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"Quem obedece a uma autoridade exterior atua necessariamente sem consciência."
 

No antigo teatro alemão de marionetes, ao lado do imperador ou de um herói qualquer havia sempre um palhaço(No original: Hanswurst (personagem burlesca do teatro alemão no século XVIII). [N.daT.]), que repetia, à sua maneira e com exagero, tudo o que o herói havia dito ou feito; do mesmo modo, por trás do grande Kant encontra-se o autor da Wissenschaftslehre [doutrina da ciência] ou, em palavras mais exatas, a Wissenschaftsleere [vazio da ciência]. Este, para realizar com excelência seu plano — que aliás adapta-se e agrada inteiramente ao público filosófico alemão —, provocou rumores por meio de uma mistificação filosófica para em seguida poder justificar seu bem-estar e o dos seus, superou Kant em todos os aspectos, surgiu como o seu superlativo vivo e, exagerando as particularidades mais evidentes, conseguiu produzir uma caricatura da filosofia kantiana. Fez o mesmo com a ética. No seu Sistema da doutrina dos costumes, encontramos o imperativo categórico desenvolvido num imperativo despótico: o dever absoluto, a razão legisladora e a obrigação interior transformaram-se num fatum moral, numa necessidade insondável, que faz com que a humanidade aja rigorosamente segundo determinadas máximas; a julgar por essas medidas morais, tudo isso deve-ria ser muito importante, embora na verdade em parte alguma se consiga entender o quê. Entre essas minúcias, revela-se a verdadeira rudeza filosófica de Fichte, como é de esperar num homem a quem o ensino evidentemente nunca deixou tempo para aprender.

(Arthur Schopenhauer - A ARTE DE INSULTAR)

publicado às 16:53


Carpe diem!

por Thynus, em 27.06.16
Carpe diem é uma expressão em latim que significa "aproveite o dia". Essa é a tradução literal, e não significa aproveitar um dia específico, mas tem o sentido de aproveitar ao máximo o agora, apreciar o presente.
O termo foi escrito pelo poeta latino Horácio (65 a.C.-8 a.C.), no Livro I de “Odes”, em que aconselha a sua amiga Leucone na frase: “...carpe diem, quam minimum credula postero". Uma tradução possível para a frase seria “...colha o dia de hoje e confie o mínimo possível no amanhã”.
O significado de Carpe Diem é um convite para que se aproveite o tempo presente, usufruindo os momentos intensamente sem pensar muito no que o futuro reserva.
Horácio segue a linha do epicurismo e defende que a vida é breve e a beleza perecível. Sendo a morte a única certeza, o presente deve ser aproveitado antes que seja tarde.
Carpe Diem é viver o hoje sem preocupações com o amanhã. É desfrutar a vida e os prazeres do momento em que se vive. Esta expressão tem o objetivo de lembrar que a vida é breve e efêmera e por isso cada instante deve ser aproveitado. Este tema é muito popular no âmbito da literatura, e teve grande importância na altura do Renascimento e do maneirismo.
No filme “A Sociedade dos Poetas Mortos”, a mensagem de “carpe diem” é transmitida em determinado momento aos jovens estudantes para lhes lembrar a brevidade da vida e que, por isso, deveriam vivê-la de forma extraordinária.
O conceito Carpe diem atingiu uma grande popularidade e por isso muitas pessoas fazem tatuagens com essa expressão em latim.

(Significado de Carpe diem)

7 Autores que disseram Carpe Diem de uma forma incrível

Carpe diem significa “aproveite o dia”, ou seja, viva o presente ao máximo. De Clarice Lispector a Augusto Cury, vários autores, mesmo sem usar a expressão, defenderam o carpe diem ao longo das suas obras e vão te inspirar a querer aproveitar melhor o teu dia!
Ouça com cuidado. O que é que eles estão dizendo, afinal?

1. Clarice te convida a viver e aproveitar a vida, sem pensar nem questionar.

clarice lispector carpe diem
Uma das escritoras brasileiras mais importantes, Clarice Lispector defende que a vida deve ser aproveitada sem questionar, mergulhando na aventura sem hesitação.

2. Thoreau diz que o lema é viver ao máximo agora para não se arrepender depois!

carpe diem henry thoreau
Esta frase de Henry David Thoreau, escritor norte-americano, foi usada no filme “A Sociedade dos Poetas Mortos” pelo professor John Keating, para incentivar os seus alunos a aproveitarem a vida e buscarem a felicidade. Quer mais Carpe diem do que isso?

3. Devemos desfrutar a vida em pleno, dia a dia, é o desafio de Ralph Waldo Emerson.

ralph waldo emerson carpe diem
O escritor norte-americano Ralph Waldo Emerson, chama a atenção para o fato de não aproveitarmos o que a vida nos dá a cada dia. E você, está aproveitando a sua vida ao máximo?

4. Augusto Cury pergunta para quê ter medo de viver?

augusto cury carpe diem
Augusto Cury, psiquiatra e autor brasileiro, defende que não se deve ter medo de viver e sim medo de não aproveitar a dádiva da vida ao máximo.

5. Segundo Walt Whitman, o melhor é aproveitar agora e não deixar a vida para depois! 

walt whitman carpe diem
Walt Whitman, famoso poeta norte-americano, defendeu no seu poema Carol of Occupations, que devemos viver o dia de hoje, agora e não deixar a felicidade para depois.

6. Dar tudo ao presente é o segredo para ter um futuro mais rico para Albert Camus.

albert camus carpe diem
A frase de Albert Camus, autor francês nascido na Argélia e Prêmio Nobel da Literatura, não pode te deixar indiferente. Você está dando tudo ao presente?

7. Ontem já passou e para amanhã ainda falta. Viva verdadeiramente o dia de hoje!

goethe carpe diem
Pensar no hoje e não no ontem, que já passou, ou no amanhã, que ainda está para chegar. É este o conselho de Goethe, escritor e filósofo alemão do século XVIII e XIX.
A vida é breve, por isso agora é hora de parar de reclamar e aproveitar o que a vida te dá de bom dia após dia. Vamos lá? Carpe diem!

publicado às 00:53


O ENCANTO DE SER PESSOA

por Thynus, em 21.06.16
A PALAVRA PESSOA É MUITO COMUM ENTRE NÓS. Apesar de a repetirmos o tempo todo, nem sempre a aplicamos com a devida consciência de seu significado. Geralmente a compreendemos somente como referência primeira ao ser humano, mas creio que valha a pena mergulhar um pouco mais nos significados profundos para os quais a palavra pode nos apontar.
A palavra "pessoa", do latim persona e do grego prósopon, foi amplamente sustentada na cultura como referente aos "disfarces teatrais", e por isso ficou muito associada à personalidade representada pelo ator. Os gregos, grandes inventores do teatro, e certamente os maiores fundadores da cultura ocidental, legaram-nos essa palavra e essa derivação: pessoa é a máscara que o ator sustenta no rosto. O contexto cristão ultrapassou essa concepção e plenificou a palavra para um sentido mais profundo.
Segundo a Antropologia teológica cristã, o conceito de pessoa deve ser compreendido a partir de dois pilares: ser pessoa consiste em "dispor de si" e depois "estar disponível". Dispor de si é o mesmo que "ser de si, ter posse do que se é". Esse primeiro pilar refere-se diretamente a tudo aquilo que já mencionamos a respeito da subjetividade. O eu primeiro, o irrenunciável que nos caracteriza em nossa singularidade.
E interessante perceber que a singularidade é um tesouro que não se esgota.
Constantemente, vivemos a aventura de desvendar nossos territórios. E como se todos os dias fizéssemos uma caminhada pelo espaço onde está localizada nossa casa, e sempre descobríssemos lugares nunca antes percebidos. Uma vez descoberto, o território passa a incorporar o que somos. Olhamos e dizemos: isso é meu! Descobrir não é o mesmo que inventar. Nós já estamos em nós; o único esforço é descobrir o que somos.
Isso traz ao conceito de pessoa uma dinâmica que nos possibilita dizer que, enquanto estivermos vivos, estaremos constantemente aumentando nossa propriedade.
Estaremos nos aventurando no duro processo do autoconhecimento, desbravando fronteiras, retirando as travas das porteiras que nos impedem de ir além do que já pudemos avançar em nós mesmos.
Cada pessoa é uma propriedade já entregue, isto é, dada a si mesma, mas ainda precisa ser conquistada. E como se pudéssemos reconhecer: "Eu já sou meu, mas preciso me conquistar", porque, embora eu tenha a escritura nas mãos, ainda não conheci a propriedade que a escritura me assegura possuir.
A disposição de si é dom. Deus nos entrega a nós mesmos o tempo todo. E presente que tem o poder de nos encantar pela vida inteira. Presente imenso que requer calma no desembrulho. Vamos aos poucos, tomando posse, retirando lacres, descobrindo detalhes. Tornar-se pessoa é aventura constante de busca, e o resultado dessa busca é a disposição de si.
O segundo pilar do conceito de pessoa consiste em "estar disponível". O que dispõe de si estabelece relações. Depois de assumida a propriedade, aquele que se possui passa a ter condições de receber visitas. Ser visitado é também um jeito de reconhecer o que possuímos. A presença do outro nos indica o que somos. O encontro nos diferencia num primeiro momento para depois nos congregar. No processo da diferenciação está a posse de si mesmo. Olhamos para o que o outro é e descobrimos que não somos o outro. Já no processo de congregação, somos desafiados a unir o que somos àquilo que os outros não são. O contrário também é verdadeiro. Unimos o que ainda não somos àquilo que os outros já são.
Somos semelhantes às tramas dos teares. Os fios se entrelaçam para juntos formarem o tecido. Em suas cores diversas, eles não deixam de ser o que são. Outro exemplo torna interessante o mundo das palavras.
Uma palavra na solidão tem um significado particular. Quando colocada no contexto da frase, porém, ela amplia a sua capacidade de significar. E o abraço das palavras que gera o significado da frase. Ser pessoa é, antes de qualquer coisa, ser uma palavra, para depois ser frase.
Nisso consistem os dois pilares do conceito de "pessoa". Possuir-se para disponibilizar-se. É a vida na prática, é a trama da existência e sua riqueza insondável. Encontros e despedidas. Passagens transitórias, chegadas definitivas. Vida se desdobrando em pequenas partes. Eu me encontrando, surpreendendo-me, como se ainda não soubesse nada sobre mim. Eu misturando minha vida na vida do outro, encontrando-o, permitindo que nossos significados nos congreguem. Eu abandonando a solidão de minha condição de posse de mim mesmo para alcançar a proeza de ser com o outro.
Antes, a solidão do eu; depois, o estabelecimento do nós. Encontro de pessoas. Um eu que se encontra com um tu e que juntos estabelecem um nós.
Martim Buber, grande nome da filosofia personalista, nos propõe esta bela e fecunda verdade. No encontro entre um eu e um tu, uma terceira pessoa de existência própria se estabelece3. Nossos olhos não podem enxergá-la, mas a nossa sensibilidade nos aponta para ela. O nós é o que sobra do encontro entre o eu e o tu.
E importante salientar que, embora a reflexão de Buber seja importante para o nosso contexto, ela ainda não alcança o significado a que necessitamos chegar. Buber não se ocupa com a "subsistência". Seu empenho está em relatar o segundo aspecto do conceito de pessoa. Sua reflexão está situada no encontro e não nas fontes particulares que geram o encontro. Este avanço quem o faz é Zubiri, que salienta a necessidade de pensar a relação humana a partir do momento da subsistência, para depois chegar aos encontros e atos dela surgidos.
Talvez seja por isso que os outros nos despertem simpatias e antipatias.
Gostamos mais de estar com uns que com outros justamente por causa disso. O que nos atrai no outro é a terceira pessoa que conseguimos fazer nascer com o nosso encontro.
Esse processo de agregação possibilita ao ser humano o crescimento de seu horizonte de sentido. Tornamo-nos mais ricos com a presença dos que nos agregam. Relações saudáveis são relações que nos devolvem a nós mesmos — e, o melhor, devolvem-nos melhorados. O outro, ao passar pela nossa vida, encontra-se com nossa subjetividade. Ao estabelecer conosco uma relação, ele está nos permitindo adentrar o seu território subjetivo. Esse encontro faz surgir uma terceira pessoa, o nós. Respeitadas as subjetividades, isto é, as pessoas não deixam de ser elas mesmas, o encontro humano alcança o seu poder de integrar as partes, entrelaçando-as sem que elas se confundam.
O amor talvez seja isso. Encontro de partes que se complementam, porque se respeitam. E, no ato de se respeitarem, ampliam o mundo um do outro. O recémchegado não tem o direito de reduzir o mundo de quem se deixou encontrar. O amor não diminui, mas multiplica. As caricaturas do amor são prejudiciais porque fazem absolutamente o contrário. Diminuem o horizonte, restringem, aprisionam, sequestram. Em nome do amor, cometemos atrocidades. Amarramos os outros em nós, porque nos equivocamos na compreensão do que consideramos ser amor. Amar não é fazer do outro nossa propriedade. Ninguém é tão completo que seja capaz de preencher totalmente as necessidades do outro. E absurdo pensar que nós possuímos todos os elementos de que o outro precisa para o seu crescimento. Por isso há modalidades de amor.
O namorado que chega não tem amor de pai para oferecer. E por isso não terá o direito de afastar a menina de seu pai. Ele não tem amor de mãe, de irmão. Ele é portador de um amor novo que chegou, e por isso encantou, mas não é o amor único. Ele é recém-chegado, e ainda que a menina não tenha sido amada o suficiente em sua casa, o amor de que ela dispõe na família é muito importante para que continue se construindo como pessoa.
É nesse momento que necessitamos de muita sabedoria para não nos prejudicarmos com nossos amores. O risco do sequestro está na pretensão do novo que chegou. Ele não pode desconsiderar o mundo particular e subjetivo construído antes de sua chegada. Sua presença deverá enriquecer, e não o contrário. Vivendo a condição de novo que acaba de chegar, seu papel será, num primeiro momento, observar. Amar é antes de tudo conhecer. É investigação da história, dos sentimentos, dos desejos, medos e anseios. Só quem ama tem disposição de ir além da superfície. No aprimoramento da visão que temos do outro seremos capazes de identificar o quanto amamos, ou não. Quem ama quer conhecer. O objetivo é simples: acrescentar, multiplicar em vez de subtrair.
Não é tão simples saber se o outro nos ama ou não, mas há uma pergunta que podemos nos fazer e que contribuiria para que nos aproximássemos de uma resposta. Depois que ele chegou, a nossa vida, nosso mundo, diminuiu ou dilatou-se?
Sempre que alguém chega à nossa vida nunca vem sozinho. Ele traz o seu horizonte de sentido. Pessoas, coisas, valores, ideias. Traz o alicerce que o faz ser o que é. O exemplo é simples e nos ajuda a entender. É impossível comprar uma casa só com as paredes e acabamentos. Não é possível transplantar uma casa. Se quiser a casa, terá de ver o local em que ela está construída. Comprar uma casa pronta exige uma atenção muito especial. É preciso que estejamos atentos quanto à sua localização: vizinhança, alicerces, paredes, acabamentos. Para qualquer mudança que queiramos fazer, teremos que considerar a sua estrutura fundamental.
Casas e apartamentos são construídos a partir de alicerces, paredes e vigas de concreto. As paredes podem até sofrer alterações, mas as vigas de concreto terão que ser respeitadas. Retirar vigas é prejudicar a sustentação da construção. Paredes até poderão ser destruídas, mudadas de lugar, mas a estrutura não poderá sofrer mudanças.
O processo de feitura da pessoa humana é semelhante às construções. Desde nossa vinda ao mundo, recebemos um formato, uma estrutura. Amar alguém consiste em observar onde estão as vigas de sustentação, para que não corramos o risco de derrubar o que a faz permanecer de pé. O interessante é que a construção poderá ser reformada, melhorada, sobretudo nos acabamentos. O amor é criativo, dribla os limites, supera expectativas.
Voltamos a dizer: pessoas são semelhantes às construções. Possuem históricos que necessitam ser respeitados. Não acreditamos que alguém se interesse por uma propriedade, ou dela queira aproximar-se, para torná-la pior. Se alguém precisa comprar uma casa, já o fará pensando nas melhorias que poderiam ser feitas, mas regredir nunca.
Se nossas relações com as coisas já são assim, cheias de cuidados, muito mais deveriam ser com as pessoas. Nossos encontros, ainda que rápidos e transitórios, deveriam ser moitivados pelo desejo de fazer crescer, melhorar, avançar aqueles que encontramos, e a nós mesmos.
É assim que podemos intensificar o nosso processo de "ser pessoa". Á medida que motivamos e somos motivados para o autoconhecimento, tornamo-nos proprietários do que somos e naturalmente colocamo-nos à disposição dos outros.
É muito interessante perceber que onde existe uma pessoa de verdade, isto é, no sentido exato do termo, ali outras pessoas também estão sendo feitas. Isso se explica por uma razão muito simples. O processo de tornar-se pessoa é contagiante.
Quando encontramos alguém que verdadeiramente está desbravando seu universo de possibilidades e limites, de alguma forma nos sentimos motivados a fazer o mesmo.
Não me leve de mim.
Leve-me até mim.

(Fábio de Melo - "Quem me roubou de mim")

publicado às 21:12


O ESQUECIMENTO DO SER

por Thynus, em 21.06.16
Voltamos ao sequestro. Ao confinar uma pessoa, o sequestrador atenta contra a sua identidade. Ao negar-lhe a liberdade do corpo, uma série de outras liberdades será comprometida. A liberdade emocional é uma delas. O mal-estar que decorre dessa privação compromete a articulação que precisamos fazer de nossas possibilidades e limites.
No cativeiro, o limite deixa de ensinar, pois estando apartada de seu horizonte de sentido, dos que ama, estando privada de frequentar o retalho de mundo que a coloca ao lado dos que a ajudam a compreender os nãos da vida, a pessoa é condenada ao vazio.
O cativeiro a priva dos direitos e deveres que decorrem de seu papel existencial. Quem é pai deixa de exercer o papel de pai, quem é filho deixa de exercer o papel de filho e assim por diante. Veja bem, deixar de exercer o papel não acarreta deixar de ser. Um pai será sempre pai, mesmo distante do filho que ama. Da mesma forma que a mãe será sempre mãe, ainda que exilada e sem o direito de desempenhar o papel de mãe. Mas o sofrimento provocado pelo distanciamento pode desencadear o esquecimento do ser. Recorde-se. Antes de abordar a questão da identidade, falâvamos que o cativeiro pode levar a pessoa a ausentar-se de si mesma. O que vem a ser isso? É o pior vazio que podemos experimentar. Trata-se de um estado paralisante em que a pessoa não se encoraja, pois é como se o motor da existência estivesse ausente do corpo.
Estando ausente de si mesma, a pessoa se desprende de sua identidade, adentra o território do esquecimento do ser. Estando fora de seu horizonte de sentido, negada no direito de conviver com os elementos de sua identificação, ela vai se tornando indiferente à vida. Exilada dos outros e de si mesma, a saúde emocional vai se fragilizando, o corpo vai se rendendo ao domínio do algoz, e a pessoa vai rompendo lentamente com os motivos que antes a faziam prosseguir.
É o ponto alto das consequências nefastas do sequestro. Já estando ausente de si mesma e esquecida de ser quem é, a pessoa sequestrada se rende à condição de vítima.

(Fábio de Melo - "Quem me roubou de mim")

publicado às 20:12

Para os gregos, o que caracteriza a morte é a perda da identidade. Os mortos são, antes de mais nada, “sem-nome” ou mesmo “sem-rosto”. Todos que deixam a vida se tornam “anônimos”, perdem a individualidade, deixam de ser pessoas. Ulisses, durante a sua viagem (direi mais adiante em quais circunstâncias), ao ser obrigado a descer aos infernos, onde estão aqueles que não têm mais vida, é tomado por surda e terrível angústia. Contempla horrorizado todo aquele povo no Hades. O que mais o preocupa é a indistinta massa de sombras que nada mais identifica. Aterroriza-o o barulho que fazem: um barulho confuso, um burburinho, uma espécie de rumor surdo dentro do qual não se pode reconhecer voz alguma e menos ainda qualquer palavra que faça sentido. É essa despersonalização que caracteriza a morte aos olhos dos gregos, e a vida boa deve ser, tanto quanto possível e pelo tempo que se puder, o contrário absoluto desse tom acinzentado infernal.
 
“Não é a morte que rouba o sonho dos homens, mas o medo de cair no esquecimento antes mesmo de ser sepultado.”
Valeria Nunes de Almeida e Almeida
 
 
Esquecimento do Ser que somos: o pecado original

O SEQUESTRO DO CORPO É UMA PESTÍFERA modalidade contemporânea de violência. Ritual de profundo desrespeito à condição humana, o sequestro consiste em retirar uma pessoa do local de sua identificação, de seus significados, subordinando-a a um tratamento que tem por finalidade fragilizá-la, facilitando assim um estado de total dependência e rendição ao sequestrador. O sequestro do corpo é uma privação daquilo que chamamos de horizonte de sentido. O que vem a ser isso? É simples. Todo ser humano, ainda que esteja integrado ao grande mundo, sempre possui um contexto particular feito de significados e significantes. O horizonte de sentido é o território onde não nos sentimos estrangeiros. É o estreito do universo onde descobrimos o sentido mais profundo do que somos. Sentido é tudo aquilo que favorece coerência, liga, orienta e estrutura. É a partir desse horizonte de sentido que pensamos, agimos, amamos, desejamos, vivemos. Somos e estamos estruturados a partir de realidades que significam, isto é, realidades que nos revelam e que nos motivam a desbravar outros horizontes. Esses significados desempenham os mais diversos papéis em nossa aventura humana. São eles que nos sustentam e que definem nosso caráter. Sim, os valores nascem dos significados. Por isso se tornam flmdamentais para a qualidade de nossa atuação no mundo. Podemos dizer, sem medo de errar, que são os significados que aprendemos a amar que qualificam nossa existência.
A nossa inteireza como pessoa depende da junção harmoniosa dos significados que constituem o nosso horizonte de sentido. É como construir um mosaico. Creio que a metáfora seja interessante e pode facilitar nossa compreensão. Um mosaico é feito de partes; essas partes se conjugam e compõem uma única peça. São inúmeros e pequenos detalhes que constroem a trama do mosaico. A pequena peça é fimdamental para a construção do todo, e por isso não pode ser negada, separada. A regra se aplica também a nós. Se pensarmos no espaço humano em que vivemos como peças de um mosaico, nós entraremos no ceme dos significados que nos constituem; nós estaremos no coração de nosso horizonte de sentido.
Quando nos referimos aos significados, estamos tratando de realidades materiais e imateriais. Estamos falando do quarto onde dormimos com nossos travesseiros e lençóis, mas também das pessoas que nos rodeiam e dos amores que nos despertam. O quarto nos identifica; os amores também. O horizonte de sentido é uma conjugação desses valores. A cidade onde moramos, a história já vivida, a casa que nos abriga, os lugares que frequentamos, os amigos que amamos, as crenças que professamos, as relações cotidianas, os ritos que realizamos, enfim, tudo isso compõe o nosso mundo particular, o nosso horizonte de sentido. Veja bem, quando uma pessoa é sequestrada, o primeiro rompimento é com a materialidade de seus significados. O cativeiro é o oposto de tudo aquilo que lhe atribui sentido. O sequestro a privará de estar no mundo que lhe pertence. Não dormirá em sua casa, estará privada dos sabores de sua predileção, de seus ambientes, coisas particulares, de seu travesseiro, de seus livros, de seus perfumes, de suas paredes.
Será violentamente exposta a uma outra realidade que não a sua. O corpo sofrerá a violência de não poder ir e vir.
Terá de obedecer às ordens do recémchegado, daquele que até então não pertencia ao seu mundo. Uma pessoa estranha, que definitivamente não faz parte de seus significados, mas que agora lhe acorrenta o corpo e a faz experimentar uma privação para a qual não estava preparada.
Trata-se de um sofrimento extremamente doloroso. Ao ser afastado dos locais de sua identificação, e passando a viver num ambiente estranho, inóspito e distante de tudo que o realiza, o sequestrado mergulha num profundo estado de solidão. Não se trata de uma solidão comum, dessas que experimentamos ocasionalmente e que faz parte do cotidiano de todos nós. Trata-se de uma solidão muito mais proflmda, caracterizada como ausência de si mesmo.
Ao ser afastado de seu mundo particular e de tudo o que ele representa, o sequestrado sente-se privado de ser ele mesmo. O mundo que agora lhe é oferecido não lhe pertence. O cativeiro lhe nega o direito de ser e estar em seu horizonte de sentido. Esse profundo estado de ausência pode agravar-se com o tempo e evoluir para o que chamamos de esquecimento do ser.

(Fábio de Melo - "Quem me roubou de mim")
 

O homem técnico e o esquecimento do ser

 
 
Quando partires em direção a Ítaca,
que a tua jornada seja longa
repleta de aventuras, plena de conhecimento.
 
Não temas Laestrigones e Ciclopes nem o furioso Poseidon
não irás encontrá-los no caminho, se o pensamento estiver elevado,
se a emoção jamais abandonar o teu corpo e o teu espírito.
Laestrigones e Ciclopes e o furioso Poseidon
não estarão no teu caminho
se não os levares na tua alma,
se a tua alma não os colocar diante dos teus passos.
 
Espero que a tua estrada seja longa.
Que sejam muitas as manhãs de Verão,
que o prazer de ver os primeiros portos
traga alegria nunca vista.
Procura visitar os empórios da Fenícia
recolhe o que há de melhor.
Vai às cidades do Egipto,
aprende com o povo que tem tanto a ensinar.
 
Não percas Ítaca de vista,
pois chegar lá é o teu destino.
Mas não apresses os teus passos;
é melhor que a jornada dure muitos anos
e o teu barco só ancore na ilha
quando já estiveres enriquecido
com o que conheceste no caminho.
 
Não esperes que Ítaca te dê mais riquezas.
Ítaca já deu uma bela viagem;
sem Ítaca jamais terias partido.
Ela já te deu tudo, e nada mais te pode dar.
 
Se, no final, achares que Ítaca é pobre,
não penses que ela te enganou.
Porque te tornaste um sábio, viveste uma vida intensa,
e este é o significado de Ítaca.
 
Poema de Konstantinos Kavafis

publicado às 19:39


Como namoram os animais

por Thynus, em 19.06.16

Animal Livre News
 Namorar não é só uma coisa antiga na história humana, é também um ritual comum e diversificado entre os animais. Entre nós as coisas andaram mudando muito nesses vinte anos por causa da pílula. Mas entre os leões, patos e jacarés a cerimônia amorosa vem se repetindo sem transformações. E o que encanta é ver como tanto entre os animais quanto entre os humanos, o ritual é fundamental. Não há amor sem ritual. E cada amante, assim como cada espécie, tem lá seus trejeitos sedutores. O amor, tanto quanto a fome, humaniza os animais e zoomorfiza os homens. Não é à toa que Manuel Bandeira, naquele poema “Namorados”, faz o rapaz dizer à moça: “Antônia, você parece uma lagarta listrada”.
Os faisões, por exemplo, se entregam a uma curiosa coreografia. O macho começa a operação sedução limpando na floresta um espaço de três metros, varrendo-o de gravetos e pedras. Feito isto, abre suas plumagens radiosas e põe-se a cantar, lançando floresta adentro o seu convite amoroso. Às vezes uma fêmea aparece logo, outras, demora muito, mas ele fica ali, sonoramente esperando, até que ela surja. E mesmo depois que ela vem, ainda tem que se desdobrar, exibindo suas penas. Mas se o macho é preguiçoso e não limpa bem o terreno, a fêmea não aparece.
Já certo tipo de pombo começa seu aprendizado em grupo. Aí os machos ficam durante muito tempo competindo e se exibindo. Parecem guerreiros em preparação para as lutas amorosas. Depois de muitas disputas entre eles é que aparecem as pombas, que se põem a escolher o amado. Ficam ali passeando diante deles como se estivessem passando em revista a tropa, até que assinalam sua escolha dando uma bicada no pescoço do ungido.
Mas é entre os corvos que acontece uma relação triangular cheia de dramas metafísicos e existencialistas. Porque se há carência de macho, as fêmeas ritualizam entre si o seu incontido amor. E se cortejam e se seduzem até que uma das fêmeas passa a exercer o papel masculino. E tanto é o amor, que a outra choca e bota ovos, que por serem estéreis não resultam. Mas não termina aí o romance. Se surge atrasadamente o macho e começa a namorar uma fêmea já em estado de acasalamento “homossexual”, não conseguirá desligar as duas amadas. Terá que compor com elas um menage à trois, tendo que cuidar das duas ninhadas. E o mais estranho, como diz Hy Freedman no livro Les fantasies sexuelles des animaux et les nôtre..., a fêmea dominante tenderá a dominar também o macho, que aceita seu papel subalterno.
Quem leu poemas simbolistas como aquele do Júlio Salusse, descrevendo o cisne que morre de amor quando o parceiro desaparece, ficaria mais emocionado ainda com a vocação monogâmica dos gansos. Primeiro porque eles se elegem mesmo quando imaturos sexualmente. E por mais que os sogros do jovem ganso o espantem de sua casa, ele inventa modos de seduzir e até de presentear a amada. E quando se casam não há quem os possa separar, nem gostam de intrusos. Se sofrem uma separação, ao se reencontrarem fazem tal alarde com bicos e penas, com beijos e danças, que se vai pensar que se separaram durante meses, quando isto foi apenas por poucas horas. O ganso viúvo fica muito mal na hierarquia do grupo. Por isto, alguns se casam novamente. Mas como os gansos vivem numa sociedade complexa, depois de uma grande perda amorosa podem experimentar também uma relação triangular. E aí, pela reprodução sucessiva, sobem na hierarquia social.
O beija-flor faz toda sorte de balé para atrair a fêmea, a borboleta desprende um forte odor e algumas tartarugas preferem amar no fundo das águas. Contudo, o caranguejo é uma espécie de Nijinsky realizando pas de deux com sua Márcia Haydée. Quando está a fim de amar, muda de cor e convida a parceira para uma dança em que exibe suas presas, dançando em todos os ritmos. Quando os bailarinos estão bem excitados, se acariciam com as patinhas. O macho, então, faz sua casa cavando um buraco na areia. A fêmea segue atrás dele pelo túnel do amor. Parecem desaparecer. Mas, de repente, ele desponta carregando uma bola de barro com a qual fecha a porta de seu ninho de amor, como a dizer, “enfim sós”.

(Sant’anna, Affonso Romano de - Que presente te dar)
Casa-se com o seu animal de estimação?

publicado às 16:53

Mais Triste do que o caluniador é aquele que recebe e distribui a falsa moeda da Mentira.
Ambos terão sua punição, é a lei natural de Causa e efeito, ação e reação.
 
 
5 dicas para evitar fofocas nas franquias de baixo custo
É garantido que 81% das histórias ruins se espalham, ao passo que apenas 13% das boas histórias se espalham.
Pessoas tendem a gostar de escutar notícias negativas alheias. Nós também gostamos de transmitir notícias negativas relacionadas aos outros.
Isso é especialmente verdade entre alguns grupos de pessoas, porque isso dá a elas uma sensação de serem melhores que as outras.
Se deliciar com os infortúnios alheios nos permite um sentimento ilusório de felicidade temporária. No entanto, no longo prazo, essa forma de pensar se torna um hábito e se reflete de forma negativa na personalidade da pessoa.
Existe uma lei da natureza chamada 
Lei da Atração.
Ela é poderosa.
Basicamente quer dizer que nossos pensamentos são ímãs, então, se pensamos positivo, atraímos coisas positivas para as nossas vidas.
Da mesma forma, se pensamos negativo, atraímos coisas negativas ou má sorte para nossa vida.
Portanto, não fofoque sobre os outros. Se você pensa de forma tão negativa sobre alguém, o azar certamente vai chegar para você também.

(Pinkoon, Damrong - 40 ideias do pensamento positivo)

publicado às 16:11

"Nada vos pertence mais que os sonhos vossos!"
(Friedrich Nietzsche)
 
 
Das três transformações
Por oposição ao propósito da máquina educacional de transformar crianças em adultos, Nietzsche sugeria o oposto e dizia que “A maturidade de um homem é encontrar de novo a seriedade que se tinha quando criança, brincando”.
Desanimado com a estupidez dos adultos, ele escreveu: “Gosto de me assentar aqui onde as crianças brincam, ao lado da parede em ruínas entre os espinhos e as papoulas vermelhas. Para as crianças, eu sou ainda um sábio, e também para os espinhos e as papoulas vermelhas”. Os adultos não o entendiam porque ele escrevia como criança.
Deus é alegria. Uma criança é alegria. Deus e uma criança têm isso em comum: ambos sabem que o universo é uma caixa de brinquedos. Deus vê o mundo com olhos de criança. Está sempre à procura de companheiros para brincar. Os grandes, doidões e perversos, pensam que Deus é como eles, de olho malvado, que os espiona em todos os lugares, para castigar. Você sabe que não é assim.
Claro que as funções adultas são necessárias: elas são ferramentas, meios de vida, entidades da Feira de Utilidades. Elas precisam ser desenvolvidas para que a Criança Eterna brinque pela vida afora, sem se machucar…
Sonho com o dia em que as crianças que leem meus livrinhos não terão de grifar dígrafos e encontros consonantais e em que o conhecimento de obras literárias não será objeto de exames vestibulares: os livros serão lidos pelo simples prazer da leitura.
Não avalio as crianças em função de saberes. São os saberes que devem ser avaliados em função das crianças. É isso que distingue um educador. Um educador não está a serviço de saberes. Está a serviços dos seus alunos. “Aquele que é um mestre, realmente um mestre, leva as coisas a sério – inclusive ele mesmo – somente em relação aos seus alunos”.(Nietzsche).
Sugiro uma inversão pedagógica: os grandes aprendendo dos pequenos. Um profeta do Antigo Testamento resumiu essa pedagogia invertida numa frase curta e maravilhosa: “E um menino pequeno vos guiará” (Isaías 11:6). São as crianças que veem as coisas – porque elas as veem sempre pela primeira vez com espanto, com assombro de que elas sejam do jeito como são. Os adultos, de tanto vê-las, já não as veem mais. As coisas – as maravilhosas – ficam banais. Ser adulto é ser cego.

(Trecho extraído do livro do “Universo à Jabuticaba”, Editora Planeta, 3ª Edição, Páginas 50/51).

publicado às 12:01


Meu Primeiro Encontro com o Diabo

por Thynus, em 18.06.16
Eu tinha 6 anos quando vi o diabo pela primeira vez. Lá estava, num livro de ilustrações bíblicas, o arcanjo Miguel enfiando sua lança no ventre do horrendo Satanás, com pés de cabra, chifres pontudos e tez de um marrom demoníaco. Foi tamanho o espanto que perdi o sono por algumas noites depois de tão assustadora visão.
Até o começo da adolescência, aquele diabo me perseguiu com sua feiura e seu mistério. Sempre temi o coisa-ruim, na mesma medida em que me sentia atraído por seu aparente ar sedutor e sua carnalidade, o extremo oposto do rival Deus, sempre envolto em barbas brancas, túnicas esvoaçantes e bondade infinita. No interior, “no tempo de eu menino”, como diria o poeta, ouvia muitas histórias, todas nascidas da imaginação voluptuosa do povo. Histórias como a de Dona Teófila, que virava porco em noite de lua cheia, parte do seu pacto com o ferrabrás. Ou vez por outra surgia na cidade um sujeito “feio como o diabo”, o que bastava pro povo achar que se tratava do próprio. Lembro também da família que diziam ter feito um pacto com o capiroto e que por isso teria criado fortuna tão rápida quanto misteriosamente. O certo é que a possibilidade da existência do diabo, no campo ou na cidade, a sério ou em anedotas, no passado ou no presente (vide as telerreligiões de hoje), com menos ou mais intensidade, sempre encheu as mentes humanas de perversa e satânica curiosidade. E se existir de fato aquele inferno dos cristãos, com labaredas de fogo sem fim e caldeirões de breu enfumaçados, com condenados urrando ad aeternum? E se a morte nos reservar, a nós, pecadores, o terrível destino da eternidade nesse lugar tenebroso e inóspito?
Havia um amigo da rua que jurou ter visto o diabo em seu quintal ao fim da tarde, em carne e chifres. Passamos vários dias, eu e outros meninos vizinhos, indo ao seu quintal no lusco-fusco das 6 horas, com uma ansiedade tamanha que superava nosso medo, para checar tal “informação”. Nunca vimos nada, graças a Deus (acho eu!), e a dúvida acerca de sua existência permaneceu em nossas mentes anos afora. O romancista que “compôs” o diabo é de um gênio inigualável, pois não pode haver personagem mais sedutor e temido e eterno e misterioso que este. Nem Deus em toda a sua glória, nem Jesus Cristo, nem Maria, nem João Batista, nem Salomé, nem Barrabás. Se nunca se falou tanto em Deus, também o diabo nunca esteve tão em alta – apesar da crença de que o inferno fica abaixo da terra. Ele, o tinhoso, com sua loção fedorenta de enxofre, continua à solta, mais vivo que nunca. Agindo a torto e a direito, fazendo o diabo a quatro, cheio de demoníacas artimanhas. Afinal, como alguém já falou antes de mim, o inferno é (e pra sempre será) mesmo aqui.

P.S.: Uma curiosidade: o verbete “diabo” ocupa muitas linhas no dicionário. Seus sinônimos passam de uma centena e vão desde os brejeiros anhangá, beiçudo, cifé e labrego até os sonoros (e assustadores) zarapelho e manfarrico. “Deus” ocupa menos espaço.

(Zeca Baleiro - A Rede Idiota e outros textos)

publicado às 03:37


Halley e amigos

por Thynus, em 18.06.16
“Para a ciência, o mundo de agora em diante não tem mistério.”
 
“Precisamos tomar cuidado para não fazer de nosso intelecto o nosso deus. Ele tem músculos poderosos, mas não tem nenhuma personalidade”.
 

1910: Cometa Halley semeava pânico

 
Às seis e meia da manhã do dia 22 de novembro de 1682, Edmond Halley teve o primeiro vislumbre do cometa que seria batizado com seu nome e o imortalizaria. Ele observava o céu através das lentes de um telescópio em sua residência em Islington, próximo a Londres. Não foi o primeiro a notar o cometa aquele ano; um astrônomo alemão, Georg Samuel Dorffel, o havia avistado três meses antes e alertara seus colegas de toda a Europa. Ele não foi tampouco o único a traçar cuidadosamente sua rota; o reverendo John Flamsteed, astrônomo real, formulava notações ainda mais detalhadas em Greenwich. Nem foi esse o cometa mais espetacular a deixar a humanidade de respiração suspensa; apesar de deslumbrante, muitos outros cometas através dos tempos — inclusive o que passara havia apenas dois anos, em 1680 — foram tão ou mais brilhantes, tendo provocado mais medo e inspirado tanto assombro entre aqueles que perscrutavam os céus. O trabalho de Halley, no entanto, tornou o cometa por ele analisado em novembro de 1682 o mais importante de todos.
O cometa não poderia ter aparecido em momento mais oportuno ou tido melhor testemunha do que Halley, que personificava a vitalidade intelectual e científica do final do século XVII na Inglaterra. Eram os tempos de Isaac Newton, cujas descobertas revolucionárias sobre a natureza da gravitação logo seriam divulgadas com o incentivo e a assistência de Halley. Era a época de Robert Boyle, o pai da química moderna, cujas pesquisas abalaram a veneranda teoria aristotélica segundo a qual a matéria se limita a quatro categorias: terra, ar, fogo e água. Vivia-se o período da poesia de John Milton, da filosofia de John Locke, da música de Henry Purcell e das igrejas de Christopher Wren. Samuel Pepys redigia seus diários, e a Londres da época fornecia farto material para sua perspicácia e seu ecletismo intelectual. Havia bons motivos para os londrinos acreditarem que estavam ingressando numa idade áurea. De qualquer modo, obtinham êxito em superar um passado recente de tumultos e adversidades. Após o interregno da Guerra Civil, quando Oliver Cromwell e os dissidentes subiram ao poder, restaurou-se a monarquia em 1660, sob o reinado de Carlos II. A Restauração trouxe a ordem e o amparo real às artes e ciências. A Royal Society foi fundada em 1662 por carta régia e começou a incentivar a investigação científica com base em métodos mais livres do que nunca das limitações impostas por mitos, dogmas e superstições. O rei também criou em 1675 o Observatório Real em Greenwich, para que os astrônomos pudessem contemplar os mistérios do cosmos e dedicar-se a questões de ordem prática como cronometragem precisa das horas e da navegação. A própria Londres havia se recuperado magnificamente dos anos da peste e do grande incêndio de 1666, que por cinco dias ardera no coração da cidade. A época da aparição do cometa, em 1682, Londres crescia e prosperava. A camada pobre da população permanecia miserável, e os inconformistas religiosos eram em geral tratados desumanamente, mas o clima geral sugeria franco otimismo. Nos salões e cafés pululavam comentários sobre política, comércio, lugares distantes e idéias científicas. Havia, feitas as contas, a sensação de que a cidade era a capital do mundo moderno e o lugar mais adequado para observar e, talvez, explicar o universo. Edmond Halley sentia-se muito à vontade nesse meio. Natural da cidade, nasceu na casa de campo de sua família, em Haggerston, nos arredores de Londres, a 8 de novembro de 1656 — época em que "seu" cometa ainda haveria de aguardar vinte e seis anos para o encontro com o Sol. Seu avô, Humphrey Halley, era negociante de artigos de armarinho e vinhos. O pai, também chamado Edmond Halley, era fabricante de sabão e proprietário de imóveis.
Talvez não fosse exatamente uma família aristocrata, mas tinha estabilidade financeira. O pai não tardou a reconhecer o "talento promissor" do jovem Edmond e tomou providências para que o filho recebesse livros e o "curioso aparelho" para observar planetas e estrelas. Na St. Paul's School, Edmond passou a se interessar pela "nova filosofia" científica, embora a velha ciência astronômica fosse a que mais o seduzisse. Mais tarde, Halley escreveria que, "desde os mais tenros anos de minha juventude, eu me entregava à consideração da astronomia”.
A atividade dava-lhe tanto prazer, dizia, "que é impossível explicá-lo a alguém que não o tenha experimentado".
A astronomia encontrava-se em meio a uma revolução que começara mais de um século antes, feita, sobretudo, fora da Inglaterra. Em 1543, o estudioso polonês Nicolau Copérnico havia lançado a teoria de que só a presunção humana consubstanciava a idéia da Terra como centro do universo.
O Sol não se deslocava ao redor de uma Terra fixa; a Terra, ela sim, girava em torno do Sol. Três dos maiores astrônomos da época apresentaram elementos para corroborar a teoria de Copérnico, direta ou indiretamente. O astrônomo dinamarquês Tycho Brahe fez observações meticulosas do movimento dos outros planetas, e o alemão Johannes Kepler, que recebeu como legado as anotações e tabelas de Brahe, estabeleceu que a órbita dos planetas não era circular, como se supunha, mas elíptica, com o Sol em um foco. Esta é a primeira lei do movimento planetário, de Kepler. Para os matemáticos, a descoberta não poderia ter sido mais agradável, pois a elipse, uma espécie de círculo achatado, é uma das curvas mais simples em um plano, e assim, pode ser calculada com relativa facilidade a partir de observações periódicas do movimento dos planetas no céu. Entrementes, em 1609, Galileu Galilei observava Júpiter com um telescópio por ele mesmo construído, e descobriu os quatro grandes satélites que orbitam ao redor do planeta gigante. Essa revelação confirmou a teoria de Copérnico: as luas de Júpiter moviam-se em torno desse gigantesco astro do mesmo modo que os planetas do sistema solar, inclusive a Terra, deveriam girar ao redor do Sol. A conclusão de Galileu soou como um sacrilégio aos ouvidos da Igreja Católica Romana, que chamou o cientista a Roma para defender-se da acusação de heresia ou submeterse à tortura. Um herege de opinião semelhante, Giordano Bruno, já havia sido queimado na fogueira em Roma, em 1600. Assim, Galileu retratou-se, mas suas idéias permaneceram imunes ao terror do fogo. Anos mais tarde, em 1665, Newton sentava-se sob a lendária macieira e, contemplando a queda da maçã, começou a tecer considerações sobre as forças a respeito das quais Copérnico havia teorizado e que Tycho Brahe, Kepler e Galileu tinham observado.
Halley mal podia esperar para participar dessa revolução. Em 1673, aos dezessete anos de idade, ingressou no Queen's College, de Oxford, onde revelou suas aptidões para os estudos clássicos e a matemática. Pelo resto de sua vida, deleitou-se em escrever poesias em latim. O feito que associou seu nome ao cometa de 1682 consistiu basicamente num tour de force matemático. Já no início de sua carreira universitária, entretanto, Halley havia mostrado um talento excepcional para a observação astronômica, e, ao que consta, sabia reconhecer a própria capacidade. O que não lhe faltava era autoconfiança. Durante sua permanência em Oxford, começou a se corresponder com Flamsteed, o ilustre astrônomo inglês, e a compartilhar suas próprias observações telescópicas. Na primeira carta a Flamsteed, Halley, então com dezoito anos, demonstrou a incorreção de algumas tabelas divulgadas a respeito das posições dos planetas Júpiter e Saturno. A descoberta rendeu-lhe a publicação de seu primeiro relatório científico, e Flamsteed reconheceu em Halley "um jovem engenhoso, bem versado em cálculo e em quase todas as áreas da matemática, ainda que com dezenove anos incompletos".
Sem esperar pela graduação em Oxford, Halley, aos vinte anos de idade, integrou uma expedição à ilha de Santa Helena, ansioso para firmar sua reputação como astrônomo profissional. Santa Helena, que entraria para a história como o local do exílio de Napoleão, encontra-se abaixo da linha do equador, no oceano Atlântico, ao largo da costa africana. Para lá seguiu Halley, contando com os bons auspícios do rei Carlos II e da Companhia das Índias Orientais, que detinham o controle da ilha, e algum dinheiro fornecido pelo pai. Estava decidido a observar e mapear as estrelas dos céus meridionais. O firmamento boreal já havia sido bem cartografado, em particular por Flamsteed, mas o austral ainda permanecia desconhecido. Sem se deixar abalar pelas condições meteorológicas adversas, Halley perseverou. De volta a Londres, em 1678, estava em condições de compilar um catálogo oficial de 341 estrelas austrais. A publicação do catálogo, o primeiro trabalho no gênero a incluir a localização de estrelas austrais, através do telescópio, valeu a Halley o grau de mestre em Oxford e sua eleição para a Royal Society. Assim, em 1680, aos vinte e três anos de idade, ele integrava a elite da comunidade científica britânica. O jovem ansioso chegava, enfim, para ficar,
Em seguida, Halley decidiu, como o fazia a maioria dos jovens cavalheiros ingleses, partir em longa viagem de recreio pela Europa, para desfrutar Paris e perambular pela Itália antes de fincar raízes. Partiu de Londres em dezembro de 1680. Se algum encanto encontrou em sua viagem, Halley não o registrou; nunca teve um diário e escrevia poucas cartas. Sua experiência mais memorável em Paris, a julgar pelos dados disponíveis, foi o vislumbre de um cometa rutilante.
No mês de novembro imediatamente anterior à viagem, Halley quedara-se fascinado por um cometa, visível a olho nu, surgido nos céus de Londres. O astro, excepcionalmente brilhante, transformou-se no assunto da moda, já que, na época, os cometas assumiam proporções de enigma, envoltos em mitificação e ignorância. Nada se sabia a seu respeito: sua constituição, origem, trajetória ou destino. O cometa, alheio ao estardalhaço, permaneceu no céu por algumas noites e depois sumiu. A caminho de Paris, Halley voltou a ver o cometa e ficou ainda mais alvoroçado. (Naquela época, ninguém tinha uma resposta para esse fenômeno, mas hoje sabe-se que o cometa rumava em direção ao Sol quando foi observado em novembro, desapareceu por trás do astro e, depois, em meados de dezembro, tornou-se novamente visível ao ressurgir do outro lado do Sol. Ao chegar a Paris, Halley dirigiu-se imediatamente ao Observatório de Paris, fundado pelo rei Luís XIV, então no trono, e dirigido por Jean-Dominique Cassini, cientista natural da Itália e patriarca de uma dinastia de Cassinis que por quatro gerações dominou a astronomia francesa, num período de mais de um século, e produziu o primeiro mapa topográfico de todo um país. Cassini permitiu que o jovem inglês examinasse o cometa no observatório, e ambos trocaram registros sobre os movimentos do astro.
Com base nesses dados, Halley fez sua primeira tentativa de traçar a rota de um cometa no cosmos, o tipo de cálculo que um dia lhe daria imortalidade. Naquela oportunidade, porém, o cometa de 1680 não lhe deu nenhuma chance. A culpa não foi da matemática de Halley, mas do conhecimento científico convencional sobre cometas, repleto de equívocos. E neles Halley também incorreu, ao seguir as convicções vigentes.
Halley não tinha motivos para se envergonhar do fracasso. Afinal, ninguém sabia ao certo que conclusões tirar dos cometas e de seu comportamento peculiar. Talvez essa ignorância permanecesse para sempre, ou ao menos tudo levava a crer que assim seria. Na primeira edição das Philosophical transactions, da Royal Society, publicada em 1665, um certo M. Auzout, qualificado como "um cavalheiro francês de não medíocre mérito e cultura", discorreu sobre sua tentativa de prever os movimentos do cometa de 1664. O autor orgulhosamente se referia ao trabalho como "um projeto jamais empreendido por qualquer astrônomo, todo o mundo tendo-se convencido até o momento de que o movimento dos cometas é tão irregular que não pode ser enquadrado em nenhuma lei". As conclusões de Auzout, no entanto, dificilmente fariam o mundo mudar de opinião. Para começar, ele não tinha a menor idéia da curva percorrida pelo astro em sua trajetória. No ano seguinte, num segundo ensaio, ele voltou a tratar do assunto, desta vez para analisar a rota de um cometa observado em 1665, mas sem melhores resultados. E não poderia ter sido de outra maneira. Pouco se sabia a respeito dos movimentos dos cometas, ou da própria Terra. Um comentário de Auzout a respeito da "grande questão sobre se a Terra está em movimento ou não" é bem ilustrativo do nível de conhecimento astronômico da época.
Foi nessas circunstâncias que Halley tentou pela primeira vez traçar a rota de tais astros: os cometas, ao contrário do que Aristóteles afirmou, não eram um fenômeno atmosférico. Aristóteles dividiu o universo em dois setores distintos. Um deles compreenderia as regiões abaixo da Lua, onde predominava a instabilidade e que constituíam a passagem obrigatória dos cometas, que se tornariam conhecidos como eflúvios sublunares. Acreditava-se que os cometas fossem um fenômeno das camadas superiores da atmosfera, inscritos na mesma categoria das luzes boreais. O segundo setor, ainda segundo Aristóteles, consistiria nas regiões além da Lua, onde nada sofria alterações. Tycho Brahe, no século anterior ao de Halley, demoliu ambos os conceitos. Ele testemunhou o aparecimento súbito de uma estrela "nova" no céu e, após meses de cuidadosas mensurações, convenceu-se de que ocorrem mudanças no espaço compreendido além da Lua, mesmo que isso desafiasse a teoria de Aristóteles. Tycho recorreu ao conceito sublunar de Aristóteles ao proceder a mensurações do grande cometa de 1557. Comparou a posição do cometa visto de seu observatório, situado numa ilha entre a Dinamarca e a Suécia, com relatos de observações simultâneas feitas a centenas de quilômetros de distância, em outras partes da Europa. A posição da Lua era diferente em cada um dos locais. No entanto, não se notavam diferenças perceptíveis na posição do cometa. Logo, raciocinou Tycho, o cometa devia estar bem além da Lua.
A confusão era a tônica das considerações sobre os demais aspectos da questão. Seriam os cometas parte integrante do sistema solar? Descreveriam órbita em torno do Sol ou mergulhariam em linha reta, vindos de algum ponto do espaço exterior? Não se chegava a nenhuma conclusão. Os cometas são visíveis por um curto período — questão de dias ou algumas semanas, e isso tanto antes do aparecimento do telescópio quanto até dois ou três séculos após a invenção do instrumento. Nesse breve período de visibilidade, o máximo que os astrônomos poderiam fazer seria observar o cometa em apenas um pequeno trecho de seu caminho, sobre um pano de fundo de estrelas. Era impossível concluir, a partir disso, se o cometa viajava em linha reta (hipótese sugerida pela observação de uma pequena seção da trajetória) ou descrevia algum tipo de curva. Neste último caso, sua trajetória abrangia várias possibilidades: círculo, elipse, parábola ou a curva mais aberta conhecida como hipérbole. Tycho, embora rejeitasse a teoria de que a Terra se desloca no espaço, formulada por Copérnico, concordava com o astrônomo polonês em que os planetas e o cometa de 1557 descreviam uma órbita ao redor do Sol. Kepler, por outro lado, ainda que houvesse estabelecido as leis segundo as quais os planetas se movem numa trajetória elíptica, com o Sol num dos focos, não acreditava que os cometas obedecessem a essas leis. Para ele, os cometas viajavam numa linha mais ou menos reta. Reconhecia, porém, que dois cometas por ele estudados no início do século XVII não pareciam seguir essa trajetória. Mas, dizia, essa ilusão era causada pelo movimento da própria Terra.
A partir dessas observações keplerianas, como em geral o faziam, os cientistas da época presumiram que os cometas vagavam pelo espaço, até que, por acaso, se aproximavam do Sol. Assim, havia duas hipóteses: primeira, se chocariam com o Sol e seriam destruídos; segunda, escapariam da colisão, e retornariam ao espaço exterior. Seria altamente improvável, julgavam os cientistas, que um cometa regressasse uma segunda vez ao sistema solar. Eram esses os conhecimentos convencionais que dominavam na época em que Halley teve sua curiosidade despertada pelos cometas.
De fato, um dos mais conceituados astrônomos da época, Johannes Hevelius, de Danzig, reafirmava a teoria da trajetória em linha reta, com algumas modificações. Num livro publicado em 1668, Hevelius explicou que os cometas seriam corpos em forma de disco lançados dos planetas. Não é de admirar, portanto, que Halley procedesse aos cálculos do cometa de 1680 na pressuposição de que observava um objeto que se deslocava, grosso modo, em linha reta. Havia até quem duvidasse que o cometa visto em novembro e aquele observado no mês seguinte fossem o mesmo.
Quando Flamsteed escreveu a Newton aventando a hipótese de que as duas aparições seriam do mesmo astro, o físico e matemático inglês reagiu com educada incredulidade.
Halley nunca se esqueceu da experiência frustrante de tentar calcular a trajetória cio cometa de 1680 e não chegar a conclusão alguma, por ser incapaz de conciliar os dados que tinha à sua disposição com o conceito do percurso em linha reta então em voga. Ele volta a Londres, depois de passar mais de um ano fora da Inglaterra, Halley casou-se com Man Tooke e passou a desempenhar um papel cada vez mais ativo na Royal Society. Era um jovem alto, esbelto e bastante sociável. Começou a se interessar por todos os campos da ciência, não se limitando à astronomia e à matemática, e logo tornou-se amigo de muitos de seus colegas mais velhos. Seus laços de amizade com Robert Hooke, inventor, microscopista e membro fundador da Royal Society, pelo visto erigiram uma parede entre Halley e seu ex-mentor, Flamsteed. Rivalidade, ciúme e mesquinharia são tão comuns 11a ciência como em qualquer outro campo da convivência humana. Flamsteed. um homem acrimonioso e frustrado, não aturava nem Hooke nem Newton: portanto, não queria ficar ao lado de Halley, na medida em que o jovem cientista gravitava na órbita Hooke-Newton.
A aproximação surgiu quando Halley, lembrando- se do cometa de 1680, começou a ponderar sobre o grande problema que representavam os movimentos planetários. Foi com esse problema na cabeça que ele investigou o cometa de 1682, o "seu" cometa, no observatório particular que mantinha em sua residência, em Aslington. Preocupação semelhante tinham vários dos colegas de Halley da Royal Society. Deveria haver algum tipo de força gravitacional que justificasse o movimento dos planetas, satélites e outros corpos do sistema solar. Mas quais seriam, exatamente, as leis que regiam tal força, e como demonstrá-las? Em janeiro de 1684, Halley encontrou-se com Hooke e o arquiteto Christopher Wren num café londrino, como de hábito, e os três mantiveram uma longa e apaixonada discussão sobre o problema.
Foi um encontro decisivo, pois motivou Halley a fazer uma visita a Newton, iniciativa que o levaria a reconhecer a importância da hipótese que o colega havia elaborado mentalmente, mas relutava em trazer a público, por excesso de receio ou timidez. A aproximação subseqüente entre Halley e Newton — o mais velho agindo como incentivador, editor e benfeitor do mais jovem — acabou conduzindo à descoberta, por Halley, da natureza periódica dos cometas e à correta previsão da reaparição do cometa de 1682 no interior do sistema solar. Essa descoberta — de que o mesmo cometa poderia, como de fato ocorreu, voltar repetidas vezes — surgiu como conseqüência natural da grande contribuição de Newton à ciência, a lei da gravitação. Foi, na verdade, a primeira comprovação direta das teorias de Newton. Essa sucessão de acontecimentos significativos começou a se desencadear quando, no café, Halley, Hooke e Wren conversaram sobre uma possível lei da gravitação que explicasse o movimento de todos os corpos do sistema solar. Halley propôs que a força de atração deveria variar inversamente com o quadrado da distância entre um planeta e o Sol. Esse raciocínio, observou ele, se encaixa perfeitamente na terceira lei de Kepler, que estabelece uma relação entre o tempo consumido por um planeta para percorrer sua trajetória orbital e sua distância do Sol. Halley, porém, confessou que, por mais que se esforçasse, não conseguia imaginar como demonstrar a teoria. Os cálculos matemáticos comprobatórios estavam além de suas possibilidades. Wren disse que também já havia tentado chegar a uma fórmula, com resultados igualmente decepcionantes. Hooke concordou com a proposição de Halley e insinuou que teria acabado de chegar à prova matemática baseada na lei do inverso do quadrado. Acontece que Wren conhecia uma certa propensão de Hooke à fanfarronice. Por vezes, a bazófia era justificada, mas nem sempre. Assim, com a intenção de trazer a verdade à luz, Wren ofereceu um livro valioso como prêmio àquele que primeiro aparecesse com a solução. Halley tentou, sem sucesso, e Hooke, ao que tudo indica, achou por bem adiar a demonstração.
Halley não desistiu e resolveu consultar Newton, cm Cambridge. Como bem observou H. H. Turner, titular da cadeira de astronomia em Oxford no começo deste século, "nunca uma viagem de alguém de Oxford a Cambridge se revestiu de tão vital importância para o mundo!" Era o mês de agosto de 1684.
Halley entrou direto no assunto, e perguntou a Newton como seria a curva descrita pelos planetas, supondo-se que a gravidade diminui na proporção do quadrado da distância. Sem pestanejar, Newton respondeu que a curva teria a forma de uma elipse. E por que tanta certeza? "Eu fiz os cálculos", replicou Newton. Halley estava impaciente para ver esses cálculos. Newton remexeu em seus papéis, mas não conseguia encontrar as anotações que continham seus teoremas e demonstrações. Ele havia realizado o trabalho anos antes, estimulado pela troca de algumas cartas com Hooke, e depois guardara os papéis com as anotações. Evitara enviar os cálculos para Hooke, com receio — não totalmente injustificado — de que o colega pudesse se apoderar de parte do mérito da descoberta. Antes de se despedir, Halley fez Newton prometer que reproduziria os cálculos e lhe remeteria os resultados.
A promessa foi cumprida por Newton antes mesmo de findar o ano. Segundo Colin A. Ronan, em seu livro Asírúãomers Royal, de 1967, foi uma sorte Newton ter enviado o material a Halley e não a Wren ou Hooke. "Se as anotações tivessem ido parar nas mãos de Wren, garantiriam a vitoria na aposta e nada mais", diz Ronan. "Se Hooke as tivesse recebido, fatalmente seriam levantadas polêmicas em torno deste ou daquele tópico. Mas Halley, excelente matemático, não se limitou a constatar que o problema proposto por Wren havia sido solucionado — ele teve a presença de espírito de reconhecer que havia na demonstração algo muito mais significativo. Newton formulara o conceito da gravitação universal — corpos em queda livre na Terra em relação a corpos em queda livre no espaço."
Os historiadores científicos desconfiam que, não fosse por Halley, o mundo não teria assimilado as leis da gravitação de Newton e suas explicações sobre o movimento da Lua, dos planetas e também dos cometas. Não há dúvida de que a inspiração teria ocorrido a algum outro cientista, porém, mais no futuro. Mas ela já havia iluminado Newton, fato logo compreendido por Halley, que, com lato e persistência, levou Newton a publicar em 1687 sua grande obra, Princípios matemáticos da filosofia. Wren, reconhecendo sua dívida para com Halley, escreveu no prefácio do livro que Halley, "extremamente arguto e erudito em cultura universal", corrigira erros e preparara as figuras geométricas; foi, segundo Newton, "através de suas solicitações que a obra veio a ser publicada". Em nome da Royal Society, Halley conseguiu persuadir Newton a entregar-lhe o manuscrito (redigido em latim), editou-o, e supervisionou e financiou sua impressão. O que não deixa de causar estranheza: Newton teria tido condições financeiras para arcar com as despesas de impressão, ao passo que Halley, embora tivesse possuído alguma riqueza em certa época, naquele momento não estava em condições de financiar a empreitada. Trata-se certamente de um dos exemplos de maior generosidade, cooperação c abnegação dos anais científicos.
Nos Princípios, Newton enuncia a maneira pela qual forças múltiplas agem em conjunto, o impacto de um corpo sobre outro e a lei da gravitação universal. Desenvolvendo seu raciocínio, ele recorre a essas leis do movimento para explicar a órbita dos satélites em torno de Júpiter, descobertos por Galileu, e a órbita dos planetas ao redor do Sol, levando em consideração as leis de Kepler, Demonstra que as leis de Kepler sobre os movimentos planetários são conseqüência natural da lei da gravitação universal. Sobretudo, Newton foi, ao que consta, o primeiro a concluir que a terceira lei de Kepler — onde se estabelece a relação entre os períodos planetários e a distância do Sol — deriva de uma força de atração solar que varia com o inverso do quadrado da distância. Assim, estimulado pela correspondência com Hooke, Newton provou que, sob a influência de tal força, os corpos descrevem uma curva elíptica, tendo o Sol como um dos focos. (Enquanto Newton concluía seu manuscrito, Hooke incendiava uma reunião da Royal Society com suas reivindicações de que teria sido ele quem abastecera Newton de todas as observações-chave, assinadas com o nome do usurpador. Halley viu-se obrigado a mediar o litígio e acalmar o ânimo de Newton, para que ele não abandonasse todo o projeto.) Numa terceira etapa, Newton propôs e demonstrou que a esfera exerce atração como se toda a sua massa estivesse concentrada em seu centro. Sem essa premissa, a aplicação da lei da gravitação ao movimento dos corpos celestes teria consistido numa mera aproximação.
Desnecessário dizer que Halley, ao meditar sobre o significado da mensagem de Newton, tinha o pensamento voltado para os cometas. Como disse Halley em sua ode dedicatória a Newton, escrita cm latim c incluída nos Princípios:
... Agora conhecemos
A guinada brusca do percurso dos cometas, outrora
De medo um manancial, e não mais nos intimidamos
Sob aparições de estrelas com praganas.
Newton havia se manifestado e esclarecera questões obscuras. Os cometas, afinal, não viajavam em linha reta. Eles descreviam curvas com "guinadas bruscas", provavelmente parábolas ou elipses bastante alongadas. Newton aventou a hipótese de que os cometas fossem "planetas, em certo sentido, que giravam em órbitas que encontram prosseguimento em si mesmas, num movimento perpétuo".
Halley, no entanto, passou uns dez anos sem pesquisar com afinco o problema das rotas cometárias. Ele tinha outras preocupações, pois dedicava-se a vários campos científicos: meteorologia, biologia, oceanografia, física do magnetismo, cartografia e demografia. Isso bem antes da divisão da ciência em ramos altamente especializados; ainda assim, poucos de seus contemporâneos podiam se equiparar a Halley em termos de amplitude de interesses científicos.
Halley, como cartógrafo, caracterizava-se pelo espírito inovador. Em 1686, desenhou o que se considera o primeiro mapa meteorológico, com ilustrações da direção dos ventos predominantes nos oceanos. Através de mapas como esse, observou ele, certos fenômenos "podem ser mais bem compreendidos do que por meio de qualquer descrição verbal". Eram os primórdios do que hoje se conhece como mapas temáticos, que ilustram a distribuição geográfica de informações sobre clima, vegetação, população, riquezas ou outros fatos físicos ou abstratos. Vários anos depois, a partir de 1698, Halley comandou um pequeno navio de guerra, o Paramour, em expedições ao Atlântico, onde traçou gráficos sobre as variações magnéticas da Terra. No mapa por ele desenhado para ilustrar essas variações, Halley introduziu outra de suas inovações cartográficas, as linhas isométricas, ou seja, linhas que num mapa ligam pontos de igual valor; as mais conhecidas, na atualidade, são as linhas de contorno dos mapas topográficos que assinalam zonas de igual elevação. As linhas isométricas de muitos mapas foram por um longo período denominadas "linhas halleyanas".
Em 1687, ano em que preparava a edição do livro de Newton, Halley publicou um estudo sobre a evaporação da água marinha causada pelo sol. Ele deduziu que deveria haver um aumento gradativo no índice de salinidade dos mares, fato que lhe acorreu à imaginação como uma maneira possível de mensurar a idade da Terra. E mais: pareceu-lhe, através desse método, que a Terra seria muito mais velha do que se pressupunha com base nos cálculos genealógicos derivados da Bíblia. Seu biógrafo moderno. Colin Ronan, refere-se a essa elucubração como "uma das primeiras abordagens racionais e científicas" sobre a idade da Terra, ainda que nunca se tivesse provado a confiabilidade do processo. No mais, o raciocínio trouxe-lhe certas desavenças com a hierarquia eclesiástica. Em 1691, foi-lhe recusada uma cátedra em Oxford em função de suspeitas de apostasia religiosa. Houve quem o qualificasse de "zombador" da religião.
Sem qualquer intenção, Halley, ao que tudo indica, foi o precursor das teorias modernas segundo as quais as catástrofes mais devastadoras já sofridas pela Terra podem ter sido causadas por contatos excessivamente imediatos com corpos extraterrestres, Por exemplo, ele levantou a possibilidade de o mar Cáspio ter vazado suas águas por obra de um cometa que teria colidido com a Terra à época do Dilúvio bíblico. Um cometa que se aproximou em demasia da Terra ou a atingiu, raciocinava ele, poderia ter sido a força demolidora que provocou o Dilúvio. Em anos recentes, os cientistas apresentaram a teoria — aliás, bastante convincente — de que um meteorito ou cometa chocou-se com a Terra há 65 milhões de anos, ocasionando uma catastrófica reação em cadeia que afetou todo o globo. Segundo a hipótese, o fenômeno provocou a extinção em massa da vida na Terra, condenando, entre outros animais, os fabulosos dinossauros. Postula-se ainda que visitas semelhantes possam ser responsabilizadas pelo que se afigura como uma série de extinções em massa que ocorrem a cada 26 milhões de anos, sendo que a mais recente teria acontecido há 15 milhões de anos. Em 1688, a versatilidade intelectual de Halley levou-o a se ocupar de assuntos tão diversos como o fenômeno do calor, uma espécie de samambaia que havia observado em Santa Helena, comparações de pesos e medidas ingleses, franceses e da Roma antiga e algumas conchas marinhas fossilizadas. Estas últimas foram encontradas nos penhascos de Harwich, o que, segundo anotou num relatório, "parecia demonstrar que aquele local fora em outros tempos o fundo do mar, apesar de se encontrar agora bem acima dele". Poucos cientistas contemporâneos seus poderiam aceitar com tanta tranqüilidade sinais como esse de um passado provavelmente muito diverso. Transcorreria outro século até que tal atitude se transformasse, dando origem à geologia e à paleontologia modernas.
Na condição de emérito matemático, Halley gostava de fazer experiências com cálculos de natureza prática. Um de seus trabalhos intitula-se "The manner of computing the weight and force of the winds" (A maneira de computar o peso e a força dos ventos). Noutra ocasião, ele procurou determinar a altura a que se poderiam disparar balas. Trabalhando com base nos registros de idade e sexo de todos os indivíduos que haviam morrido cm Breslau durante o ano de 1692, Halley formulou as primeiras tabelas sofisticadas de anuidade para determinação de pagamento de seguro de vida, método que viria a influenciar o desenvolvimento de todas as tabelas atuariais.
Não faltava a Halley sequer o espírito de aventura. Além de ter comandado um navio de guerra, escalou uma montanha munido de um barômetro a fim de descobrir de que maneira a pressão atmosférica diminui em relação ao aumento da altitude. Ele inventou um sino de mergulhador e, no verão de 1691, ao largo da costa do condado de Sussex, mergulhou para testá-lo pessoalmente. Seu trabalho, inédito, sobre a invenção intitula-se "Um método de andar debaixo d'água".
Finalmente, Halley tornou a fixar sua atenção no problema das trajetórias cometárias. Era o ano de 1695.
A tarefa, como ele bem dizia, exigia "muita dedicação". Halley calculou a rota de 24 cometas, observados em épocas diferentes, inclusive os de 1680 e 1682. Consultou as anotações de Newton sobre o cometa de 1680, bem como as suas próprias, feitas em Paris, e convenceu-se de que tais astros efetivamente percorrem trajetórias elípticas. Numa carta a Newton, em que se referia à nova análise do cometa de 1680, que tanto o frustrara na juventude, Halley disse: "Encontro certos indícios de uma órbita elíptica naquele cometa e nutro a certeza de que será muito difícil representá-la exatamente por uma parábola".
A essa altura, Halley já começava também a acreditar que o cometa de 1682, por ele observado em Islington, seria o mesmo visto em 1531 e 1607. Os três cometas chamavam a atenção pelo fato de terem feito o percurso "errado" em torno do Sol, isto é, na direção oposta àquela em que todos os planetas giram. Os três pareciam seguir cursos semelhantes em seu mergulho rumo ao Sol. Halley, então, achou que necessitava de dados mais detalhados acerca do cometa de 1682, antes de tirar uma conclusão. Ao que sabia, as informações mais completas estavam em poder de Flamsteed, em Greenwich. Acontece, porém, que eles estavam de relações cortadas. Assim, Halley escreveu uma carta a Newton, pedindo-lhe para "interceder em meu benefício junto a Mr. Flamsteed para obter suas observações sobre o cometa de 1682, particularmente no mês de setembro, pois estou cada vez mais convencido de que já vimos aquele cometa três vezes desde o ano de 1531".
Newton conseguiu as informações de Flamsteed e passou-as a Halley, que nelas viu um auxílio de inestimável valor. A análise dos dados levou Halley a concluir que o cometa de 1682 também havia percorrido uma trajetória elíptica. Através desses novos cálculos, determinou que a trajetória elíptica levara o cometa a mais de 5,6 bilhões de quilômetros de distância do Sol antes de retornar. Refez os cálculos várias vezes, e chegou sempre ao mesmo resultado.
Numa segunda etapa, Halley procurou comparar o cometa de 1682 com os observados em 1607 e 1531. Havia apenas um pequeno problema. O tempo transcorrido entre a passagem do cometa de 1531 e a do de 1607 somava 76 anos, enquanto a diferença entre 1607 e 1682 era de apenas 75. Como explicar a discrepância? Esforçando-se por se lembrar de algumas pesquisas que havia feito na universidade sobre Júpiter e Saturno, Halley conjeturou que a diferença no prazo de retorno do cometa poderia ser atribuída a perturbações em sua rota provocadas pela gravidade dos dois planetas gigantes. Se, num dado percurso de regresso, o cometa passasse perto de Júpiter ou Saturno, a força gravitacional do planeta diminuiria sua velocidade, o que provocaria o atraso em relação à previsão do tempo de viagem. Voltando-se para o futuro, Halley procurou calcular quando o cometa tornaria a aparecer. A tarefa não era nada fácil, mas se revestia de um significado científico dos mais importantes, que transcendia até mesmo o estudo dos cometas. Não poderia haver prova mais cabal de uma lei científica do que prever, através dela, acontecimentos futuros. Além disso, era a primeira tentativa de se aplicar a lei da gravitação universal de Newton a um problema astronômico específico, na medida em que, nos cálculos da previsão, Halley teve que levar em consideração as posições de Júpiter, de Saturno e da Terra, e a localização do cometa em relação aos três planetas. Foi apenas em 1705 que Halley sentiu-se suficientemente seguro em seus cálculos para publicar uma previsão. Em A synopsis of the astronomy of comets (Uma sinopse da astronomia dos cometas), diz Halley:
"Muitos elementos levam-me agora a crer que o cometa de 1531, observado por Apiano, é o mesmo que no ano de 1607 foi descrito por Kepler e Longomontano e que pessoalmente vi e observei em seu retorno em 1682. Todos os fatores conferem, exceção feita à existência de uma desigualdade nos períodos de revolução, embora não seja tão grande a ponto de impedir sua atribuição a causas físicas. Por exemplo, o movimento de Saturno é tão perturbado pelos outros planetas, principalmente Júpiter, que seu tempo de revolução periódico pode acusar variações de até diversos dias.
Imagine-se o grau de perturbação a que estará sujeito um cometa que retrocede a uma distância quase quatro vezes maior do que aquela até Saturno e cuja velocidade, se elevada apenas ligeiramente, pode alterar sua órbita de elíptica para parabólica! A identidade desses cometas é confirmada pelo fato de ter sido avistado um cometa em 1456, que passou em direção retrógrada entre a Terra e o Sol, quase da mesma maneira; embora não tivesse sido observado astronomicamente, através de seu período e sua trajetória, deduzo que seja o mesmo surgido nos anos de 1531, 1607 e 1682. Posso, portanto, prever com segurança sua volta no ano de 1758. Se essa previsão for confirmada, não há motivos para duvidar que outros cometas tornarão a aparecer."
Halley fez, então, um apelo aos astrônomos do futuro, a fim de que observassem os céus para verificar a correção de seu prognóstico. Ele sabia que dificilmente sobreviveria até 1758 para rever o cometa. Mas, se estivesse com a razão, queria ser lembrado pelo feito. Numa edição posterior da Sinopse, publicada postumamente, Halley manifesta a esperança de que "a posteridade imparcial não se recuse a reconhecer que o autor da descoberta é inglês". Sua consagração histórica teria superado todas as suas expectativas. O nome do inglês Halley é hoje sinônimo de cometa, ao menos, certamente, do mais famoso de todos. Ao que consta, o único fator polêmico refere-se à grafia de seu nome e à pronúncia do sobrenome. Não raro, depara-se com a versão "Edmund" para o nome. Em seu testamento, porém, ele declara: "Em nome de Deus, eu, Edmond Halley..." Que seja Edmond, portanto. Não é com a mesma facilidade que se chega a um acordo quanto à pronúncia do sobrenome.
No livro The comet is coming (O cometa está chegando), de 1980, Nigel Calder passa em revista as três possibilidades mais plausíveis:
"'Hélei', rimando com 'aliey', a alternativa óbvia para os acostumados com as peculiaridades da ortografia inglesa. 'Hêilei', rimando com 'bailey', em geral, a predileta entre os que cresceram com o grupo de rock Bill Haley e seus Cometas. 'Hólei', em rima com 'bawley', opção preferida por Colin Ronan, um dos biógrafos de Halley, que se baseia no fato de o sobrenome do astrônomo ter por vezes sido grafado Hawley; até aí, nada de mais, já que também houve em mais de uma ocasião o registro das grafias Haley ou Halley.
Telefonamos a dezesseis Halleys residentes em Londres para indagar como pronunciam seus sobrenomes. Três se recusaram a dar a informação, mas todos os demais confirmaram a pronúncia 'Hélei', rimando com 'alley', ainda que um dos entrevistados mencionasse um irmão que preferia ser chamado de 'Hêilei', rimando com 'bailey'. Com um veredicto praticamente unânime em relação à pronúncia atual do sobrenome, julgou-se redundante dar prosseguimento à pesquisa. .
A julgar pela maneira como seus contemporâneos grafavam o sobrenome de Halley, qualquer uma das pronúncias pode ser a correta. Numa reunião em Londres, em 1983, da Halley's Comet Society — como foi publicado 11a revista The New Yorker —, Brian Harpur, fundador e secretário honorário da entidade, apresentou "provas históricas irrefutáveis" a corroborar a alternativa Hawley, invocando, para tanto, nada menos que a excelência ortográfica da rainha Ana. "Ela grafava seu nome 'H-a-w-l-e-y'declarou Harpur. "Além do mais, o arranjo floral que os senhores e as senhoras possivelmente admiraram à chegada foi magnificamente concebido para o ensejo pela sra. Halley, cujo sobrenome, embora seja grafado 'H-a-l-l-e-y', pronuncia-se 'Hawley'." A revelação provocou aplausos e mais brindes dos partidários da alternativa Hawley. Em diversos outros registros feitos por contemporâneos do cientista, seu sobrenome foi grafado (e, teoricamente, pronunciado de acordo) como Hailey, Haley, Halley, Haly, Hawley, Hawly e Hayley. E essa diversidade provavelmente continuará agora — Halley alley, Halley bailey e Halley bawley —, à medida em que o nome for sendo formado nos lábios de inúmeras pessoas quando o cometa fizer sua reaparição. Alheio a qualquer tipo de consideração, o astrônomo inglês Michael Belton, que trabalha atualmente no Observatório Nacional Kitt Peak, no Arizona, diz apenas: "Exijo que se atenha à forma 'Hally'".
Halley, como bem o predissera, não viveu até 1758, data por ele prevista para o retorno do cometa. Nos últimos anos de sua vida, ele foi nomeado astrônomo real, como sucessor de Flamsteed, e continuou a se ocupar de uma ampla variedade de interesses científicos e a se preocupar com as questões da Royal Society. Foi um homem sociável até o fim de seus dias. Fundou o Royal Society Club, que reunia semanalmente um grupo de seus amigos cientistas mais íntimos para comer, beber e conversar. Embora em 1737 tivesse sofrido um derrame de menor gravidade, que deixou sua mão direita parcialmente paralisada, raramente deixava de comparecer aos jantares das quintas-feiras no clube, hábito que manteve até pouco antes de morrer. Estava sentado em sua cadeira no Observatório de Greenwich quando lhe sobreveio o fim, a 14 de janeiro de 1742, aos oitenta e seis anos. Serviu-se de um copo de vinho, sorveu um grande gole e, serenamente, fechou os olhos.
Logo após sua morte, três astrônomos franceses aperfeiçoaram os cálculos de Halley e divulgaram previsões ainda mais precisas sobre detalhes cronológicos e cosmográficos do cometa em seu percurso pelo interior do sistema solar em fins de 1758 e princípios de 1759. Enquanto se aproximava a hora, os astrônomos de toda a Europa esmeravam-se nos preparativos para se tornarem os primeiros a avistar o cometa prometido por Halley, ou alardear que ele se equivocara em seu prognóstico.
Um desses astrônomos era Charles Messier, o primeiro de uma linhagem especial de observadores do céu conhecidos como caçadores de cometas. Ele passou a maior parte de sua vida ativa como secretário e observador no Observatório de Paris. Atendia pela alcunha de "Fuinha", devido à sua extraordinária capacidade de rastrear novos cometas. A caça ao cometa era na época, tanto quanto hoje em dia, uma atividade competitiva. Quando já contava doze descobertas a seu crédito, Messier viu-se obrigado a interromper suas pesquisas para cuidar da esposa doente; entrementes, um rival, Montaigne de Limoges, descobriu um cometa novo. Diz-se que, no enterro da mulher, Messier esqueceu-se por completo da falecida, ocupado que estava em amargar o cometa que havia perdido. Respondendo aos votos de condolência de um dos presentes ao funeral, Messier lamentou: "Ai de mim, Montaigne roubou-me meu décimo terceiro cometa".
A recompensa por longas noites em claro à caça de cometas é ter o nome registrado nos anais da astronomia. O procedimento de praxe é batizar o cometa visto pela primeira vez com o nome de seu descobridor ou descobridores; não raro, duas ou até três pessoas fazem observações independentes e simultâneas. Em poucos casos, como o do Halley, o cometa não leva o nome do descobridor, mas do cientista que calculou sua órbita. O cometa Crommelin é outro exemplo. Esse astro foi descoberto em 1818 por Jean-Louis Pons, zelador do Observatório de Marselha que se tornou inveterado caçador de cometas. O mesmo cometa foi avistado novamente em 1873 e 1928, mas em cada uma dessas oportunidades julgou-se estar perante uma nova descoberta, e houve outros batismos. Finalmente, o astrônomo Andrew C. D. Crommelin, do Observatório de Greenwich, estabeleceu que todas aquelas aparições haviam sido feitas pelo mesmo cometa e previu seu retorno em 1956. A essa altura, o nome do cometa (que, de certo modo, tinha quatro descobridores) já fora alterado para Crommelin pela União Astronômica Internacional, de acordo com a decisão de limitar as designações de cometas aos nomes de, no máximo, três co-descobridores. As convenções foram alteradas novamente em anos recentes para se coadunarem com uma faceta inédita da astronomia: a descoberta de cometas por naves espaciais, ao invés de pessoas. Em 1983, o Satélite Astronômico Infravermelho (iras, na sigla em inglês) descobriu cinco novos cometas, o mais famoso deles devidamente batizado como IRAS-Araki-Alcock. Os dois últimos, o japonês Genichi Araki e o inglês George Alcock, são astrônomos amadores que fotografaram pela primeira vez o cometa com telescópios domésticos.
Os amadores são geralmente os mais incansáveis caçadores de cometa. Como reparou o astrônomo e escritor britânico Patrick Moore, a caça aos cometas entusiasma os amadores, pois dispensa o uso de telescópios verdadeiramente potentes; bastam um grande campo de visão e um médio poder de ampliação, o que torna ideal o uso de binóculos potentes e bem montados.
A caça ao cometa é um esporte que também requer paciência, infinita paciência. Na Nova Zelândia, o amador Rodney Austin perscrutou os céus durante catorze anos até fazer sua primeira descoberta, em 1982. Enquanto os profissionais, em sua maioria, têm os olhos voltados para paisagens espaciais mais grandiosas, como galáxias, quasars e nebulosas, os amadores passam horas na tentativa de encontrar um cometa obscuro indo em direção ao Sol. Alcock, professor inglês, é um caso típico. Com um binóculo, ele descobriu diversos cometas, dois deles em apenas uma semana. Kaoru Ikeya construiu seu próprio telescópio, e, durante anos, noite após noite, ficou a observar os céus do Japão, para conseguir algum renome e, dessa forma, limpar o nome da família da vergonha causada pelos fracassos do pai. Suas descobertas foram registradas, sobretudo, na década de 60, incluindo-se aí o conspícuo cometa Ikeya-Seki de 1965. Tsutomu Seki, professor de violão clássico, era outro amador. Entre os demais caçadores de cometas amadores altamente bem-sucedidos dos últimos tempos contam- se o australiano Charles Bradfield, o sul-africano Jack Bennett e o americano Leslie Peltier. O posto de validação de descobertas de cometas, tanto para amadores como para profissionais, é o Observatório Astrofísico Smithsonian, em Cambridge, Massachusetts, onde Brian Marsden coleta, revisa e divulga os relatórios de idas e vindas de cometas.
Alguns dos amadores ascenderam à condição de profissionais. Pons, por exemplo, não permaneceu como zelador de observatório pelo resto da vida: foi promovido ao cargo de diretor do observatório. Edward Barnard, um dos mais renomados caçadores de cometa dos Estados Unidos na passagem do século, fotógrafo profissional, foi o primeiro a descobrir um cometa por meio de uma foto do céu noturno. Passado algum tempo, abandonou os cometas para se dedicar a uma ilustre carreira como observador de estrelas, uma das quais, aliás, foi batizada com seu nome.
Antes e depois disso, muitos foram os cometas e seus caçadores, mas nunca houve uma sensação tão grande de expectativa entre os aficionados quanto nos derradeiros dias de 1758. Edmond Halley falecera havia muito. Toda a comunidade científica, porém, lembrava-se de sua previsão. Logo, como os caçadores de cometa teriam a oportunidade de constatar, a "posteridade imparcial" encontraria os melhores motivos para se lembrar de seu nome e da descoberta de que os cometas podem ser vistos repetidas vezes, com regularidade previsível.

(Richard Flaste, Holcomb Noble, Walter Sullivan e John Noble Wilford - HALLEY: TUDO SOBRE O COMETA)

publicado às 03:00



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