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A Solidão dos Moribundos 2

por Thynus, em 13.05.16
(Continuação de Solidãos dos Moribundos 1)
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Até o modo como é utilizada a expressão “os mortos” é curioso e revelador. Dá a impressão de que as pessoas mortas em certo sentido ainda existem não só na memória dos vivos, mas independentemente deles. Os mortos, porém, não existem. Ou só existem na memória dos vivos, presentes e futuros. É especialmente para as desconhecidas gerações futuras que aqueles que estão agora vivos se voltam com tudo o que é significativo em suas realizações e criações. Mas nem sempre se dão conta disso. O medo de morrer é sem dúvida também um medo de perda e destruição daquilo que os próprios moribundos consideram significativo. Mas só o tribunal daqueles que ainda não nasceram pode decidir se o que parece significativo para as gerações anteriores será também significativo, para além de suas vidas, para as outras pessoas. Mesmo as lápides, em sua simplicidade, dirigem-se a esse tribunal — talvez um passante venha a ler na pedra, julgada imperecível, que ali estão enterrados tais pais, tais avós, tais filhos. O que está escrito na pedra é uma mensagem muda dos mortos para quem quer que esteja vivo — um símbolo de um sentimento talvez ainda não articulado de que a única maneira pela qual uma pessoa morta vive é na memória dos vivos. Quando a cadeia da recordação é rompida, quando a continuidade de uma sociedade particular ou da própria sociedade humana termina, então o sentido de tudo que seu povo fez durante milênios e de tudo o que era significativo para ele também se extingue.
Hoje ainda é um tanto difícil dar uma ideia da dimensão da dependência das pessoas em relação às outras. Que o sentido de tudo o que uma pessoa faz esteja no que ela significa para os outros, não apenas para os que agora estão vivos, mas também para as gerações futuras, que ela seja, portanto, dependente da continuidade da sociedade humana por gerações, é certamente uma das mais fundamentais das mútuas dependências humanas, daqueles do futuro em relação aos do passado, daqueles do passado em relação aos do futuro. Mas uma compreensão dessa dependência é particularmente impedida hoje pela recusa de enfrentar a finitude da vida individual, inclusive a nossa própria, e a dissolução próxima de nossa própria pessoa, e de incluir esse conhecimento na maneira como vivemos nossa vida — em nosso trabalho, em nosso prazer e, acima de tudo, em nosso comportamento em relação aos outros.
Muitas vezes, as pessoas hoje se veem como indivíduos isolados, totalmente independentes dos outros. Perseguir os próprios interesses — vistos isoladamente — parece então a coisa mais sensata e gratificante que uma pessoa poderia fazer. Nesse caso, a tarefa mais importante da vida parece ser a busca de sentido apenas para si mesmo, independente das outras pessoas. Não é de surpreender que as pessoas que procuram essa espécie de sentido achem absurdas suas vidas. Raramente, e com dificuldade, as pessoas podem ver a si mesmas, em sua dependência dos outros — uma dependência que pode ser mútua —, como elos limitados na cadeia das gerações, como quem carrega uma tocha numa corrida de revezamento, e que por fim a passará ao seguinte.
No entanto, o recalcamento e o encobrimento da finitude da vida humana individual certamente não é, como às vezes se diz, uma peculiaridade do século XX. É provavelmente uma reação tão antiga quanto a consciência dessa finitude, quanto o pressentimento da própria morte. No curso da evolução biológica, podemos supor, desenvolveu-se nos seres humanos uma espécie de entendimento que lhes permitiu relacionar o fim que conheciam no caso de outras criaturas — algumas das quais lhes serviam de alimento — a si mesmos. Graças a um poder de imaginação exclusivo entre as criaturas vivas, vieram gradualmente a conhecer de antemão o fim como conclusão inevitável de toda vida humana. Mas junto com essa previsão do próprio fim provavelmente ocorreu, desde o início, uma tentativa de suprimir esse conhecimento indesejado e encobri-lo com noções mais satisfatórias. E aí a singular capacidade humana de imaginação veio em sua ajuda. O conhecimento indesejado e as fantasias encobridoras são, portanto, provavelmente fruto do mesmo estágio de evolução. Hoje, com imenso acúmulo de experiência, não podemos mais deixar de perguntar-nos se esses sonhos complacentes não têm, a longo prazo, consequências bem mais indesejáveis e perigosas para os seres humanos em sua vida comunal que o conhecimento bruto e sem retoques.
O encobrimento e o recalcamento da morte, isto é, da finitude irreparável de cada existência humana, na consciência humana, são muito antigos. Mas o modo do encobrimento mudou de maneira específica com o correr do tempo. Em períodos anteriores, fantasias coletivas eram o meio predominante de lidar com a noção de morte. Ainda hoje, é claro, desempenham um importante papel. O medo de nossa própria transitoriedade é amenizado com ajuda de uma fantasia coletiva de vida eterna em outro lugar. Como a administração dos medos humanos é uma das mais importantes fontes de poder das pessoas sobre as outras, uma profusão de domínios se estabeleceu e continua a se manter sobre essa base. Com a grande escalada da individualização em tempos recentes, fantasias pessoais e relativamente privadas de imortalidade destacam-se mais frequentemente da matriz coletiva e vêm para o primeiro plano.(Tenho a sensação de que Ariès, a despeito de uma admirável erudição que se estende às fantasias de imortalidade contemporâneas, não faz justiça à estrutura da mudança de que nos ocupamos — outra vez porque lhe faltam os modelos teóricos dos processos de longa duração e, assim, o conceito de um impulso à individualização. Escreve com patente desprezo, quase aversão, sobre as fantasias de imortalidade dos contemporâneos, contrastando-as cruamente com o que acredita tenha sido a atitude tradicional de calma espera pela morte. Cita com aprovação, fazendo uma crítica velada aos contemporâneos, o Pavilhão dos cancerosos, de Solzhenitsyn: “Eles não se rebelaram, nem resistiram, nem afirmaram que nunca morreriam”, escreve sobre as pessoas de concepções tradicionais (Studien zur Geschichte, p.25). Realmente não sei se os contemporâneos se rebelam mais. A maioria das pessoas com fantasias de imortalidade que conheço está ciente de que são fantasias. De todo modo, o que está em questão aqui tem uma estrutura claramente discernível. Em tempos passados, fantasias coletivas institucionalizadas que garantiam a imortalidade individual tinham a primazia, e o peso que recebiam da institucionalização e das crença coletiva tornava quase impossível reconhecer essas noções como fantasias. Hoje, o poder dessas ideias coletivas sobre as mentes das pessoas diminuiu, de tal forma que fantasias individuais de imortalidade, às vezes reconhecidas como tais, tendem a surgir em primeiro plano. Modelos teóricos de processos de longa duração, tais como os expressos no conceito de um perdão impulso de crescente individualização, não são dogmas. Com seu auxílio não é preciso, e nem possível, violar os dados observáveis. Tais modelos podem ser mudados, dogmas como substitutos de teoria são inflexíveis. Não se pode deixar de lamentar, dada a grande riqueza do conhecimento de Ariès. Seria muito bom se ele pudesse se convencer de que dogmas preconcebidos tornam os pesquisadores cegos mesmo em relação a estruturas que são quase palpavelmente óbvias, como a da transição das fantasias de imortalidade de um estágio em que predominam as fantasias coletivas altamente institucionalizadas para outro, em que fantasias individuais e relativamente privadas surgem com mais força.)
Freud sustentava que a instância psicológica que chamava de “isso”, a camada mais animal da psiquê, mais próxima do estado natural primitivo, que tratava quase como uma pequena pessoa, se acredita imortal. Mas não penso que possamos aceitar tal afirmação. No âmbito do isso uma pessoa não tem capacidade de prever e, portanto, não tem nenhuma noção antecipada sobre sua própria mortalidade. Sem esse conhecimento, a ideia compensatória da imortalidade pessoal não pode ser explicada: não teria função. Freud atribui aos impulsos do isso, que estão inteiramente voltados para o aqui e agora, um nível de reflexão que não podem atingir.
Muitas outras fantasias descobertas por Freud se agrupam em torno da imagem da morte. Já me referi aos sentimentos de culpa, à noção da morte como punição por más ações cometidas. É uma questão aberta a ajuda que se pode dar aos moribundos aliviando angústias profundas referentes a punições por ofensas imaginárias — muitas vezes infantis. A instituição eclesiástica do perdão e da absolvição mostra uma compreensão intuitiva da frequência com que angústias de culpa se associam ao processo da morte, e Freud foi o primeiro a oferecer uma explicação científica para elas. Não pode ser minha tarefa aqui abordar todos os vários motivos fantasísticos associados à ideia de nossa própria morte e ao processo de morrer. Mas não se pode subestimar o fato de que, tanto no mundo mágico de fantasias dos povos mais simples, quanto nas correspondentes fantasias individuais de nossos dias, a imagem da morte está intimamente ligada à de matar. Povos mais simples experimentam as mortes de pessoas socialmente poderosas, pelo menos, como alguma coisa que alguém fez a elas, como uma espécie de assassinato. Os sentimentos dos sobreviventes estão envolvidos. Não colocam a questão mais distante da causa impessoal da morte. Como é sempre o caso quando fortes emoções estão envolvidas, procura-se um culpado. Só quando sabem quem ele é podem esperar vingar-se e descarregar as paixões despertadas pela morte. Não podem vingar-se de uma causa impessoal. Impulsos desse tipo, que em sociedades mais simples guiam diretamente as ações e pensamentos das pessoas, também desempenham um papel indiscutível no comportamento dos adultos em sociedades mais desenvolvidas. Mas nesse caso não têm controle direto sobre o comportamento. É o caso ainda com as crianças pequenas, mas sua fraqueza física normalmente oculta dos adultos a intensidade de seus impulsos afetivos. Além disso, as crianças pequenas não podem distinguir de maneira apropriada entre o desejo de agir e o ato realizado, entre a fantasia e a realidade. O surgimento espontâneo do ódio e dos desejos de morte têm para eles poder mágico; o desejo de matar mata. As crianças em nossa sociedade às vezes ainda são capazes de exprimir tais desejos abertamente. “Então colocaremos o papai na lata de lixo”, disse o filhinho de um amigo com evidente prazer, “e fecharemos a tampa.” Provavelmente se sentiria culpado se seu pai realmente tivesse se ido. A filhinha de outro amigo assegurava a todos os que se dispusessem a ouvir que não era culpa dela o fato de sua mãe estar tão doente e ter que “ser operada”.
Encontramos aqui um componente adicional da particular aversão que hoje muitas vezes afeta as pessoas na presença de um moribundo, ou — é preciso acrescentar — da especial atração que moribundos, sepulturas e cemitérios exercem sobre algumas pessoas. As fantasias destas últimas poderiam ser resumidas aproximadamente com as palavras: “Eu não os matei!” Por outro lado, a proximidade de moribundos ou sepulturas às vezes desperta nas pessoas não apenas o medo da própria morte, mas desejos de morte e angústias de culpa suprimidos, resumidos na pergunta “Poderia eu ser culpado de sua morte? Desejei eu vê-los mortos por odiá-los?”.
Mesmo adultos em sociedades industriais mais desenvolvidas têm níveis mágicos de experiência que se opõem a explicações impessoais e objetivas de doenças e mortes. A força do choque que a morte de um dos pais produz nos adultos é um sinal disso. Pode ser parcialmente conectada à profunda identificação entre filhos e pais, ou entre outras pessoas com laços emocionais próximos: isto é, pode ser conectada à experiência de outras pessoas como parte ou extensão de nós mesmos. O sentimento de que um companheiro perdido era “parte de mim” é encontrado em relações dos tipos mais diferentes — entre pessoas casadas há muito tempo, amigos, filhos e filhas. Mas nestes últimos, a morte de um pai ou de uma mãe muitas vezes desperta desejos de morte enterrados e esquecidos, associados a sentimentos de culpa e, em alguns casos, ao medo da punição. A aguda intensificação desses sentimentos pode enfraquecer as fantasias compensatórias de imortalidade pessoal.
Tais fantasias, como já disse, tornaram-se mais frequentes em conjunção com a individualização mais acentuada dos tempos recentes. Entretanto, fantasias coletivas de imortalidade altamente institucionalizadas continuam a existir com vigor apenas ligeiramente menor em nossas sociedades. Um manual escolar perfeitamente sensato descreve o que as pessoas dizem às crianças quando uma pessoa morre:

“Seu avô está no céu agora” — “Sua mamãe olha para você lá do céu” — “Sua irmãzinha agora é um anjo”.
(Religion, Bilder und Wörter, org. Hans-Dieter Bastian, Hana Rauschenberger, Dieter Stoodt e Klaus Wegenast, Düsseldorf, 1974, p.121.)
O exemplo mostra quão firmemente arraigada está em nossa sociedade a tendência a ocultar a finitude irrevogável da existência humana, especialmente das crianças, pelo uso de ideias coletivas acalentadoras, e a assegurar o encobrimento por uma rígida censura social estrita.
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Numa área sociobiológica diferente, mas também isolada por uma complexa estrutura de normas sociais — a área das relações sexuais —, uma mudança perceptível teve lugar nos últimos anos. Nessa esfera, um bom número de barreiras civilizadoras que eram previamente consideradas evidentes e indispensáveis foi desmontado. A aceitação social de comportamentos previamente sob tabu absoluto se tornou possível. Problemas sexuais podem ser discutidos publicamente num novo patamar de franqueza mesmo com crianças. O segredo sobre as práticas sexuais e muitas proibições em torno delas, que serviam a instituições estatais e clericais como instrumentos de dominação, deram lugar, num grau inimaginável na era vitoriana, a maneiras mais abertas e pragmáticas de comportamento e fala. A maior exposição nessa área levou a novos problemas e a um período de experimentação com novas soluções, tanto na prática social quanto na pesquisa empírica e teórica. Isso talvez venha a definir com maior exatidão as funções das regras sociais na esfera sexual — tanto em relação ao desenvolvimento individual quanto à vida comunitária. Mas já está claro que uma série inteira de regras sexuais tradicionais, que se formaram durante o avanço não planejado do processo civilizador, tinha função apenas para a certos grupos hegemônicos, para relações de poder específicas, como aquelas entre monarca e súdito, homens e mulheres ou pais e filhos. Apareceram como mandamentos morais eternos enquanto um grupo esteve firmemente estabelecido como dominante, e perderam muito de sua função e plausibilidade quando surgiu uma distribuição ligeiramente menos desigual do poder. Isso tornou possível experimentar outros padrões de comportamento no campo sexual, e assim também outros padrões de autocontrole compatíveis com um modo mais equilibrado de vida em comum, permitindo uma relação menos frustrante entre o controle dos instintos e sua realização.
O relaxamento dos tabus sexuais já sem função ficou particularmente perceptível na educação dos adolescentes e no comportamento dos adultos em relação a eles. No começo do século XX, o muro de silêncio entre adultos e crianças sobre essa questão era quase intransponível. Relações sexuais entre adolescentes, caso descobertas, eram muitas vezes punidas severamente. A sexualidade era uma esfera de segredo sobre a qual as crianças podiam falar, no máximo, entre si, mas raramente com os adultos, especialmente os pais, e de maneira alguma com os professores. A severidade da compulsão social à ocultação, a pesada pressão social sobre os impulsos sexuais de rapazes e moças solteiros e os riscos sociais aos quais eles e, claro, também os adultos se expunham de todos os lados quando deixavam de controlar os impulsos sexuais como requeria a estrutura normativa deixaram os indivíduos por algum tempo sozinhos com os desejos frequentemente selvagens e apaixonados de sua idade — o que levou a essa forma de puberdade prolongada assolada permanentemente pela crise, que era vista na época como algo determinado pela natureza. Hoje ela aparece cada vez mais claramente como uma forma de puberdade produzida por um código transitório de moralidade.
Nesse meio tempo, o segredo que cercava a esfera sexual diminuiu. Para pais e professores tornou-se possível, em certa medida dependendo da idade, falar com as crianças sobre problemas sexuais sem quebrar tabus sociais ou ter que enfrentar barreiras de vergonha pessoal e embaraço. Não é mais preciso proteger as crianças com vagas alusões ou pequenas mentiras quando perguntam de onde vêm os bebês. Em suma, nessa área de risco da vida social humana — a sexualidade — os padrões de controle social, a prática social e a consciência pessoal mudaram consideravelmente em conjunto durante o século XX. Uma estratégia de encobrimento e recalcamento, particularmente na relação entre grupos de certa posição social e poder e as gerações emergentes, estratégia que parecia àqueles comprometidos com ela autoevidente e necessária para a sobrevivência da sociedade humana, isto é, como moral per se, mostrou-se na prática um elo funcional dentro de uma sociedade fundada sobre estruturas de poder específicas. Quando essas estruturas foram substituídas por uma distribuição de poder menos desigual — entre dominadores e dominados, entre os sexos e as gerações —, também mudou a estratégia de repressão. A ordem não cedeu ao caos quando o alto patamar vitoriano de vergonha e embaraço em torno da vida sexual se reduziu, e o segredo formalizado deu lugar a um comportamento e um discurso mais abertos.
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Em relação à morte, a tendência a isolá-la e ocultá-la tornando-a uma área especial dificilmente terá diminuído desde o século XIX, tendo possivelmente aumentado. Talvez só comparando as diferentes zonas de risco biossocial em diferentes estágios de desenvolvimento social se perceba a desigualdade na ascensão e queda dos tabus, da formalização e informalização nessas diferentes áreas da vida social, embora na experiência das pessoas os perigos derivados da morte e dos instintos possam estar intimamente ligados. As atitudes defensivas e o embaraço com que, hoje, as pessoas muitas vezes reagem a encontros com moribundos e com a morte são comparáveis às reações das pessoas a encontros abertos com aspectos da vida sexual na era vitoriana. Em relação à vida sexual, um relaxamento limitado, mas perceptível, se instalou; o constrangimento social e talvez individual não é mais tão rígido e maciço como costumava ser. Mas em relação à agonia e à morte, a repressão e o embaraço possivelmente aumentaram. Claramente, a resistência a tratar a morte abertamente, numa relação mais descontraída com os moribundos, é mais forte que no caso da sexualidade.
Pode-se supor que diferenças no grau de risco envolvido desempenhem um papel nessa questão. O perigo que a sexualidade irrestrita ou super-restrita representa é, pode-se dizer, um perigo parcial. Estupradores ou indivíduos sexualmente frustrados podem representar uma ameaça para os outros e para si mesmos, mas, via de regra, não morrem disso — a vida continua. Comparada a essa ameaça, a da morte é total. A morte é o fim absoluto da pessoa. Assim, a maior resistência a sua desmitologização talvez corresponda à dimensão do temor experimentado.
Mas ao refletir sobre tais questões não podemos ignorar o fato de que não é a própria morte que desperta temor e terror, mas a imagem antecipada da morte. Se eu caísse morto aqui e agora sem qualquer dor, isso não seria minimamente assustador para mim. Não estaria mais aqui, e, consequentemente, não sentiria o terror. O terror e o temor são despertados somente pela imagem da morte na consciência dos vivos. Para os mortos não há temor nem alegria.
Há, portanto, uma ligação fundamental entre os dois aspectos da vida discutidos antes. E ela pode ser facilmente ignorada. Tanto a sexualidade como a morte são fatos biológicos moldados pela experiência e pelo comportamento de maneira socialmente específica, isto é, de acordo com o estágio alcançado pelo desenvolvimento da humanidade, e da civilização como um aspecto desse desenvolvimento. Cada indivíduo assume os padrões sociais comuns à sua própria maneira. Se percebemos que o determinante na relação das pessoas com a morte não é simplesmente o processo biológico desta, mas a ideia, em constante evolução e específica do estágio da civilização, que se tem dela e a atitude associada a isso, o problema sociológico da morte aparece com contornos mais claros. Torna-se mais fácil perceber pelo menos algumas das características específicas das sociedades contemporâneas, e das estruturas de personalidade associadas a elas, que são responsáveis pela peculiaridade da imagem da morte, e, portanto, pela natureza e pelo grau de recalcamento da morte em sociedades mais desenvolvidas. 
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Essas características específicas incluem, em primeiro lugar, a extensão da vida individual nessas sociedades, como já foi dito. Numa sociedade com uma expectativa de vida de 75 anos, a morte para uma pessoa de 20 ou mesmo 30 anos é consideravelmente mais remota que numa sociedade com uma expectativa de vida de 40. É fácil compreender que, na primeira, uma pessoa seja capaz de manter a ideia da morte à distância durante um período maior de sua vida.(Mas talvez houvesse menos acidentes de estrada nessas sociedades se as pessoas não a mantivessem a tal distância) Mesmo em sociedades avançadas, um perigo objetivo de morte está sempre presente, como deve ser para todas as coisas vivas. Mas pode ser esquecido. Para parte considerável dessas sociedades, a morte ainda está bem distante. No outro caso, em sociedades menos desenvolvidas com uma expectativa de vida mais curta, a incerteza é maior. A vida é mais curta, a ameaça da morte é trazida mais insistentemente à consciência, a ideia da morte é mais presente, e práticas mágicas para lidar com essa angústia maior, embora oculta, pela integridade da vida e do corpo, práticas que andam de mãos dadas com a maior insegurança, são amplamente difundidas.
A segunda característica específica das sociedades contemporâneas aqui relevante é a experiência da morte como estágio final de um processo natural, experiência que ganhou significação pelo progresso na ciência médica e em medidas práticas para elevar o padrão de higiene. A ideia de um processo natural ordenado é característica de um estágio específico no desenvolvimento do conhecimento e da sociedade. Essa concepção da natureza está tão estabelecida em sociedades mais desenvolvidas que dificilmente tomamos consciência do quanto nossa confiança nas inabaláveis leis da natureza contribui para a sensação de segurança diante dos fatos naturais, característica das pessoas em sociedades que vivem sob o signo da ciência. Como tomam por certa essa segurança, e talvez a imaginem como emanando da racionalidade humana, em geral não compreendem a incerteza muito maior que as pessoas em sociedades pré-científicas sentem diante do que nós — mas não elas — experimentamos como um nexo impessoal de eventos naturais. A imagem da morte que prevalece nas sociedades mais desenvolvidas é fortemente influenciada por esse conhecimento reconfortante. As pessoas bem sabem que a morte chegará; mas saber que ela é o fim de um processo natural ajuda a aliviar a angústia. O conhecimento da implacabilidade dos processos naturais é aliviado pelo conhecimento de que, dentro de certos limites, eles são controláveis. Mais do que nunca, podemos hoje esperar — com a habilidade dos médicos, a dieta e os remédios — o adiamento da morte.
Nunca antes na história da humanidade os métodos mais ou menos científicos de prolongar a vida foram discutidos de maneira tão incessante em toda a sociedade como em nossos dias. O sonho do elixir da vida e da fonte da juventude é muito antigo, mas só assumiu uma forma científica — ou pseudocientífica — em nossos dias. A constatação de que a morte é inevitável está encoberta pelo empenho em adiá-la mais e mais com ajuda da medicina e da previdência, e pela esperança de que isso talvez funcione.

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Profundamente ligada a essas características da estrutura e da experiência das sociedades contemporâneas, há uma terceira que é responsável por traços comuns da imagem da morte e da atitude em relação a ela — o grau relativamente alto de pacificação interna nessas sociedades. Ligado a isso está o fato de que as pessoas que formam essas sociedades normalmente visualizam a morte de maneira bem específica. Quando tentam imaginar o processo, provavelmente pensam primeiro numa morte pacífica na cama, resultado de doença ou do enfraquecimento causado pela velhice. Esse retrato da morte que dá ênfase ao caráter natural do processo aparece como normal, ao passo que a morte violenta, particularmente pelas mãos de outra pessoa, aparece como excepcional e criminosa. O fato de que essa segurança física contra a violência dos outros não seja tão grande em todas as sociedades como na nossa não é tão claramente percebido.
É, portanto, necessário dizer que o grau relativamente alto de proteção contra a violência causada por terceiros, de que gozam os membros das sociedades mais desenvolvidas, e o tratamento da morte violenta como algo excepcional e criminoso não surgem da visão pessoal das pessoas envolvidas, mas de uma organização muito específica da sociedade — um monopólio relativamente eficaz da violência física. Tal monopólio não pode ser alcançado de um dia para outro; resulta de um longo e, em larga medida, não planejado desenvolvimento. Em sociedades desse tipo atingiu-se um ponto em que os dirigentes permitem o uso da violência apenas a grupos específicos controlados por eles. Em muitos casos somente eles — a polícia e as forças armadas — são autorizados a portar armas sem risco de punição e, mesmo, a usá-las em certas situações. Em termos gerais, foi só nos últimos duzentos ou trezentos anos que a organização dos Estados europeus e de seus descendentes atingiu o grau e padrão de monopólio efetivo no controle da violência que tornou possível o relativo domínio das paixões e a relativa exclusão da violência das relações humanas, hoje tida como assegurada nas sociedades mais desenvolvidas, e aos quais as relações humanas implícitas na produção e distribuição de bens devem seu caráter específico como relações econômicas. Pois onde a coerção direta por meio da violência física determina a produção e distribuição de bens, nas formas de rapina, guerra e escravidão, esses processos não têm realmente o caráter propriamente econômico; são dificilmente calculáveis e lhes faltam as regularidades recorrentes e quantificáveis, fundamento da ciência da economia, e inerentes à “economia” não violenta como esfera especial da sociedade. Em sociedades que carecem de tais instituições altamente especializadas de monopólio da violência física, e particularmente em sociedades guerreiras, ataques físicos de pessoas umas contra as outras pessoas são um aspecto muito mais normal da vida social. Se não todos, pelo menos os membros do estrato mais alto nessas sociedades portam armas como apêndice indispensável em sua interação com os outros. Pessoas fisicamente fracas ou incapacitadas, velhos, mulheres e crianças permanecem em geral confinados à casa ou ao castelo, vilarejo ou quarteirão urbano habitado por seu próprio povo; só podem aventurar-se fora com proteção especial.
O desenvolvimento da estrutura da personalidade toma, nessas sociedades, uma direção diferente daquele das sociedades industriais altamente organizadas. A prontidão para o ataque e a defesa no combate físico, pelo menos entre os homens, é maior, a expectativa de morte em confronto sangrento com outros está constantemente presente, a expectativa de morrer pacificamente na cama é excepcional. Aqui também vemos em que medida estruturas de personalidade e concepções a elas relacionadas, inclusive a imagem da morte, concepções que em nossa própria sociedade tendemos a tomar como certas e talvez a imaginar como características humanas universais, são na realidade influenciadas por peculiaridades da estrutura social que se cristalizaram gradualmente no curso de um longo processo social.
De todo modo, mesmo em sociedades que estão internamente pacificadas, a expectativa de morrer na cama é mais enganosa do que parece à primeira vista. Afora os números bastante elevados de acidentes e homicídios, conflitos grupais que tendem à solução violenta aumentam em nossos dias, conflitos cujos participantes acreditam que só podem ser resolvidos pela morte de seus inimigos e pelo sacrifício dos membros do próprio grupo, e que são em geral planejados, mesmo em tempos de paz, como lutas violentas de vida e morte.
Entre os problemas de nossa época que talvez mereçam maior atenção, portanto, figura o da transformação psicológica sofrida por pessoas que fazem a transição de uma situação em que o assassinato de outras pessoas é estritamente proibido e rigorosamente punido para uma situação em que a morte dos outros, seja pelo Estado, pelo partido ou outro grupo, não só é socialmente permitida como explicitamente demandada.
Se falamos de um processo civilizador em cujo decorrer os moribundos e a morte são resolutamente banidos para os bastidores da vida social e cercados por sentimentos relativamente intensos de constrangimento e tabus verbais relativamente rígidos, devemos qualificar a afirmação acrescentando que as experiências das duas grandes guerras europeias, e talvez ainda mais a dos campos de concentração, mostram a fragilidade da consciência que proíbe matar e por isso insiste na segregação dos moribundos e dos mortos, tanto quanto possível, da vida social normal. Os mecanismos de autocoerção envolvidos na repressão da morte em nossas sociedades claramente se desintegram de modo relativamente rápido quando o mecanismo externo de coerção imposto pelo Estado — ou por seitas ou grupos de combate —, fundado em doutrinas e crenças coletivas respeitadas, muda violentamente de rota e ordena matar outras pessoas. Nas duas guerras mundiais, a sensibilidade em relação a matar, em relação aos moribundos e à morte se evaporou rapidamente para a maioria das pessoas. Como a equipe dos campos de concentração se ajustou psicologicamente aos assassinatos em massa diários é uma questão aberta que mereceria investigação cuidadosa. Essa questão é muitas vezes obscurecida pela questão de quem é o culpado por tais acontecimentos. Mas, para a prática social, e com o propósito de evitar tais acontecimentos, a primeira questão, mais factual, é de importância capital. A resposta estereotipada “Eu obedecia ordens” mostra em que medida a estrutura da consciência individual ainda dependia do mecanismo externo de coerção do Estado.

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A quarta característica específica das sociedades desenvolvidas que merece menção como precondição da peculiaridade de sua imagem da morte é o alto grau e padrão específico de individualização. A imagem da morte na memória de uma pessoa está muito próxima de sua imagem de si mesma e dos seres humanos prevalecente em sua sociedade. Em sociedades mais desenvolvidas as pessoas em geral se veem como seres individuais fundamentalmente independentes, como mônadas sem janelas, como “sujeitos” isolados, em relação aos quais o mundo inteiro, incluindo todas as outras pessoas, representa o “mundo externo”. Seu “mundo interno”, aparentemente, é separado desse “mundo externo”, e portanto das outras pessoas, como que por um muro invisível. Esse modo específico de experimentar a si mesmo, a autoimagem do homo clausus característica de um estágio recente da civilização, está intimamente ligado a um modo igualmente específico de experimentar, como antecipação de nossa própria morte e provavelmente na situação real, nosso próprio ato de morrer. Mas a pesquisa sobre a morte — por razões que não são independentes da repressão social — ainda está num estado incipiente. Há ainda muito a fazer para uma melhor compreensão da experiência e das necessidades dos moribundos e da conexão entre tal experiência e tais necessidades, de um lado, e o modo de vida e autoimagem, de outro. De forma velada, com a ajuda de conceitos como “mistério” e “nada”, escritos existencialistas às vezes projetam uma imagem quase solipsista de um ser humano em agonia. O mesmo pode ser dito do “teatro do absurdo”. Seus expoentes também partem implicitamente — e às vezes explicitamente — da suposição de que a vida de uma pessoa, como a veem — isto é, a vida de um ser fundamentalmente isolado e hermeticamente segregado do mundo —, deve ter um sentido, e talvez mesmo um sentido predeterminado, apenas em si mesma e para si mesma. Sua busca pelo sentido é uma busca pelo sentido de uma pessoa individual em isolamento. Quando deixam de encontrar essa espécie de sentido, a existência humana lhes parece sem sentido; sentem-se desiludidos; e o vazio de sentido assim estabelecido para a vida humana geralmente encontra a seus olhos sua expressão suprema na constatação de que cada ser humano deve morrer.
É fácil compreender que uma pessoa que acredite viver como um ser sem sentido morra da mesma forma. Mas essa compreensão do conceito de sentido é tão enganadora quanto a imagem do ser humano a que corresponde. A categoria do “sentido” também é aqui marcada pela imagem do homo clausus. O fato peculiar de que, pela mediação da linguagem, dados de todos os tipos, inclusive nossa própria vida, podem ter sentido para as pessoas foi durante um bom tempo objeto de copiosas reflexões filosóficas. Mas, com poucas exceções, essas meditações tentam obter acesso ao problema do sentido postulando como “sujeito” deste — à maneira tradicionalmente filosófica — um indivíduo humano num vácuo, uma mônada isolada, um “eu” enclausurado, e então talvez, num nível mais alto de generalidade, o ser humano isolado ou, se for o caso, a consciência como um universal. De maneira expressa ou não, espera-se então que cada pessoa por si mesma, precisamente como mônada isolada, deva ter um sentido, e a falta de sentido da existência humana é lamentada quando ele não é descoberto.
Mas o conceito de sentido não pode ser compreendido por referência a um ser humano isolado ou a um universal derivado dele. O que chamamos de “sentido” é constituído por pessoas em grupos mutuamente dependentes de uma forma ou de outra, e que podem comunicar-se entre si. O “sentido” é uma categoria social; o sujeito que lhe corresponde é uma pluralidade de pessoas interconectadas. Em suas relações, sinais que trocam entre si — que podem ser diferentes para cada grupo — assumem um sentido, um sentido comunal, para começar.
Grupos humanos que falam uma língua comum podem servir como modelo básico, ponto de partida para qualquer discussão sobre problemas de sentido. A comunicação por meio de línguas é uma característica exclusivamente humana, tanto quanto a exigência de sentido. Nenhuma outra coisa viva se comunica dessa maneira; nenhuma outra atribui sentidos aprendidos e específicos do grupo a padrões sensoriais igualmente aprendidos e também específicos do grupo, utilizados como meios de comunicação dominantes. Em todos os outros casos, sinais não aprendidos e específicos da espécie dominam a comunicação. Certamente, entre os humanos, padrões sonoros produzidos por uma pessoa podem ter um “sentido” para as outras. Mas só têm um sentido se — e porque — o emissor e o receptor aprenderam a associar aos conjuntos específicos de padrões sonoros as mesmas imagens mnemônicas, ou, em outras palavras, o mesmo sentido. Nesta forma, a mais elementar, de “sentido”, seu caráter social se mostra claramente. Assim, uma pessoa de língua inglesa pode esperar que, ao emitir o padrão sonoro “Que horas são?”, outra pessoa de língua inglesa associará a esse padrão sonoro à mesma imagem mnemônica que o emissor e responderá com um apropriado padrão sonoro, portador de imagens, como “Precisamente quatro e quinze”. Emitido nas ruas de Paris, o padrão sonoro “Que horas são?” em inglês pode não obter resposta alguma ou provocar um olhar de estranhamento. Os sons careceriam de sentido num contexto social diferente. Todo ser humano se torna vinculado aos outros desde a mais tenra idade aprendendo a usar, como meio de emitir e receber mensagens, um código de símbolos específicos do grupo, ou, em outras palavras, uma língua. Cada pessoa pode — dentro de certos limites — variá-lo individualmente; mas se for longe demais acaba por se privar — no presente ou no futuro — da comunicabilidade do conhecimento e também de seu sentido.
O sentido das palavras e o da vida de uma pessoa têm em comum o fato de que o sentido associado a elas por essa pessoa não pode ser separado do associado a elas por outras. A tentativa de descobrir na vida de alguém um sentido independente do que essa vida significa para as outras pessoas é inútil. Na práxis da vida social a conexão entre os sentimentos de uma pessoa e a consciência de que eles são significativos para outros seres humanos, e de que os outros são significativos para essa vida, é fácil de descobrir. Nesse plano, normalmente compreendemos sem dificuldade que expressões como “significativo” e “insignificante”, referidas a uma vida humana, estão intimamente ligadas ao que significa para os outros o que essa pessoa é ou faz. Mas, nas reflexões que a pessoa faz sobre si mesma, essa compreensão desaparece com facilidade. Aí, o sentimento amplamente difundido nas sociedades mais desenvolvidas com seus membros altamente individualizados — de que cada um existe apenas para si mesmo, independente de outros seres humanos e de todo o “mundo externo” — em geral acaba prevalecendo, e com ele a ideia de que uma pessoa deve ter um sentido exclusivamente seu. O modo tradicional de filosofar que vem junto com esse modo de pensar, e é ao mesmo tempo uma de suas principais manifestações, muitas vezes obstrui a inclusão daquilo que é imediatamente evidente na prática — a participação da pessoa num mundo de outras pessoas e “objetos” em reflexões de nível mais alto.
Todo ser humano vive de plantas e animais “externos”, respira ar “externo” e tem olhos para luzes e cores “externas”. Nasce de pais “externos” e ama ou odeia, faz amigos ou inimigos de pessoas “externas”. No nível da práxis social as pessoas sabem disso. Numa reflexão mais distanciada essa experiência é muitas vezes recalcada. Membros de sociedades complexas então têm frequentemente a experiência de si mesmos como seres cujo “self íntimo” é totalmente separado do “mundo externo”. Uma poderosa tradição filosófica parece ter legitimado essa dicotomia ilusória. Discussões sobre o sentido foram profundamente afetadas por isso. O “sentido” é em geral tratado como mensageiro do “mundo íntimo” de um indivíduo enclausurado.
O resultado, a distorcida autoimagem de uma pessoa como ser totalmente autônomo, pode refletir sentimentos muito reais de solidão e isolamento emocional. Tendências desse tipo são bastante características da estrutura de personalidade específica das pessoas de nossa época em sociedades altamente desenvolvidas e do tipo particular de individualização que nelas prevalece. O permanente autocontrole, nesse caso, está muitas vezes tão firmemente embutido nas pessoas que crescem nessas sociedades que é experimentado como uma muralha realmente existente, que bloqueia o afeto e outros impulsos espontâneos na direção de outras pessoas e coisas, afastando-as como consequência. Até aqui, o problema da solidão dos moribundos foi considerado acima de tudo em relação às atitudes dos vivos. Mas isso precisa ser complementado. Nessas sociedades, compreensivelmente, tendências a sentimentos de solidão e isolamento muitas vezes fazem parte da estrutura da personalidade dos próprios moribundos. Sempre há, é claro, diferenças relacionados a classe, sexo e geração. Pode-se supor que essas tendências são particularmente desenvolvidas em círculos acadêmicos, mais geralmente nas classes médias que nas classes operárias, talvez mais entre os homens do que entre as mulheres. Mas isso é, por ora, mera adivinhação, que tem por objetivo chamar a atenção para problemas que raramente são tocados e dizer que não foram esquecidos. De todo modo, nessas sociedades uniformemente pacificadas em que a vida comunitária demanda um controle completo e uniforme de todos os impulsos instintivos vulcânicos, um arrefecimento permanente das emoções violentas, há certas características comuns da estrutura da personalidade que transcendem a classe e outras diferenças de grupo. E elas emergem claramente apenas pela comparação com sociedades em diferente estágio de civilização. Essas características comuns incluem o alto grau de individualização, a ampla e constante contenção de todos os impulsos instintivos e emocionais fortes e uma tendência ao isolamento, que se dão paralelamente a essas estruturas da personalidade até agora.
Essa tendência também pode ser percebida nos moribundos. Podem resignar-se a ela ou, precisamente porque estão para morrer, tentar uma última oportunidade de transpor a muralha. Como quer que seja, necessitam mais que nunca da sensação de que não deixaram de ter sentido para outras pessoas — dentro de certos limites: a excessiva expressão de simpatia pode ser tão intolerável para eles como a falta dessa expressão. Seria incorreto falar de rejeição e reserva, induzidas pela civilização, dos vivos em relação aos moribundos em sociedades como a nossa sem indicar ao mesmo tempo o possível embaraço e reserva dos próprios moribundos em relação aos vivos.

15

A natureza especial da morte e de sua experiência em sociedades avançadas não pode ser entendida de maneira apropriada sem referência ao poderoso impulso à individualização que se estabeleceu com o Renascimento e que, com muitas flutuações, continua até hoje. Nas fases iniciais encontra expressão na ideia do contraste entre a vida sociável e a morte solitária — por exemplo, nas linhas de Opitz:

Tenho pouco para legar Mas tenho um nobre vinho; Alegrarei meus amigos Ainda que morra sozinho. 
(Martin Opitz, Weltliche Poemata 1644. Oden oder Gesänge XVIII)

Esse “sozinho”, a ideia de que se pode estar alegre com os outros mas se deve morrer só, pode parecer tão autoevidente hoje que nos inclinamos a ver nele uma experiência de todas as pessoas em todos os tempos e lugares. Mas essa ideia não é encontrada em todos os estágios do desenvolvimento humano. É muito menos universal que as tentativas das pessoas de encontrarem uma explicação de por que devem morrer. E desempenha um papel importante na mais antiga versão do épico sumério de Gilgamesh que possuímos, datado do começo do segundo século antes de Cristo. Por contraste, a ideia de ter que morrer só é característica de um estágio comparativamente tardio da individualização e da autoconsciência.
Esse “sozinho” aponta para um complexo de sentidos inter-relacionados. Pode referir-se à expectativa de que não é possível compartilhar o processo de morrer com ninguém. Pode expressar o sentimento de que com nossa morte o pequeno mundo de nossa própria pessoa, com suas memórias exclusivas e sentimentos e experiências só conhecidos por nós mesmos, com seus próprios conhecimento e sonhos, desaparecerá para sempre. Pode referir-se ao sentimento de que, ao morrer, somos deixados sós por todas as pessoas a que nos sentimos ligados. Como quer que seja visto, esse motivo do morrer isolado ocorre mais frequentemente no período moderno que em qualquer anterior. É uma das formas recorrentes da experiência das pessoas num período em que a autoimagem de alguém como um ser totalmente autônomo, não apenas diferente de todos os outros, mas separado deles, existindo inteiramente independente deles, torna-se cada vez mais marcada. A ênfase especial assumida no período moderno pela ideia de que se morre em isolamento equivale à ênfase, nesse período, do sentimento de que se vive só. Sob esse ponto de vista também a imagem de nossa própria morte está intimamente ligada à imagem de nós mesmos, de nossa própria vida, e da natureza dessa vida. Numa novela curta e não muito transparente, O senhor e o homem, Tolstoi contrasta a morte de um comerciante de origem camponesa com a de seu empregado camponês. O comerciante venceu na vida — por sua energia, sua atividade constante, sempre em busca de bons negócios, sempre em conflito com concorrentes que queriam derrubá-lo. Nikita, o empregado, que ele sustenta e a quem vez ou outra trapaceia no pagamento do salário, obedece às suas ordens. Aceita o bem e o mal como se apresentam, pois não tem escolha. Para ele não há como deixar essa vida, não há escapatória — exceto a vodca. Às vezes fica bêbado de cair. Torna-se então selvagem e perigoso. Sóbrio, é paciente, obediente, amigável e devotado a seu senhor. Viajam juntos numa nevasca com um cavalo forte puxando o trenó. Um negócio, a compra de madeira para não deixar que um concorrente a adquira, aguarda o comerciante num vilarejo não muito distante. A neve fica mais pesada durante a jornada. Perdem a trilha e finalmente, durante a noite, atolam numa ravina e são lentamente engolidos pela neve. Conseguem erguer, como é habitual, uma espécie de bandeira numa vara comprida para que possam ser socorridos no dia seguinte. Quase até o fim, o comerciante continua ativo o quanto pode. Sonha com tudo o que alcançou, e com o que ainda tem pela frente, levanta-se quando percebe que o empregado está morrendo congelado, deita-se sobre ele com seu grosso casaco de pele para mantê-lo aquecido, cai lentamente no sono e congela até morrer. Nikita, seu empregado camponês, entrega-se à morte pacientemente e sem resistir:

A ideia da morte, a qual provavelmente o levaria nesta mesma noite, cresceu dentro dele, mas não tinha nada de dolorosa ou terrível. Isso porque ele tivera muito poucos dias felizes e de festa em sua vida, mas muitas semanas amargas, e estava cansado do trabalho incessante.

Tolstoi descreve a habitual subserviência do trabalhador a seu senhor terreno — devoção só superada pela do leal cavalo — e, assim, também ao Senhor no Céu. Tenta, portanto, deixar bemexplicitada a conexão entre a maneira como uma pessoa vive e a maneira como morre.(Para complementar o que diz Ariès da serenidade do camponês russo moribundo como aparece na literatura, essa citação pode ser interessante. Mostra muito claramente a conexão entre o modo de viver e o modo de morrer, que Ariès até certo ponto negligencia)
Para o senhor, o comerciante lutando para vencer, a vida, e portanto a sobrevivência, tem alto grau de sentido e de valor. Ele continua ativo e tenta manter seu empregado e ajudante vivo, até que o frio o derrota. O empregado, a quem a vida custa muito trabalho, esforço e opressão, mas raramente supõe uma tarefa ou objetivo próprios, sonha pacientemente com a morte, e só escapa dela — como quer Tolstoi — pela proteção do corpo e do casaco quente de seu senhor.
O modo como uma pessoa morre depende em boa medida de que ela tenha sido capaz de formular objetivos e alcançá-los, de imaginar tarefas e realizá-las. Depende do quanto a pessoa sente que sua vida foi realizada e significativa — ou frustrada e sem sentido. As razões desses sentimentos nem sempre são claras — essa também é uma área ainda aberta à pesquisa. Mas quaisquer que sejam as razões, podemos talvez supor que morrer é mais fácil para aqueles que acreditam terem feito a sua parte, mais difícil para os que sentem terem fracassado na busca de seus objetivos, e especialmente difícil para aqueles que, por mais que sua vida possa ter sido bem-sucedida, sentem que sua maneira de morrer é em si mesma sem sentido.
Morte significativa, morrer sem sentido — esses conceitos também abrem a porta para problemas que, pode-se imaginar, recebem muito pouca consideração pública. Em certa medida, isso bem pode ser porque são facilmente confundidos com outro problema, quase idêntico na formulação, mas totalmente diferente no sentido. Se queremos dizer que alguém se ocupa de algo totalmente inútil, podemos dizer por exemplo que ele ou ela está refletindo sobre o sentido da vida. A inutilidade nesse caso deriva do fato de que se está procurando um sentido metafísico para a vida humana, um sentido que é, por assim dizer, ditado para o indivíduo, seja por poderes supra-humanos, seja pela natureza. Mas tal sentido metafísico pode, na melhor das hipóteses, ser objeto de especulação filosófica; podemos dar rédeas soltas a nossos desejos e fantasias na busca desse tipo de sentido — as respostas não poderão ser mais que invenções arbitrárias. Seu conteúdo não pode ser nem comprovado nem rejeitado.
Mas o sentido em discussão aqui é de espécie diferente. As pessoas experimentam os eventos que lhes acontecem como sendo significativos ou não, como tendo ou não sentido. É esse sentido experimentado que está em questão. Se um homem de trinta anos, pai de duas crianças pequenas e casado com uma mulher que ama e que também o ama, envolve-se num acidente de estrada com um motorista que vinha na contramão e morre, dizemos que é uma morte sem sentido. Não porque o morto tenha deixado irrealizado um sentido extra-humano, mas porque uma vida que não tinha qualquer relação com a da família afetada, a vida do outro motorista, de um só golpe, como que vindo de fora e por acaso, destruiu a vida, os objetivos e planos, os sentimentos firmemente enraizados de um ser humano, e, portanto, algo que tinha todo o sentido para essa família. Não foram destruídas só as expectativas, esperanças e alegrias do morto, mas também as dos sobreviventes, sua mulher e filhos. Para as pessoas que constituíam essa família, tal arranjo social, tal grupo humano, tinha uma função investida de valores altamente positivos. Se alguma coisa tem tal função para a vida de alguém e um acontecimento a reforça, dizemos que tem sentido para essa pessoa. Inversamente, quando alguma coisa tem tal função para uma pessoa ou um grupo e deixa de existir, torna-se irrealizável ou é destruída, falamos de uma perda de sentido.
O pouco que foi possível dizer sobre a natureza do sentido e, portanto, sobre o “sentido de uma vida”, pode não ser inteiramente destituído de valor para entender um problema específico dos moribundos. A realização do sentido para um indivíduo, como vimos, está intimamente relacionada ao significado que se adquire, ao longo da vida, para as outras pessoas, seja através de sua própria pessoa, de seu comportamento ou de seu trabalho. Hoje as pessoas tentam ajudar os moribundos acima de tudo aliviando sua dor e cuidando na medida do possível de seu conforto físico. Com esses esforços, mostram que não deixaram de respeitá-los enquanto seres humanos. Mas em hospitais atarefados, isso muitas vezes acontece, e compreensivelmente, de modo um tanto mecânico e impessoal. Mesmo as famílias às vezes ficam sem as palavras certas nessa situação pouco familiar de tentar ajudar um moribundo. Nem sempre é fácil mostrar aos que estão para morrer que eles não perderam seu significado para os outros.
Se isso acontece, se uma pessoa sentir quando está morrendo que, embora ainda viva, deixou de ter significado para os outros, essa pessoa está verdadeiramente só. É precisamente dessa forma de solidão que há exemplos de sobra em nossos dias, alguns corriqueiros, outros extraordinários e extremos. O conceito de solidão tem um amplo espectro. Pode referir-se a pessoas cujo desejo de amor em relação aos outros foi muito cedo tão ferido e perturbado que mais tarde dificilmente podem reviver a experiência sem sentir os golpes anteriormente recebidos, sem sentir a dor a que esse desejo as expôs em outros tempos. Involuntariamente, pessoas assim afetadas ocultam seus sentimentos em relação aos outros. É uma forma de solidão. Outra forma de solidão, que é social no sentido mais estrito, ocorre quando as pessoas vivem num lugar ou têm uma posição que não lhes permite encontrar outras pessoas da espécie que sentem precisar. Neste, e em muitos casos afins, o conceito de solidão refere-se a uma pessoa que por essa ou aquela razão é deixada só. Tais pessoas podem viver entre as outras, mas não têm significado afetivo para elas.
Isso, porém, não é tudo. O conceito de solidão inclui também uma pessoa em meio a muitas outras para as quais não tem significado, para as quais não faz diferença sua existência, e que romperam qualquer laço de sentimentos com ela. Pertencem a esse grupo alguns pedintes e os bêbados que sentam nas soleiras e nem são percebidos pelos passantes. As prisões e câmaras de tortura dos ditadores são exemplos dessa espécie de solidão. O caminho para as câmaras de gás é outro. Ali, crianças e mulheres, jovens e velhos, eram levados nus para sua morte por outros que se haviam livrado de todo sentimento de identidade e simpatia. Como, além disso, os que eram levados para a morte eram reunidos ao acaso e eram desconhecidos entre si, cada um deles, em meio a várias pessoas, estava sozinho e solitário no mais alto grau.
Esse exemplo extremo pode nos mostrar quão fundamental e incomparável é o significado das pessoas para as outras. Também dá uma indicação do que significa para os moribundos se sentirem — ainda em vida — excluídos da comunidade dos viventes.

16

A morte não é terrível. Passa-se ao sono e o mundo desaparece — se tudo correr bem. Terrível pode ser a dor dos moribundos, terrível também a perda sofrida pelos vivos quando morre uma pessoa amada. Não há cura conhecida. Somos parte uns dos outros. Fantasias individuais e coletivas em torno da morte são frequentemente assustadoras. Como resultado, muitas pessoas, especialmente ao envelhecerem, vivem secreta ou abertamente em constante terror da morte. O sofrimento causado por essas fantasias e pelo medo da morte que engendram pode ser tão intenso quanto a dor física de um corpo em deterioração. Aplacar esses terrores, opor-lhes a simples realidade de uma vida finita, é uma tarefa que ainda temos pela frente. É terrível quando pessoas morrem jovens, antes que tenham sido capazes de dar um sentido às suas vidas e de experimentar suas alegrias. É também terrível quando homens, mulheres e crianças erram famintas pela terra estéril onde a morte não tem pressa. Há muitos terrores que cercam a morte. O que as pessoas podem fazer para assegurar umas às outras maneiras fáceis e pacíficas de morrer ainda está por ser descoberto. A amizade dos que continuam vivendo e o sentimento dos moribundos de que não causam embaraço aos vivos são certamente um meio. E o constrangimento social, o véu de desconforto que frequentemente cerca a esfera da morte em nossos dias é de pouca ajuda. Talvez devêssemos falar mais aberta e claramente sobre a morte, mesmo que seja deixando de apresentá-la como um mistério. A morte não tem segredos. Não abre portas. É o fim de uma pessoa. O que sobrevive é o que ela ou ele deram às outras pessoas, o que permanece nas memórias alheias. Se a humanidade desaparecer, tudo o que qualquer ser humano tenha feito, tudo aquilo pelo qual as pessoas viveram e lutaram, incluídos todos os sistemas de crenças seculares e sobrenaturais, torna-se sem sentido.

 (Norbert Elias - A Solidão dos Moribundos)

publicado às 16:54


A Solidão dos Moribundos 1

por Thynus, em 13.05.16
 
Sobre a morte e o morrer
 
Para os gregos, o que caracteriza a morte é a perda da identidade. Os mortos são, antes de mais nada, “sem-nome” ou mesmo “sem-rosto”. Todos que deixam a vida se tornam “anônimos”, perdem a individualidade, deixam de ser pessoas. Ulisses, durante a sua viagem (direi mais adiante em quais circunstâncias), ao ser obrigado a descer aos infernos, onde estão aqueles que não têm mais vida, é tomado por surda e terrível angústia. Contempla horrorizado todo aquele povo no Hades. O que mais o preocupa é a indistinta massa de sombras que nada mais identifica. Aterroriza-o o barulho que fazem: um barulho confuso, um burburinho, uma espécie de rumor surdo dentro do qual não se pode reconhecer voz alguma e menos ainda qualquer palavra que faça sentido. É essa despersonalização que caracteriza a morte aos olhos dos gregos, e a vida boa deve ser, tanto quanto possível e pelo tempo que se puder, o contrário absoluto desse tom acinzentado infernal.
Pois a identidade de uma pessoa passa por três pontos cruciais, sendo o primeiro a sua inclusão em uma comunidade harmoniosa — um cosmos. Uma vez mais, o homem só é de fato homem entre os homens e, em exílio, ele nada é — por isso, aliás, o banimento da cidade, para os gregos, corresponde a uma condenação à morte, o castigo supremo que se inflige aos criminosos. Mas há uma segunda condição: a memória, as lembranças, sem as quais uma pessoa não sabe quem ela é. É preciso saber de onde viemos para saber quem somos e para onde devemos ir. O esquecimento se revela, com relação a isso, a pior forma de despersonalização que se possa conhecer em vida. É uma pequena morte em plena existência, e o amnésico é o ser mais infeliz da terra. Por último, deve-se aceitar a condição humana,(1) isto é, apesar de tudo, a finitude. O mortal que não aceita a morte vive em hybris, em descomedimento e com uma forma de orgulho que beira a loucura. Ele se imagina o que não é, um deus, um Imortal, como um louco se imagina César ou Napoleão.

(Luc Ferry - "A sabedoria dos mitos gregos")
 
Midas pecou por hybris. Por isso a dura resposta de Sileno ao rei: "o  melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer". Analise as consequências dramáticas que a hybris acarreta à ordem cósmica (reflita sobre as citações do post "Hybris o cosmos ameaçado de retorno ao caos ou como a falta de sabedoria estraga a existência dos mortais"
(HYBRIS E COSMOS: O REI MIDAS E O “TOQUE DE OURO)
 
1
Há várias maneiras de lidar com o fato de que todas as vidas, incluídas as das pessoas que amamos, têm um fim. O fim da vida humana, que chamamos de morte, pode ser mitologizado pela ideia de uma outra vida no Hades ou no Valhalla, no Inferno ou no Paraíso. Essa é a forma mais antiga e comum de os humanos enfrentarem a finitude da vida. Podemos tentar evitar a ideia da morte afastando-a de nós tanto quanto possível — encobrindo e reprimindo a ideia indesejada — ou assumindo uma crença inabalável em nossa própria imortalidade — “os outros morrem, eu não”. Há uma forte tendência nesse sentido nas sociedades avançadas de nossos dias. Finalmente, podemos encarar a morte como um fato de nossa existência; podemos ajustar nossas vidas, e particularmente nosso comportamento em relação às outras pessoas, à duração limitada de cada vida. Podemos considerar parte de nossa tarefa fazer com que o fim, a despedida dos seres humanos, quando chegar, seja tão fácil e agradável quanto possível para os outros e para nós mesmos; e podemos nos colocar o problema de como realizar essa tarefa. Atualmente, essa é uma pergunta que só é feita de maneira clara por alguns médicos — no debate mais amplo da sociedade, a questão raramente se coloca.
E isso não é só uma questão do fim efetivo da vida, do atestado de óbito e do caixão. Muitas pessoas morrem gradualmente; adoecem, envelhecem. As últimas horas são importantes, é claro. Mas muitas vezes a partida começa muito antes. A fragilidade dessas pessoas é muitas vezes suficiente para separar os que envelhecem dos vivos. Sua decadência as isola. Podem tornar-se menos sociáveis e seus sentimentos menos calorosos, sem que se extinga sua necessidade dos outros. Isso é o mais difícil — o isolamento tácito dos velhos e dos moribundos da comunidade dos vivos, o gradual esfriamento de suas relações com pessoas a que eram afeiçoados, a separação em relação aos seres humanos em geral, tudo que lhes dava sentido e segurança. Os anos de decadência são penosos não só para os que sofrem, mas também para os que são deixados sós. O fato de que, sem que haja especial intenção, o isolamento precoce dos moribundos ocorra com mais frequência nas sociedades mais avançadas é uma das fraquezas dessas sociedades. É um testemunho das dificuldades que muitas pessoas têm em identificar-se com os velhos e moribundos.
Sem dúvida, o espaço de identificação é mais amplo que em outras épocas. Não mais consideramos um entretenimento de domingo assistir a enforcamentos, esquartejamentos e suplícios na roda. Assistimos ao futebol, e não aos gladiadores na arena. Se comparados aos da Antiguidade, nossa identificação com outras pessoas e nosso compartilhamento de seus sofrimentos e morte aumentaram. Assistir a tigres e leões famintos devorando pessoas vivas pedaço a pedaço, ou a gladiadores, por astúcia e engano, mutuamente se ferindo e matando, dificilmente constituiria uma diversão para a qual nos prepararíamos com o mesmo prazer que os senadores ou o povo romano. Tudo indica que nenhum sentimento de identidade unia esses espectadores e aqueles que, na arena, lutavam por suas vidas. Como sabemos, os gladiadores saudavam o imperador ao entrar com as palavras “Morituri te salutant” (Os que vão morrer te saúdam). Alguns dos imperadores sem dúvida se acreditavam imortais. De todo modo, teria sido mais apropriado se os gladiadores dissessem “Morituri moriturum salutant” (Os que vão morrer saúdam aquele que vai morrer). Porém, numa sociedade em que tivesse sido possível dizer isso, provavelmente não haveria gladiadores ou imperadores. A possibilidade de se dizer isso aos dominadores — alguns dos quais mesmo hoje têm poder de vida e morte sobre um sem-número de seus semelhantes — requer uma desmitologização da morte mais ampla do que a que temos hoje, e uma consciência muito mais clara de que a espécie humana é uma comunidade de mortais e de que as pessoas necessitadas só podem esperar ajuda de outras pessoas. O problema social da morte é especialmente difícil de resolver porque os vivos acham difícil identificar-se com os moribundos.
A morte é um problema dos vivos. Os mortos não têm problemas. Entre as muitas criaturas que morrem na Terra, a morte constitui um problema só para os seres humanos. Embora compartilhem o nascimento, a doença, a juventude, a maturidade, a velhice e a morte com os animais, apenas eles, dentre todos os vivos, sabem que morrerão; apenas eles podem prever seu próprio fim, estando cientes de que pode ocorrer a qualquer momento e tomando precauções especiais — como indivíduos e como grupos — para proteger-se contra a ameaça da aniquilação.
Durante milênios essa foi uma função central de grupos humanos como tribos e Estados, permanecendo uma função importante até nossos dias. No entanto, entre as maiores ameaças aos humanos figuram os próprios humanos. Em nome do objetivo de se proteger da destruição, grupos de pessoas ameaçam outros grupos de destruição. Desde os primeiros dias, sociedades formadas por seres humanos exibem as duas faces de Janus: pacificação para dentro, ameaça para fora. Também em outras espécies a importância da sobrevivência das sociedades encontrou expressão na formação de grupos e na adaptação dos indivíduos à vida comum como uma característica de sua existência. Mas, nesse caso, a adaptação à vida do grupo se baseia em formas geneticamente predeterminadas de conduta ou, na melhor das hipóteses, limita-se a pequenas variações aprendidas que alteram o comportamento inato. No caso dos seres humanos, o equilíbrio entre a adaptação aprendida e a não aprendida à vida em grupo foi revertido. Disposições inatas a uma vida com os outros requerem sua ativação pelo aprendizado — a disposição de falar, por exemplo, pelo aprendizado de uma língua. Os seres humanos não só podem, como devem aprender a regular sua conduta uns em relação aos outros em termos de limitações ou regras específicas à comunidade. Sem aprendizado, não são capazes de funcionar como indivíduos e membros do grupo. Em nenhuma outra espécie essa sintonia com a vida coletiva teve tão profunda influência sobre a forma e desenvolvimento do indivíduo como na espécie humana. Não só meios de comunicação ou padrões de coerção podem diferir de sociedade para sociedade, mas também a experiência da morte. Ela é variável e específica segundo os grupos; não importa quão natural e imutável possa parecer aos membros de cada sociedade particular: foi aprendida.
Na verdade não é a morte, mas o conhecimento da morte que cria problemas para os seres humanos. Não devemos nos enganar: a mosca presa entre os dedos de uma pessoa luta tão convulsivamente quanto um ser humano entre as garras de um assassino, como se soubesse do perigo que corre. Mas os movimentos defensivos da mosca quando em perigo mortal são um dom não aprendido de sua espécie. Uma mãe macaca pode carregar sua cria morta durante certo tempo antes de largá-la em algum lugar e perdê-la. Nada sabe da morte, da de sua cria ou de sua própria. Os seres humanos sabem, e assim a morte se torna um problema para eles.
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A resposta à pergunta sobre a natureza da morte muda no curso do desenvolvimento social, correspondendo a estágios. Em cada estágio, também é específica segundo os grupos. Ideias da morte e os rituais correspondentes tornam-se um aspecto da socialização. Ideias e ritos comuns unem pessoas; no caso de serem divergentes, separam grupos. Seria interessante fazer um levantamento de todas as crenças que as pessoas mantiveram ao longo dos séculos para habituar-se ao problema da morte e sua ameaça incessante a suas vidas; e ao mesmo tempo mostrar tudo o que fizeram umas às outras em nome de uma crença que prometia que a morte não era um fim e que os rituais adequados poderiam assegurar-lhes a vida eterna. Claramente não há uma noção, por mais bizarra que seja, na qual as pessoas não estejam preparadas para acreditar com devoção profunda, desde que lhes dê um alívio da consciência de que um dia não existirão mais, desde que lhes dê esperança numa forma de vida eterna.
Sem dúvida, nas sociedades avançadas os grupos não insistem mais tão apaixonadamente em que apenas sua crença sobrenatural e seus rituais podem garantir a seus membros uma vida eterna depois da vida terrena. Na Idade Média, os indivíduos com crenças minoritárias eram muitas vezes perseguidos a ferro e fogo. Numa cruzada contra os albigenses no sul da França no século XIII, uma comunidade mais forte de crentes destruiu outra mais fraca. Os membros desta foram estigmatizados, expulsos de seus lares e queimados às centenas. “Com alegria em nossos corações presenciamos sua morte no fogo”, disse um dos vencedores. Nenhum sentimento de identidade entre humanos e humanos; crença e ritual os separavam. Com expulsão, prisão, tortura e fogueira, a Inquisição reforçava a campanha dos cruzados contra povos de crenças diferentes. As guerras religiosas do início da era moderna são bem conhecidas. Suas consequências são sentidas ainda hoje, por exemplo na Irlanda. A recente luta entre sacerdotes e governantes seculares no Irã também nos lembra a apaixonada ferocidade do sentimento comunitário e a inimizade que sistemas de crenças sobrenaturais foram capazes de desencadear em sociedades medievais, porque propunham a redenção da morte e a vida eterna.
Nas sociedades mais desenvolvidas, como disse, a busca de ajuda em sistemas de crenças sobrenaturais contra o perigo e a morte se tornou menos apaixonada; em certa medida, transferiu sua base para sistemas seculares de crenças. A necessidade de garantias contra nossa própria transitoriedade diminuiu perceptivelmente em séculos recentes, por contraste com a Idade Média, refletindo um estágio diferente da civilização. Nos Estados-nação mais desenvolvidos, a segurança das pessoas, sua proteção contra os golpes mais brutais do destino como a doença ou a morte repentina, é muito maior que anteriormente, e talvez maior que em qualquer outro estágio do desenvolvimento da humanidade. Comparada com estágios anteriores, a vida nessas sociedades se tornou mais previsível, ainda que exigindo de cada indivíduo um grau mais elevado de antecipação e controle das paixões. A expectativa de vida relativamente alta dos indivíduos nessas sociedades é um reflexo do aumento da segurança. Entre os cavaleiros do século XIII, um homem de quarenta anos era visto quase como um velho; nas sociedades industriais do século XX, ele é considerado quase jovem — com diferenças específicas de classe. A prevenção e o tratamento de doenças hoje estão mais bem-organizados que nunca, por mais inadequados que ainda sejam. A pacificação interna da sociedade, a proteção do indivíduo contra a violência não sancionada pelo Estado, como contra a fome, atingiu um nível inimaginável pelos povos de outros tempos.
É claro que, vista mais de perto, a situação revela quão tênue ainda é a segurança do indivíduo neste mundo. E a tendência à guerra traz uma ameaça constante às vidas dos indivíduos. Só a partir de uma perspectiva de longa duração, pela comparação com épocas passadas, percebemos quanto aumentou nossa segurança contra os perigos físicos imprevisíveis e as ameaças imponderáveis à nossa existência. Parece que a adesão a crenças no outro mundo que prometem proteção metafísica contra os golpes do destino, e acima de tudo contra a transitoriedade pessoal, é mais apaixonada naquelas classes e grupos cujas vidas são mais incertas e menos controláveis. Mas, em termos gerais, nas sociedades desenvolvidas os perigos que ameaçam as pessoas, particularmente o da morte, são mais previsíveis, ao mesmo tempo em que diminui a necessidade de poderes protetores suprahumanos. Não há dúvida de que, com o aumento da incerteza social e com a diminuição da capacidade de as pessoas anteciparem e — até certo ponto — controlarem seus próprios destinos por longos períodos, essas necessidades se tornariam outra vez mais fortes.
A atitude em relação à morte e a imagem da morte em nossas sociedades não podem ser completamente entendidas sem referência a essa segurança relativa e à previsibilidade da vida individual — e à expectativa de vida correspondentemente maior. A vida é mais longa, a morte é adiada. O espetáculo da morte não é mais corriqueiro. Ficou mais fácil esquecer a morte no curso normal da vida. Diz-se às vezes que a morte é “recalcada”. Um fabricante de caixões norteamericano observou recentemente: “A atitude atual em relação à morte deixa o planejamento do funeral, se tanto, para muito tarde na vida.”(B. Deborah Frazier, “Your coffin as furniture — for now”, International Herald Tribune, 2 out 1979)
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Se hoje se diz que a morte é “recalcada”, parece-me que o termo é utilizado num duplo sentido. Pode tratar-se de um “recalcamento” tanto no plano individual como no social. No primeiro caso, o termo é utilizado no mesmo sentido de Freud. Refere-se a todo um grupo de mecanismos psicológicos de defesa socialmente instilados pelos quais experiências de infância excessivamente dolorosas, sobretudo conflitos na primeira infância e a culpa e a angústia a eles associadas, bloqueiam o acesso à memória. De maneiras indiretas e disfarçadas, influenciam os sentimentos e o comportamento da pessoa; mas desapareceram da memória.
Experiências e fantasias da primeira infância também desempenham papel considerável na maneira como as pessoas enfrentam o conhecimento de sua morte próxima. Algumas podem olhar para sua morte com serenidade, outras com um medo intenso e constante, muitas vezes sem expressálo e até mesmo sem capacidade de expressá-lo. Talvez estejam conscientes dele apenas como do medo de voar ou de espaços abertos. Uma maneira familiar de tornar suportáveis as angústias infantis sem ter que enfrentá-las é imaginar-se imortal. Isso assume muitas formas. Conheço pessoas que não são capazes de envolver-se com moribundos porque suas fantasias compensatórias de imortalidade, que mantêm sob controle seus terríveis medos infantis, seriam perigosamente abaladas pela proximidade deles. Esse abalo poderia permitir que seu grande medo da morte — da punição — penetrasse sua consciência, o que seria insuportável.
Aqui encontramos, sob forma extrema, um dos problemas mais gerais de nossa época — nossa incapacidade de dar aos moribundos a ajuda e afeição de que mais que nunca precisam quando se despedem dos outros homens, exatamente porque a morte do outro é uma lembrança de nossa própria morte. A visão de uma pessoa moribunda abala as fantasias defensivas que as pessoas constroem como uma muralha contra a ideia de sua própria morte. O amor de si sussurra que elas são imortais: o contato muito próximo com moribundos ameaça o sonho acalentado. Por trás da necessidade opressiva de acreditar em nossa própria imortalidade, negando assim o conhecimento prévio de nossa própria morte, estão fortes sentimentos de culpa recalcados, talvez ligados a desejos de morte em relação ao pai, à mãe e aos irmãos, com o temor de desejos análogos da parte deles. Nesse caso, a única fuga possível da culpa angústia em torno do desejo de morte (especialmente quando dirigido a membros da família) e da ideia da vingança deles (o medo da punição por nossa culpa) é uma crença particularmente forte em nossa própria imortalidade, ainda que possamos estar parcialmente cientes da fragilidade dessa crença.
A associação do medo da morte a sentimentos de culpa pode ser encontrada em mitos antigos. No paraíso, Adão e Eva eram imortais. Deus os condenou a morrer porque Adão, o homem, violou o mandamento do pai divino. O sentimento de que a morte é uma punição imposta a mulheres e homens pela figura do pai ou da mãe, ou de que depois da morte serão punidos pelo grande pai por seus pecados, também desempenhou papel considerável no medo humano da morte por um longo tempo. Seria certamente possível tornar a morte mais fácil para algumas pessoas se fantasias de culpa desse tipo pudessem ser atenuadas ou suprimidas.
Esses problemas individuais do recalcamento da ideia da morte andam de mãos dadas com problemas sociais específicos. Nesse plano, o conceito de recalcamento tem um sentido diferente. No entanto, a peculiaridade do comportamento em relação à morte que prevalece hoje na sociedade só é percebida se comparada à de épocas anteriores ou de outras sociedades. Só então se poderá situar a mudança de comportamento em um quadro teórico mais amplo, tornando-a assim acessível à explicação. Formulando a questão diretamente, a mudança de comportamento social referida ao falarmos do “recalcamento” da morte nesse sentido é um aspecto do impulso civilizador mais amplo que examinei com mais detalhes em outro lugar.(N. Elias, O processo civilizador, Rio de Janeiro, Zahar, 2 vols., 1990 e 1993) Em seu curso, todos os aspectos elementares e animais da vida humana, que quase sem exceção significam perigo para a vida comunitária e para o próprio indivíduo, são regulados de maneira mais equilibrada, mais inescapável e mais diferenciada que antes pelas regras sociais e também pela consciência. De acordo com as novas relações de poder, associam-se a sentimentos de vergonha, repugnância ou embaraço e, em certos casos, especialmente durante o grande impulso europeu de civilização, são banidos para os bastidores ou pelo menos removidos da vida social pública. A mudança de longa duração no comportamento das pessoas em relação aos moribundos segue a mesma direção. A morte é um dos grandes perigos biossociais na vida humana. Como outros aspectos animais, a morte, tanto como processo quanto como imagem mnemônica, é empurrada mais e mais para os bastidores da vida social durante o impulso civilizador. Para os próprios moribundos, isso significa que eles também são empurrados para os bastidores, são isolados.
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Philippe Ariès, em seu instigante e bem-documentado História da morte no Ocidente, tentou apresentar a seus leitores um retrato vívido das mudanças no comportamento e atitudes dos povos ocidentais diante da morte. Mas Ariès entende a história puramente como descrição. Acumula imagens e mais imagens e assim, em amplas pinceladas, mostra a mudança total. Isso é bom e estimulante, mas não explica nada. A seleção de fatos de Ariès se baseia numa opinião preconcebida. Ele tenta transmitir sua suposição de que antigamente as pessoas morriam serenas e calmas. É só no presente, postula, que as coisas são diferentes. Num espírito romântico, Ariès olha com desconfiança para o presente inglório em nome de um passado melhor. Embora seu livro seja rico em evidências históricas, sua seleção e interpretação dessas evidências deve ser examinada com muito cuidado. É difícil concordar com ele quando apresenta os Romans de la Table Ronde, a conduta de Isolda e do Arcebispo Turpin, como evidência da calma com que os povos medievais esperavam pela morte. Ele não diz que esses épicos medievais eram idealizações da vida cortesã, imagens seletivas que muitas vezes lançam mais luz no que o poeta e seu público julgavam que deveria ser do que no que realmente era. O mesmo se aplica a outras fontes literárias utilizadas por Ariès. Sua conclusão é característica e mostra sua parcialidade:
Assim [isto é, calmamente] morreram as pessoas durante séculos ou milênios … Essa atitude antiga, para a qual a morte era ao mesmo tempo familiar, próxima e amenizada, indiferente, contrasta com a nossa, em que a morte provoca tal medo que não mais temos coragem de chamá-la por seu nome. É por isso que chamo essa morte familiar de morte domesticada. Não quero dizer que tenha sido selvagem anteriormente…. Quero dizer, ao contrário, que se tornou selvagem hoje.
(Philippe Ariès, Studien zur Geschichte des Todes im Abendland, Munique/Viena, 1976, p.25. [Ed. fr.: Histoire de la mort en Occident, Paris, Seuil, col. Points.])

Se comparada à vida nos Estados-nação altamente industrializados, a vida nos Estados feudais medievais era — e é, onde tais Estados ainda existem no presente — apaixonada, violenta e, portanto, incerta, breve e selvagem. Morrer pode significar tormento e dor. Antigamente as pessoas tinham menos possibilidades de aliviar o tormento. Nem mesmo hoje a arte da medicina avançou o suficiente para assegurar a todos uma morte sem dor. Mas avançou o suficiente para permitir um fim mais pacífico para muitas pessoas que outrora teriam morrido em terrível agonia.
O certo é que a morte era tema mais aberto e frequente nas conversas na Idade Média do que hoje. A literatura popular dá testemunho disso. Mortos, ou a Morte em pessoa, aparecem em muitos poemas. Em um deles, três vivos passam por um túmulo aberto e os mortos lhes dizem: “O que vocês são, nós fomos. O que somos, vocês serão.” Em outro, a Vida e a Morte discutem. A Vida se queixa de que a Morte está maltratando seus filhos; a Morte ostenta seu sucesso. Em comparação com o presente, a morte naquela época era, para jovens e velhos, menos oculta, mais presente, mais familiar. Isso não quer dizer que fosse mais pacífica. Além disso, o nível social do medo da morte não foi constante nos muitos séculos da Idade Média, tendo se intensificado notavelmente durante o século XIV. As cidades cresceram. A peste se tornou mais renitente e varria a Europa em grandes ondas. As pessoas temiam a morte ao seu redor. Pregadores e frades mendicantes reforçavam tal medo. Em quadros e escritos surgiu o motivo das danças da morte, as danças macabras. Morte pacífica no passado? Que perspectiva histórica mais unilateral! Seria interessante comparar o nível social do medo em nossos dias, no contexto da poluição ambiental e das armas atômicas, com o de estágios anteriores da civilização, em que havia menor pacificação interna e menor controle de epidemias e outras doenças.
O que às vezes reconfortava os moribundos no passado era a presença de outras pessoas. Mas isso dependia das atitudes. Disseram-nos(William Roper, The Life of Sir Thomas More, Londres, 1969. Ver também minhas observações críticas sobre a confiabilidade de Roper: “Thomas Morus Staatskritik”, in Utopieforschung, vol.2, Stuttgart, Wilhelm Vosskamp, 1982, p.101-50, esp. 137-44.) que Thomas More, chanceler de Henrique VIII, abraçou seu pai moribundo no leito de morte e o beijou nos lábios — um pai que ele reverenciou e respeitou por toda a vida. Havia casos, no entanto, em que os herdeiros em volta do leito de morte zombavam e escarneciam do velho moribundo. Tudo dependia das pessoas. Considerada um estágio de desenvolvimento social, a Idade Média foi um período excessivamente instável. A violência era comum; o conflito, apaixonado; a guerra, muitas vezes a regra; e a paz, exceção. Epidemias varriam as terras da Eurásia, milhares morriam atormentados e abandonados sem ajuda ou conforto. Más colheitas frequentemente faziam escassear o pão para os pobres. Multidões de mendigos e aleijados eram uma característica normal da paisagem medieval. As pessoas eram capazes tanto de grande gentileza quanto de crueldade bárbara, júbilo pelo tormento dos outros e total indiferença em relação a seus sofrimentos. Os contrastes eram mais marcados que os de hoje — entre a satisfação desenfreada dos apetites e a auto-humilhação, o ascetismo e a penitência também desenfreados sob o peso de um sentido aterrorizante do pecado, e também entre o fausto dos senhores e a miséria dos pobres. O medo da punição depois da morte e a angústia em relação à salvação da alma se apossavam igualmente de ricos e de pobres, sem aviso prévio. Como garantia, os príncipes sustentavam igrejas e mosteiros; os pobres rezavam e se arrependiam.
Tanto quanto posso ver, Ariès diz pouco sobre o medo do inferno espalhado pela Igreja. Mas há quadros medievais que mostram o que, de acordo com as ideias da época, esperava pelas pessoas depois da morte. Um exemplo ainda pode ser encontrado num cemitério famoso do final da Idade Média, em Pisa. Uma figura retrata vividamente os terrores que aguardavam as pessoas depois da morte. Mostra os anjos conduzindo as almas salvas para a vida sem fim no paraíso, e os horríveis demônios que atormentam os condenados ao inferno. Com tais imagens aterrorizantes diante dos olhos, uma morte pacífica não pode ter sido fácil.
Em resumo, a vida na sociedade medieval era mais curta; os perigos, menos controláveis; a morte, muitas vezes mais dolorosa; o sentido da culpa e o medo da punição depois da morte, a doutrina oficial. Porém, em todos os casos, a participação dos outros na morte de um indivíduo era muito mais comum. Hoje sabemos como aliviar as dores da morte em alguns casos; angústias de culpa são mais plenamente recalcadas e talvez dominadas. Grupos religiosos são menos capazes de assegurar sua dominação pelo medo do inferno. Mas o envolvimento dos outros na morte de um indivíduo diminuiu. Como em relação a outros aspectos do processo civilizador, não é fácil equilibrar custos e benefícios. Mas o quadro preto e branco pintado com o sentimento do “bom passado, mau presente” não serve a qualquer propósito. A questão principal é como e por que era assim, e por que se tornou diferente. Uma vez certos das respostas a essas perguntas, estaremos em condições de formar um juízo de valor.
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No curso de um processo civilizador, mudam os problemas enfrentados pelas pessoas. Mas não mudam de uma maneira desestruturada, caótica. Examinando de perto, detectamos uma ordem específica mesmo na sucessão de problemas sociais humanos que acompanham o processo. Esses problemas também têm formas que são específicas de seu estágio particular.
Assim, por exemplo, as pessoas se tornaram conscientes das doenças causadas por vírus como um problema independente apenas depois de terem obtido sucesso na explicação e, até certa medida, no controle das grandes infecções por bactérias. O ganho não foi em vão, pois representou progresso, mas não foi absoluto, pois não encerrou a luta contra os agentes patogênicos. O mesmo vale para o aumento da população. O progresso na luta contra a doença, particularmente o controle das grandes epidemias, é parcialmente responsável por esse processo cego, não planejado e perigoso. Que pensaríamos de alguém que, diante do perigo da explosão demográfica, ansiasse por um retorno ao “bom passado” com suas restrições malthusianas ao aumento da população — peste, guerra, abstinência, fome e morte precoce?
No curso do nítido surto civilizador que teve início há quatrocentos ou quinhentos anos, as atitudes das pessoas em relação à morte e a própria maneira de morrer sofreram mudanças, junto com muitas outras coisas. Os contornos e a direção dessa mudança são claros. Podem ser demonstrados por uns poucos exemplos, mesmo num contexto em que não é possível fazer justiça à complexa estrutura dessa mudança.
Em épocas mais antigas, morrer era uma questão muito mais pública do que hoje. E não poderia ser diferente. Primeiro porque era muito menos comum que as pessoas estivessem sozinhas. Freiras e monges podem ter estado sós em suas celas, mas as pessoas comuns viviam constantemente juntas. As moradias deixavam pouca escolha. Nascimento e morte — como outros aspectos animais da vida humana — eram eventos mais públicos, e portanto mais sociáveis, que hoje; eram menos privatizados. Nada é mais característico da atitude atual em relação à morte que a relutância dos adultos diante da familiarização das crianças com os fatos da morte. Isso é particularmente digno de nota como sintoma de seu recalcamento nos planos individual e social. Uma vaga sensação de que as crianças podem ser prejudicadas leva a se ocultar delas os simples fatos da vida que terão que vir a conhecer e compreender. Mas o perigo para as crianças não está em que saibam da finitude de cada vida humana, inclusive a de seu pai, de sua mãe e de sua própria; de qualquer maneira as fantasias infantis giram em torno desse problema, e o medo e a angústia que o cercam são muitas vezes reforçados pelo poder intenso de sua imaginação. A consciência de que normalmente terão uma longa vida pela frente pode ser, em contraste com suas perturbadoras fantasias, realmente benéfica. A dificuldade está em como se fala às crianças sobre a morte, e não no que lhes é dito. Os adultos que evitam falar a seus filhos sobre a morte sentem, talvez não sem razão, que podem transmitir a eles suas próprias angústias. Sei de casos em que um dos pais morreu num acidente de automóvel. As reações dos filhos dependem da idade e da estrutura da personalidade, mas o efeito profundamente traumático que tal experiência pode ter neles me faz acreditar que seria salutar para as crianças que tivessem familiaridade com o simples fato da morte, a finitude de suas próprias vidas e a de todos os demais. Sem dúvida, a aversão dos adultos de hoje a transmitir às crianças os fatos biológicos da morte é uma peculiaridade do padrão dominante da civilização nesse estágio. Antigamente, as crianças também estavam presentes quando as pessoas morriam. Onde quase tudo acontece diante dos olhos dos outros, a morte também tem lugar diante das crianças.
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Nos estágios anteriores de desenvolvimento social, as pessoas eram menos cerceadas na esfera da vida social, inclusive na fala, pensamento e escrita. A censura pessoal, e a dos companheiros, assumia forma diferente. Um poema de período relativamente tardio — século XVII — pode ajudar a ilustrar a diferença. É do poeta silésio Christian Hofmann von Hofmannswaldau e leva o título de “Transitoriedade da beleza”.
Por fim a morte pálida com sua mão gelada
Com o tempo acariciará teus seios;
O belo coral de teus lábios empalidecerá
A neve de teus mornos ombros será fria areia
O doce piscar de teus olhos / o vigor de tua mão
Por quem caem / cedo desaparecerão
Teu cabelo / que agora tem o tom do ouro
Os anos farão cair, uma comum madeixa
Teu bem-formado pé / a graça de teus movimentos
Serão em parte pó / em parte nada e vazio.
Então ninguém mais cultuará teu esplendor agora divino
Isso e mais que isso por fim terá passado
Só teu coração todo o tempo durará
Porque de diamante o fez a Natureza.
Leitores de nossos dias podem achar a metáfora da morte pálida acariciando os seios da bemamada com sua mão fria um tanto grosseira, talvez de mau gosto. Podem, ao contrário, ver no poema uma profunda preocupação com o problema da morte. Mas talvez só possamos nos ocupar desse poema em virtude de um singular surto de informalização, que começou depois de 1918, foi fortemente revertido em 1933 e ganhou impulso novamente de 1945 em diante. Como muitos poemas barrocos, ofende grande número de tabus vitorianos e guilherminos. Referir-se com tal detalhe, com tão pouco romantismo e mesmo num tom um tanto jocoso à morte da amada pode, até mesmo hoje, quando prevalece um certo relaxamento dos tabus vitorianos, parecer incomum. Até que atentemos para as mudanças civilizatórias que encontram expressão no presente, e, portanto, na estrutura de nossa própria personalidade, ficaremos no escuro enquanto intérpretes, enquanto historiadores hermenêuticos do passado. Interpretações arbitrárias serão a norma e conclusões erradas, a regra. O fato de que gerações anteriores falassem mais abertamente da morte, da sepultura e dos vermes será tomado como indicação de seu interesse mórbido pela morte; suas francas referências às relações físicas entre homens e mulheres, como signos de lascívia ou frouxidão moral. Só quando formos capazes de maior distanciamento de nós mesmos, de nosso estágio de civilização, e nos tornarmos conscientes do caráter específico de nosso próprio limiar de vergonha e repugnância, poderemos fazer justiça às ações e obras de pessoas em outros estágios.
Um poema como esse provavelmente aflorou de maneira muito mais direta do intercurso social de homens e mulheres do que os poemas mais privados e individualizados de nossa época. Nele, seriedade e graça se combinam de um modo sem paralelos hoje. Talvez fosse um poema escrito para uma ocasião particular; pode ter se difundido nos círculos de Hofmannswaldau e causado muito divertimento a seus amigos de ambos os sexos. Falta aqui o tom solene ou sentimental mais tarde muitas vezes associado à lembrança da morte e da sepultura. Que tal advertência seja combinada com uma brincadeira mostra a diferença de atitude de maneira especialmente clara. As pessoas no círculo do poeta devem ter se divertido com uma brincadeira que facilmente escapa a um leitor moderno. Hofmannswaldau diz à sua relutante amada que sua beleza desaparecerá na sepultura, seus lábios de coral, seus ombros de neve, seus olhos insinuantes, todo seu corpo decairá — exceto seu coração: ele é duro como diamante, pois ela não dá ouvidos a seus apelos. No registro dos sentimentos contemporâneos dificilmente encontraremos qualquer coisa que corresponda a essa mistura de funéreo e irreverente, essa descrição detalhada da decomposição humana como manobra de sedução.
Podemos talvez tomar o poema como invenção individual do escritor. Do ponto de vista da história da literatura, poderia facilmente ser assim interpretado. Mas, no contexto, como evidência da atitude em relação à morte existente num estágio diferente de civilização, o poema ganha significação precisamente pelo fato de que seu tema é tudo menos uma invenção individual. É um tema comum da poesia barroca europeia no sentido mais amplo, que nos diz alguma coisa sobre o modo dos jogos do amor nas sociedades patrícias e cortesãs do século XVII.
Nessas sociedades, havia numerosos poemas sobre o mesmo tema. Apenas o tratamento poético era individual e variável. O mais belo e famoso poema sobre ele é “To his Coy Mistress” [“À sua amada recatada”], de Marvell. Contém a mesma brusca lembrança do que aguarda o belo corpo na sepultura, advertindo a mulher de coração duro a não fazê-lo esperar tanto. Esse poema também foi desprezado durante séculos. Hoje, alguns de seus versos são citações de antologias:
A sepultura é um bom lugar privado, Mas nela, creio, ninguém é amado.
Variações sobre o mesmo tema são encontradas em Ronsard, Opitz e outros poetas da época. Representam um limiar diferente do nosso de vergonha e embaraço e, portanto, uma estrutura diferente de personalidade, que é social e não individual. Referências à morte, à sepultura e a todos os detalhes do que acontece aos seres humanos nessa situação não eram sujeitas a uma censura social estrita. A visão de corpos humanos em decomposição era lugar-comum. Todos, inclusive as crianças, sabiam como eram esses corpos; e, porque todos sabiam, podiam falar disso com relativa liberdade, na sociedade e na poesia.
Hoje as coisas são diferentes. Nunca antes na história da humanidade foram os moribundos afastados de maneira tão asséptica para os bastidores da vida social; nunca antes os cadáveres humanos foram enviados de maneira tão inodora e com tal perfeição técnica do leito de morte à sepultura.
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Intimamente ligado em nossos dias, à maior exclusão possível da morte e dos moribundos da vida social, e à ocultação dos moribundos dos outros, particularmente das crianças, há um desconforto peculiar sentido pelos vivos na presença dos moribundos. Muitas vezes não sabem o que dizer. A gama de palavras disponíveis para uso nessas ocasiões é relativamente exígua. O embaraço bloqueia as palavras. Para os moribundos essa pode ser uma experiência amarga. Ainda vivos, já haviam sido abandonados. Mas mesmo aqui o problema que a proximidade da morte e a morte colocam para os que ficam não existe isoladamente. A reticência e a falta de espontaneidade na expressão de sentimentos de simpatia nas situações críticas de outras pessoas não se limitam à presença de alguém que está morrendo ou de luto. Em nosso estágio de civilização manifesta-se em muitas ocasiões que demandam a expressão de forte participação emocional sem perda do autocontrole. Algo semelhante ocorre em situações de amor e de ternura.
Em todos esses casos é especialmente a geração mais jovem que, mais que em séculos anteriores, fica entregue a seus próprios recursos, a sua própria capacidade de invenção individual, na procura das palavras certas para seus sentimentos. A convenção social fornece às pessoas umas poucas expressões estereotipadas ou formas padronizadas de comportamento que podem tornar mais fácil enfrentar as demandas emocionais de tal situação. Frases convencionais e rituais ainda estão em uso, porém mais pessoas do que antigamente se sentem constrangidas em usá-las, porque parecem superficiais e gastas. As fórmulas rituais da velha sociedade, que tornavam mais fácil enfrentar situações críticas como essa, soam caducas e pouco sinceras para muitos jovens; novos rituais que reflitam o padrão corrente dos sentimentos e comportamentos, que poderiam tornar a tarefa mais fácil, ainda não existem.
Seria falso sugerir que os problemas específicos do estágio da civilização na relação dos saudáveis com os moribundos, dos vivos com os mortos, são um dado isolado. O que surge aqui é um problema parcial, um aspecto de um problema geral da civilização em seu estágio presente. Nesse caso, também, a peculiaridade da situação presente pode ser melhor delineada por referência a um exemplo do mesmo problema no passado. No final de outubro de 1758, a margravina de Bayreuth, irmã do rei Frederico II da Prússia, estava à morte. O rei não pôde viajar para vê-la, mas mandou às pressas seu próprio médico Cothenius, caso ainda pudesse ajudá-la. Mandou também poemas e a seguinte carta, datada de 20 de outubro:
Ternamente amada Irmã, Recebe com carinho os versos que te mando. Estou tão cheio de ti, teu risco e minha gratidão, que tua imagem constantemente governa minh’alma e todos os meus pensamentos, acordado ou sonhando, escrevendo prosa ou poesia. Que o Céu atenda os votos por tua recuperação que diariamente lhe dirijo! Cothenius está a caminho; venerá-lo-ei se puder preservar a pessoa que é em todo o mundo a mais próxima de meu coração, que estimo e honro e por quem continuo, até o momento de devolver meu corpo aos elementos, mais ternamente amada irmã, teu leal e devotado irmão e amigo,
Frederico
O rei não escreveu essa carta em francês, mas em alemão, o que raramente fazia. Podemos imaginar que a carta serviu de consolo à moribunda e facilitou sua partida do mundo dos vivos — se ainda foi capaz de lê-la.
A língua alemã não é particularmente rica em expressões nuançadas para ligações não sexuais entre pessoas — não sexuais, qualquer que seja sua origem. Faltam palavras correspondentes à “afeição” e “afeiçoado”. Zuneigung e zugetan, que sugerem a ideia de “inclinação”, não carregam a simpatia comedida do nosso termo, e são pouco usadas. A “mais ternamente amada irmã” de Frederico é, sem dúvida, expressão exata de seus sentimentos. Seria usada hoje? Sua ligação com sua irmã era provavelmente o mais forte laço que o prendia a qualquer mulher ou pessoa em sua vida. Podemos supor que o sentimento verbalizado em sua carta é sincero. A afeição entre irmão e irmã era recíproca. Ele claramente compreendia que uma afirmação de sua grande afeição levaria conforto à moribunda. Mas a expressão desses sentimentos fica mais fácil para ele por sua confiança implícita em certas convenções linguísticas de sua sociedade, que conduzem sua pena. O leitor moderno, com ouvido afinado para detectar os clichês do passado, pode perceber “tua imagem” que “constantemente governa minh’alma” como convencional e “o Céu atenda os votos” como teatralmente barroco, particularmente na boca de um monarca que não era famoso pela piedade. De fato, Frederico utiliza termos convencionais para exprimir seus sentimentos. Mas é capaz de usá-los de tal maneira que sua sinceridade é visível, e podemos supor que a irmã percebeu essa sinceridade. A estrutura das comunicações era tal que aqueles a quem eram endereçadas podiam distinguir entre usos sinceros e insinceros de expressões corteses, ao passo que nossos ouvidos não podem mais distinguir essas nuances de civilidade.
Isso ilumina os contrastes com a situação presente. O breve surto de informalização(Cf. Cas Wouters, “Informalization and the civilizing process”, in Human Figurations. Essays for Norbert Elias, org. Peter R. Gleichmann, Johan Goudsblom e Hermann Korte, Amsterdã, 1977, p.437-53.) ainda em progresso nos torna especialmente desconfiados em relação aos rituais convencionais e às frases “floreadas” de gerações passadas. Muitas fórmulas socialmente prescritas trazem em torno de si a aura de antigos sistemas de dominação; não podem mais ser usadas mecanicamente como o om mani padme nos círculos de oração dos monges budistas. Mas ao mesmo tempo a mudança que acompanha o estágio presente da civilização produz em muitas pessoas uma indisposição e muitas vezes uma incapacidade de exprimir emoções fortes, tanto na vida pública como na vida privada. Elas só podem ser ventiladas, assim parece, em conflitos políticos e sociais. No século XVII, os homens podiam chorar em público; isso tornou-se hoje difícil e pouco frequente. Só as mulheres ainda são capazes, socialmente livres para fazê-lo — por quanto tempo ainda?
Na presença de pessoas que estão para morrer — e dos que as pranteiam — vemos, portanto, com particular clareza um dilema característico do presente estágio do processo civilizador. Uma mudança em direção à informalidade fez com que uma série de padrões tradicionais de comportamento nas grandes situações de crise da vida humana, incluindo o uso de frases rituais, se tornasse suspeita e embaraçosa para muitas pessoas. A tarefa de encontrar a palavra e o gesto certos, portanto, sobra para o indivíduo. A preocupação de evitar rituais e frases socialmente prescritos aumenta as demandas sobre a capacidade de invenção e expressão individual. Essa tarefa, porém, está muitas vezes fora do alcance das pessoas no estágio corrente da civilização. A maneira como as pessoas vivem em conjunto, que é fundamental neste estágio, exige e produz um grau relativamente alto de reserva na expressão de afetos fortes e espontâneos. Muitas vezes, só sob pressão excepcional elas são capazes de superar a barreira que bloqueia as ações resultantes de fortes emoções, e também sua verbalização. Assim, a fala espontânea com os moribundos, da qual estes têm especial necessidade, torna-se difícil. Apenas as rotinas institucionalizadas dos hospitais dão alguma estruturação social para a situação de morrer. Essas, no entanto, são em sua maioria destituídas de sentimentos e acabam contribuindo para o isolamento dos moribundos.
Rituais religiosos de morte podem provocar nos crentes sentimentos de que as pessoas estão pessoalmente preocupadas com eles, o que é sem dúvida a função real desses rituais. Fora deles, morrer é no presente uma situação amorfa, uma área vazia no mapa social. Os rituais seculares foram esvaziados de sentimento e significado; as formas seculares tradicionais de expressão são pouco convincentes. Os tabus proíbem a excessiva demonstração de sentimentos fortes, embora eles possam acontecer. E a tradicional aura de mistério que cerca a morte, com o que permanece dos gestos mágicos — abrir as janelas, parar os relógios —, torna a morte menos tratável como problema humano e social que as pessoas devem resolver entre si e para si. No presente, aqueles que são próximos dos moribundos muitas vezes não têm capacidade de apoiá-los e confortá-los com a prova de sua afeição e ternura. Acham difícil apertar a mão de um moribundo ou acariciá-lo, proporcionarlhe uma sensação de proteção e pertencimento, ainda. O crescente tabu da civilização em relação à expressão de sentimentos espontâneos e fortes trava suas línguas e mãos. E os viventes podem, de maneira semiconsciente, sentir que a morte é contagiosa e ameaçadora; afastam-se involuntariamente dos moribundos. Mas, para os íntimos que se vão, um gesto de afeição é talvez a maior ajuda, ao lado do alívio da dor física, que os que ficam podem proporcionar.
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O afastamento dos vivos em relação aos moribundos e o silêncio que gradualmente os envolve continuam depois que chega o fim. Isso pode ser visto, por exemplo, no tratamento dos cadáveres e no cuidado com as sepulturas. As duas atividades saíram das mãos da família, parentes e amigos e passaram para especialistas remunerados. A memória da pessoa morta pode continuar acesa; os corpos mortos e as sepulturas perderam significação. A Pietà de Michelangelo, a mãe em prantos com o corpo de seu filho, continua compreensível como obra de arte, mas dificilmente imaginável como situação real.
Uma brochura publicada por jardineiros de cemitério mostra quão distante o cuidado das sepulturas está das famílias.(Friedhof. Grüner Raum in der Stadt, publicado pela Zentrale Marketinggesellschaft der deutschen Agrarwirtschaft GmbH, em colaboração com a Zentralverband Gartenbau e V. Bundesfachgruppe Friedhofsgärtner.) Naturalmente, adverte contra concorrentes e rivais que podem reduzir a quantidade de flores adornando as sepulturas. Podemos supor que a agência de marketing adaptou a brochura tanto quanto possível à mentalidade dos possíveis consumidores. O silêncio sobre a significação das sepulturas como lugares onde pessoas mortas estão enterradas é, em função disso, quase total. Compreensivelmente, referências explícitas a qualquer conexão entre a profissão de jardineiro de cemitério e o enterro dos cadáveres estão inteiramente ausentes. Essa ocultação cuidadosa, que reflete a mentalidade dos clientes potenciais, surge de maneira especialmente clara se lembrarmos o tom dos poemas do século XVII citados acima. A franqueza com que eles falam do que acontece ao corpo na sepultura oferece claro contraste à supressão higiênica de associações desagradáveis do material impresso e, sem dúvida, da conversação social de nosso tempo. Que Marvell pudesse esperar ganhar os favores da mulher amada advertindo-a de que os vermes ameaçariam sua “tão preservada virgindade” e de que sua “singular honra se tornaria pó” na sepultura dá uma indicação do quanto avançou o limiar de repugnância desde então, no curso de um processo civilizador não planejado. Lá, mesmo os poetas falam com desembaraço dos vermes da sepultura; aqui, mesmo os jardineiros do cemitério evitam qualquer coisa que possa lembrar a conexão entre sepultura e morte. A mera palavra “morte” é evitada sempre que possível; aparece só uma vez na brochura — quando são mencionadas as datas comemorativas dos mortos; e a má impressão causada pela palavra é imediatamente equilibrada pela menção aos dias de casamento — quando também se requerem flores. As perigosas associações de cemitério são neutralizadas apresentando-o simplesmente como um “espaço verde na cidade”:

Os jardineiros de cemitério alemães … gostariam de dar ao cemitério maior relevo na consciência pública como uma área cultural e tradicional, como um lugar de recolhimento e como parte da área verde urbana. Pois uma consciência pública elevada é a melhor garantia de que o tradicional retrato do cemitério verde e em flor não será um dia ameaçado por estranhos costumes de enterro, por restrições baseadas em argumentos econômicos, por desmandos de projetos descontrolados ou pelo planejamento tecnocrático dos espaços fundado exclusivamente na racionalização.

Seria proveitoso discutir em detalhe as táticas da luta contra os vários rivais comerciais, mas não aqui. De todo modo, os clientes potenciais são protegidos, tanto quanto humanamente possível, da lembrança da morte e de tudo relativo a ela. Para a possível clientela, a morte se tornou de mau gosto. Mas a atitude evasiva e encobridora, por sua vez, tem um efeito algo desagradável.
Seria muito bom se o lugar de recordação dos mortos fosse realmente planejado como um parque para os vivos. Essa é a imagem que os jardineiros do cemitério gostariam de transmitir — “uma ilha silenciosa, verde e em flor em meio ao ruído frenético da vida cotidiana”. Se fossem realmente parques para os vivos, onde os adultos pudessem comer seus sanduíches e as crianças, brincar! Talvez isso tenha sido possível outrora, mas é impossível hoje em função da tendência à solenidade, à ideia de que a graça e o riso são inadequados na vizinhança dos mortos — sintomas da tentativa semiconsciente dos vivos de distanciar-se dos mortos e de empurrar esse aspecto embaraçoso da animalidade humana para tão longe quanto possível atrás das cenas da vida normal. Crianças que tentem brincar alegremente entre os túmulos serão advertidas pelos guardiães da grama bem-aparada e dos canteiros por sua falta de reverência e respeito aos mortos. Mas quando as pessoas morrem, nada sabem da reverência com que são ou não tratadas. E a solenidade com que funerais e túmulos são cercados, a ideia de que deve haver silêncio em torno deles, de que se deve falar em voz abafada nos cemitérios para evitar perturbar a paz dos mortos — tudo isso são realmente formas de distanciar os vivos dos mortos, meios de manter à distância uma sensação de ameaça. São os vivos que exigem reverência pelos mortos, e têm suas razões. Essas incluem seu medo da morte e dos mortos; mas muitas vezes também servem como meio de aumentar o poder dos vivos.

 
(Continua em Solidão dos Moribundos 2)

publicado às 16:52

 
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Pessoas mais sentimentais podem desenvolver melhor o dom da intuição


Qualquer um que já tenha visto um ornitorrinco (Ornithorhynchus anatinus), seja ao vivo, seja em filmes ou fotografias, costuma concordar que não dá pra ser mais esquisito que esse bicho. Se não tivesse a desagradável mania de se mexer e mostrar que é de verdade, seria mais fácil achar que ele é o produto de algum empalhador com senso de humor mórbido, que inventou de colar o bico de um pato e o rabo de um castor no corpo de algum animal peludo genérico. OK, deixemos o bicho ser bizarro. Mas sexto sentido? Aí já é demais.
É demais, mas é verdade. Todos nós sabemos o que significa ver, ouvir, cheirar, sentir ou degustar, mas essa esquisitice australiana usa um sentido extra para navegar o ambiente aquático, de olhos, narinas e ouvidos fechados, quase como um Professor Xavier felpudo, navegando o “plano astral” de olhos fechados. O mais impressionante é que ele não está sozinho: uma multidão de outras espécies animais é capaz de truques parecidos, usando ferramentas desenvolvidas para a tarefa de forma independente. Como funciona esse sexto sentido? Uma dica: nunca deixe as pilhas do seu radinho perto de um ornitorrinco se você for ouvir o jogo do Tricolor no dia seguinte.
Um time de pesquisadores australianos e alemães fez a experiência – enterrou algumas pilhas debaixo d’água, deixando-as invisíveis – e acabou presenciando um selvagem ataque antibateria logo depois. Acontece que aquele bico de pato (que, na verdade, é borrachudo ao toque) é um órgão de detecção de eletricidade à distância.
Os ornitorrincos são caçadores de invertebrados subaquáticos, bichos que se escondem no leito de rios, e os nossos sentidos tradicionais não servem para muita coisa em meio ao lodo de um riacho. Mas o corpo de um pequeno caramujo, assim como o de bichos muito maiores, emite um campo elétrico fraquinho toda vez que eles usam seus músculos. Se os ornitorrincos fossem capazes de detectar esse campo elétrico, realmente não precisariam dos demais sentidos para achar sua presa. De fato, é o que parece acontecer: os bichos mergulham de olhos fechados, narinas e ouvidos selados, como se quisessem deixar de lado toda e qualquer informação irrelevante.
É aqui que o comportamento e a neurobiologia desses estranhos mamíferos botadores de ovos se encontram. Apesar da postura zen debaixo d’água, eles não cessam de fazer movimentos característicos com o bico, quase como quem tenta ajustar uma antena de radinho de pilha em busca do programa desejado. O mapeamento do controle de movimentos e de informação sensorial no cérebro dos bichos dá outra pista da importância do bico: o espaço dedicado ao processamento de informação do órgão no cérebro é um despropósito, maior que todas as outras partes do corpo da criatura combinadas.
E o que uma olhada mais atenta na estrutura do bico revela? Poros – poros para todo lado. Há receptores diretamente sensíveis a campos elétricos, que na verdade são glândulas modificadas, e outros que respondem a pressão mecânica, provavelmente parecidos com os que existem na pele humana e nos permitem sentir o toque de uma mão ou do vento. Os cientistas acham que os dois tipos de receptores funcionam em conjunto: enquanto os elétricos trazem uma informação do tipo “tem coisa viva por aqui”, os de pressão captam movimentos de nado de um pequeno camarão de água doce, por exemplo.
A informação combinada poderia dar ao ornitorrinco caçador a posição da presa: bastaria que ele registrasse o campo elétrico (que, como a luz, viaja de forma quase instantânea) e depois o movimento da presa. O intervalo de tempo entre um e outro revelaria a distância aproximada do futuro jantar – meio como contar os segundos entre o relâmpago e o trovão para saber a que distância o raio caiu.
É uma habilidade impressionante, mas outras pesquisas andam mostrando que o ornitorrinco é praticamente um amador entre as espécies com sexto sentido elétrico. A habilidade é relativamente comum entre vários tipos de peixe, como os tubarões, arraias, peixes-espada e peixes elétricos (muitos deles presentes na Amazônia e outros grandes rios tropicais).
Entre os tubarões, por exemplo, o serviço de detecção elétrica é realizado por poros especializados conhecidos como ampolas de Lorenzini. Os canais das ampolas, repletos de uma espécie de gel condutor, levam a informação do campo elétrico biológico das presas para células detectoras especializadas, as quais, por sua vez, carregam os dados para o cérebro. O sistema é tão apurado nos tubarões que eles são capazes de captar apenas um milionésimo de volt na água do mar. Há até planos para criar “defletores de tubarão” usando ímãs, que distorcem o sentido elétrico dos bichos. Vários peixes elétricos vão ainda mais longe. Eles produzem seu próprio campo elétrico alinhando seus músculos como se eles fossem baterias paralelas (várias pilhas num rádio portátil maior, digamos). Ao entrar em contato com obstáculos ou outros animais, o campo elétrico se distorce, e o objeto é detectado.
Aliás, é por isso que tais peixes não usam movimentos ondulantes para nadar – ficar retorcendo o corpo atrapalharia a formação do campo elétrico. Acredita-se que os peixes elétricos mais poderosos, aqueles que conseguem matar uma presa ou um agressor usando seu próprio campo eletromagnético, são animais que “aprenderam” a usar de forma mais agressiva seu antigo detector de obstáculos.
A maravilha menos fácil de perceber nesse catálogo variado de criaturas com sexto sentido é o fato de que grande parte delas desenvolveu sua percepção elétrica de forma independente ao longo de milhões de anos de evolução. Nenhum dos ancestrais terrestres do ornitorrinco tinha essa capacidade; o mesmo acontece com os tubarões e os peixes elétricos, que estão separados evolutivamente há muito tempo e usam órgãos relativamente distintos para fazer serviços parecidos debaixo d’água. Eis um ótimo argumento para acabar com a mania de considerar o ornitorrinco um mamífero “primitivo”. A criatura pode botar ovos e não ter mamilos – as fêmeas produzem um leite que escorre diretamente das glândulas –, mas não temos a menor razão para acreditar que sua evolução “estacionou”. Embora faça parte de uma linhagem antiquada, o ornitorrinco moderno é uma criatura especializadíssima, tão “evoluída” quanto a nossa própria espécie.
Esse é o milagre da evolução convergente: ambientes parecidos acabam exigindo soluções semelhantes de criaturas cuja história não poderia ser mais diferente. Ou, como diria meu personagem favorito na série Parque dos Dinossauros, “Life finds a way”- a vida sempre dá um jeito.

 (Reinaldo José Lopes - Evolução: Além de Darwin, O que sabemos sobre a história e o destino da vida)  
Uma área do cérebro pode comprovar que mulheres têm mais aptidão a desenvolver o sexto sentido do que homens

publicado às 20:47

 

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Os cientistas em geral não gostam de admitir, principalmente em público, mas às vezes eles são tão parciais quanto a torcida do Corinthians vendo um jogo do Palmeiras. E nem é por mal: certos vieses inconscientes são difíceis de combater – como o fato de que a comunidade científica é esmagadoramente masculina e, portanto, tem uma tendência inata a pensar com a própria cueca. Nos últimos tempos, por exemplo, os biólogos ficaram de queixo caído ao descobrir que certas espécies de pato contam com os machos mais, digamos, bem-dotados do reino animal. Com quase 45 centímetros de membro, para ser mais exato. (Imaginem os convites para fazer um filme pornô com alguma ex-BBB ou ex-namorada de jogador de futebol.) Ninguém sabia muito bem o porquê de tanto exagero. “É para intimidar os outros machos”, diziam alguns. “É para lançar o esperma o mais longe possível”, afirmavam outros. Adivinha se alguém foi ver o que as fêmeas de pato achavam disso? Bem, finalmente se deram a esse trabalho. (Coincidência ou não, foi uma equipe científica liderada por uma mulher. Como queríamos demonstrar.) E a anatomia das moças revelou que elas estão longe de ser receptáculos passivos da exuberância masculina. Pelo contrário: ao que tudo indica, as genitálias dos bichos estão envolvidas num combate evolutivo de proporções épicas, no qual machos e fêmeas buscam preservar seus interesses com unhas e bicos. A nossa guerra dos sexos em torno do controle remoto da TV é fichinha, nobre leitor. Mas, como no caso humano, tudo começa por causa da monogamia.

Acontece que várias espécies de patos e assemelhados formam casais fiéis, que cuidam juntos do ninho... durante uma estação reprodutiva. É a chamada monogamia serial, já que os bichos tendem a trocar de parceiro a cada ano. (Particularmente, eu preferiria o termo “monogamia-Hollywood” para designar esse tipo de vida marital, mas talvez não soe muito científico.)

Contudo, o fato de que uma Margarida já achou o seu Donald não é o suficiente para manter certos machos sequiosos de sexo longe dela. Sem a menor preocupação com a moral e os bons costumes, eles se aproveitam das ausências do pato titular para forçar a pobre patinha a ceder a seus desejos sórdidos. Os cientistas usam a sigla inglesa FEPC (“cópula forçada extra-par”) para designar esse comportamento. (É, tucanaram o estupro.)

O estranho nessa história toda é que os membros gigantes dos patos machos estão longe de ser a regra entre as aves. Na verdade, só 3% das espécies do grupo apresentam alguma coisa parecida com um pênis; as outras parecem se virar muito bem com um simples buraquinho. Parece haver uma correlação clara entre membros masculinos barrocos e FEPCs: os machos com genitálias mais elaboradas são justamente os pertencentes a espécies nas quais o estupro é mais comum. Assim, seria um mero caso de “quem tem o maior ganha”? Afinal, o macho com o falo mais avantajado teria mais chances de fertilizar as fêmeas, por bem ou por mal.

O caso parecia quase encerrado, mas a americana Patricia Brennan, do Departamento de Ecologia e Biologia Evolutiva da Universidade Yale, resolveu dissecar e medir as estruturas vaginais das fêmeas de 16 espécies da família dos patos. Os resultados estão descritos num artigo publicado na revista científica “PLoS One”, uma das mais importantes do mundo. Surpresa: as garotas parecem estar revidando a sacanagem masculina – e revidando pesado.

O primeiro dado obtido por Brennan parece meio óbvio: quanto mais comprido o membro do macho, mais comprida é a vagina. Mas não é que ela simplesmente cresça de tamanho. O pênis das aves (quando existe) é um tanto diferente do humano: no caso dos patos, é uma estrutura em forma de sacarolhas com uma espécie de canaleta na parte de cima. O esperma é despejado por fora do órgão, e não por dentro dele, deslizando por essa canaleta. O dado curioso é que, enquanto o “saca-rolhas” masculino tem espirais no sentido anti-horário, a vagina das patas se espirala no sentido contrário, ou seja, em sentido horário. É como se a anatomia delas dificultasse de propósito a penetração. Calma, fica pior ainda. A análise cuidadosa feita por Brennan mostra que o órgão feminino está cheio de bolsas na sua parte mais funda, perto do local onde o óvulo é fecundado. São verdadeiros becos sem saída, aparentemente feitos para impedir que o membro do macho fique totalmente “ereto” e consiga depositar o esperma do bicho no lugar certo. Os espermatozoides presos nessas bolsas provavelmente têm muita dificuldade de atingir o óvulo e produzir patinhos. De novo, a correlação entre complicação vaginal e FEPCs é clara: quanto mais tarados os machos da espécie, mais contorcidas as genitálias femininas.

As fêmeas têm um motivo muito bom para se dar ao trabalho de contra-atacar. Afinal, elas escolhem seus pares por suas qualidades como futuros papais, por sua capacidade de proporcionar a elas filhotes fortes e sadios, e é por isso que passam a estação reprodutiva inteira com eles. É muito injusto que um qualquer se aproveite delas e ainda consiga espalhar seus genes de malandro com isso.

E o mais impressionante é que a estratégia feminina, pelo menos em algumas espécies, parece estar funcionando. Estudos genéticos revelaram que, embora os estupros correspondam a cerca de um terço de todos os acasalamentos, só três em cada cem patinhos nascidos são frutos da malandragem masculina.

Como as fêmeas dão um jeito de conseguir isso ainda é um mistério. Brennan diz acreditar que elas conseguem contrair a vagina e levar o esperma do macho indesejado até as regiões “beco sem saída”, das quais o sêmen é expelido. (Já posso ver a manchete em capas de revistas femininas: “É de enlouquecer: Margarida ensina suas técnicas de pompoarismo!”)

Resumo da ópera: nossa espécie não está sozinha na quantidade de aparentes besteiras que faz por causa de um sexozinho. A chance de passar os genes adiante por meio dessa técnica tão interessante é, pelo menos do ponto de vista biológico, o passaporte para a imortalidade. Machos e fêmeas batem cabeça porque, por definição, suas táticas nesse jogo são diferentes, e o resultado às vezes é essa espiral maluca de ataques e contra-ataques. C’est la guerre.

 

(Reinaldo José Lopes - Evolução: Além de Darwin, O que sabemos sobre a história e o destino da vida)

 

publicado às 22:37

Por algum motivo inexplicável, as cobras mexem com a imaginação das pessoas (ah, e não seja malicioso, por favor; não estou me referindo ao aspecto fálico do réptil). Um misto de fascínio e repulsa parece ser a reação instintiva de quase todo mundo diante das escamas lustrosas e da língua bífida do bicho. Talvez seja nossa memória coletiva do passado remoto ecoando: gerações e gerações de mamíferos cujos ancestrais e/ou parentes pequenos, felpudos e quentinhos foram parar no papo de uma serpente, milhões de anos atrás. Experimentos com bebês novinhos e macacos mostram que se borrar de medo diante de um ofídio, ou de qualquer coisa que se pareça com um e se mexa como um, é a atitude imediata de onze entre dez primatas. Fazer de um exemplar do grupo o vilão primordial foi um dos toques de mestre do escritor judeu anônimo que deu forma ao livro do Gênesis, o primeiro da Bíblia. De fato, a serpente era a melhor atriz para o papel.

O que esse gênio israelita certamente não imaginava, contudo, é a história bizarra por trás de sua vilã – uma história que, como a de tantos outros organismos, é um testemunho vivo dos caminhos malucos que a evolução pode seguir. O pedaço mais irônico dessa trama é que, enquanto a serpente do Gênesis foi amaldiçoada com o destino de rastejar e comer pó pelos séculos dos séculos, suas primas não-literárias parecem ter surgido justamente da necessidade de se enfiar terra adentro. É claro que, tal como em tudo que se refere ao passado remoto dos seres vivos, há controvérsias. Duas hipóteses costumavam bater cabeça na tentativa de explicar a origem das cobras. Antes delas, porém, vamos começar com um fato incontroverso: toda serpente é um lagarto sem pernas. Fim de papo. Aliás, ainda há cobras por aí que carregam no corpo a marca de seus antigos membros. Se você for corajoso o suficiente para manusear uma jiboia ou um píton (devo dizer que já peguei uma jiboia na mão – com todo o respeito, é claro – e as escamas até que são agradáveis ao toque), não vai precisar de muito esforço para identificar os resquícios de patinhas. Conhecidas tecnicamente como “esporas anais”, elas se parecem mais com garras, na verdade. Como se trata de algo muitíssimo menor que um membro funcional, os bichos cooptaram o restolho para um uso muito mais agradável do que simplesmente caminhar: os machos o utilizam para “firmar” o corpo da fêmea durante o ato sexual.

Após esse parêntese tátil e, por que não dizer, sensual, voltemos agora às nossas duas hipóteses concorrentes. Fósseis de serpentes que ainda apresentam características mais claras de lagarto começam a pipocar entre rochas do Período Cretáceo, o último da Era dos Dinossauros, que vai de 140 milhões a 65 milhões de anos atrás. Esses bichos bizarros possuem vestígios mais visíveis de patas traseiras, e muitos dos fósseis deles vêm, imagine você, de sedimentos marinhos, ou seja, rochas que só poderiam ter se formado debaixo d’água.

Portanto, poderíamos apelidar essa primeira ideia de “hipótese da serpente marinha”. Seus defensores têm, inclusive, uma linha de raciocínio ainda mais pitoresca para defendê-la. Eles enxergam semelhanças de anatomia entre as primeiras cobras e os mosassauros, ferozes lagartões marinhos (os menores tinham cerca de 3 m de comprimento) que também viveram no período em que os dinossauros governavam a Terra.

É para contradizer essa proposta que entra em cena a segunda hipótese e seu maior baluarte, a Najash rionegrina. O bicho de 90 milhões de anos é argentino, mas tem entre seus descobridores um brasileiro, Hussam Zaher, do Museu de Zoologia da USP. Ela não é mais antiga do que qualquer outra das serpentes fósseis, mas conta com um trunfo inequívoco: um sacro.

Antes que você solte um monumental “e daí?”, eu explico: o sacro é a região da coluna vertebral que serve para sustentar o peso do corpo – isso, obviamente, num bicho com patas (caso contrário, não há nada a ser sustentado). A presença clara do sacro e as patinhas que podem ser vistas com clareza no fóssil da espécie fazem da Najash rionegrina uma fortíssima candidata ao posto de cobra mais primitiva do planeta. Primitiva no sentido que a biologia evolutiva dá à palavra: o de um animal que retém as características originais do grupo ao qual pertence.

E adivinhe só: o bicho vem de sedimentos terrestres, continentais. Nada de água por perto. Isso levou Zaher e seu colega Sebastián Apesteguía, do Museu Argentino de Ciências Naturais Bernardino Rivadavia, a postular que, na verdade, as primeiras serpentes eram animais que perderam seus membros como adaptação a uma vida rastejante, abrindo tocas no solo. Isso explicaria o porquê da semelhança com supostas modificações para a vida aquática: para nadar ou para rastejar, é interessante alongar o corpo e encolher os membros.

O achado pode ter providenciado o “por que” da história – ainda é cedo para dizer –, mas ainda não nos dá o “como”. E é nesse ponto que a moderna biologia molecular pode trazer informações preciosas para entender como a evolução da forma dos seres vivos acontece – um tema que tem relação muito próxima como as serpentes, como já vimos alguns capítulos atrás. Colocando a questão em termos mais diretos: com quantas vértebras se faz um corpo de cobra? Acontece que a estrutura corporal dos vertebrados é determinada em grande medida por um conjunto de genes da família Hox, responsáveis por indicar, como talvez você se recorde, as informações essenciais sobre a posição do corpo onde um membro ou apêndice corporal deve aparecer. Um dos membros dessa família de genes, o Hoxc6, diz até onde devem ir as vértebras cervicais, ou seja, as que têm formato adequado para formar o pescoço. Depois delas vêm as vértebras torácicas, ou do tórax.

Ora, o que acontece nas serpentes é que o gene Hoxc6 praticamente não se expressa (ou seja, não está ativo) abaixo da cabeça. Dali para baixo, as vértebras são todas torácicas. Traduzindo para o português mais direto possível: um dos primeiros passos para transformar um lagarto em cobra seria simplesmente transformar o pescoço inteiro num prolongamento do tórax. Note que, ao menos para essa mudança, não foi preciso nem o surgimento de um gene novo – bastou modificar o local onde um gene que era velho conhecido costuma se manifestar. Há quem veja a evolução como um artista preguiçoso e não muito hábil, experimentando a esmo com tintas meio velhas e até com telas já usadas. Como no caso das jiboias, dá até para ver a pintura antiga por trás da nova. Mas o efeito do quadro, apesar de tudo, ainda é de tirar o fôlego.

 

 (Reinaldo José Lopes - Evolução: Além de Darwin, O que sabemos sobre a história e o destino da vida) 

publicado às 21:57

Confessemos o inconfessável: sexo é bom e todo mundo gosta, mas dá um trabalho dos infernos. Considere quanto sangue e suor, quantas lágrimas, notas de cem e faturas de cartão de crédito já foram empregados na história do cosmos para esse fim; quantas caudas de pavão e Ferraris, quantos vestidos decotados, sem falar no gasto de energia intelectual, como a invenção do soneto, os romances medievais sobre o amor cortês, o Cântico dos Cânticos. É muita dor de cabeça. Pela lógica, apenas as coisas indispensáveis são objeto de tamanha obsessão. Nós (e a grande maioria dos outros animais e plantas) só seríamos tão doidos por sexo porque não dá para sobreviver sem ele. O raciocínio é impecável. Mas no meio do caminho tinha um bdeloide. Aliás, umas 400 espécies de bdeloides, para ser mais exato.

Os bdeloides a que me refiro estão entre os invertebrados mais estranhos do planeta – animais microscópicos de cabeça retrátil, muitas vezes rastejantes, como as minhocas. Formados por um número fixo de células, eles habitam a água doce e substratos úmidos de todos os tipos, sendo exímios comedores de qualquer coisa devorável e compatível com seu tamanhinho. Não existem machos bdeloides: todos são fêmeas e produzem descendentes por partenogênese, ou “geração virgem” (processo no qual os óvulos iniciam o desenvolvimento embrionário sem fecundação por espermatozoides).

Temos boas razões para acreditar que esses bichos minúsculos abdicaram da vida sexual há cerca de 100 milhões de anos e, mesmo assim, conseguiram colonizar uma grande variedade de ambientes e se diversificaram, como qualquer outro grupo de animais – coisa que, em tese, não deveria ser possível. A trajetória evolutiva dos bdeloides indica que o sexo talvez seja menos indispensável do que se costuma imaginar.

Entretanto, antes de entender que mágica essas criaturas estranhas estão fazendo para se livrar da alcova, é bom colocar algumas coisas em pratos limpos. Como dizíamos no começo deste capítulo, os seres vivos tendem a ficar fissurados apenas e tão somente por coisas que têm um impacto sobre sua sobrevivência e reprodução. Dizer que adoramos doces (ou sexo!) porque “é gostoso” não explica nada: não passa de uma tautologia, como dizer que “faz bem porque é bom”. Nosso sistema nervoso está programado para “traduzir” comida açucarada e/ou uma noite de amor na sensação subjetiva de “prazer” porque os doces são fontes concentradas de energia para o organismo e porque o sexo é o procedimento-padrão da nossa espécie para passar genes de geração em geração. O prazer é um incentivo – ou um suborno, se você quiser. É claro que, em criaturas de sistema nervoso suficientemente complexo (nós somos o exemplo extremo), pode acontecer de o suborno ficar desacoplado de seu objetivo inicial. Somos capazes, por exemplo, de fazer sexo insanamente – mas tomar pílula e/ou usar camisinha em todas as ocasiões. A força primordial do impulso, no entanto, só é tão avassaladora porque inicialmente ele era servo de uma função biológica de primeira grandeza: no caso, a reprodução.

Mas a verdadeira questão é por que escolher o sexo como mecanismo reprodutivo. Do ponto de vista exclusivamente matemático, a opção preferencial pela vida romântica não faz sentido. O sexo, considerado unicamente como meio para passar adiante o DNA de um organismo, é decepcionante porque envolve obrigatoriamente uma divisão desse DNA (pela metade) e a mistura dele com o de outro organismo. Lembre-se de que 50% dos seus genes vieram do seu pai e a outra metade, da sua mãe. Em tese, seria muito mais negócio para cada indivíduo isolado transmitir a carga total de seu material genético para a geração seguinte, pelo simples mecanismo de produzir uma cópia de si mesmo. Além disso, sempre pode acontecer de você não achar a tampa da sua panela, por assim dizer – e, sem parceiros para ajudar, não dá para ter reprodução sexuada.

E, no entanto, a imensa maioria dos animais, plantas e fungos, além de um bom número de microrganismos, contraria essa lógica aparentemente inescapável. Até as bactérias, famosas por sua capacidade estonteante de dividirem suas células únicas em novas “células-filhas”, aderem ocasionalmente a sessões de “sexo” não-formalizado, trocando genes com outras bactérias, às vezes até de outras “espécies” bacterianas. Se a comparação dessa atividade com o que chamamos de sexo sem aspas está correta, o impulso de trocar e misturar material genético existe até em organismos que se multiplicam via clonagem.

Duas ideias mais ou menos parecidas e complementares estão entre as que buscam explicar esse paradoxo. A primeira vê a sexualidade como uma espécie de seguro de vida contra parasitas e ambientes em transformação. A reprodução sexual, ao misturar e embaralhar os genes de dois indivíduos diferentes, automaticamente cria combinações de DNA novas que podem derrotar parasitas (que não “conhecem” a nova mistura e, portanto, não estão equipados para vencê-la) e representar um “estoque” importante de novas soluções para alterações ambientais. Isso é muito importante até no seio de uma única família. O corpo de uma mãe não tem nada de imaculado: ele abriga invariavelmente uma multidão de espécies de microrganismos, alguns benignos, como a nossa flora intestinal, outros potencial ou completamente malignos. Durante a gestação e o parto, tudo o que esses bárbaros microscópicos querem é a oportunidade de saltar para o bebê, cujo sistema de defesa biológico ainda não está totalmente formado. O fato de o filhote carregar traços genéticos que, ao menos parcialmente, soam pouco familiares ao parasita é uma proteção considerável contra uma morte prematura por infecção.

A segunda ideia propõe que o sexo ajuda no “controle de qualidade” genético de uma população. Em criaturas assexuadas, mudanças no conjunto do DNA só ocorrem por mutações – alterações químicas aleatórias nas “letras” químicas A, T, C e G que compõem a molécula da hereditariedade. Ora, a imensa maioria das mutações tende a ser nociva. De geração a geração, o acúmulo de alterações “do mal” poderia colocar os organismos celibatários em perigo. Mas, para produzir as células sexuais, as partes equivalentes do DNA que você recebeu do seu pai e da sua mãe são colocadas lado a lado e se recombinam, trocando pedaços de cromossomos (as estruturas enoveladas que abrigam o material genético). Com isso, mutações “ruins” num genitor podem ser “consertadas” pelo material genético do outro genitor. Mal comparando, é como pegar dois álbuns de figurinhas completos e idênticos, um dos quais possui uma figurinha rasgada: retira-se a figurinha intacta de um e ela é colocada no lugar da que estava adulterada.

Depois de todo esse background, já podemos voltar aos nossos bdeloides, os mestres da castidade evolutiva. Se tudo o que foi dito nos parágrafos acima estiver correto, os bichos seriam um prato cheio para parasitas famintos e mudanças ambientais; de quebra, seu genoma (o conjunto de seu DNA) deveria estar caindo aos pedaços de tanta mutação deletéria. No entanto, lá estão eles, vivos, bem e bastante diversificados, rastejando sobre musgos e liquens e nadando em poças d’água e córregos. Quando falta água, eles entram numa espécie de animação suspensa conhecida como anidrobiose, até as condições melhorarem.

O segredo dos bdeloides celibatários parece estar em características específicas do genoma das criaturas. O pesquisador americano David Mark Welch, do Laboratório de Biologia Marinha do Instituto Oceanográfico Woods Hole, mostrou que o DNA dos bichos é tetraploide – diferentemente de nós, que temos duas cópias de cada cromossomo, eles têm quatro. Tudo indica que, no passado remoto, o conjunto duplo normal de cromossomos sofreu uma reduplicação, transformando os bdeloides em tetraploides.

Ora, situações de extrema secura, como a anidrobiose, deveriam causar grandes quantidades de dano ao DNA desses animais, mas não é o que acontece. Experimentos em que esses bichos foram bombardeados com radiação – outra fonte comum de erros no material genético – revelaram que eles aguentam mais radioatividade do que qualquer outro animal conhecido. O único jeito de explicar esse conjunto bizarro de características é imaginar que os cromossomos quadruplicados estão servindo como base para reconstruir o genoma bdeloide. Com várias cópias de cada gene à disposição, os animais conseguem corrigir rapidamente os erros que aparecem em uma, duas ou até três versões de um gene.

Ou seja, em certo sentido, pode-se dizer que os bdeloides puderam abdicar da sexualidade porque internalizaram os benefícios evolutivos do sexo. Em vez de buscar genes bons em outro corpo, eles corrigem os problemas nos seus genes internamente. Funciona um bocado bem para eles, ao que tudo indica. Eu sei o que você deve estar pensando: eles não sabem o que estão perdendo.

 

 (Reinaldo José Lopes - Evolução: Além de Darwin, O que sabemos sobre a história e o destino da vida) 

publicado às 21:41

Historiadores e críticos literários normalmente dão uma risadinha de desprezo quando alguém diz que a guerra de Tróia aconteceu por causa da bela Helena. Quem estuda o conflito, que virou a mais famosa saga da literatura ocidental ao ser cantado pelo poeta Homero, costuma partir do princípio de que o rapto de Helena não passa de desculpa esfarrapada. No máximo, um pretexto para jogos bem mais sérios de poder e riqueza.
Recapitulemos muito rapidamente a origem do conflito, segundo a mitologia grega e os textos homéricos. A briga toda teria começado quando a grega Helena, esposa de Menelau, rei da cidade grega de Esparta, é seduzida – ou carregada à força, dependendo da versão do relato – pelo príncipe troiano Páris. O casal foge para Tróia e, quando o marido corneado não recebe de volta a esposa depois de negociações diplomáticas, o tempo fecha. Menelau convoca seu irmão Agamêmnon, o rei mais poderoso da Grécia, bem como todos os antigos pretendentes de Helena (unidos por um juramento de defender o marido que ela escolhesse), para atacar Tróia. Depois de dez anos, a cidade é tomada, saqueada e destruída, os homens troianos são massacrados e as mulheres e meninas viram escravas e concubinas dos vencedores.
As análises modernas afirmam que tudo isso é balela. Descontemos quem considera o episódio totalmente lendário – o consenso entre arqueólogos e historiadores é que a cidadela troiana realmente existiu na costa da atual Turquia e foi mesmo destruída por invasores por volta do ano 1200 a.C., época que bate com as histórias da tradição helênica sobre a guerra. Assumindo, portanto, que o conflito ocorreu, há quem diga que os gregos queriam mesmo era controlar as rotas de comércio da região de Tróia (versão dos historiadores) ou aproveitar o pretexto para ganhar glória imortal nos combates (versão mais romântica, defendida pelos críticos literários que estudam os poemas homéricos). No entanto, um pesquisador que busca unir no mesmo caldeirão biologia evolutiva humana e crítica literária, diz que as duas explicações não chegam nem perto da raiz da questão. E afirma que o estopim da pancadaria em Tróia foi mesmo Helena – sem falar, é claro, nas inúmeras outras mulheres jovens e atraentes, com ou sem marido, que viviam na cidade. Segundo essa perspectiva, a motivação dos gregos era igualzinha à de uma coalizão de chimpanzés machos: obter novas fêmeas a todo custo.
A tese, que casa a poesia de Homero com algumas das ideias mais recentes sobre a origem evolutiva da guerra e do comportamento violento, é de Jonathan Gottschall, professor de literatura do Washington & Jefferson College, nos Estados Unidos. Ele é o autor de The Rape of Troy: Evolution, Violence and the World of Homer (O Estupro de Tróia: Evolução, Violência e o Mundo de Homero). Gottschall diz que sua intenção não é simplesmente jogar no lixo os milênios de estudos sobre as obras-primas gregas, nem desdizer as outras explicações sobre o comportamento dos heróis de Homero, como a ideia de que eles lutam para eternizar sua fama.
“As pessoas acham que Aquiles [o principal herói grego da guerra] tem como objetivo a glória eterna simplesmente porque ele diz isso”, explicou-me Gottschall. “Todos nós queremos esse tipo de glória – quem não gostaria de ganhar um Nobel e ser lembrado daqui a cem anos? A questão é que nós buscamos ter fama, ou ter um status profissional elevado, porque isso nos garante o acesso a uma série de recursos. E esses recursos, em última instância, servem para turbinar as chances de sobrevivência e reprodução dos que os adquirem, como em qualquer outra espécie.”
Se esse papo todo está soando meio primitivo demais, é porque talvez o mundo de Homero fosse bastante tosco mesmo. A maioria dos especialistas atuais concorda que os dois poemas do grego – a Ilíada, que conta a fase crucial da guerra, e a Odisseia, sobre a volta para casa do herói helênico Ulisses – foram compostos por volta do ano 800 a.C. Já os dados arqueológicos indicam que a antiga Tróia, localizada no noroeste turco, teria sido arrasada cerca de quatro séculos antes, como já vimos. A diferença é importante porque, quando Tróia ainda estava de pé, a Grécia era dominada por uma série de palácios luxuosos, com governo burocrático, centralizado e “globalizado”, comerciando com o Egito e a Palestina. Esses reinos palacianos foram arrasados por invasores pouco depois da queda de Tróia, de forma que, quatrocentos anos depois da catástrofe, os gregos ainda viviam em vilarejos rurais, empobrecidos e nem um pouco refinados.
Gottschall e outros especialistas propõem que a sociedade da Ilíada e da Odisseia reflete justamente esse período pobretão da história grega, próximo da época em que os poemas ganharam sua forma final. “É claro que há elementos de épocas mais antigas na trama, como o uso de armas de bronze, enquanto na época de Homero todo mundo já tinha armas de ferro. Mas esses elementos provavelmente foram preservados porque faziam parte das fórmulas da tradição oral herdada pelo poeta”, argumenta ele. O importante é, que no geral, a vida dos heróis homéricos é um perrengue de dar pena. Para se ter uma ideia, Homero diz, como quem não quer nada, que porcos e ovelhas ficam passeando nos palácios, que as rainhas vão pessoalmente buscar água nas fontes e que fiam pessoalmente a roupa de seus maridos. De quebra, os reis são relativamente pouco poderosos e raramente conseguem deixar o poder para seus filhos sem algum grau de luta. Nada disso parece ter acontecido nos reinos altamente centralizados da Grécia em 1200 a.C. O poeta, portanto, embora se referisse ao passado lendário, usava como modelo das relações sociais o que ele via entre seus próprios contemporâneos do ano 800 a.C.
Resumindo, tal quadro significa que a sociedade homérica era uma cultura agrícola tribal, muito pouco diferente da dos índios ianomâmis ou dos nativos de Papua-Nova Guiné se deixarmos de lado o uso de armas e utensílios de metal. Estamos falando de pequenos grupos, liderados por chefes guerreiros e em conflito constante com os vizinhos. E qual a causa mais comum de briga interna e externa nesse tipo de sociedade? Acertou quem disse “mulheres”. Os dados recolhidos por antropólogos em grande parte dos povos tradicionais ao redor do mundo, seja na África, na Oceania ou entre os indígenas da América do Sul, mostram a prevalência endêmica dos conflitos envolvendo o rapto de moças.
É simples assim: os chefes mais poderosos, com maior habilidade militar e maior número de guerreiros à sua disposição, são quase sempre os que possuem o maior número de esposas e concubinas. Aqui entra com força o pedaço darwinista da argumentação de Gottschall: com mais mulheres na mão do chefão, maior a chance de ele deixar uma família numerosa e poderosa - exatamente o maior prêmio que a evolução pode conceder a um ser vivo. A injustiça inerente à maneira como os mamíferos se reproduzem permite que apenas um homem gere dezenas ou até centenas de filhos ao longo da vida, desde que tenha mulheres suficientes à sua disposição, enquanto suas parceiras enfrentam as limitações impostas pelos longos tempos de gravidez e pela menopausa. Mas não pense que, na sociedade homérica e em outros bandos guerreiros tradicionais, qualquer tipo de bebê serve. Para ganhar a disputa com grupos rivais, cada grupo precisa da máxima quantidade possível de guerreiros – do sexo masculino, claro. O problema é que nasce sempre mais ou menos o mesmo número de meninos e meninas. A solução? Infanticídio. Gottschall lembra que a morte seletiva de menininhas parece ter sido comum durante toda a história grega (e em uma série de outras sociedades tradicionais guerreiras). O resultado de tudo isso só pode ser classificado como explosivo: uma falta endêmica de mulheres (por causa do infanticídio feminino e do monopólio das esposas na mão dos chefes) e um excesso de guerreiros jovens, loucos para “capturar” suas próprias esposas e concubinas. A única “solução” é mais guerra com os grupos vizinhos, o que vai tornando o ciclo de violência cada vez pior. De novo, os paralelos antropológicos são iluminadores: sabemos que as sociedades mais violentas, seja no Terceiro Mundo urbano de hoje, seja no passado remoto, são aquelas em que há um excedente de homens jovens tentando provar seu valor e competindo por status. Assim seria o mundo homérico, de acordo com o pesquisador.
Todo esse quadro casa um bocado bem com a história de vida de inúmeras mulheres – e homens – envolvidos na guerra de Tróia, de acordo com a narrativa tradicional de Homero. Boa parte dos chefes gregos e troianos tem como esposa ou concubina uma ex-cativa capturada de alguma cidade inimiga. E, quando Agamêmnon, o líder do exército grego, resolve tomar para si a escrava preferida de Aquiles, o conflito entre os dois é tão sério que o maior herói grego quase faz as malas e vai para casa. Na verdade, o tema central da Ilíada é a chamada cólera de Aquiles, causada justamente por essa desfeita imperdoável.
É importante lembrar que fenômenos assim estão bem documentados entre espécies de mamíferos cujos machos, por seu tamanho e ferocidade (os equivalentes do poderio militar homérico), conseguem controlar um grande número de fêmeas, formando haréns. É o caso de elefantes-marinhos ou gorilas, por exemplo. O grande diferencial homérico – e humano, se pensarmos em termos mais gerais – é a capacidade de formar coalizões entre grandes grupos de machos aparentados e até não-aparentados, o que pode levar ao surgimento da guerra em larga escala.
Nada disso significa, porém, que as mulheres gregas e troianas se deixassem levar como meros joguetes do destino. O exemplo mais gritante do contra-ataque feminino envolve Clitemnestra, irmã de Helena e esposa do rei Agamêmnon. Enquanto o monarca grego está longe de casa, ela toma como amante outro homem e arquiteta o assassinato do marido – e da jovem e bela princesa troiana Cassandra, que Agamêmnon tinha transformado em sua concubina e já tinha até dado à luz um filho dele. Helena, por sua vez, usa seus encantos de tal forma que não apenas é poupada por Menelau, mas volta ao trono como rainha, vivendo ao lado dele pelo resto de seus dias.
Você deve estar lembrado, no entanto, de que a guerra de Tróia comprovada pela arqueologia aconteceu muito antes da época em que os gregos estavam organizados socialmente como os ianomâmis. Será que isso quer dizer que o lado mais brutalmente darwinista dos poemas retrata apenas a sociedade de Homero, mas não o que aconteceu na Turquia em 1200 a.C.? Talvez não. Uma das ideias mais debatidas pelos arqueólogos envolve a ideia de que Tróia (bem como outros palácios brutalmente destruídos ao redor do Mediterrâneo na mesma época) teria sido arrasada por tribos de bárbaros, oriundas das beiradas do mundo civilizado de então. Nesse caso, o ataque teria sido realizado não pelos gregos dos palácios, mas sim por tribos do norte da Grécia – o que indicaria uma civilização mais primitiva, e mais inclinada a simplesmente saquear e destruir a cidade asiática, levando as mulheres como parte do butim.
A tese de Gottschall ainda deve gerar um grau considerável de polêmica, mas talvez seja bom prestar atenção em outra das falas de Aquiles na Ilíada: “Passei muitas noites insones e dias sangrentos na batalha, lutando com outros homens por suas mulheres”.

(Reinaldo José Lopes - Evolução: Além de Darwin, O que sabemos sobre a história e o destino da vida) 

publicado às 21:33

Não sei se alguém já enunciou formalmente a hipótese a seguir, mas eu seria capaz de apostar que 90% das verdades imutáveis sobre a natureza humana já foram enunciadas pela música popular. Repare. Quando a mesma ideia fica aparecendo espontaneamente nas letras de compositores diferentes, e até em países diferentes, é bom desconfiar. Para ser mais específico, estou pensando em coisas como a célebre performance de Marilyn Monroe cantando My heart belongs to Daddy (“meu coração pertence ao papai”); no clássico samba que diz “Ô coisinha tão bonitinha do pai”; e nas incontáveis canções em espanhol nas quais a intérprete se dirige a seu amado como papi, papito. Como é que se explica uma coisa dessas? Desejos latentes de incesto? Pedofilia? Nada disso. Uma das pesquisas responsáveis por deixar o mistério um pouco menos obscuro foi feita por cientistas da Universidade de Durham, no Reino Unido, junto com colegas da Academia Polonesa de Ciências e da Universidade de Wroclaw (também na Polônia). Resumindo: se você, mulher, teve uma boa relação com o papai na infância, tenderá a achar mais atraentes os rapazes que se parecem com ele.
O estudo foi realizado com um bom grau de controle, para evitar vieses. Foram recrutadas 49 moças polonesas, todas filhas mais velhas. Os pesquisadores usaram um questionário padronizado para avaliar coisas como quanto tempo livre elas costumavam passar com seus pais e que contribuição eles deram para educar as próprias filhas. Depois, as polonesas viram uma galeria de 15 rostos masculinos diferentes. A equipe de cientistas teve o cuidado de obscurecer detalhes como orelhas, cabelo, pescoço, ombros e roupas, para evitar que esses elementos não-essenciais, sem relação direta com a aparência básica da face, influenciassem o resultado. Os pesquisadores também mediram as estruturas faciais desses rostos, bem como a dos pais das garotas, de maneira que já sabiam de antemão qual cara masculina era matematicamente mais parecida com a dos genitores delas. O resultado: as moças que se davam bem com seus pais normalmente consideravam mais atraentes os rostos mais parecidos com os deles. A associação sumia no caso das jovens que tiveram problemas com seus pais na infância.
Apresso-me em lembrar que o fenômeno não é exclusivamente feminino. No caso de homens e suas mães, a recíproca também parece ser verdadeira. Existe uma literatura científica robusta mostrando que, em média (vejam bem, em média; essa é a expressão crucial aqui), as pessoas tendem a escolher como parceiros fixos homens ou mulheres parecidas com elas mesmas. E quais as pessoas que mais se parecem conosco? A não ser que você seja gêmeo idêntico, a resposta é óbvia: alguém que tenha 50% dos seus genes. Em língua de gente: seu pai ou sua mãe, seu irmão ou sua irmã. Não corte os pulsos ainda. Você está perfeitamente correto se reagiu com indignação; afinal poucas pessoas no mundo são menos atraentes do que os nossos pais ou irmãos. Ao contrário do que dizia Freud, é muito raro que, em qualquer fase da vida, pessoas normais se sintam sexualmente atraídas por esses parentes próximos. Mas o paradoxo interessante é que, pelo visto, as pessoas mais próximas de nós desempenham um papel crucial na formação da imagem de um parceiro desejável, e as provas a esse respeito têm se acumulado em humanos e animais. Não se trata, portanto, de atração verdadeira, mas da criação de modelos do que mais tarde vamos considerar como sexy. Para entender isso, é preciso lembrar o óbvio: ninguém nasce sabendo – pelo menos, não tudo. Nós e a maioria dos outros mamíferos somos bichos com sistema nervoso complicado, crescimento relativamente lento e vida social cheia de frescuras. É preciso aprender milhares de coisas antes de chegar à maturidade, e a relação dos filhotes com seus pais ou irmãos os ajuda a saber, por exemplo, qual tipo de criatura é almoço e qual é um parceiro em potencial. Pais ou parentes próximos viram, portanto, “padrões-ouro” do que é um possível companheiro – uma das funções do sistema conhecido pelos biólogos como imprinting (nesse caso, trata-se do imprinting sexual). Qualquer um que já tenha assistido a um desenho animado tem ao menos uma ideia grosseira de como o imprinting funciona: toda vez que um personagem dá o azar de segurar um ovo prestes a chocar, e o bebê que sai de dentro dele (pode ser um dragão, ou coisa pior) olha para o personagem e grita “mamãe!”, estamos presenciando uma das funções (um tantinho simplificada, digamos) desse sistema. O imprinting também “ensina” os filhotes a não ficarem atraídos diretamente pelos pais ou irmãos, e sim por indivíduos apenas parecidos com eles. As histórias tragicômicas de bichos criados por humanos mostram o que acontece quando o imprinting dá errado, em versões da vida real das confusões interespécies nos desenhos animados. (Imagine gansinhos achando que um par de botas é a mamãe, ou corujas tentando desesperadamente transar com um chapéu. Não é lá muito engraçado.)
Por sorte, a imensa maioria dos imprintings sexuais humanos e animais funciona à perfeição. A coisa foi comprovada com rigor em laboratório: alguns ratinhos foram criados por mães cujas mamas e vaginas foram borrifadas com odor de limão. Depois de adultos, os roedores foram colocados em jaulas onde havia tanto fêmeas com cheiro de limonada quanto ratas sem cheiro nenhum. E eles caíram matando em cima das fêmeas com odor cítrico.
Em humanos, ambos os lados do imprinting sexual já foram demonstrados. Estudos transculturais – do Chade, na África, à Europa e aos Estados Unidos – revelam que as pessoas tendem a escolher parceiros ligeiramente parecidos com eles. E não se trata só de cor dos olhos ou dos cabelos: entram na equação traços tão mínimos quanto a distância entre os olhos, circunferência do pulso ou tamanho do dedo médio! A correlação é pequena, mas estatisticamente significativa – provavelmente porque as pessoas estão usando um “padrão-ouro” composto por uma enormidade de traços diferentes, os quais, em média, acabam chegando a uma pessoa um pouquinho mais parecida com elas do que o normal da população.
Ao mesmo tempo, e aí é que a coisa fica engraçada, mesmo “parentes” adotivos raramente se sentem atraídos uns pelos outros. Isso vale até para as crianças israelenses criadas em kibbutzim (singular: kibbutz), as fazendas coletivas que já foram muito comuns no país. As crianças dos kibbutzim eram criadas todas juntas, num regime quase comunitário, como se fossem todas irmãs. Resultado: de 2.769 casamentos estudados nas fazendas, só 13 – ou 0,47% do total – aconteceram entre pessoas nascidas no mesmo kibbutz. Isso sugere que nossa aversão natural a ir para a cama com irmãos e irmãs não deriva de algum sexto sentido capaz de farejar DNA parecido com o nosso, mas simples do estímulo inconsciente (ou contraestímulo, na verdade) surgido de anos de convivência na mesma casa, com os mesmos pais, desde a mais tenra infância.
As razões por trás dessa sintonia fina ainda são nebulosas. Mas ela parece fazer algum sentido do ponto de vista da seleção natural, que tem impacto sobre todos os seres vivos e tende a favorecer sempre a produção de bebês saudáveis: por definição, apenas os mais hábeis na produção de crias viáveis conseguem legar seu material genético para as gerações futuras. Faz sentido não escolher como parceiro alguém completamente diferente: na natureza, “coisas completamente diferentes” costumam ser membros de outra espécie, com os quais normalmente não dá para produzir descendentes férteis, nem com muito amor e carinho, ainda que haja exceções a essa regra. Ao mesmo tempo, casar-se com um quase-clone de si mesmo do sexo oposto não é esperto: o excesso de semelhança genética entre pai e mãe acaba concentrando características potencialmente negativas nos filhos, tornando-os suscetíveis a doenças ou até portadores de sérios problemas congênitos. Isso acontece porque é muito mais provável a presença da mesma variante indesejável de um gene em você e sua irmã do que o azar de o mesmo acontecer com você e uma completa desconhecida. Como quase todo gene é herdado em duas cópias (uma paterna e outra materna), o risco de que um rebento gerado em incesto carregue ambas as versões “ruins” é implacavelmente maior. Isso faz uma diferença tremenda em doenças genéticas graves, como a anemia falciforme: enquanto apenas uma cópia do gene mal acarreta sintomas, portar duas cópias equivale a uma vida de sofrimento.
Deixemos a genética de lado por um instante, no entanto. Acontece que existem fatores que ajudam a prever a escolha de parceiros de maneira muito mais clara e menos ambígua do que a semelhança física, geral ou em detalhes, de homens e mulheres. E adivinhe só: são fatores culturais. Embora a semelhança física tenha um impacto, a correlação entre coisas como religião, posição política, nível educacional e renda é muito mais forte entre parceiros fixos.
Isso deveria ser o suficiente para afastar os temores de que entender as bases biológicas do comportamento humano nos transforma em autômatos genéticos, robozinhos que só pensam “naquilo” (ter o máximo possível de filhos e espalhar nosso DNA) e outras simplificações grosseiras do gênero. Como todas as coisas vivas, somos a somatória de tantos eventos improváveis e complicados que poucos fatores podem se arrogar o direito de explicação única – ainda que, como dizia Marilyn, no fundo o nosso coração pertença ao papai ou à mamãe.

(Reinaldo José Lopes - Evolução: Além de Darwin, O que sabemos sobre a história e o destino da vida)

publicado às 21:19

 

Pensamento evolutivo de Darwin
 
Nosso planeta já nasceu grávido de vida. A expressão, eu sei, é estranhíssima, e tem um quê de personificação exagerada, mas reflete o fato indiscutível de que vemos as pegadas dos seres vivos por aqui assim que a Terra se tornou minimamente hospitaleira. Os primeiros 600 milhões de anos do nosso lar planetário são justamente conhecidos como o Éon Hadeano, por analogia com o Hades, o submundo dos mortos na mitologia grega. Num Sistema Solar que ainda estava se estabilizando a duras penas, bombardeios implacáveis de asteroides e cometas, bem como pelo menos um choque com outro planeta de tamanho comparável a Marte, esmigalhavam repetidamente as rochas incandescentes que formavam a Terra-bebê. Então, há pouco menos de 4 bilhões de anos, as coisas finalmente se acalmaram, e o antigo Hades virou Éden, na mesma rapidez com que, nesta frase, saltamos da mitologia grega para a judaico-cristã. Rochas da atual Groenlândia, que estão entre as mais antigas do mundo, carregam carbonatos, minerais que em geral precisam da atividade de micróbios como as atuais bactérias para se formar. Mais algumas centenas de milhões de anos e dá para ver fósseis inequívocos das ditas cujas na Austrália. A vida, pelo visto, estava só esperando a primeira calmaria séria para desabrochar.
Era o destino? É claro que respostas científicas a esse tipo de pergunta não existem e, além do mais, fica difícil afirmar qualquer coisa com alto grau de probabilidade quando só conhecemos um único exemplo de origem da vida no Universo inteiro (o nosso, no caso). De qualquer maneira, a rapidez com que os seres vivos se estabeleceram por aqui pode indicar que, longe de ser um evento vastamente improvável, a vida é um jeito tão natural de organizar matéria e energia que ela se estabelece a qualquer descuido do Cosmo. Matéria-prima, de fato, não falta. (Vamos deixar de lado a hipótese da panspermia, segundo a qual os seres vivos já chegaram “prontos” ao nosso planeta, vindos do espaço por acidente ou como “semeadura cósmica” de uma civilização de ETs. A ideia não serve para muita coisa porque só consegue criar uma regressão infinita: em algum lugar a vida precisa ter começado sozinha, certo?)
Panspermia à parte, as chamadas moléculas orgânicas, cuja espinha dorsal é o elemento químico carbono e que marcam as reações características dos seres vivos, não precisam de microrganismos, animais ou plantas para existir. Nuvens cósmicas de gás possuem quantidades tão vastas de etanol (pois é, álcool etílico mesmo) que eu consigo imaginar os ricaços do futuro distante, caso nossa civilização realmente conquiste outros sistemas solares, encomendando garrafas e mais garrafas de Caipirinha Galáctica ou Uísque das EstrelasTM. O mesmo vale para os aminoácidos que compõem as proteínas e outros compostos orgânicos básicos: o Universo está cheio deles, assim como a Terra primitiva provavelmente estava.
No entanto, como todos sabemos, empilhar tijolos não equivale a construir uma casa. O segredo da vida está na maneira inusitada como as moléculas orgânicas se organizam e se relacionam com o meio externo. Apesar das muitas histórias de sucesso da biologia evolutiva e de sua capacidade quase imbatível de explicar a saga da vida, a origem dos primeiros organismos de uma só célula continua sendo, para todos os efeitos, um mistério impenetrável. Há muitos modelos plausíveis para explicar esse Big Bang biológico, mas nenhum completo ou isento de dificuldades sérias. Ainda assim, o conhecimento aprofundado dos mecanismos básicos da vida no nível da célula permite aos cientistas esboçar alguns pré-requisitos.
Correndo o risco de simplificar em excesso um debate complicadíssimo, pode-se dizer que os modelos sobre a origem dos seres vivos na Terra se concentram em dois polos opostos: “replicadores primeiro” ou “metabolismo primeiro”. O melhor exemplo de replicadores que temos hoje é o DNA, embora essa molécula seja demasiado complexa e frágil para ter emergido logo de cara, de acordo com os especialistas. A essência dos replicadores é a capacidade de se multiplicar e transmitir adiante informação genética com pelo menos algum grau de fidelidade. Uma comparação muito usada para esclarecer a natureza dos replicadores biológicos envolve o fogo. Um “incêndiopai” é perfeitamente capaz de produzir dois “incêndios-filhos”, mas a semelhança entre eles é puramente acidental: não existe nenhuma essência da “fogueira paterna” que a “fogueira-filha” herda, além da capacidade de criar um estrago dos infernos. Um replicador biológico é diferente porque implica descendência com modificação: “filhos” herdam a maior parte das características dos “pais”, as quais, por sua vez, são passadas aos “netos”, mas com o porém importante de que sempre há uma variação casual nessa passagem do bastão de uma geração para outra. Com isso, alguns descendentes podem ter mais facilidade para produzir cópias de si mesmos do que outros, de maneira que um “jeito” de se replicar pode sobrepujar os demais e até exterminá-los, direta ou indiretamente. Esse é o mecanismo básico segundo o qual a seleção natural, e provavelmente o grosso da evolução, acontece.
Por outro lado, o modelo que coloca o metabolismo em primeiro lugar argumenta, com alguma razão, que uma molécula replicadora, por si só, poderia ser facilmente engolfada no turbilhão de reações químicas da Terra primitiva. O passo essencial para o início da vida seria, portanto, a formação de uma membrana ou vesícula vagamente semelhante à das células atuais, controlando a passagem de substâncias de dentro para fora e de fora para dentro da membrana. No interior dela, um conjunto de moléculas orgânicas teria descoberto o segredo da autopoiese, do “fazer-se a si mesmo”, como indica essa palavra de origem grega. Por meio de um conjunto especial de reações químicas sustentáveis, a célula primeva era capaz de se manter organizada por muito tempo enquanto exportava os restos desordenados de seu metabolismo para o meio circundante. A capacidade autopoietica, de se autorrenovar, mais do que a capacidade de reprodução/replicação, seria definidora da vida, segundo esse ponto de vista.
O elo entre os dois tipos de hipótese talvez seja o chamado “mundo de RNA”, no qual essa molécula-irmã do DNA teria sido capaz tanto de funcionar como replicador quanto de iniciar o metabolismo (embora não de delimitar, sozinha, a primeira célula). Por enquanto, a resposta mais honesta é um sonoro “não sabemos”. O que sabemos, sem sombra de dúvida, é que há uns 3,5 bilhões de anos atrás o domínio das bactérias já estava solidamente estabelecido.
Tão solidamente, aliás, que o mais correto seria dizer que se trata de um reino que não terá fim enquanto a Terra for habitável. Perto das bactérias, todas as formas de vida, inclusive nós, não passamos de epílogo ou posfácio. (Razão pela qual você não encontrará um neste livro: ninguém lê posfácios. Um ou outro maluco ainda se arrisca a ler prefácios, mas posfácios? Nem sonhando.) Descontada a absurda vantagem numérica – há mais células de bactérias em você do que células de você em você, se é que me entende –, esses microrganismos de material genético “desorganizado”, sem um núcleo que o abrigue, são os verdadeiros carregadores de piano da biosfera, envolvidos em todos os fluxos de matéria e energia essenciais para que a vida continue vivendo, da fotossíntese que produz biomassa à decomposição que a quebra em seus pedaços constituintes de novo.
Bactérias são duronas, e bem mais complicadas do que nossa mania de caricaturá-las sugere. Elas podem se organizar em comunidades e colônias de indivíduos que, à primeira vista, lembram seres de muitas células como nós. Podem trocar genes de maneira informal, um tipo de “sexo” que já foi comparado a alguém de olhos castanhos esbarrando num escandinavo e ganhando de repente cabelos louros e olhos azuis. Tal promiscuidade, aliás, é um dos principais obstáculos a construir a chamada Árvore da Vida, o esquema de descendência que liga todos os seres vivos a um longínquo, e talvez único, ancestral comum. As bactérias trocam material genético com tamanha facilidade que se pode conceber uma origem múltipla da vida, encimada por uma posterior uniformização de seus processos graças ao troca-troca de genes. De qualquer maneira, o metabolismo básico compartilhado entre as bactérias e todo o resto da vida indica que, se houve uma origem múltipla, seus traços acabaram sendo apagados. É impressionante como a essência molecular da célula é semelhante em todos os seres vivos da Terra.
Semelhante, sim, mas não idêntica. Como você verá em um dos capítulos a seguir, o monopólio bacteriano foi interrompido há cerca de 1,5 bilhão de anos pela inaudita fusão permanente entre duas bactérias. Foi um daqueles casos em que o todo se tornou maior que a soma das partes. Surgiam os eucariontes, organismos cujo material genético está organizado num núcleo separado, como ocorre com o nosso. Antigas bactérias fundidas aos eucariontes ainda exercem funções como respirar oxigênio ou fazer fotossíntese.
Enquanto as principais integrantes da biosfera continuavam, imperturbáveis, a tocar a vida, os eucariontes embarcaram de vez na estrada da complexidade – mas não imediatamente, nem inevitavelmente. O divisor de águas parece ter sido um conjunto de eras glaciais que afligiu o planeta entre 750 milhões e 600 milhões de anos atrás. Uma hipótese muito discutida, a chamada “Snowball Earth” ou “Terra Bola de Gelo”, propõe que a fase glacial foi tão severa que o gelo marinho teria chegado ao Equador. Nem todos concordam a esse respeito, mas a ideia é que a pressão ambiental severa teria conduzido ao menos alguns organismos eucariontes a se transformar no que hoje conhecemos como animais e plantas – criaturas multicelulares altamente organizadas e especializadas, que se reproduzem por meio do sexo de forma rotineira e geram “bebês”. A explicação – mais complexidade como mecanismo de sobrevivência – faz sentido enquanto você não se dá conta de que provavelmente seria muito mais fácil aguentar o aperto do frio na forma unicelular. Temos aí, portanto, mais um mistério.
No caso dos animais, ele é seguido por outro, a Explosão Cambriana, registrada em fósseis com idade a partir de 540 milhões de anos. Animais primitivos tinham sido registrados antes disso, mas a Explosão Cambriana equivale ao aparecimento “repentino” (do ponto de vista geológico, claro, o que envolve alguns milhões de anos) de ancestrais de todos os grandes grupos modernos de bichos, incluindo artrópodes (insetos, crustáceos e companhia), moluscos (caramujos, polvos, ostras etc.) e vertebrados como nós. É de se imaginar que a evolução dos animais começou muito antes, sendo apenas difícil de detectar por causa da falta de corpos mais duros e “fossilizáveis”; de fato, já temos algumas indicações indiretas de que ela começou antes de 650 milhões de anos atrás. Mesmo assim, ainda falta uma explicação mais detalhada da natureza da Explosão Cambriana.
Seja como for, esse início espetacular da vida de grande porte, restrita aos mares, representou apenas as primícias do que estava por vir. O registro fóssil, nas centenas de milhões de anos seguintes, revela saltos após saltos de diversidade, em geral associados à colonização de grandes ambientes virgens, como a chegada das plantas e dos vertebrados à terra firme, a invenção dos ovos de casca dura ou do voo por insetos, répteis (pterossauros) e aves. Esses períodos de expansão, é bom que se diga, são pontuados por curtos episódios de horror absoluto, as chamadas extinções em massa, entre as quais os paleontólogos reconhecem as chamadas Big Five. Nessas cinco grandes catástrofes, pelo menos metade das espécies do planeta, e em alguns casos muitas mais, foram varridas do mapa num piscar de olhos geológico. A pior delas é a do Período Permiano, há 251 milhões de anos, quando a contagem de corpos chega a 90% ou mais; a mais conhecida é a do fim do Cretáceo, há 65 milhões de anos, quando os dinossauros sumiram do mapa, aparentemente exterminados pela queda de um asteroide com pelo menos 10 km de diâmetro.
A força imaginativa da “cratera do Juízo Final” deixada por esse corpo celeste obscurece o fato de que a maioria desses desastres parece ter brotado de causas puramente terrenas, como vulcanismo acelerado, mudanças climáticas extremas ou variações bruscas no nível dos oceanos. Estudar com cuidado as extinções em massa também desmonta visões preconceituosas sobre os dinos ou qualquer outro animal engolido por elas: embora espécies sumam o tempo todo no mundo, as Big Five são viradas de mesa completas nas regras da vida. A matança é aparentemente aleatória, sem respeitar tamanho, tipo de metabolismo ou nicho ecológico: por mais bem adaptado que um animal esteja a seu ambiente, isso lhe dá zero garantia de sobrevivência. Pouca gente se lembra, por exemplo, de que vários grupos de mamíferos e aves primitivas também naufragaram no barco furado que carregava os dinossauros. Aparentemente, o único “seguro de vida” razoável diante de uma extinção em massa é uma distribuição geográfica ampla, o que significa simplesmente que a catástrofe não vai ser capaz de matar todos os membros da espécie em todos os lugares do mundo. Safety in numbers, ou “segurança graças à superioridade numérica”, portanto – não que isso sirva de consolo para os inúmeros indivíduos que morrem mesmo quando a espécie como um todo escapa.
 O que não se discute é que as Big Five realmente “reiniciaram” o programa da vida na Terra de maneira radical, como quem liga e desliga um computador recalcitrante. A mudança é de tal ordem que as relações ecológicas e a composição de espécies do globo sempre foram alteradas profundamente depois desse tipo de evento. Pode-se argumentar que, sem a hecatombe do Cretáceo, os mamíferos teriam pouca chance de virar os vertebrados terrestres dominantes do globo, e seria praticamente impossível que um certo grande macaco, há uns 6 milhões de anos, começasse a experimentar o andar ereto nas florestas da África. Alguns mamíferos até passaram por fases interessantes de aumento de tamanho e de diversificação antes do sumiço dos dinossauros, mas curiosamente essas linhagens mais saidinhas, por assim dizer, foram limadas junto com os antigos donos do globo. Dá para discutir se animais como nós são uma ocorrência provável Universo afora; mas, ao menos em parte, nossa existência não tinha nada de inevitável. O mero fato de estarmos aqui e sermos capazes de compreender boa parte dessa história complicada é motivo de assombro. E, agora, acho que você já sabe o bastante para continuar. Vamos ao que interessa: sexo.

(Reinaldo José Lopes - Evolução: Além de Darwin, O que sabemos sobre a história e o destino da vida)

publicado às 19:48

Ineptocracia: um sistema de governo onde os menos capazes de liderar são eleitos pelos menos capazes de produzir, e onde os membros da sociedade com menos chance de se sustentar ou ser bem-sucedidos são recompensados com bens e serviços pagos pela riqueza confiscada de um número cada vez menor de produtores. “Essa definição remete-nos automaticamente à descrição feita pela filosofa russa Ayn Rand: “Quando você perceber que, para produzir, precisa obter a autorização de quem não produz nada; quando comprovar que o dinheiro flui para quem negocia não com bens, mas com favores; quando perceber que muitos ficam ricos pelo suborno e por influência, mais que pelo trabalho, e que as leis não nos protegem deles, mas, pelo contrário, são eles que estão protegidos de você; quando perceber que a corrupção é recompensada, e a honestidade se converte em auto-sacrifício; então poderá afirmar, sem temor de errar, que sua sociedade está condenada.
 
O QUE É O SENTIDO ODISSEICO DA MENTIRA?
"Entre nós o mal foi amplificado por uma tirania do totalitarismo 
que Maquiavel não conhecera e em que a mentira perde seu sentido odisséico 
e sofre uma transformação radical. Passa a ser a coluna vertebral do Mal,
sendo empregada não contra um inimigo externo que ameaça o ser de

 tua própria coletividade, mas contra esta coletividade mesma. 
Tal tirania não é uma síncope maléfica posta a serviço do bem, mas
o mal puro, posto a serviço do mal puro.
"
(GABRIEL LIICEANU)
 

No começo do O arquipélago Gulag, se não me engano, Soljenitzin diz que o império soviético e o comunismo não foram possíveis senão pela mentira, que a mentira foi o fundamento de todo o sistema.
Como se mente no comunismo?
Distinguiria primeiro três situações:
a) Houve homens que creram que as idéias comunistas são verdadeiras e boas, portanto que elas representam soluções adequadas aos problemas da sociedade humana. Eles estavam em erro. Não mentiam. Mas quando se convenceram de que tinham errado, botaram a boca no trombone, analisaram o erro, procuraram prevenir os outros sobre o erro e ajudaram-nos a evitá-lo. Koestler, Orwell, Revel, Besançon são os nomes que me vêm à mente em primeira instância.
b) Houve uma segunda categoria, a dos engajados no erro até o fim, até onde aceitaram tornar-se as vítimas dele, continuando a crer no “verdadeiro comunista” mesmo quando eram mortos pelos confrades de partido em nome desta “verdade”. (Rubachov, do romance de Koestler, Darkness at Noon, é o caso típico aqui.)
c) Nem a primeira categoria (dos despertados) nem a da segunda (dos hipnotizados) dão a regra no caso do comunismo. A regra quem a dá é a terceira categoria, dos que conheciam a verdade, que, portanto, ao contrário dos primeiros, não estavam em erro, mas diziam o falso, estando perfeitamente esclarecidos acerca da visão dele. Os que, em suma, mentiam. Com isto se fez o comunismo em escala planetária.
Quatro, creio, são as novidades que traz consigo o comunismo na economia da mentira pública:
a) A mentira já não é imprevisível na sua forma, mas fundamental e repetitiva, mentira dita às claras e sistematizada como ideologia. É a mentira constante, monótona e bem articulada. O corpus de mentiras de que era composta a ideologia continha proposições (absurdas ou mentirosas) deste gênero: o comunismo suprime a desigualdade entre os homens, no comunismo cada um recebe segundo a necessidade, a economia socialista centralizada é superior à economia concorrencial de tipo liberal, no comunismo somos todos livres, os bens pertencem, na sociedade socialista, à classe trabalhadora; em 1 de maio e 23 de agosto[Na época do comunismo, era o dia nacional romeno, dia da ocupação soviética da Romênia – NT] todo o mundo desfila com entusiasmo etc., etc. Observemos que, reduzida a um conjunto de proposições fixas retomadas ao infinito, a mentira tornase no comunismo padronizada, moldada, em divórcio com qualquer fantasia, inventividade, criatividade. É uma mentira formada de elementos batidos a prego.
b) A segunda novidade que implica a mentira no comunismo: sendo insolente, atrevida, inchada, ela não se cansa de passar por verdade. Passa a ser (ou é) a verdade pelo terror. Aquele a quem se mente aceita que lhe digam mentiras porque não tem saída.
c) Daqui resulta uma terceira novidade que traz consigo a mentira no comunismo: aquele a quem se mente não é de fato enganado, porque, fingindo crer, a seu turno, ele mesmo mente. Uma vez que aquele a quem se mentiu mente, a mentira no comunismo é uma pseudo-mentira, é uma mentira falsa, não é uma “verdadeira mentira”. Às mentiras se tira sua força de engano porque já não enganam ninguém. A mentira, por assim dizer, não tem atração senão enquanto ela “pega”, por tanto tempo quanto aquele a quem se mentiu é induzido em erro. Mas então quando é insolente, atrevida, inchada, quando toma a forma “o branco é preto e o preto, branco”, e quando todo o mundo finge crer aquilo que todo o mundo sabe ser falso, a mentira já não é operacional no sentido do pensamento e da prática política tradicional. Ela toma uma originalidade sem precedente: o mentiroso mente para aquele a quem se mentiu, mas este, por sua vez, mente para aquele que lhe mentiu (fingindo que crê). Mas o mentiroso mente ainda uma vez quando, mentindo, finge que não sabe que aquele a quem se mentiu sabe que lhe foi dita uma mentira. Esta mentira infinita em espelhos, à medida que anula a mentira como “mentira verdadeira”, transforma esta em mentira coletiva: todo o mundo mente, à medida que uns dizem mentiras, mas os outros, por não as denunciarem, deixam entender que as aceitam como verdades.
d) Enfim, sendo insolente, atrevida, inchada, sendo generalizada e coletiva, a mentira é sempre omniabrangente: todo o mundo mente e mente em todas as direções. Mente-se “à vista desarmada”, dos indicadores econômicos até os sentimentos que animam os homens, dos jornais, rádios e televisões até a maneira em que se faz literatura, se pinta ou se compõe.
A censura é pior que a mentira
 
"Revolução roubada"
Quando o sistema imoral baseado na mentira de tipo comunista desmoronou (seguido de uma longa “guerra fria” empreendida da parte dos Estados Unidos com os meios da moral de segunda instância – dos serviços de espionagem altamente odisséicos até as estratégias econômicas requintadas), na Romênia aconteceu o segundo azar pós-bélico, que, seguindo um historiador inglês, poderíamos chamar “a revolução roubada”.[Tom Gallagher, Furtul unei naţiuni. România de la comunism încoace, Humanitas, Bucareste, 2004. No original: The Theft of a Nation]
O que é “a revolução roubada” no contexto do nosso discurso?
A revolução, tanto quanto foi e do pouco que se fez (em Timişoara, Bucareste, – Piaţa Universităţii [Praça da Universidade], Braşov, Cluj, Sibiu), soldou-se, nos termos de Maquiavel, com a morte do tirano. Este foi o começo do momento catártico, o purgante psíquico pelo qual uma comunidade se livra do ódio e os membros dela ficam satisfatti, diz Maquiavel. Apenas que este processo, uma vez iniciado, não continuou e não se consumou. Uma parte considerável da sociedade romena viveu, em vez da purgação completa, um ato catártico interrompido e as toxinas psíquicas permaneceram, assim, não eliminadas. O ódio, nessas condições, não pôde ser evacuado, não se pôde obter o consenso. É certo que esta coisa aconteceu não apenas na Romênia, mas, de maneira evidente, ela aconteceu com a cumplicidade dos governantes principais do mundo de 1989. Nem George Bush Senior, nem Helmut Kohl, nem François Mitterrand fizeram, no final da guerra fria, o que os Aliados fizeram no final da Segunda Guerra Mundial. Não impuseram uma variante adequada para aquela catarse exemplar que aconteceu em Nurembergue com o julgamento e a execução dos grandes criminosos nazistas.[Ver Micahel A. Ledeen, op. cit., p.162.] No caso da Romênia isso foi tanto mais grave porque aqui o totalitarismo fora representado por um tirano muito mais bem definido do que em outros países do Bloco Soviético, apoiado por uma estrutura de “ativistas”, de “propagandistas”, e de membros da polícia política na respectiva medida. Estes tinham impingido a corrupção “em seu estágio último”, de acordo com a expressão de Maquiavel (Discursos, I, 16). O medo de todos os securistas fugidos em todas as direções nos primeiros meses do ano de 1990 prova que do lado dos malfeitores havia um temor de punição deles por causa da contribuição maciça para a criação e funcionamento do “mal comum”. A ausência desta reparação exemplar entrou em contradição com a lição de Maquiavel sobre a relação entre a produção do mal, o medo e a perspectiva de castigo. Se desaparece o medo de castigo que está à espreita, se o mal pode ser cometido sem ser castigado, então também desaparece qualquer meio de limitá-lo. O desmoronamento de um regime corrupto abre as portas, neste caso, para o aparecimento de uma corrupção ainda maior. O regime comunista na variante Ceauşescu chega hoje – coisa alucinante à primeira vista – a ser lastimado exatamente por causa da nova corrupção gerada e redobrada pelos filhotes deixados vivos que saíram, em coorte, do ventre do mostro assassinado. A reciclagem destes em duas direções precisas – homens de negócios e políticos – comprometeu igualmente os negócios e a política[Ibidem] e deixou uma dupla impressão falsa: a) seja que os negócios em si levam à pobreza da maioria e que a política é uma coisa suja; b) seja que o roubo, o fazer fortuna e a corrupção têm substância etno-metafísica e que, nos romenos, elas são uma fatalidade.
Apenas que, por causa de Maquiavel, a corrupção se instala em qualquer povo que não é capaz de produzir, no momento oportuno, “o novo príncipe”, ou seja, o homem que vai regenerar a virtude cívica pela geração de medo que tem como fundamento o horizonte do castigo. Quando um homem “poderoso e bom”, apto a entrar em contato com o mal, não aparece, a cidade começa a esperar como recurso último a vinda do ditador que se arrisca a chegar a ser tirano, uma vez restabelecida a ordem. O fantasma de Vlad Ţepeş,[O conde Drácula – NT] que infesta periodicamente a nossa sociedade exasperada pela corrupção, tem assim sua justificação, para além das figuras grotescas e patibulares que fazem dela um capital político.
A corrupção que vivemos hoje na Romênia não pode ser extirpada de nenhum modo, nas condições dadas, porque ela é o efeito instalado da catarse interrompida nos primeiros anos de 1990 pelos aliados do velho regime transformados em agentes da nova corrupção. No presente momento, a Romênia é conduzida pelos filhos (parricidas) saídos da barriga de Ceauşescu.[Ver neste sentido o estudo de Marius Oprea, Moştenitorii Securităţii (Os herdeiro da Securitate), Humanitas, Bucareste, 2004] Este parricídio foi o álibi deles, o argumento que seguiram para se apresentarem diante da opinião pública como agentes de uma fratura política, quando de fato eram eles mesmos os garantes da continuidade da corrupção. O recurso à memória e ao passado representa por isso para eles o desconforto por excelência. O passado tem de ser evacuado já que ele é o ponto de costura deles ao velho regime, a dimensão visível da queda deles do manto de Ceauşescu.
A mentira em que vivemos hoje está ligada a este roubo da revolução, a este confisco histórico: é absurdo que a Romênia tenha escapado de Ceauşescu para cair nas mãos dos ativistas, dos securista e dos seus poetas de corte. É absurdo, mas vivemos neste absurdo. Este nosso deinon, a coisa estranha, terrível e ininteligível da nossa história. A Romênia é um país nas mãos do Glabro[Conto de Fadas Harap Alb [Mouro branco], em que a personagem Glabro [Spîn], apresentando-se como bom, é, na verdade, o velhaco, o demônio – NT]* e em que Harap Alb permanece anônimo.[Esta “aplicação” do conto de fadas à nossa situação atual me foi inspirada pelo artigo de Ioana Pârvulescu “Povesti pentru trezit copiii” (História para despertar as crianças”, de România literară, n.º 15 de 17-23 de novembro de 2004]* E o Glabro, que é “o homem mau”, segue a mentira não como um Odisseu, num cenário do “bem comum” em que o mal é absorvido como etapa intermediária, mas a mentira agora é o cerne num cenário do mal e o ponto terminus dele. O povo confunde muitas vezes o Glabro com Harap Alb e isto acontece principalmente pela fraude no gênero (pela confecção de outra identidade) e então, pela fraude verbal, pela desinformação, pelo engano, pelo “rapto do espírito” – lembrai-vos de Filoctetes –, pela ekklepsis. E hoje, como há 2400 anos, a mente de alguém pode ser roubada, ekklepto. Mas hoje e aqui ela já não é roubada para um escopo nobre e hoje, principalmente, ela pode ser roubada em uma outra escala completamente diversa, como mente coletiva, como mente de muitos e, se for necessário, como mente da maioria. Hoje a mentira se tornou “técnica”, hoje ela pode ser “amplificada”. Hoje temos televisões públicas, rádios públicos e “jornalistas ameaçados e sovados”. A Romênia se encontra hoje sob o signo do Glabro. Se devemos acreditar em Maquiavel, porque a nossa história, em 1990, não foi censurada por causa dos padrões impostos por toda a parte do mundo de então, quando foi o caso do saneamento das sociedades corruptas, temos todas as chances de nos assentarmos em uma nova tirania que já começou a ser gerada pela nova corrupção. O “signo do Glabro” é o signo da tirania incipiente que tem na origem o ato catártico interrompido da revolução de dezembro e um Harap Alb reduzido ao silêncio. É o signo em que l’ uòmo virtuoso maquiavélico sabe, mas não pode fazer nada num contexto preponderantemente de cegueira. Mas por causa do cenário de Maquiavel, vem o momento quando a corrupção se torna extrema, quando salta aos olhos de todos, quando todo o mundo percebe que o Glabro é o Glabro e não Harap Alb. Nesse momento, um povo deve ter uma oportunidade inaudita para encontrar um Harap Alb em vida, “um cidadão virtuoso” (Os discursos III, 30) para consubstanciar o cenário maquiavélico do bem e compor com o mal sem se deixar corromper por ele. Esse cidadão vai ser constrangido, diz Maquiavel, como na situação extrema criada para aplicar o remédio brutal de uma (nova) revolução. “Se tal homem existe”, diz Sócrates no final de Hípias Menor. E não esqueçais: se tal homem existe, ele deve aparecer quando um povo está preparado para ele. Nem mais cedo, nem mais tarde.

(GABRIEL LIICEANU - DA MENTIRA)
 

publicado às 04:28

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