavia, a ressurreição cristã oferece a particularidade única de associar estreitamente três temas fundamentais para a doutrina da bem-aventurança: o da imortalidade pessoal da alma, o de uma ressurreição dos corpos — da singularidade dos rostos amados —, o da salvação pelo amor, até mesmo o mais singular, desde que seja amor “em” Deus. É assim que ela constitui o ponto nodal de toda a doutrina cristã da salvação. Sem ela — que de modo signiëcativo, nos Atos dos Apóstolos, é chamada de “boa-nova” —, toda a mensagem do Cristo desabaria, como afirma claramente no Novo Testamento a Primeira Epístola aos Coríntios (XV, 13-15):
Ora, se se prega que Cristo ressuscitou dos mortos, como podem alguns dentre vós dizer que não há ressurreição dos mortos? Se não há ressurreição dos mortos, também Cristo não ressuscitou. E se Cristo não ressuscitou, vazia é a nossa pregação, vazia também é a nossa fé.
A ressurreição é, por assim dizer, o alfa e o ômega da soteriologia cristã: ela é encontrada não apenas ao termo da vida terrestre, mas também em seu começo, conforme testemunha a liturgia do batismo considerada como primeira morte (simbolizada pela imersão) e primeira ressurreição para a vida autêntica, a da comunidade dos seres prometidos à eternidade e, assim, amáveis de um amor que poderá, sem se perder, ser singular.
Não se pode deixar de insistir: não é só a alma que é ressuscitada, mas também a “dicotomia corpo-alma”, logo, a pessoa singular enquanto tal. Quando, depois de sua morte, Jesus reaparece diante dos discípulos, ele lhes pede que não tenham mais dúvidas, que o toquem, e, como prova de sua “materialidade”, pede um pouco de alimento, que come diante deles:
E se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos habita em vós, aquele que ressuscitou Cristo Jesus dentre os mortos dará vida também a vossos corpos mortais, mediante o seu Espírito que habita em vós. (Epístola aos Romanos 8, 11.) Que a coisa seja difícil, até mesmo impossível de se imaginar (com que corpo vamos renascer? Com que idade? O que quer dizer com corpo “espiritual”, “glorioso” etc.?), que ela certamente faça parte dos mistérios insondáveis de uma Revelação que, nesse aspecto, ultrapassa em muito para os cristãos os poderes de nossa razão não muda nada. O ensinamento da doutrina cristã não deixa nenhuma dúvida.
Contrariamente a uma ideia que você ouvirá repetidas vezes dos ateus hostis à religião cristã, esta não se dedica inteiramente ao combate ao corpo, à carne, à sensualidade. Senão, como teria ela aceitado que o divino se tornasse carne na pessoa do Cristo, que o logos assumisse o corpo material de um simples ser humano? Mesmo o catecismo oficial da Igreja, texto que não pode ser chamado de extravagante, insiste:
A carne é o eixo da salvação. Cremos em Deus que é o criador da carne; cremos no Verbo feito carne para redimir a carne; cremos na ressurreição da carne, consumação da criação e da redenção da carne... Cremos na verdadeira ressurreição desta carne que possuímos agora. 24
Não se deixe, pois, impressionar por aqueles que atualmente denigrem e deformam a doutrina cristã. É possível não ser crente — afinal, e para ser franco, eu mesmo não sou crente —, nem por isso se pode dizer que o cristianismo seja uma religião inteiramente voltada para o desprezo da carne. Porque é simplesmente inexato.
Assim, é nesse ponto último da doutrina cristã da salvação que você pode facilmente compreender como foi possível que ela prevalecesse, quase que incondicionalmente, sobre a filosofia, durante perto de 15 séculos.
A resposta cristã, pelo menos caso se acredite nela, é seguramente a mais “eficaz” de todas. Se o amor e mesmo o apego não são excluídos, já que se sustentam no que há de divino no humano — e, como vimos, é o que Pascal e Agostinho admitem —, se os seres singulares, não os próximos, mas os achegados, são parte integrante do divino, já que são salvos por Deus e chamados a uma ressurreição também singular, a soteriologia cristã surge como a única que nos permite vencer não apenas o medo da morte, mas a própria morte. Agindo de modo singular, e não anônimo ou abstrato, só a resposta cristã apresenta aos homens a boa-nova, por fim efetivamente realizada, de uma vitória da imortalidade pessoal sobre nossa condição de mortais.
Para os gregos, e particularmente para os sofistas, o temor da morte era finalmente vencido no momento em que o sábio compreendia que ele próprio era parte, uma parte ínfima, sem dúvida, mas real, da ordem cósmica eterna. Era nessa qualidade, por adesão ao logos universal, que ele conseguia pensar a morte como simples passagem de um estado a outro — e não como desaparecimento radical e definitivo. Não é menos verdade que a salvação eterna, assim como a providência, e pelas mesmas razões que ela, permanecia impessoal. É enquanto fragmentos inconscientes de uma perfeição ela mesma inconsciente que podíamos pensar em nós como eternos, não enquanto indivíduos.
A personalização do logos muda todos os dados do problema. Se as promessas que são feitas pelo Cristo, esse Verbo encarnado, que testemunhas fidedignas viram com seus próprios olhos, são verídicas, se a providência divina me assume enquanto pessoa, por mais humilde que seja, então, minha imortalidade será também pessoal. É então a própria morte, e não apenas os medos que ela provoca em nós, que finalmente é vencida. A imortalidade não é mais a do estoicismo, anônima e cósmica, mas a individual e consciente da ressurreição das almas acompanhadas de seus corpos “gloriosos”. Essa é a dimensão do “amor em Deus” que vem conferir um sentido último à revolução operada pelo cristianismo nos termos do pensamento grego. É esse amor, que se encontra no seio da nova doutrina da salvação, que se revela, ao final, “mais forte do que a morte”. Como e por que essa doutrina cristã começa a declinar com o Renascimento? Como e por que a filosofia conseguiu sobrepor-se à religião a partir do século XVII? E o que vai propor em seu lugar? Eis aí toda a questão do nascimento da filosofia moderna, a mais apaixonante que há, sem dúvida, e que vamos agora abordar.
(Luc Ferry - Aprender a Viver)
NOTAS:
17 Sogyal, Rinpoché. Le Libre Tibétain de la Vie et de la Mort , Paris, La Table Ronde, 1993, p. 297. [SOGYAL, Rinpoché. O Livro Tibetano do Viver e do Morrer . Tradução de Luiz Carlos Lisboa. São Paulo: Talento/Palas Athena, 1999.]
18 Confissões, livro IV, capítulo 12.
19 Confissões, livro IV, capítulo 10.
20 Confissões, livro IV, capítulo 12.
21 Confissões, livro IX, capítulo 12.
22 Ibid., livro IX, capítulo 3.
23 Ibid.
24 Catecismo da Igreja Católica, § 1.015-1.017. F
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