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Porto, Património Mundial

por Thynus, em 29.04.16
Muy nobre e invicta cidade do Porto
 Quem vem e atravessa o rio
Junto à serra do Pilar
vê um velho casario
que se estende até ao mar

Quem te vê ao vir da ponte
és cascata são-joanina
erigida sobre um monte
no meio da neblina.

Por ruelas e calçadas
da Ribeira até à Foz
por pedras sujas e gastas
e lampiões tristes e sós.

E esse teu ar grave e sério
num rosto de cantaria
que nos oculta o mistério
dessa luz bela e sombria
(Carlos Tê / Rui Veloso
 

Património Mundial, aqui, não é só um monumento, nem sequer um grande conjunto de monumentos, com casas e ruas, igrejas, pontes majestosas…e cais…e muralhas e muitas pedras mais…e ferros e azulejos…
Aqui o Património Mundial é uma cidade.
Fervente, agitada, feita mais de mudança que de parança… feita de almas que se encontram e se agitam, nas ruas e nas casas, nos barcos e nos cais, nas igrejas, nos mercados e nas lojas comerciais…
O Porto, Património Mundial, é, acima de tudo, um turbilhão de energias e vontades que transporta, para um futuro vivo, uma cidade que já carrega vinte e cinco séculos de diferenças e de camadas sobrepostas, todas elas parte integrante do sítio que é hoje.
Na força das pessoas e na dinâmica das apostas está o futuro do Porto, mais que nas pedras da Sé ou dos Clérigos.
 
Contemplava a cidade
das pontes pela última
vez, envolvida por lençóis
encardidos e uma névoa que
subia do rio para lhe morder
o coração de Pedra. Era um
burgo pobre, sujo, reles até,
mas gostaria tanto de lhe pôr
um diadema na cabeça...
(Eugénio de Andrade)
 

A cidade é feita de vida
Feita de vidas de hoje, de ontem e de amanhã, e é essa vida que encontramos nos passeios e nas lojas, nos monumentos e nas casas, é o conteúdo dessa vida e dessas vidas que procuramos entender nos restos das muralhas, nas torres das igrejas, nas grandes pontes metálicas, nos azulejos das fachadas.
Queremos entender como é que estas coisas aqui pousaram, quem as fez, quando foram feitas, porque é que os nossos antepassados, mais ou menos recentes, mais ou menos remotos, se dedicaram ao comércio do vinho, ao Vinho do Porto, à navegação longínqua, ao Brasil e à China? A cidade do Porto é um porto.

Um Porto de barcos e de percursos
O Porto é uma cidade de Celtas, de Suevos e de Tripeiros.
Aqui é a boca do rio, a porta Atlântica de toda a bacia que entra por aí acima, por esses desfiladeiros e planaltos, pela Galiza, pela Lusitânia, por Leão e Castela, buscando e recolhendo as águas (e os vinhos) de tantos montes e montanhas.
Por aqui, molhando os nossos cais tão velhos, passa toda a chuva e toda a neve que se precipita neste mundo grande que é o interior ibérico. O Porto é uma cidade de gente Atlântica, de gente do Douro também, serrana, algo lusitana, algo visigótica, com fundas marcas nórdicas.
“Geneticamente”, o Porto será da família das cidades do noroeste europeu, marítima, chuvosa, pesqueira e marinheira, junto com a Galiza das rias, com a Bretanha, com a Irlanda e com a Escócia.
Mas o Porto, historicamente, ligou-se também com a Inglaterra, com os Países Baixos, com o Báltico, com as cidades da Liga Hanseática, com os Vikings dos fiordes nórdicos.
Aqui é o local de encontro deste interior ibérico e do mar Atlântico, com as Américas e as passagens para o mundo grande, global, inteiro.
Na partilha com Lisboa, enquanto a “capital do Império” centralizava as rotas da Índia e da África, o Porto estabeleceu laços velhos e íntimos com a Inglaterra e, mais tarde, com o Brasil. Sem tratado como em Tordesilhas assim se foram dividindo os mundos.
Assim se foi construindo uma identidade e um universo de relações onde entra o Vinho do Porto com ingleses, escoceses e dinamarqueses, e a industrialização com alemães, britânicos, franceses e belgas, a emigração com o Brasil, África e Europa, a troca cultural com todo o mundo.
É, o Porto, uma cidade de judeus que depois partem para Amesterdão, Bruges, Antuérpia, e aí vão fazer a sua riqueza e continuar a sua cultura. É uma cidade aberta, liberal, progressista, mais de comerciantes do que de aristocratas, mais vivendo do mercado que da corte, mais vivendo do negócio que da guerra, mais nobre na alma que no sangue.
Esta cidade descobre-se entre nevoeiros e neblinas!
Claro que também há dias de sol. Nesses dias é preciso pôr as roupas a secar, porque as semanas de chuva, às vezes, são seguidas. Mas, entre a chuva miudinha e as orvalhadas, há muito mais para descobrir, de tudo um pouco, daquilo que se fazem as cidades e se foi, aqui, acumulando ao longo dos milénios:
Conventos e igrejas, muralhas, mercados, cais, armazéns, museus, teatros, casas/torre góticas, fachadas barrocas, pontes monumentais, barcos pequenos e grandes, o antigo escondido e o moderno não revelado, há arqueologias que nos mostram o castrejo da idade do bronze, enterrado sob o romano e as camadas medievais, mas há também o século vinte com arquitecturas de surpresa, do movimento moderno até à contemporaneidade.
Há paisagem, animação das ruas, comércio, restaurantes, jardins esplanadas, casas, barcos e vinhos.

E o Porto é também uma tribo de futebol
Esta cidade de ligações, materiais e imateriais, a outros sítios é um Porto de relações, com famílias e personalidades, com artistas que deixam a sua obra nas ruas como os arquitectos, os escultores, os paisagistas, e com outros que deixam a sua obra nas galerias, nas livrarias, nos ecos dos teatros. A cidade da história, a cidade das casas e dos quarteirões, a cidade dos monumentos e das paisagens é também a cidade dos inquilinos e dos senhorios, a cidade dos empregadores e dos empregados e a dos residentes e dos turistas.
Desde a expansão histórica das épocas romana, medieval e moderna, até aos períodos de depressão depois da queda do Império Romano, das pestes, das invasões napoleónicas e do fascismo, o Porto foi crescendo umas vezes, diminuindo outras, na relação directa da capacidade das suas gentes para resistir às crises e retomar os trabalhos do progresso e de novos futuros.
Assim se faz a química da cidade!

  A Geografia do Sítio 
O sítio fez a cidade e a cidade fez o sítio. 
A cidade histórica, o casco velho, medieval, situa-se sobre colinas graníticas, de forte pendente, situadas na margem direita do Rio Douro, a uma légua da sua foz, no Atlântico.
Na margem esquerda ergue-se Gaia, sobre morros e onde, desde o século XVIII, se situam as caves do vinho do Porto.
Embarcado nos Rabelos ou, depois, por comboio e camião, o vinho desce as encostas desde as quintas do Alto Douro, por rápidos e gargantas até ao descanso destes armazéns magníficos, onde se arrumam os cascos de carvalho que dão ao Porto o paladar do tempo e guardam a memória do sol, dos xistos e das castas das uvas.
A luta permanente do rio e do mar determinaram o poder geo-estratégico desta localização, com importância para o povoamento, para a defesa e para o desenvolvimento económico de toda a região e para a própria identidade nacional.
O clima atlântico, quase opaco, contrasta com as características semi-mediterrânicas que estão presentes a apenas três centenas de quilómetros mais a Sul (em Lisboa, por exemplo) e com o clima continental das regiões do interior, para lá dos desfiladeiros e serranias do Marão.
A jusante da grande bacia hidrográfica do Douro, que se desenvolve na sua maior parte na meseta espanhola, o Porto sofre frequentemente cheias violentas e apresenta margens escarpadas que marcam a sua paisagem, hoje urbana, atravessada pelas pontes monumentais.

A História
Agora velho de quase três milénios, já no fim da idade do bronze, entre os séculos VIII e IV antes de Cristo, o Porto constituía um assentamento urbano do tipo castrejo, comum na área do Noroeste Peninsular.
O comércio com os fenícios e com os povos do Norte da Europa já era, então, regular.
A ocupação romana acontece no século I A. C. e a cidade assume uma grande dimensão durante a paz romana, sobretudo como entreposto comercial entre o Norte e o Sul do Rio Douro, e entre a via navegável interior, fluvial, e as rotas marítimas que demandavam o Mediterrâneo e os mares do Norte.
No fim do império a cidade reduz a sua extensão e população, sendo integrada no século V no reino Suevo da Galécia, com primeira capital em Braga. Sucede-se um período de enfraquecimento da vida urbana, que atravessa a ocupação visigótica e islâmica, até ao ressurgimento urbano do século XI, já nas vésperas do início da nacionalidade portuguesa.
Na Idade Média a cidade cresce, desenvolvendo as suas importantes estruturas defensivas, portuárias, fiscais e a sua administração municipal. Neste período o Porto consolida um forte relacionamento com as cidades do Norte da Europa, nomeadamente inglesas, francesas, belgas, alemãs e holandesas. A autonomia portuense e o amor à liberdade teceram-se entre combates do partido do povo e do rei contra o feudalismo do bispo, nos últimos séculos da Idade Média.
No final do século XVI, devido ao forte crescimento urbano e demográfico do burgo, o bispo portuense Frei Marcos de Lisboa decide dividir a única freguesia existente dentro de muralha, em quatro novas freguesias: Sé (já existente), S. Nicolau, N.ª Senhora da Vitória e S. João Baptista de Belomonte. Contudo, esta última é suprimida logo em 1604 e dividida pelas freguesias de S. Nicolau e Vitória
No século XVIII, o comércio do Vinho do Porto com a Inglaterra e o relacionamento intenso com o Brasil trazem à cidade e ao Douro um período de grande importância, com resultados hoje muito presentes no plano da arquitectura e das estruturas urbanas, com a expressão dos períodos Barroco e Neoclássico, e a cidade cresce em área e em actividade.
As invasões napoleónicas, a guerra civil entre liberais e absolutistas e a revolução industrial marcam o século XIX.
D. Pedro, rei liberal e primeiro imperador do Brasil independente, desembarca nos arredores do Porto com os seus 7 500 soldados e aqui é cercado, ano e meio, pelo exército absolutista até que vence e transporta o país para a modernidade. Nas ruas e praças do Porto, nas encostas do rio, nos sítios altos ainda hoje se lembram episódios das batalhas e datas dessa guerra civil que forjou o temperamento livre e cívico dos portuenses.
Calados os canhões e chegada a maquinaria da indústria, o vapor das fábricas, dos navios e dos comboios, nascida essa nova geração laboriosa da burguesia, liberal e empreendedora, a cidade dispara para o presente.
Os cais, as grandes pontes metálicas, túneis, linhas e estações ferroviárias completam a paisagem marcada pelas grandes chaminés das fábricas. A explosão demográfica, típica das cidades industriais, vai transformar o Porto numa cidade operária.

A População
Hoje a aglomeração metropolitana do Porto tem mais de milhão e meio de habitantes e inclui quinze municípios. A cidade do Porto tinha em 2000 cerca de 270 000 residentes, e o Centro Histórico conserva, ainda, cerca de 15000. Esta área metropolitana é o centro económico de uma vasta região de 3,5 milhões de habitantes e influencia, ainda, todo o grande noroeste peninsular.

As Actividades
O Porto nasce e desenvolve-se, durante séculos, como porto marítimo e fluvial, com os seus entrepostos e armazéns, com as empresas de trânsitos marítimos e com os escritórios de exportação e importação.
Além dos vinhos, o porto do Douro movimentou, em mais de dois mil anos, linho e algodão, carvão, sal, peixe, madeiras, máquinas e produtos industriais. Ao porto comercial somou-se sempre um importante porto de pesca, com destaque para a frota bacalhoeira que demandava a Terra Nova e a Groenlândia. Os estaleiros navais, de primeira importância na Idade Média, conservam agora apenas vestígios da sua actividade.
A cidade industrial do século XIX, com as suas fábricas têxteis, cerâmicas e metalúrgicas, foi transferida, nas últimas décadas, para os municípios periféricos, deixando o Porto entregue às actividades terciárias, à universidade e agora também ao turismo. A produção industrial na região é diversificada e inclui o mobiliário, o vestuário, o calçado, as cortiças.
 
O turismo só há poucos anos aparece no Porto como uma actividade importante, crescente, que aproveita sobretudo as vantagens de um Centro Histórico com cerca de uma centena de monumentos e a classificação de Património Mundial da UNESCO, estabelecida em 1996.
Tradicionalmente a ocupação dos hotéis do Porto resumia-se aos dias de trabalho, tendo como motivação os negócios. Hoje, a procura das caves do Vinho do Porto, os passeios fluviais no Douro e os eventos culturais como a música, as artes plásticas, os espectáculos teatrais e o cinema, atraem públicos nacionais e estrangeiros cada vez mais diversos. O sector turístico ganha estatuto de área económica de primordial importância no conjunto das actividades mais florescentes de toda a região.

Depois do Porto foram classificadas pela UNESCO as áreas do centro Histórico de Guimarães, das gravuras arqueológicas do Vale do Côa, e das vinhas do Alto Douro, acrescentando assim um alargado leque de motivações para a visita à região.
No Centro Histórico e Baixa da cidade, foram reabilitados nos últimos anos importantes edifícios com fins culturais : a Alfândega, o Palácio da Bolsa, o Coliseu, o Teatro Rivoli, o Teatro S. João, o Mercado Ferreira Borges, o Museu de Arte Sacra, a Casa do Infante, a Cadeia da Relação, o Museu do Carro Eléctrico, o Museu Soares dos Reis, serão alguns dos mais expressivos, entre muitos outros de menor dimensão.

A Arquitectura
Neste quadro de referência a arquitectura do Porto não é apenas um contributo para o valor estético e cultural da cidade, dos seus edifícios e dos seus espaços, mas também uma mais valia para a qualidade de vida e para a competitividade da cidade no seu conjunto, com destaque para o Centro Histórico.
No Porto, tem vindo a ser assumida uma atitude de reabilitação urbana que procura preservar os bens herdados do passado acrescentando, contudo, exemplos daquilo que pode exprimir a estética arquitectónica do presente.
Rico em barroco, em neoclássico e na arquitectura do ferro, o Porto tem recebido nos últimos anos alguns projectos de expressão contemporânea, nomeadamente no seu centro histórico, que o valorizam sem violarem o valor patrimonial do conjunto classificado onde se inserem.
Essa atitude, que foi sempre a adoptada nos séculos mais remotos (em que o património não era cristalizado em classificações) permite exprimir a vitalidade que a cidade ainda hoje encerra, composta por tantas páginas passadas, que, no entanto, não esgotam a história, a que falta sempre mais um capítulo. A intervenção arquitectónica, rege-se, assim, no Porto, por um conjunto de princípios que não violentam a liberdade da criação artística, mas acautelam a necessidade de convivência entre essa mesma criação e a pré-existência já consolidada.
O Porto mostra-nos como cada época foi capaz de introduzir na cidade, nos seus edifícios e nos seus espaços públicos, projectos de modernidade que contribuem para a riqueza estética do conjunt, afastando-se da tradição formal e construtiva dos períodos anteriores.
Quando, nos meados do século XVIII, na transição do período barroco para o iluminismo, o neoclassicismo impera no Porto, nomeadamente na emblemática Praça da Ribeira, podemos assistir ao choque (agora simbiose!) entre as casas medievais pré-existentes e as fortes fachadas eruditas de desenho impositivo e ordenador da geometria urbana.

PORTO Centro Histórico
Depois do Porto foram classificadas pela UNESCO as áreas do centro Histórico de Guimarães, das gravuras arqueológicas do Vale do Côa, e das vinhas do Alto Douro, acrescentando assim um alargado leque de motivações para a visita à região.
No Centro Histórico e Baixa da cidade, foram reabilitados nos últimos anos importantes edifícios com fins culturais : a Alfândega, o Palácio da Bolsa, o Coliseu, o Teatro Rivoli, o Teatro S. João, o Mercado Ferreira Borges, o Museu de Arte Sacra, a Casa do Infante, a Cadeia da Relação, o Museu do Carro Eléctrico, o Museu Soares dos Reis, serão alguns dos mais expressivos, entre muitos outros de menor dimensão.  

A Arquitectura
Neste quadro de referência a arquitectura do Porto não é apenas um contributo para o valor estético e cultural da cidade, dos seus edifícios e dos seus espaços, mas também uma mais valia para a qualidade de vida e para a competitividade da cidade no seu conjunto, com destaque para o Centro Histórico.
No Porto, tem vindo a ser assumida uma atitude de reabilitação urbana que procura preservar os bens herdados do passado acrescentando, contudo, exemplos daquilo que pode exprimir a estética arquitectónica do presente. Rico em barroco, em neoclássico e na arquitectura do ferro, o Porto tem recebido nos últimos anos alguns projectos de expressão contemporânea, nomeadamente no seu centro histórico, que o valorizam sem violarem o valor patrimonial do conjunto classificado onde se inserem.
Essa atitude, que foi sempre a adoptada nos séculos mais remotos (em que o património não era cristalizado em classificações) permite exprimir a vitalidade que a cidade ainda hoje encerra, composta por tantas páginas passadas, que, no entanto, não esgotam a história, a que falta sempre mais um capítulo. A intervenção arquitectónica, rege-se, assim, no Porto, por um conjunto de princípios que não violentam a liberdade da criação artística, mas acautelam a necessidade de convivência entre essa mesma criação e a pré-existência já consolidada.
O Porto mostra-nos como cada época foi capaz de introduzir na cidade, nos seus edifícios e nos seus espaços públicos, projectos de modernidade que contribuem para a riqueza estética do conjunt, afastando-se da tradição formal e construtiva dos períodos anteriores.
Quando, nos meados do século XVIII, na transição do período barroco para o iluminismo, o neoclassicismo impera no Porto, nomeadamente na emblemática Praça da Ribeira, podemos assistir ao choque (agora simbiose!) entre as casas medievais pré-existentes e as fortes fachadas eruditas de desenho impositivo e ordenador da geometria urbana.
Contrariando a morfologia orgânica de casas populares “de ressalto” sobre a Praça, encontramos agora as pesadas fachadas sobre arcarias dos finais de setecentos.
Nessa obra (incompleta) podemos encontrar o sucesso da diversidade de volumes e de tempos que enriquece mais a cidade do que a simples semelhança que poderia advir da conclusão simétrica da praça ou de uma atitude contrária de manter para sempre as duas fachadas medievais.
Mas, neste mesmo exemplo podemos encontrar ainda os acrescentos volumétricos do século XIX que alteraram profundamente a ordem clássica e introduzem novos pisos, umas proporções e uma verticalidade contrastantes com a estética precedente.
É assim que cada século vai depositando a sua arte sobre as camadas dos séculos anteriores!
 
Na Sé, edifício emblemático da igreja e da cidade, monumento de origem românica, podemos apreciar as adições e inovações estéticas que os tempos acrescentaram.
A “galilé” barroca é, agora, um dos elementos mais expressivos da qualidade do desenho e da obra introduzidos no Porto por Nicolau Nasoni. Trata-se, no entanto, de uma obra de ruptura com a estética dos períodos anteriores.
A própria Torre dos Clérigos, edificada na 1ª metade do século XVIII, terá sido, na época, um enorme choque estético para os hábitos instalados. Hoje, é o ex-libris da cidade.
Encontramos, na cidade, muitos outros exemplos de arquitectura de opostos. Veja-se as pontes metálicas, dominantes sobre a paisagem granítica do Centro Histórico, alterando a imagem do Porto e de Gaia, cortando e emoldurando toda a panorâmica primitiva do rio Douro.
Para a construção da Ponte Luís I, de dois tabuleiros, foi demolida parte da muralha gótica, do século XIV, numa atitude de abertura ao progresso e às novas técnicas, que hoje, dificilmente, seria consensual. Mas, se podemos ler a Ponte Luís I como “atentado” ao património medieval, vemos agora como, afinal, se construiu mais património, já que, hoje, ela é Monumento Nacional e está inscrita no bem classificado como Património Mundial!
A cidade do Porto é feita de adições e substituições, e o património urbano inclui, não só, os bens que têm de ser preservados, mas também aqueles que têm de se transformar para acompanhar as mudanças dos tempos.
Se assim não fosse assistiríamos à fossilização da cidade, à sua asfixia e morte. Como cidade viva, o Porto é entendido como um território em permanente mudança, onde devem coexistir o efémero, o duradouro e o eterno.
Em intervenções mais recentes, cobrindo as últimas décadas do século XX podemos constatar como a arte contemporânea pode inscrever-se num bem patrimonial que já concentra as estéticas dos séculos anteriores. Trata-se, sobretudo, de intervenções em locais muito específicos, o que nos leva a concluir que tem sido possível “praticar” a arquitectura contemporânea, sem agressão ao espírito do lugar, articulando o desenho existente e o proposto de forma contida e subordinada à imagem do conjunto.
Poderíamos encontrar muitos exemplos em interiores de muitos edifícios reabilitados, sobretudo onde o grau avançado de ruína obrigou a transformações profundas. Nesses casos há uma grande liberdade de expressão das opções estéticas contemporâneas, como no edifício sede da Ordem dos Arquitectos (rua D. Hugo), no claustro do Mosteiro de S. Bento da Vitória, na antiga sede do CRUARB (rua da Fonte Taurina) e na Casa do Infante.
Vamos concentrar-nos naqueles que têm uma expressão mais nítida no espaço urbano. Começamos pelo Café do Cais, seguimos para a lavandaria de S. Nicolau, passamos pelos ateliers da Lada e pelo café do Largo do Colégio e terminamos na torre da Casa da Câmara junto à Sé. Tratam-se, na generalidade, de projectos de arquitectos do Porto, equipados com um conhecimento profundo da história da cidade e dos locais de intervenção. São exercícios difíceis e exigentes e uma demonstração clara do equilíbrio que importa manter entre a imagem primitiva do sítio e nova imagem que se pretende introduzir.

A Vida
A vida que hoje existe no Centro Histórico do Porto é a principal garantia de preservação do ambiente tradicional, pleno de autenticidade. É a sua população, as suas actividades comerciais e artesanais que garantem a sua própria continuidade como herança da humanidade e valor patrimonial vivo.
 
Os principais conjuntos edificados do Porto 

Sé, Ponte e Serra do Pilar
O conjunto monumental mais marcante do Porto, e talvez de todo o Douro, é o que reúne a acrópole da Sé com a sua Catedral, o Paço Episcopal e a igreja de S. Lourenço e o convento da Serra do Pilar na margem oposta, sobre a escarpa, ligados pela estrutura transparente da Ponte metálica de Luís I. Cada um destes “objectos” arquitectónicos, só por si será uma obra-prima e todos eles estão classificados como Monumento Nacional, para além da sua classificação como Património Mundial da UNESCO.
Os vários monumentos e edifícios funcionam como um único conjunto arquitectónico que está inscrito num cenário original de forte impressão sensorial. O rio aperta-se aqui numa garganta estreita a poucos quilómetros de se lançar no Atlântico. Parece que recordado dos desfiladeiros da nascente, das arribas e dos cachões, se quer despedir, assim, apertado entre escarpas, antes de se espraiar no oceano. Tal é o esganar das margens que aí se situa o melhor sítio para uma ponte!
Obra de relojoaria com milhares de toneladas e centenas de metros de extensão, a ponte, mais que centenária, lança um arco gigantesco e leve, largo, que se apoia nos maciços graníticos das duas margens. Pousado sobre o arco enorme, um tabuleiro de quatrocentos metros aproxima os dois montes opostos. Suspenso, outro tabuleiro, faz o salto à cota baixa entre as ribeiras do Porto e de Gaia.
Contrastando com a transparência da ponte a serra do Pilar assenta, volumosa, os seus rochedos no mergulho da corrente. Coroando o monte, o mosteiro de Santo Agostinho da Serra de Pilar, seiscentista, dá uma geometria horizontal, clássica à paisagem rematada pela basílica de planta redonda. Redondo é também o primoroso e raro claustro que não se vê de fora mas merece visita. Obra do Renascimento, domina a natureza agreste da margem, escarpada e selvagem, com a sua superfície emoldurada num desenho absolutamente irrepreensível, lógico e ordenador da silhueta do conjunto maciço.
 
Do lado do Porto a ponte entrega-se na “Acrópole” da Sé, românica, ameada, ao mesmo tempo castelo, templo e cidadela. Mas a Sé não é só a igreja, é um todo que inclui claustros e casas do cabido mais o impressionante paço do Bispo, barroco, rico, enorme nas suas três dimensões.
Foram os séculos e a arte que fizeram este conjunto, começando pela obra do rio que abriu a garganta na rocha na sua luta inexorável pelo mar, foram os homens primitivos que arrumaram os cais, e fizeram as primeiras casas, foram os nossos antepassados medievais que construíram a Sé e os monges que ergueram o mosteiro no renascimento, foi o barroco de Nasoni que acrescentou o paço do Bispo já no século XVIII, e Teophile Seyrig que desenhou a ponte inaugurada em 1886.
Se vasculharmos os baús da nossa história nestes sítios, vamos certamente aqui encontrar a obra de todos os tempos, de todos os séculos, mais ou menos a descoberto, mais ou menos soterrada, desde há três mil anos. Tudo isto num olhar, entre o céu e o rio que são eternos.

A Muralha Fernandina
 Com cerca de três quilómetros de perímetro e dezassete portas e postigos, a muralha fernandina foi, talvez, a maior obra pública realizada no Porto, até ao século XIX.
Iniciada no reinado de D. Afonso IV, a sua construção durou cerca de sessenta anos, ao longo do século XIV, podendo ser chamada de “muralha gótica” pelo seu estilo e pela sua época, distinguindo-se, assim, da “muralha românica” ou “cerca velha”, levantada no século XII sobre os antigos muros suevos e romanos. A muralha fernandina só em meados de setecentos começou a ser demolida para permitir a expansão urbana e a modernização do Porto. Hoje está ainda presente na nossa paisagem, em cabeços altos como o de Santa Clara e o das Taipas e em cotas baixas como o Muro dos Bacalhoeiros e o Muro da Ribeira. Conhecido é todo o seu percurso e a localização das suas portas desaparecidas. Actualmente, resta, apenas, o Postigo do Carvão ali no cais da Estiva, mesmo ao lado da Praça da Ribeira.
 
Três razões principais ditaram a sua realização, primeiro, obviamente, a defesa, segundo os interesses fiscais, já que funcionava como barreira alfandegária e, finalmente, a imagem da cidade. Cidade sem muros altos e fortes, incapaz de impressionar o visitante e tranquilizar o habitante, não tinha meio de fazer valer o seu interesse como local de comércio ou de residência. Cumpridos estes propósitos durante quinhentos anos, resta agora como memória desses tempos, em que a fronteira da pátria estava na fronteira da cidade. Hoje, tão interessante como vê-la à distância, rematando a silhueta do burgo, será entrar nela e viver o seu oco, sentir as suas pedras, nos restaurantes e botequins que a ocupam em toda a Ribeira do Porto.
 
 

Praça do Infante D. Henrique
No centro da praça do Infante D. Henrique, encontra-se a estátua deste navegador, filho de D. João I e de D. Filipa de Lencastre, que, segundo a lenda, terá nascido na velha alfândega medieval, a actual Casa do Infante, situada na rua da Alfândega. Rodeando a estátua, além dos quarteirões vetustos e imponentes dos séculos XVIII e XIX, destaca-se a igreja do desaparecido convento de S. Francisco, gótica e austera no seu exterior, mas carregada de talha dourada, no seu interior.
No palácio da Bolsa encontramos o ecletismo das salas elegantes e o ambiente de uma burguesia portuense liberal e progressista, triunfante sobre o absolutismo miguelista, que, ainda hoje, usa esta casa como lar de um “senado” informal das empresas e das famílias que fazem o Porto e que o Porto faz. A norte, o Mercado Ferreira Borges, obra higienista, transparente e luminosa, assente sobre um soco granítico que ocupa aquilo que foi a cerca do desaparecido convento de S. Domingos. Hoje não é mercado, mas, melhor ainda, serve de local de animação e lazer para os locais e os visitantes
A sul, no interior do quarteirão com entrada pela rua da Alfândega (velha), a Casa do Infante. Aqui teremos o mais importante sítio arqueológico do Porto, com museu e arquivo histórico, sobre os estratos um palácio romano e as camadas medievais da casa da moeda, das instalações régias, da alfândega. Foi na torre norte desta casa que, em 1393, nasceu o Infante, meio inglês, nunca marinheiro (terá embarcado, apenas, na armada que foi conquistar Ceuta, armada essa que foi aparelhada no Porto). Mas, se não foi marinheiro, foi estratega - e visionário - tendo lançado no desconhecido os barcos que iniciaram a descoberta do mundo. E se, cada vez, os barcos eram maiores, muito maior era o mar que, de cada vez, os recebia, umas vezes poupando-os e outras engolindo-os, com suas almas, para sempre.
Assim se foi arredondando a terra, até ser o globo que, depois, em Tordesilhas, partimos ao meio como uma melancia!
Nas proximidades da zona do Infante fica uma das mais antigas praças do Porto, a praça da Ribeira, situada no centro da actividade comercial desenvolvida à volta do rio. No séc. XVIII, João de Almada e Melo, governador da cidade pretendeu dar-lhe uma configuração semelhante à da Praça do Comércio em Lisboa, projecto nunca totalmente concretizado. Actualmente, no centro da praça, encontra-se uma escultura em bronze “O Cubo”, homenagem à força do rio Douro, da autoria de José Rodrigues.
 
Clérigos, Cadeia e S. Bento da Vitória 
Separada da colina da Sé pelo pequeno vale do “Rio da Vila” (hoje totalmente subterrâneo) eleva-se a colina da Vitória pontuada pela exuberante Torre dos Clérigos. Desenhada pelo italiano Nicolau Nasoni, na primeira metade de setecentos, é um dos exemplares mais eloquentes do barroco portuense, talhado no nosso granito duro de grão médio e cinzento.
Alta, elaborada, escalonada, rematada por um globo de bronze encimado da inevitável cruz, equipada com um carrilhão carregado de possibilidades, a torre remata a igreja oval e domina o Porto todo.
Vê-se do Infante, da Ponte Nova, da Sé, de Cedofeita, como um farol que orienta, dentro do labirinto urbano, as rotas dos peregrinos que demandam o centro da cidade.
Imponente e elegante, vista de longe e de perto a torre serve também para mostrar, a quem lá sobe, os segredos dos telhados e das árvores, dos campanários e dos pináculos, das estátuas que olham das alturas dos frontões de toda essa vizinhança quase infinita das cidades que envolvem o Centro Histórico, até Gaia, Lapa, Bonfim…
 
Junto à Torre, dentro da desaparecida Porta do Olival, está a Cadeia. Parece demais palácio e maispareceria se não fossem os vestígios das grades. Por dentro sente-se o peso da reclusão, a espessura dos muros, a grossura dos ferros e o peso dos ferrolhos de tantos portões. Até o eco é sinistro naqueles escadórios, corredores, celas, masmorras e enxovias.
Cumpriu a sua função de castigo até há poucas décadas, como prisão e tribunal. Agora é um calabouço aberto, com memórias da fotografia e alguns espaços de recordação triste da sua utilidade primitiva.
A cela de Camilo, no piso da nobreza (o mais alto) com panorama sobre a Sé, merece romagem.
Paredes, quase meias, está S. Bento da Vitória, sobre a judiaria nova, (havia uma mais antiga fora de muros anterior a D. João I).
Depois do édito de D. Manuel, proibidos, os judeus, de exercerem a sua crença e as suas tradições, o seu gueto foi dado à construção dos beneditinos. A grandeza do mosteiro, a magnificência da igreja, a “brutalidade” do fantástico órgão de tubos, poderoso na sua imagem e no seu som, toda a renascença e o barroco acumulados, merecem visita demorada.
No claustro, clássico, rigoroso, impecavelmente preservado, esteve a Orquestra Nacional do Porto antes de se instalar na nova Casa da Música. É por isso que está coberto.
 
S. Bento, Praça e Cardosas
De S. Bento da Avé Maria, o Mosteiro, resta o nome que agora é emprestado à estação ferroviária. Obra da mudança do século XIX para o XX, é visita obrigatória. De arquitectura eclética, de inspiração francesa, conjugada com a obra do ferro, a estação é um ponto central da vida e da imagem de um Porto relacionado com as suas regiões, o Minho e o Douro.
Mas a estação vale, acima de tudo pela história magnífica contada nos seus azulejos. A evolução dos transportes desde a antiguidade, cenas da vida rural e das paisagens durienses e minhotas e, sobretudo, os grandes painéis de história, como o da entrada de D. João I e Filipa de Lencastre no Porto, Egas Moniz apresentando-se ao Rei de Leão e o torneio de Arcos de Valdevez.
Em frente à estação ergue-se o quarteirão das Cardosas, com o seu enorme palácio neoclássico, construído sobre o desaparecido convento dos Lóios que se encostava, pelo lado de dentro, à muralha, mesmo à ilharga da Porta dos Carros (a saída medieval para Braga, pela estrada que é agora a Rua do Bonjardim). Frente às Cardosas, no centro da Praça da Liberdade, D. Pedro equestre, virado para Sul, empunha a Carta Constitucional, contra o absolutismo. Primeiro imperador do Brasil independente, desembarcou nas praias do Mindelo, poucas léguas aqui a norte, com o seu exército liberal de sete mil e quinhentos refugiados, estudantes, emigrados do Brasil e açoreanos. Resistiu a ano e meio de cerco e travou, aqui, batalhas heróicas e deseperadas contra os Miguelistas que tinham o país todo contra o Porto. Saiu vitorioso e fundou o Portugal moderno, progressista, industrial e independente.
Morreu no Brasil mas deixou cá o seu coração, que a Câmara religiosamente guarda na Igreja da Lapa.

 

Batalha e Cimo de Vila
Segundo a lenda, o topónimo Batalha lembra uma heróica batalha ocorrida neste local, durante o séc. X, entre as tropas cristãs fiéis ao rei leonês, e as forças islâmicas do califa de Córdoba. Com a construção da muralha fernandina, durante o séc. XIV, é aberta a porta de Cimo de Vila na qual foi colocada a imagem de N.ª S. ra da Batalha, que recorda a velha batalha aqui ocorrida. Esta imagem deu origem à construção de uma capela com a mesma devoção, desaparecida em 1920.
Na praça encontra-se a igreja paroquial de Sto. Ildefonso, erguida no século XVIII, no local de uma antiga ermida medieval. Este edifício é marcado pelo revestimento azulejar da sua fachada, obra de Jorge Colaço, executada em 1932, bem como pelo altar-mor barroco em talha dourada, desenhado por Nicolau Nasoni e executado por Miguel Francisco da Silva, nos meados do séc. XVIII.
O palacete dos Correios é uma casa nobre edificada no final do séc. XVIII por José Anastácio Guedes da Silva da Fonseca, fidalgo da Casa Real. Em frente a este edifício destaca-se o monumento a D. Pedro V, estátua em bronze colocada pela Câmara Municipal em 1861, em homenagem ao jovem rei português, precocemente falecido.
A junção do largo da igreja de S. Ildefonso com o antigo largo da Batalha deu lugar à moderna praça da Batalha, de traçado irregular, que, no séc. XIX, é já um importante nó viário. Torna-se, assim, um centro de atracção cultural da cidade, plena de teatros, cinemas, hotéis e cafés. O Teatro S. João, o primeiro grande teatro lírico da cidade e da região, traz à Batalha, a partir do final do séc. XVIII, inúmeros artistas e espectadores. O Águia D’Ouro e o antigo Cinema Batalha acompanharam o crescimento e a afirmação do cinema, no Porto do início do séc. XX. O primeiro foi edificado para receber espectáculos de teatro e circo; o segundo é o sucessor do High-Life, a primeira sala construída de raiz, na cidade, destinada à projecção cinematográfica.
 
No início do séc. XX, num clima politica e militarmente conturbado, esta praça assistiu ao eclodir de importantes revoltas, das quais se destacam a proclamação da Monarquia do Norte (1919) pela Junta Governativa de Paiva Couceiro e a Junta Revolucionária, liderada por Jaime Cortesão que se opôs à ditadura militar, instaurada em 1926. Cima de Vila, na época medieval, correspondia ao local mais elevado no extremo de uma povoação. A rua de Cimo de Vila mantém o seu traçado sinuoso e estreito, ladeada por casas populares do séc. XVIII e XIX, sendo as mais antigas, ainda, em taipa. Nesta rua encontra-se o edifício da Venerável Irmandade de N.ª Sra. do Terço e da Caridade, construído na segunda metade do séc. XVIII. Esta estrutura é composta pela igreja de gosto rocaille, com a fachada ricamente decorada por elementos dispostos em forma de custódia, pela Casa do Despacho e pelo hospital da Irmandade.
Actualmente, a rua Cimo de Vila é um exemplo vivo da riqueza multicultural da cidade, onde tabernas, estabelecimentos comerciais, bares de alterne e pensões baratas convivem com a chegada, recente, de pessoas de diferentes comunidades.
 

Aliados e Trindade
A Trindade, localizada na parte Norte do antigo Campo das Hortas, era conhecida como Laranjal, sítio rural onde existiam algumas quintas sulcadas por vários ribeiros, oriundos da zona da Lapa e do Bonjardim. O bairro dos Laranjais, rasgado em meados do séc. XVIII no local das velhas quintas do Laranjal, deve a sua criação a João de Almada e Melo, Governador d’ Armas da cidade e seu primeiro urbanista moderno. O Plano de Melhoramentos da cidade de 1784, da responsabilidade deste governante, previa a rápida abertura da praça do Laranjal (futura praça da Trindade) e o alinhamento da travessa que ligaria à rua do Bonjardim (antiga estrada de saída para Guimarães), para facilitar o trânsito entre estas importantes vias.
Em 1803, segundo projecto de Carlos Amarante, começou-se a construir, na zona do Laranjal, a igreja da Ordem da Santíssima Trindade.
De gosto classicizante, esta igreja possui uma fachada decorada com as armas da Ordem e com as imagens dos seus fundadores, S. João de Mata e S. Félix de Valois. No seu interior destaca-se o retábulo-mor da autoria do arquitecto José Marques da Silva.
Durante o séc. XIX, esteve situada nesta praça uma vasta propriedade pertencente a Antónia Adelaide Ferreira, a célebre Ferreirinha, que aí tinha o seu palacete. Junto a esta praça encontra-se a sede de um dos clubes mais representativos da cidade: O Clube dos Fenianos Portuenses. Foi criado em 1904 com o objectivo de fazer rejuvenescer as tradições carnavalescas na cidade e mantém, ainda hoje, uma programação ligada à música, à dança e a outras actividades lúdicas.
Em 1914, é aberto concurso para o Plano de Melhoramentos e Ampliação da Cidade do Porto, apresentado pelo vereador Elísio de Melo. Na sua sequência é chamado o arquitecto Barry Parker que apresenta um projecto urbanístico que tornaria a antiga praça Nova no novo centro cívico, com espaços de circulação radial e acesso à ponte Luís I. As obras da nova avenida iniciaram-se com a demolição dos palacetes do antigo paço municipal e conduziriam ao desaparecimento de alguns arruamentos que ficavam junto à zona do Laranjal.
No início do séc. XX vão ser edificados na nova avenida edifícios notáveis, de gosto fin de siècle e Art Noveau. Dentro destes e a coroar a avenida, destaca- se o edifício dos Paços do Concelho. Na praça, junto a este edifício, foi colocada a estátua em bronze de umas das maiores figuras da política e cultura portuguesas do séc. XIX, nascido no Porto: Almeida Garrett. Esta praça, conhecida até 1974 como praça do Município, tomou o nome do General Humberto Delgado, militar opositor do Estado Novo.
Mais recentemente, a avenida dos Aliados sofreu obras de requalificação, no seu espaço público, dirigidas pelos arquitectos Siza Vieira e Souto Moura. Foz e Passeio Alegre
 
A Foz é o destino final do rio que nasce na serra do Urbião, atravessa Castela e Leão, entra em Portugal nas escarpadas vertentes de Miranda, passando, posteriormente, pela mais antiga região demarcada de vinho, banhando, no seu último trajecto, a mui nobre e leal cidade do Porto, como conclusão dos seus mais de oitocentos quilómetros de percurso.
Na póvoa piscatória de S. João da Foz, couto medieval pertencente ao mosteiro de Santo Tirso, vai surgir, no início do séc. XVI, um importante conjunto de obras que vão marcar o seu território. Por acção do abade beneditino D. Miguel da Silva, espírito influente da Renascença em Portugal, surgem em S. João da Foz, edifícios de uma grande modernidade para a sua época. Destacam-se o palacete e igreja beneditinos e a capela-farol de S. Miguel-o-Anjo (o primeiro farol moderno), obras da autoria de Francesco della Cremona.
No final do séc. XVI, já sob dominação filipina, a necessidade de controlo defensivo do território e de regularização do tráfego marítimo vai conduzir à construção da fortaleza de S. João da Foz, no local do antigo palacete renascentista. Constituída por vários baluartes nos seus ângulos, tinha por função proteger a entrada da Barra do rio Douro.
No séc. XVII, por acção dos monges beneditinos de Santo Tirso, a quem pertencia o couto da Foz, vai ser criada uma nova igreja paroquial, que vem substituir a velha igreja enclausurada no forte de S. João da Foz. A campanha de obras para a construção desta igreja acabou por se prolongar pelo séc. XVIII. Desta resultou uma igreja barroca de planta longitudinal e nave única com capelas colaterais, sendo a capela-mor decorada por um retábulo em talha dourada, atribuído a Miguel Francisco da Silva.
No final do séc. XVIII, é construído o molhe da barra do Douro. No entanto, a regularização e urbanização da zona em redor do forte de S. João da Foz, ocorre apenas no final do século seguinte. Esta torna-se possível com a conclusão dos aterros nos terrenos adjacentes, com a construção de um chalet, a plantação de árvores vindas da Alemanha e a abertura do novo jardim do Passeio Alegre. No séc. XX o jardim foi enobrecido com a colocação de dois obeliscos e um chafariz, provenientes da Quinta da Prelada.

(Fundação Rei Afonso Henriques - Património da Humanidade na Bacia do Douro)
Varandas da praia do Molhe, Foz do Douro. Isto também é Porto!

publicado às 20:33

Ver a cidade é também olhar para dentro de si!
Por que não? As lembranças, as saudades, o desejo. Veracidade
é a verdade de que cada um tem de ver a sua cidade... A sua
peculiaridade, a sua dúvida, a sua certeza, a sua estranheza.
 

Para qualquer um que tenha se apaixonado profundamente, o profano é sagrado.

( Deepak Chopra)

 

 
A propriedade da vontade
 
O que há para se acreditar além do Eu? E Eu é a negação da perfeição como realidade. Nenhum homem jamais viu a si mesmo em tempo algum. Somos o que acreditamos e o que isto implica através de um processo de tempo na concepção criação é causada através da escravidão à fórmula.
Ações são expressões de idéias unidas na crença; sendo inerentes elas são obscuras, sua operação indireta, facilmente elas enganam a introspeção. Os frutos da ação são bi-partidos, Paraíso ou Inferno,sua Unidade ou Vazio ( purgatório ou Indiferença). No Paraíso há o desejo pelas Mulheres, no Inferno o desejo intenso. O Purgatório é a expectativa atrasada, Indiferença mas desapontamento até o reestabelecimento.E então verdadeiramente eles são um e iguais. O sábio ,prazer procura, tendo percebido que são "diferentes graus de desejo"e nunca desejáveis, abandona a Virtude e Vicio e torna-se um Kiaísta. Controlando o Tubarão de seu desejo ele cruza o oceano do princípio dual e se engaja no amor próprio.
Religiões são a projeção da incapacidade, as imaginações do medo, o venerador da superstição, que o paradoxo é a verdade, e muitas vezes a ornamentação da imbecilidade. Como uma virtude na Idéia para maximizar o prazer sem grandes custos, remita os seus pecados e perdoe-os e não obstante cerimonial, a expressão da manipulação do medo governante. Sim. O que você ordenou em sua religiosidade, é o seu próprio suplício, imaginário embora o seja; O prospecto não é agradável; você aprendeu! Ele tornou-se inato e seu corpo é sensitivo.
Alguns louvam a idéia da Fé. Acreditar que são Deuses(ou algo mais) os faria tal- provando por tudo o que fazem, estarem plenos de não-crença. Melhor é admitir incapacidade ou insignificância, do que reforçá-la através da fe; visto que o superficial "proteje" mas não muda o vital. Portanto rejeite o primeiro pelo último. Sua fórmula é decepção e eles estao enganados, a negação de seu propósito. Fé é recusa , ou a metáfora da Estupidez, daí ela sempre falhar. Para tornar sua escravidão mais segura, os Governantes empurram as religioes pela garganta de seus escravos, e sempre da certo; aqueles que es capam são poucos., portanto sua glória é maior. Quando a fé acaba, o "Eu" permanecerá sá. Outros menos tolos, obscurecem a mente com a idéia de que Deus é uma concepção deles mesmos,e como tal sujeito a lei. Entao, esta ambição de fé, será tão desejável? Eu próprio, ainda não vi um homem que não seja Deus.
Outros novamente, e aqueles que possuem muito conhecimento, não podem dizer a você exatamente o que é "crença", ou como acreditar no que desafia as leis naturais e a crença existente. Certamente não é dizendo "ëu acredito"; esta habilidade há muito foi perdida. Eles são ainda mais sujeitos ao Que Deus está sempre nos. Céus ou que o Todo - Poderoso inconcebível emana sua concepção ou negação - comete suicídio, etc. desnorteamente e distração pois diretamente abrem suas bocas cheias de argumento; sem poder e infelizes a menos que espalhem sua própria confusão, para ganhar confiança eles devem adotar dogmas e maneirismos que excluem a possibilidade.... Através da iluminação de seu conhecimento eles deterioram em realizações. Não observamos nós eles caírem no raio de suas explicações? Na verdade, o homem não pode acreditar por fé, ou ganho, nem pode ele explicar o seu conhecimento a menos que nascido de uma nova lei. Sendo nós tudo, qual o motivo de imaginarmos que não somos?

 
Veracidade. Ver a cidade. Viver a Cidade. Ter a cidade. Sentir necessidade. Querer viver essa cidade. A necessidade de prazer nessa cidade. Sentir tudo e nada. Totalidade. Nulidade.
 
Seja místico.
Outros acreditam na prece.... não aprendeu tudo ainda, que pedir é ser negado? Que isto seja a raiz de nosso Evangelho. Oh, tú que estas vivendo a vida de outras pessoas! Ao menos que o desejo seja subconsciente, ele não se realiza, não, não nesta vida. Então dormir é melhor que rezar. Quiescência é desejo oculto, uma forma de "não pedir"; através disto a fêmea obtém muito do homem. Utilize a oração (se você precisa orar) como um meio de exaustão, e através disto você irá obter o desejo.
Alguns fazem muito para mostrar a similaridade de diferentes religiões; certamente com isto eu provo a possibilidade da ilusão fundamental, mas isto eles não percebem nunca. Deste Mandato eles são o escárnio, pois quanto eles se arrependem! Eles sofrem mais conflitos que os não iluminados. Com o que eles podem identificar as suas próprias desilusões ou medos eles chamam de verdades. Eles nunca vêem esta similaridade e a quintessência das religiões , Sua própria pobreza de imaginação é o paliativo da religião. Melhor é mostrar a diferença essencial entre as religiões. Também o é conhecer os vários meios; não é o seu objetivo enganar e governar? Certamente então, para o alcance do transcendental, Deus e religião não deveriam ter lugar.
Alguns louvam a assim chamada verdade, mas dão a ela muitos recipientes; esquecendo sua dependência eles atestam a sua afinidade e paradoxo, a canção da experiência e ilusão. Paradoxo não é "verdade", mas a verdade de que nada pode ser verdadeiro para sempre .O que suplanta o paradoxo e está implícito ("não necessariamente"), farei a base de meus ensinamento. Determinamos o deliberativo, a "verdade" não pode ser dividida. Amor próprio somente não poderá ser negado e é o amor próprio como tal quando paradoxal, sob qualquer condição, daí ele sozinho ser verdade, sem acessórios e completo.
Outros louvam a Magia cerimonial, e acham que sofrem grande Êxtase! Nossos hospícios estão cheios, o palco está lotado! É simbolizando que nos tornamos o simbolizado? Se coroar-me Rei, serei eu um Rei? Deverei ser na verdade um objeto de repulsa e pena. Estes Magos, cuja insinceridade é a sua proteção, não passam dos almofadinhas desempregados dos Bordéis. Magia não passa da habilidade natural de uma pessoa em atrair sem pedir; celebrar o que não é afetado, sua doutrina é a negação das deles.
Eu os conheço bem e o seu credo de aprender que ensina o medo de sua própria luz. Vampiros, eles são os próprios piolhos em atração. Suas práticas provam a sua incapacidade, eles não têm magia para intensificar o normal, a alegria de uma criança ou pessoa sadia, nada para evocar prazer ou sabedoria deles mesmos .Seus métodos dependem de um pântano da imaginação e de um caos de condições, seu conhecimento é obtido com menos decência do que a hiena obtém seu alimento, eu digo que eles são menos livres e que não têm a satisfação do mais cruel dentre os animais. Auto-condenados em sua repugnante obesidade, sua falta de poder, sem mesmo a magia do charme pessoal ou beleza, eles são ofensivos em seu mau gosto e em suas barganhas para aparecer. A liberdade de energia não é obtida pela sua escravidão, e grande poder não pela desintegração. Não é porque nossa energia (ou produto mental) está Ultra-confinada e dividida, que não somos capazes de deixar estar magicamente?
Alguns acreditam que tudo e qualquer coisa é simbólico, e pode ser transcrito, e explicar o oculto, mas daquilo em que eles não acreditam (Grandes verdades espirituais?). Então argumente uma metáfora, confundindo com cuidado o óbvio que desenvolve a virtude oculta. Esta corpulência não necessária, contudo impressiva, não é revoltante?( O Elefante é grande demais e extremamente poderoso, o porco embora nojento não alimenta o desprezo do nosso bom gosto.) Se uma homem não é um herói para o seu serviçal, menos poderá ele permanecer um místico aos olhos dos curiosos; conformidade ensina a bufonaria. Adorne seu significado, embora seja censurável (como fato) , após você ter mostrado a sua honestidade. Verdade, embora simples, nunca necessita de argumento da confusão pela obscuridade; seu próprio simbolismo puro abraça todas as possibilidades como um "design" místico. Tome seu lugar no senso comum e você incluirá a verdade que que não pode mentir; nenhum argumento terá então prevalecido. A perfeita proporção sugere nenhuma alteração e o que não tem serventia apodrece.
Eles rejeitam todo o moderno simbolismo*1 e alcançam um limite absurdo muito cedo. Não contando com mudança *2 e ( às vezes) a natureza arbitrária do simbolismo ou a chance de uma loucura preservada, por sua adoção do tradicional sem uma Ciência, como uma indicação do presente, seu simbolismo é caótico e sem sentido. Não conhecendo a retribuição primitiva, eles têm êxito em projetar a sua própria pobreza através desta confusão, explicando os antigos símbolos. As crianças são mais sábias. Esta aglomeração de antiguidade apodrecida, unida à doença da ganância é seguramente a oportunidade para a caridade? Esquecendo idéias vistosas aprenda as melhores tradições observando suas próprias funções e o moderno sem preconceitos. Alguns valorizam a crença em um código moral doutrinário, que eles natural e continuamente transgridem, e nunca obtêm o seu propósito. Dada a correta natureza, eles obtêm êxito em seu próprio governo, e são os mais saudáveis, sãos e que têm maior prazer. Isto poderá ser chamado de a negação da minha doutrina, eles obtêm uma satisfação permitida aonde a minha é completa. Que ele demore aqui, que não é forte para a grande obra. Na liberdade ele poderá se perder. Então abram as asas sem medo, simplórios.
Outros dizem que somente o conhecimento é eterno, é a eterna ilusão de aprender - o Mandato do aprendizado do que já sabemos. Diretamente perguntamos a nós mesmos "como" induzimos a estupidez; sem este conceito o que poderá haver que não saibamos e realizemos? Outros pela concentração, ela não o libertará, a mente concebendo a lei é escravidão. Chegando neste ponto, você irá desejar a desconcentração. Dissociação de todas as idéias menos uma não é liberdade mas realização imaginativa, ou a fúria da criação. Outros novamente, que todas a coisas são emanações do Espírito Divino, como raios do Sol, por isso a necessidade de emancipação? Na verdade coisas são necessárias através de sua concepção e crença. Então, destrocemos e mudemos a concepção, e esvaziemos a crença.
Esta e muitas outras doutrinas, são declaradas por mim como as perpetuadoras do pecado e ilusão. Cada uma e todas dependentes de uma implicação confusa, obscura e ainda criada da dualidade da consciência para seu prazer. No medo eles vomitariam sangue fresco aonde eles veriam os frutos de suas ações e prazeres. Assim acreditando em doutrinas amplamente diferentes, eles são pelo principio dual, parasitas necessários um do outro. Como drogas e a faca do cirurgião, eles simplesmente anulam ou, no melhor dos casos, removem o efeito. Eles não podem mudar ou remover a causa fundamental (a lei)." Oh,Deus, tu és o ambiente estagnado." Tudo é charlatanismo: estas religiões cuja própria existência dependem de seu fracasso, são tão cheias de pobreza e confusão, tem somente multiplicado os argumentos, assim como são cheias de argumentos elas são perniciosas, tão coroadas de não-essências, sendo tão estéreis de qualquer prazer livre nesta vida ou outra, eu não poderia sustentar suas doutrinas. Seu critério para o prazer-morte. Seria melhor o homem renunciar a todas elas, e abraçar o seu próprio e invencível propósito. Ele não pode ir mais longe, e isto é a sua única libertação. Através disto ele poderá colocar seu prazer aonde desejar, e encontrar a satisfação.
 
(Austin Osman Spare - O Livro do Prazer - Auto-Amor - também intitulado O Livro do Êxtase ou Estudo sobre a Psicologia do Amor)
 

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NOTAS:
*1 Todos os meios de locomoção, máquinas, governos, instituições, e tudo essencialmente moderno, e simbolismo vital da operações de nossa mente, etc.
 
*2 O símbolo da justiça conhecido dos Romanos não é simbólico do Divino,ou a nossa justiça,ao menos não necessariamente ou usualmente. A vitalidade não é exatamente como água nem somos nós árvores; mas como nós mesmos, que incidentalmente poderemos incluir árvores em algum lugar não conhecido muito mais óbvio nas nossas obras no presente.

DEFINIÇÕES:

As palavras Deus, religiões, fé, moral, mulher,etc (sendo estas formas de crença), são usadas expressando diferentes "meios" como desejo controlador e de expressão: uma idéia de unidade através do medo de uma forma ou outra que deve levar à escravidão os limites imaginados; extendidos pela ciência que adiciona a alto preço uma polegada a mais na nossa altura: não mais.

Kia: A liberdade absoluta na qual ser livre e poderoso o suficiente para ser "realidade" e livre a qualquer tempo: portanto não é potencializada ou manifesta (exceto por sua possibilidade instantânea) através de idéias de liberdade ou "meios", mas através do Ego que está livre para recebe-las , estando livre de idéias sobre isto e não acreditando. Quanto menos for dito sobre isto (Kia) menos obscura ela será. Lembre-se que a evolução ensina através de terríveis punições que a concepção é a realidade fundamental mas não a liberdade de evolução fundamental.

Virtude: Arte Pura. Vicio: Medo, crença, fé, controle,ciência e coisas semelhantes.

Amor Próprio: Um estado mental, humor ou condição causada pela emoção do riso tornando-se o princípio que permite ao Ego apreciação ou associação universal permitindo a inclusão antes da concepção.

Exaustão: O estado de vacuidade levado pela exaustão de um desejo através de alguns meios de dissipação quando o humor corresponde a natureza do desejo,isto é, quando a mente está preocupada pela não realização do desejo e procura alivio. Dominando este estado de espÍrito e modo de viver a vacuidade resultante será sensitiva a sugestão sutil do Sigilo.

 

 

"Quem quiser, pois, salvar a sua vida perdê-la-á; mas quem perder a sua vida por minha causa e pelo Evangelho salva-la-á!" (Mc. 8,35), um paradoxo sempre actual: a vida que vale a pena ser vivida é a vida absolutamente dedicada ao outro..

 

 

publicado às 04:10


Forma e Energia

por Thynus, em 24.04.16
Na física newtoniana, toda causação era vista em termos de energia, o princípio do movimento e da mudança.
Todas as coisas móveis têm energia – a energia cinética de corpos em movimento, da vibração térmica e da radiação eletromagnética – e essa energia pode fazer com que outras coisas se movam. Coisas estáticas também têm energia – energia potencial – em função de sua tendência a se moverem; só são estáticas porque estão restritas por forças que se opõem a essa tendência.
Imaginava-se que a atração gravitacional dependesse de uma força que atuava a distância fazendo com que corpos se movessem, ou dando-lhes a tendência ao movimento, uma energia potencial. Contudo, não se apresentava nenhuma razão para a existência dessa força de atração em si.
Efeitos gravitacionais, bem como eletromagnéticos, são hoje explicados sob a ótica de campos. Embora fosse suposto que as forças newtonianas surgissem de algum modo inexplicável dos corpos materiais e deles se espalhassem pelo espaço, na física moderna os campos são primários; estão por trás dos corpos materiais e do espaço entre eles.
Este cenário fica complicado pelo fato de haver vários tipos de campos. Primeiro, o campo gravitacional, que na Teoria Geral da Relatividade de Einstein é equivalente ao espaço-tempo, e é curvo na presença de matéria. Segundo, o campo eletromagnético, no qual as cargas elétricas se localizam e pelo qual as radiações eletromagnéticas se propagam como perturbações vibratórias. Pela teoria quântica, essas perturbações são fótons semelhantes a partículas associadas a discretos quanta de energia. Terceiro, na teoria da matéria do campo quântico, as partículas subatômicas são quanta de excitação de campos materiais. Cada tipo de partícula tem seu próprio campo: um próton é um quantum do campo próton-antipróton, um elétron é um quantum do campo elétron-pósitron, e assim por diante.
Nessas teorias, os fenômenos físicos são explicados por uma combinação de campos e de energia, não exclusivamente em termos de energia. Assim, embora a energia possa ser considerada a causa da mudança, a ordenação da mudança depende da estrutura espacial dos campos. Essas estruturas têm efeitos físicos, mas não são, em si, um tipo de energia; atuam como causas “geométricas” ou espaciais. A diferença radical entre esta ideia e o conceito de causação exclusivamente energética é ilustrada pelo contraste entre as teorias da gravidade de Newton e de Einstein: segundo Newton, a Lua move-se ao redor da Terra porque é puxada para ela por uma força de atração; segundo Einstein, ela o faz porque o próprio espaço no qual ela se move é curvo.
O entendimento moderno da estrutura dos sistemas químicos depende dos conceitos da mecânica quântica e do eletromagnetismo; os efeitos gravitacionais são muito pequenos em comparação a eles e podem ser ignorados. As maneiras pelas quais os átomos podem se combinar são dadas pela equação de Schrödinger da mecânica quântica, que permite que as órbitas dos elétrons sejam calculadas em termos de probabilidades; na teoria da matéria segundo o campo quântico, essas órbitas podem ser consideradas estruturas do campo elétron-pósitron. Mas como elétrons e núcleos atômicos têm carga elétrica, também estão associados com padrões espaciais dentro do campo eletromagnético, e por isto dotados de energia potencial. Nem todos os possíveis arranjos espaciais de um dado número de átomos terão a mesma energia potencial, e apenas o arranjo com a menor energia potencial será estável, pelos motivos indicados na Fig. 6. Se um sistema está num estado que tem energia superior à dos possíveis estados alternativos, um deslocamento mínimo (digamos, devido à agitação térmica) fará com que ele passe para outro estado (A). Se está num estado com energia inferior à das alternativas possíveis, após pequenos deslocamentos ele vai regressar a esse estado, que por isso é estável (B). Um sistema também pode existir temporariamente num estado que não é o mais estável, desde que não se desloque acima do nível de uma “barreira” (C); quando isto acontece, ele vai passar para um estado mais estável, com menos energia.
Essas considerações energéticas determinam qual é o estado mais estável de uma estrutura química, mas não justificam suas características espaciais, que na Fig. 6 são representadas pelas encostas nas quais a esfera rola e que atuam como barreiras, confinando-a. Elas dependem de padrões espaciais dados pelos campos da matéria e do eletromagnetismo.
 
 De acordo com a segunda lei da termodinâmica, processos espontâneos dentro de um sistema fechado tendem a um estado de equilíbrio; quando isso ocorre, diferenças iniciais de temperatura, pressão, etc., entre diferentes partes do sistema tendem a desaparecer. Em linguagem técnica, a entropia de um sistema macroscópico fechado mantém-se a mesma ou aumenta.
A importância dessa lei costuma ser exagerada em textos populares; o termo entropia, em particular, é tratado como se fosse sinônimo de “desordem”. Com isso, a complexidade crescente de organização que ocorre na evolução e desenvolvimento de organismos vivos parece contradizer o princípio da entropia crescente. Essa confusão surge do entendimento errôneo das limitações da termodinâmica clássica. Primeiro, ela se aplica apenas a sistemas fechados, enquanto organismos vivos são sistemas abertos, trocando matéria e energia com seu ambiente. Segundo, ela lida apenas com as inter-relações entre o calor e outras formas de energia; ela é relevante para os fatores energéticos que afetam as estruturas químicas e biológicas, mas não explica a existência mesma dessas estruturas. E em terceiro, a definição técnica de entropia tem pouca relação com qualquer concepção não técnica de desordem; mais exatamente, não lida com o tipo de ordem inerente às estruturas específicas de sistemas químicos e biológicos. De acordo com a terceira lei da termodinâmica, na temperatura de zero absoluto as entropias de todos os sólidos cristalinos puros são iguais a zero. Do ponto de vista da termodinâmica, estão perfeitamente “organizados”, pois não há desordem causada pela agitação térmica. Mas todos estão igualmente ordenados: não há diferença em entropia entre um simples cristal de sal e um cristal de uma macromolécula complexa como a hemoglobina. Decorre disto que a maior complexidade estrutural desta última não é mensurável sob a ótica da entropia.
O contraste entre “ordem” no sentido de estrutura química ou biológica e “ordem” termodinâmica devida a desigualdades de temperatura, etc., num sistema grande contendo inúmeros átomos e moléculas é ilustrado pelo processo da cristalização. Se uma solução de um sal for posta num prato dentro de um recipiente frio e fechado, o sal se cristaliza quando a solução esfria. Inicialmente, seus íons constituintes se redistribuem aleatoriamente na solução, mas, à medida que a cristalização acontece, eles se tornam organizados com grande regularidade dentro dos cristais, e os próprios cristais se desenvolvem, tornando-se estruturas macroscopicamente simétricas. Do ponto de vista morfológico, houve um considerável aumento da ordem; mas do ponto de vista termodinâmico, houve uma redução da “ordem”, um aumento da entropia, devido à equalização da temperatura entre a solução e seu ambiente e à liberação de calor durante o processo de cristalização. De modo similar, quando um embrião animal cresce e se desenvolve, há um aumento da entropia do sistema termodinâmico consistente do embrião e do ambiente do qual ele extrai seu alimento e para o qual ele libera calor e produtos excretórios. A segunda lei da termodinâmica serve para enfatizar essa dependência dos organismos vivos em fontes externas de energia, mas nada faz para explicar suas formas específicas.
Em termos muito gerais, forma e energia têm uma relação mutuamente inversa: a energia é o princípio da mudança, mas uma forma ou estrutura só pode existir enquanto tiver certa estabilidade e resistência à mudança. Esta oposição fica clara na relação entre os estados de matéria e temperatura. Sob condições suficientemente frias, as substâncias existem em formas cristalinas, nas quais os arranjos das moléculas mostram um elevado grau de regularidade e de ordem. Quando a temperatura aumenta, em certo ponto a energia térmica faz com que a forma cristalina se desintegre; o sólido derrete. No estado líquido, as moléculas se organizam em padrões transitórios, que se movem e se alteram continuamente. As forças entre as moléculas criam uma tensão superficial que confere formas simples ao líquido como um todo, como em gotas esféricas. Com um aumento ainda maior da temperatura, o líquido evapora; no estado gasoso, as moléculas são isoladas e se comportam de maneira mais ou menos independente entre si. Com temperaturas ainda mais elevadas, as próprias moléculas se desintegram em átomos, e se a temperatura for ainda maior, até os átomos se fragmentam para formar uma mistura gasosa de elétrons e núcleos atômicos – um plasma.
Quando essa sequência se inverte, surgem estruturas mais complexas e organizadas com a redução da temperatura, primeiro as mais estáveis e por último as menos estáveis. Com o resfriamento do plasma, os elétrons se congregam ao redor de núcleos atômicos em suas órbitas apropriadas. Com a temperatura abaixando mais, os átomos se reúnem em moléculas. Quando o gás se condensa em gotículas, entram em jogo forças supramoleculares. Finalmente, quando o líquido se cristaliza, estabelece-se um grau elevado de ordem supramolecular.
Essas formas aparecem espontaneamente. Elas não podem ser explicadas em termos de energia externa exceto negativamente, no sentido de que podem surgir e persistir apenas abaixo de certa temperatura. Elas só podem ser explicadas em termos de energia interna se entendermos que, dentre todos os arranjos estruturais possíveis, só aquele com a menor energia potencial será estável; portanto, esta será a estrutura que tenderá a ser assumida espontaneamente.

(Rupert Sheldrake - UMA NOVA CIÊNCIA DA VIDA)

publicado às 00:48


A desumanização do humano

por Thynus, em 23.04.16
Ninguém vira um "psicopata" do nada, nenhuma mente de vilão é formada sem passar por muito sofrimento e rejeição da sociedade.
A sociedade cria seus próprios vilões e depois querem simplesmente "eliminá-los".
Essa é uma realidade que a sociedade prefere ignorar.
Promessius
 

Acordo sempre bem cedo e, por força da necessidade de me ver integrada ao mundo em que vivo, ligo a tv e abro o notebook, enquanto a água ferve para o café da manhã:
“Milhares de crianças na Nigéria foram mortas, raptadas ou expostas a violência inimaginável (nota da Unicef).” Mudo de site: “Mulher tem os olhos perfurados pelo marido durante discussão do casal”. Outro site notícia: “Adolescente é apedrejado por populares após ser pego ao tentar furtar um aparelho celular”. Abro o Facebook: “Carta aberta de Mia Couto ao Presidente da África do Sul sobre o genocídio de moçambicanos naquele país”. Na tv: “Naufrágio no mediterrâneo pode ter causado centenas de mortes de imigrantes”.
Ainda sem conseguir mensurar a quantidade de dor a que fui exposta logo no início do dia, resolvo, já com olhos embaçados e voz embargada, comprar o meu pão. A caminho da padaria, deparo-me com uma senhora que dorme na calçada abraçada a uma criança, ambas cobertas por um imundo cobertor. Como se não bastasse a cena em si, um senhor bem vestido e seguramente muito apressado quase nelas tropeça e reverbera: “Desgraça! Trabalhar não quer, não… Fica aí entulhando a rua”.
Perco o chão e me sinto petrificada ao observar, na gravidade de tudo o que vi nos noticiários e agora bem diante de mim, naquela cena, o paradoxo de viver, na era áurea dos direitos, a flagrante desumanização do humano.
Tratados e Acordos Internacionais estabelecem que dados direitos são preciosidades inalienáveis de cada um dos humanos. O Direito Constitucional de cada Estado traz ao seu ordenamento interno garantias a esses direitos que são diretamente ligados aos ditos “direitos naturais”, compreendendo o direito à vida, à integridade física, ao respeito à dignidade de cada ser humano.
Mas a sociedade, que bem sabe evocar as leis quando é colocado em xeque algum de seus direitos patrimoniais, vale-se de um mecanismo muito sutil para mentalmente subverter os valores que ela própria instituiu. Ela hierarquiza os seres humanos valendo-se de indicadores diversos, mas preponderantemente econômicos, de modo que quanto mais alto alguém esteja na dita “pirâmide social”, mais humano ele seja e o quanto mais baixo estiver, menos humano ele é. Ocorre, então, a desumanização do humano.
E, se não é humano, é considerado indigno de ser protegido pelos direitos inerentes à nossa espécie, momento em que tantos enxergam como legítimos atos de absoluta barbárie.
Esse método já é antigo. Europeus, em pleno “século das luzes”, equipararam indígenas americanos a animais, dizimando-os. Equipararam também a animais ou a “coisas” os africanos, escravizando-os.
Na tentativa de legitimar toda a sorte de maus tratos à mulher, religiosos, na Idade Média, travaram severas discussões: a mulher teria ou não teria uma alma?
Para algumas religiões, aqueles que professam a sua fé são filhos, os demais, meras criaturas de Deus. Ora, se não são filhos de Deus, se não possuem filiação e proteção divinas, caso recusem a fé que tanto estimam são hostilizados e havidos como inferiores. Por vezes a inferioridade é tamanha que as suas existências ofendem os “santos corações religiosos”, que reagem com torturas e homicídios. Quem não leu sobre as cruzadas, as inquisições e tantas outras de mortes por motivação religiosa no curso da História e na atualidade?
É na desumanização do homem que se apoia o genocídio, tanto no passado quanto nos dias de hoje. Na visão fanática que deu ao nazismo contornos similares ao fanatismo religioso, os judeus nada mais eram que porcos a serem sangrados para a higienização do planeta; e assim o fizeram com esmerado sadismo, legando à humanidade a vergonha do holocausto.
É fácil perceber as incongruências históricas no tocante ao desrespeito aos Direitos Humanos e, não raro, envergonhamo-nos de nossos antepassados. Contudo, devemos estar atentos, pois raro, sim, é a sociedade conseguir enxergar as mazelas do seu próprio tempo.
Contudo, devemos estar atentos, pois raro, sim, é a sociedade conseguir enxergar as mazelas do seu próprio tempo.
Na foto de capa, de Felipe Dana,  podemos ver a imagem mais chocante desta semana: jovens jogam futebol a poucos metros de onde estavam as duas vítimas do desabamento de trecho da ciclovia Tim Maia, na zona sul do Rio, nesta quinta-feira.
Hoje, a passividade com que vemos a segregação dos negros, a discriminação dos pobres, o desprezo aos imigrantes, a demonização do infrator, a subjugação da mulher, a estigmatização de homossexuais, o desrespeito às comunidades indígenas e a perseguição de religiões e cultos diversos (no Brasil, especialmente às religiões de origem africana) condena-nos a todos.
Aquele que se conforma com a injustiça é tão injusto quanto aquele que a pratica. Somos coautores da miséria moral de um tempo onde o sangue francês vale lágrimas e comoção de todo o mundo (e vale mesmo), enquanto o sangue de centenas de africanos se derrama anônimo, embora o derramamento se dê pela mesma motivação religiosa e sob o mesmo discurso de desumanização.
Ontem, ao ler os comentários acerca da xenofobia e do genocídio que vitimam moçambicanos na África do Sul, uma adolescente moçambicana comentou: “o nosso único pecado é sermos miseráveis”. Sim, ela entendeu o mecanismo: desumanizamos o pobre culpando-o por sua pobreza. Na visão doentia de muitos, ele é um estorvo. Um nada. “É um entulho na calçada do mundo”, diria o moço apressado que quase tropeçou na senhora e na criança que dormiam na rua.
Sim, é nesses pobres a quem desumanizamos que tropeça a hipocrisia de uma pseudocivilização de Direitos. É neles que tropeça a religiosidade ociosa e o fanatismo sádico. Neles tropeça a nossa política não inclusiva e o nosso capitalismo: sempre cego a quem não lhe mostrar os cifrões.
É junto a esses pobres mendigos a quem roubamos o direito de ser gente que se entulham também o humano que somos e a consciência que renegamos.

Este texto foi escrito por Nara Rúbia Ribeiro em abril de 2015 e transcrito na revista Pazes 

publicado às 03:44

Que ética corresponde à theoria que acabamos de descrever brevemente?
A resposta não contém nenhuma dúvida: juntar-se ou ajustar-se ao cosmos, eis, aos olhos dos estoicos, a palavra de ordem de toda ação justa, o princípio mesmo de toda moral e de toda política. Porque a justiça é primeiramente justeza: assim como um ebanista ou um luthier ajusta uma peça de madeira num conjunto maior, um móvel, ou um violino, não temos nada melhor a fazer além de tentar nos ajustar à ordem harmoniosa e boa que a theoria acaba de nos desvendar. O que esclarece ainda, diga-se de passagem, o sentido da atividade teórica para os filósofos. O conhecimento não é inteiramente desinteressado, como você pode ver, já que propicia uma ética.
É por isso que as escolas filosóficas da época, contrariamente ao que se faz nos dias de hoje nos colégios ou nas universidades, insistem menos nos discursos do que nos atos, menos nos conceitos do que nos exercícios de sabedoria.
Vou lhe contar um caso para que você compreenda bem o que isso quer dizer. Antes que a escola estoica tivesse sido fundada por Zenão, existia em Atenas uma outra escola, na qual os estoicos muito se inspiraram: a dos cínicos. Hoje em dia, a palavra cínico designa, na linguagem corrente, uma coisa negativa. Dizer que alguém é “cínico” significa que a pessoa não crê em nada, que age sem princípios, sem se preocupar com valores, sem respeito pelo outro etc. Naquela época, no século III a.C., era uma outra história, e os próprios cínicos eram moralistas exigentes.
A palavra possui uma origem divertida: provém diretamente do termo grego que significa “cachorro”. Qual a relação, você perguntará, com uma escola de sabedoria filosófica? É a seguinte: os filósofos cínicos tinham um princípio fundamental de conduta que os levava a procurar viver preferencialmente segundo a natureza, e não em função das convenções sociais artificiais das quais eles não deixavam de caçoar. Uma de suas atividades favoritas consistia em perturbar as pessoas na rua, na praça do mercado, em zombar de suas crenças; hoje, diríamos “chocar o burguês”. Por isso, eram facilmente comparados a esses cãezinhos que nos mordem os calcanhares ou latem perto de nós para melhor nos aborrecer.
Contam, então, que os cínicos — e um dos mais eminentes dentre eles, chamado Crates, foi justamente o mestre de Zenão — obrigavam os alunos a multiplicar os exercícios práticos, exigindo que não se importassem com o disse me disse, contentandose com a missão essencial que consiste em viver de acordo com a ordem cósmica.
Sugeriam, por exemplo, que arrastassem um peixe morto na ponta de um cordão. Você pode facilmente imaginar que o infeliz obrigado a realizar esse tipo de pilhéria logo se tornava vítima de toda espécie de caçoada e de todas as gozações. Mas, como se diz, “ele aprendia”. O quê? Justamente a não mais se importar com o olhar dos outros, e realizar o que os crentes chamam de “conversão”: no caso, uma conversão não a Deus, mas à natureza cósmica da qual a loucura humana jamais deveria nos desviar.
O próprio Crates, num outro estilo, mas inteiramente conforme à natureza, não hesitava em fazer amor em público com Hipárquia, sua mulher. Na época, assim como hoje, as pessoas ficavam muito chocadas. No entanto, por mais estranho que pareça, isso era consequência direta do que se poderia chamar de “ética cosmológica”: a ideia de que a moral e a arte de viver devem tirar seus princípios da harmonia que rege todo o cosmos. Você agora compreende por que, aos olhos dos estoicos, a theoria era a primeira disciplina a ser praticada, pois suas consequências práticas não podiam ser absolutamente negligenciadas!
«Yo, Hiparquia, no seguí las costumbres del sexo femenino, sino que con corazón varonil seguí a los fuertes perros. No me gustó el manto sujeto con la fíbula, ni el pie calzado y mi cinta se olvidó del perfume. Voy descalza, con un bastón, un vestido me cubre los miembros y tengo la dura tierra en vez de un lecho. Soy dueña de mi vida para saber tanto y más que las ménades para cazar.»
 
É o que Cícero explica muito bem quando repete o pensamento estoico em outro de seus livros, intitulado Dos Fins dos Bens e dos Males (III, 73):
Aquele que quer viver de acordo com a natureza deve partir da visão de conjunto do mundo e da providência. Não é possível emitir juízos verdadeiros sobre os bens e sobre os males sem conhecer todo o sistema da natureza e da vida dos deuses, nem saber se a natureza humana está ou não de acordo com a natureza universal. E não se pode ver, sem a física, que importância (e ela é imensa) têm as antigas máximas dos sábios: “Obedece às circunstâncias!”, “Segue Deus!”, “Conhece-te a ti mesmo!”, “Nada em excesso!” etc. Somente o conhecimento dessa ciência pode nos ensinar o que pode a natureza na prática da justiça, na conservação de nossas amizades e de nossos apegos...
Nesse ponto, sempre segundo Cícero, a natureza constitui “o mais belo dos governos”.
Você pode avaliar o quanto essa visão antiga da moral e da política se encontra nos antípodas do que pensamos hoje nas democracias, nas quais é a vontade dos homens, e não a ordem natural, que deve predominar em qualquer reflexão. Assim é que adotamos o princípio da maioria para eleger nossos representantes ou ainda para escolher e fabricar nossas leis. Além disso, duvidamos frequentemente de que a natureza seja em si “boa”: na melhor das hipóteses, quando não nos brinda com um furacão ou um tsunami, ela se tornou para nós um material neutro, que em si não é moralmente nem bom nem mau.
Para os Antigos, não apenas a natureza era antes de tudo boa, como também não se convocava absolutamente a vontade de uma maioria de humanos para decidir sobre o bem e o mal, sobre o justo e o injusto, pois os critérios que permitiam distingui-los provinham todos de uma ordem natural, exterior e superior aos homens. Geralmente, o que era bom era o que estava em conformidade com a ordem cósmica, quer se quisesse ou não; e o que era mau, o que lhe era contrário, quer agradasse, quer não. O essencial era conseguir concretamente, na prática, acordar-se com a harmonia do mundo, a fim de nele encontrar o justo lugar que cabia a cada um no Todo.
No entanto, se você quiser comparar essa concepção da natureza com alguma coisa que você conhece e que existe ainda hoje em nossas sociedades, pense na ecologia. Para os ecologistas, de fato, e nisso eles retomam, embora sem o saber, os temas da Antiguidade grega, a natureza forma a totalidade harmoniosa que os humanos teriam todo o interesse em respeitar e até, em muitos casos, em imitar. É nesse sentido que eles falam, por exemplo, não em cosmos, mas em “biosfera” — mas isso acaba dando no mesmo —, e ainda em “ecossistemas”. Como diz um filósofo alemão que foi um grande teórico da ecologia contemporânea, Hans Jonas, “os fins do homem moram na natureza”, o que quer dizer: os objetivos que os seres humanos deveriam assumir no plano ético se inscrevem, como pensavam os estoicos, na ordem mesma do mundo, de modo que o “dever-ser” — ou seja, o que moralmente é preciso fazer — não está separado do ser, da natureza tal como ela é.
Como já dizia Crisipo mais de vinte séculos antes de Jonas: “Não há outro meio ou meio mais apropriado para se chegar à definição das coisas boas ou más, à virtude ou à felicidade, do que partir da natureza comum e do governo do mundo”, palavras que Cícero comenta, por sua vez, nestes termos: “Quanto ao homem, ele nasceu para contemplar [theorein] e para imitar o divino mundo... O mundo possui a virtude, é sábio, e, consequentemente, Deus” (Da Natureza dos Deuses, 422) — donde se vê que não é nosso julgamento sobre o real, mas o próprio real que, enquanto divino, se revela como o fundamento de valores éticos e jurídicos.
E por causa disso, seria essa a última palavra da filosofia? Pode ela se limitar a dar, na teoria, uma “visão do mundo” e, em seguida, a partir daí, deduzir os princípios morais segundo os quais os humanos deveriam agir?
Absolutamente, como você verá, pois estamos apenas no limiar dessa procura de salvação, dessa tentativa de se elevar até a sabedoria verdadeira que consiste na abolição de qualquer medo ligado à finitude, à perspectiva do tempo que passa e da morte. É, pois, somente agora, tendo por base a teoria e a prática que acabamos de descrever, que a filosofia estoica vai poder abordar sua verdadeira destinação.

(Luc Ferry - Aprender a Viver)

publicado às 01:38


Fadas e bruxas

por Thynus, em 16.04.16
 Metade de mim é fada,
a outra metade é bruxa.
Uma escreve com sol,
a outra escreve com a lua.
Uma anda pelas ruas
cantarolando baixinho,
a outra caminha de noite
dando de comer à sua sombra.
Uma é séria, a outra sorrí;
uma voa, a outra é pesada.
Uma sonha dormindo,
a outra sonha acordada.
(Roseana Murray - Pêra, Uva ou Maçã) 

Em mim, por causa da bipolaridade, convivem, a fada e a bruxa. o bem e o mal
 
Assim como no passado remoto os deuses inspiraram os mitos e encheram a vida humana com façanhas e heróis maravilhosos, as fadas e sua multidão de criaturas complementares, como os goblins e os pixies, iluminam a vida com episódios e símbolos que espelham o ser desde a perspectiva de um outro caminho: o da imaginação que experimenta conflitos excepcionais que incitam a se aventurar em um estado superior de existência.
Não se renasce através de seus contos nem se adquire por meio deles uma visão catártica da vida, tal como ocorre com a tragédia; porém, segundo escreveu Aristóteles a respeito dos mitos, o amigo das fadas é também amigo da sabedoria. Seu mundo contém a fantasia esperançosa com finais felizes, aquela que alivia a dor e ajuda a acreditar nos sonhos que estão associados ao renascer de quem permite ao leitor, independente da posição que ocupe, por mais modesta que seja, identificar-se com personagens libertadores.
Contraponto da tragédia, o conto de fadas pode interpor grandes obstáculos ao protagonista, e até mesmo expô-lo a perigos inusitados; porém, desfeito o encantamento, tudo parece ajustado para que até mesmo os sonhos não mencionados se acomodem ao curso benéfico de situações sem sobressaltos. Tal é o caso da Bela Adormecida que, ao nascer, foi ameaçada por uma fada ressentida que não havia sido convidada para a festa do batizado. Condenada a cair em sono profundo na flor da idade por ter tocado uma roca enfeitiçada, seu mal, todavia, já encerrava o remédio secreto do despertar pelo beijo de um príncipe, cujo amor desinteressado lhe permite renascer ao estado de felicidade digno de sua beleza e para o qual fora gerada.
Em que pese a falsa doçura que envolve essa história de disputas entre fadas boas e más, bem como de dons que conjuram castigos e de poderes que triunfam sobre outros poderes, imaginar a Bela Adormecida jazida em um ataúde de cristal que cresce junto com ela provoca tanto terror quanto uma Chapeuzinho Vermelho inocente que confunde o Lobo com a Vovozinha. Cada uma à sua maneira, essas protagonistas sensibilizam as crianças a perceberem mais claramente as mentiras sutis, e despertam uma consciência precoce para a porção nefasta dos sentimentos ignóbeis que todos trazemos dentro de nós mesmos.
Acredita-se que as fadas regem o destino humano desde antes do nascimento; as bruxas, por outro lado, alteram a ordem e o bem-estar no instante em que se entregam aos mistérios da feitiçaria. Quando boas, as fadas são luminosas, geralmente sem marcas da idade nos rostos, sensíveis a beleza e inclinadas a corrigir os problemas em que tenham intervindo outras criaturas extraordinárias. Por alguma razão discriminatória, as bruxas são representadas como velhas, malhumoradas e feias, ainda que seja imemorial a crença em algumas de natureza sobrenatural que existem por si mesmas - tal como a necessidade do bem e do mal -, com a função de romper com suas intervenções a lógica habitual da vida. A esta espécie correspondem as figuras gigantescas ou com atributos cambiantes, como as que freqüentam os fens ou pântanos e sobrevivem rodeadas de sombras. Ocasionalmente relacionadas a espíritos que vagueiam sem rumo, as mais temíveis personificam a tentação do poder e suas propensões mais obscuras.
A senhora Barford, em História da Lua Morta, é uma das últimas reminiscências druídicas que se aparenta com certa deusa primitiva da natureza. Esta, por sua vez, assume em nossos dias aspectos tão diferentes que pode igualmente se revelar disfarçada de uma Celestina1 de sujos ofícios, na literatura picaresca espanhola, ou transmutada em mulheres comuns da vida contemporânea, à maneira das norteamericanas ambiciosas que, representadas como verdadeiros monstros nas novelas de Truman Capote, exemplificam as típicas criaturas geradas por nosso sistema social.
Assim como nem todas as fadas têm escrúpulos, nem todas as bruxas permanecem restritas à perversidade ou aos assuntos malsãos. Há bruxas brancas e bruxas negras. Sua procedência reserva mistérios não revelados; entretanto, existem muitas lendas sobre seus cursos de magia e sobre o aprendizado de certas artes que vão desde o vôo mágico até o conhecimento de elixires portentosos que, por seus efeitos, fundamentam a ciência que converte o modesto ferro em ouro ou que muda a forma ou a natureza de um animal, de uma pessoa ou de um acontecimento. Somente a Dama do Lago, na tradição arturiana, rompe cabalmente com os pressupostos de seu conhecimento intuitivo ao adquirir de Merlin os poderes sobre as pedras, os metais e a água, os quais praticou com argúcia na busca pelo Santo Graal. Donas de uma potência terrível, as bruxas encarnam a sombra do rancor que subsiste no espírito humano. Os gregos antigos chamavam-nas Fúrias ou Erínias, enquanto os psicanalistas qualificam-nas como projeção dos elementos obscuros do inconsciente. Seja qual for a versão verdadeira, desde crianças reconhecemos em sua fealdade o fruto das rejeições, das frustrações e dos temores que resultam em dano aos outros quando os desejos malogrados mergulham a alma em uma atroz ansiedade que move seu ânimo contra todo o bem-estar.
Personificações do diabo na predica cristã, as bruxas absorveram a herança das sibilas, magas e sacerdotisas, as quais consumaram seu mais alto êxito na cultura druídica ao lado de fadas que ideavam as cidades anglo-saxãs. Acentuaram-lhes a fealdade ao relacioná-las ao pecado; reduziram-nas à ponte emblemática entre o visível e o tenebroso, habitantes de um mundo intangível ou irreal, e a mera travessura da criação entre o humano e o sobrenatural, até diminuírem-nas à caricatura humanóide de Lúcifer. Ao tipificar a perversidade na mulher madura, que traz às costas a experiência e, seguramente, muitas tristezas não resolvidas, os moralistas impingiram a elas o maior preconceito antifeminino de nossa civilização.
Mesmo em nossos dias, com idéias próprias e juízos críticos, as mulheres que desafiam o diferente ou o proscrito ainda são qualificadas de bruxas, especialmente quando manifestam condutas contrárias ao preestabelecido, embora se tente camuflar esse termo com o de "velhas terríveis", aplicado àquelas inconformistas que provocam medo por causa de seus atrevimentos ofensivos às pessoas de boa consciência.
A bruxa de Branca de Neve, por exemplo, é a maligna por excelência de todos os relatos modernos: madrasta, invejosa da juventude de sua enteada, nostálgica por amor e, acrescente-se, uma solitária ególatra que explora no espelho as marcas do tempo perdido. Não se sabe se os ciúmes que lhe são provocados pela filha postiça avivam seu lado obscuro ou se, desde antes essa condessa praticava com alguma torpeza os artifícios da magia que, não obstante, não lhe serviram para conservar a aparência de juventude que tanto desejava. O certo é que um dos elementos primordiais de Branca de Neve está contido na história de Basile2 sobre uma jovem e formosa escrava, de quem se diz que a mãe ficara grávida magicamente por haver engolido uma pétala de rosa e que desaparecera da história de maneira misteriosa, como costuma acontecer nos contos de fadas. O importante do relato é que, órfã precoce, Lisa é perseguida por sua madrasta por causa da rivalidade que esta sentia em razão de sua beleza, que julgava interferir no amor de seu marido.
Lisa morre temporariamente quando, ao se pentear, o pente enfeitiçado acaba cravado em seu crânio. Tal como Branca de Neve, permanece encerrada em uma urna transparente que cresce junto com ela, e todos sofrem com sua desgraça. Passados sete anos, seu tio e pai adotivo sai em viagem e a esposa, doente de ciúmes perversos, tira-a violentamente de seu caixão cristalino com a intenção de se desfazer dela. Contra tudo o que se podia imaginar, o pente escorrega então de sua cabeça e a jovem desperta instantaneamente, mais bela e viçosa do que nunca; a madrasta, longe de regozijar-se com o prodígio, decide escravizá-la.
Em seu regresso, depois de múltiplas peripécias, o tio/pai descobre que a jovem escrava maltratada por sua esposa até quase provocar-lhe a morte não é outra senão Lisa, sua filha adotiva; imediatamente a liberta, recompensando-a com muitos presentes e um bom casamento. A maligna esposa, por outro lado, é expulsa de casa, da aldeia e da família, recompondo-se tudo de acordo com as leis de uma justiça triunfante, apesar dos odiosos ardis de uma madrasta enganadora.
Seguramente, do mesmo lugar em que brota uma bruxa salta também a potência sutil da fada, do Povo Pequeno ou dos Homens Verdes, o que permite criar, por meio de seus contos, uma lição moral que forma a mentalidade das crianças em torno de sentimentos de fidelidade, de justiça e de amor, que as inicia e acompanha na difícil aventura de viver. Desse modo, as fadas empreendem com eles o caminho da iniciação.
Quando os seguidores de pistas mágicas se deram ao trabalho de historiar as fadas, depararam-se com indícios discrepantes. Concordaram, ao menos, em um ponto: que elas pertencem a uma comunidade de imortais composta por um sem-número de espécies e de famílias que animam os bosques. Não cabem dúvidas quanto aos prodígios que operam ao intervir nos assuntos dos mortais. Ninguém questiona que algumas lembrem anjos, por causa de sua doçura; mas além de sua semelhança com aquelas figuras que margeiam o universo da poesia, há numerosas perguntas que geram novas perguntas e, quase sem nos darmos conta, prendem-se em um labirinto de palavras, de símbolos e de lugares maravilhosos que, longe de desvendar as sendas a que conduzem certas pistas, nos arrastam ao beco sem saída de seus eternos deslumbramentos, em cujo centro talvez se encontre aquele ambiente consagrado em que perduram os cisnes encantados, as mensageiras célticas ou as fiandeiras que tecem histórias com fios de ouro sem tempo nem horário precisos.
A banshee, ou fada irlandesa, é, por definição, um ser dotado de magia. Para além das origens celtas, com especial referência ao estabelecimento dos druidas em terras anglo-saxãs, as fadas continentais revelam-se adaptações cambiantes de seus atributos e símbolos. Ao serem cristianizadas, começou a se ver nelas a namorada perpétua que aplica suas artes para atrair e conservar o amado; mas é necessário insistir que não era comum, nem sequer desejável entre os druidas, reter a quem se ama, porque o amor enlanguesce com a demora do casal ou, em outros casos, é tingido de enganos que viciam todo o encanto das paixões criadoras.
Entre as fadas, o amor é um móvel que encadeia ou desencadeia os acontecimentos, porém nunca uma justificativa em si mesmo. Para essas criaturas é muito mais atraente a aventura de intervir nos assuntos rituais - como os que requerem transmutações e compromissos com seus poderes -, e geralmente se entretêm com suas danças e celebrações proscritas aos humanos, a menos que alguém mais atrevido que se aproxime para observá-las o faça através de um buraco natural cavado por um rio na pedra. Provocar a loucura lunar é uma de suas travessuras mais repetidas; mas esta nada tem a ver com os desvarios demenciais aos quais estamos acostumados, pois a lua provoca transformações cíclicas conseqüentes com suas fases e movimentos, e tais mudanças costumam apresentar efeitos tão inusitados quanto perturbadores.
A palavra fairies, que identifica as fadas em inglês, é de criação recente e talvez uma dissimulação do termo mais remoto fays, algo de que se ocupam unicamente os rastreadores de vocábulos. Fayrie representava um estado de enfeitiçamento e, em particular, era o nome utilizado para designar os encantamentos causados pelos fays, que exerciam os poderes da ilusão.
A fada irlandesa não está submetida às contingências das três dimensões Sempre leva consigo uma rama, o anel ou a maçã emblemática para transmitir suas qualidades maravilhosas. Foi dessa rama que derivou a varinha mágica; da maçã, proveio o furor do envenenamento perverso ministrado pela madrasta de Branca de Neve para encantá-la, talvez porque a fada traga dentro de si a ambivalência típica da rainha Mab - recriada por Shakespeare em seu dote de parteira é capaz de se transformar em bruxa para multiplicar as desditas. Mab é a mesma que, ao praticar seus ofícios, trança as crinas das éguas noturnas e desmancha os cabelos sujos e empastados dos elfos quando aparece arrastada por uma parelha de animais em tamanho não maior que o de uma pedra de ágata no dedo indicador de um alcaide. As fadas vivem sem pouso certo. Não têm residência fixa, embora sejam bem conhecidos os sítios em que se realizam os encantamentos e suas preferências territoriais. Sem distinção entre machos e fêmeas, elas se ocultam nos buracos das pedras, nos ocos das árvores ou na sombra das salinas costeiras. Ao contrário do que muitos supõem, nunca aprenderam a se tornar invisíveis. Disfarçam-se muito bem ou assumem formas semelhantes às dos humanos quando procuram passar inadvertidas, ainda que pássaros, cães, vacas e ou outros animais as vejam perfeitamente porque se inquietam com sua presença. Nós, seres humanos, só podemos enxergá-las entre duas piscadelas de um único olho, de forma que obtemos apenas vislumbres fugazes, ainda que estes perdurem como a recordação do fulgor das estrelas em noites de lua. Também mutantes, seus palácios imaginários cintilam na obscuridade e, tais como as próprias fadas, seus baluartes se desvanecem em um instante, deixando atrás de si apenas uma sensação ilusória. Na Itália, eram chamadas de tria fatae desde os tempos da Roma imperial, talvez como uma deformação de fata ou "destinos", o que não era outra coisa senão a adaptação das três Parcas que, como as Moiras da Grécia antiga, governavam o nascimento, a vida e a morte. Uma extrai do fuso o fio que constitui o destino, a segunda mede e enrola a fiada na roca e a terceira, a mais temível, corta a linha da vida com suas tesouras letais. Isso na sua filiação primordial, porque não tardaram a se ampliar os mistérios que as rodeiam e a somarem-se as narrativas sobre sua ascensão desde o centro da Terra até a superfície, onde, à luz da lua, se convertem em espíritos das águas e em almas da vegetação.
O termo fada ou fairy cobre atualmente um campo tão amplo que abarca desde os elfos anglo-saxões e escandinavos até os Daoine Sidhe das highlands da Escócia, os Tuatha de Dannan da Irlanda, a Tylwyth Teg de Gales e o sem-número de seres com ou sem nome que transita entre o Povo Pequeno e a Corte Bendita do Outro Caminho. Dicionários, enciclopédias sobre fadas, catálogos, genealogias, histórias, lendas ou testemunhos documentais, todos distintos entre si e irreconciliáveis segundo o tema escolhido e as peculiaridades indescritíveis que lhes são atribuídas, informam que no vasto mundo das fadas, agrupadas ou solitárias, multiplicaram-se categorias intermediárias conforme sua ocupação, morfologia, costumes e hábitats. Por esse motivo, temos notícias de fadas gigantescas ou diminutas, domésticas, selvagens e alheias ao ser humano, assim como de criaturas aéreas e subterrâneas, ou ainda as aquáticas, que habitam em fontes, lagos, oceanos ou rios.
No que se refere às relações categóricas das fayries, ninguém se põe de acordo. Uns crêem que as bruxas pertencem à sua comunidade de imortais; outros que, junto a monstros e bogies, poder-se-iam somar magos, feiticeiros e bruxos à vasta gama de animais feéricos que completa esse universo para o qual não existem fronteiras entre este e aquele lado do espelho, nem margens para separar a vigília do sono, ou a ilusão da realidade. Seja qual for o reflexo do mundo - o deles ou o nosso -, existe em torno do país das fadas uma linguagem que ninguém, em juízo perfeito, se atreveria a confundir, seja por seu signo, por seu viés ameaçador ou por sua provável graça; e tampouco se poderia suspeitar que, inamistosas por natureza, se disporiam a tolerar as más maneiras, as mentiras ou os juramentos em vão.
Quando agradecidas, respondem com dons de graça e prosperidade àqueles que as tratam com cortesia e mantêm a discrição. Em ocasiões de extrema generosidade, elas chegam a oferecer aos eleitos um bocado de seu "alimento das fadas", ou no caso de gentilezas como emprestar um pouco de farinha, de mel ou bebidas, elas retribuem o favor recebido com a guarnição inesgotável dos mesmos produtos; tudo isso, naturalmente, sob a condição de se cumprir o requisito da piscadela dupla com um olho só, porque, como se conta em histórias de parteiras de fadas, pode ocorrer de se perder o direito a recompensa por violar o tabu e por não se tocar o olho com o "ungüento das fadas", com o qual supostamente a parteira deveria comunicar a visão feérica à criança no momento da saída do ventre materno.
Não há dúvida de que preferem os bosques para se recluírem; prova disso é seu costume de aparecer nos pontos mais inescrutáveis das montanhas, junto às furnas e às torrentes ou na espessura do bosque, sobre plataformas recônditas que o povo costuma justamente identificar como "mesas das fadas". Também freqüentam grutas e amam tanto os mananciais como as fontes e os rios estrondosos, talvez porque, quando as ninfas e as dríades as expulsaram de sua fugaz estadia na Grécia, tiveram de fugir para o leste e, posteriormente, rumo às possessões romanas do Médio Oriente até as partes mais remotas da Ásia, sempre de permeio a pequenas florestas e despovoados onde pudessem permanecer sem serem perseguidas.
Um grupo numeroso delas, seguramente o mais importante, se estabeleceu na Escócia, na Irlanda e na Inglaterra, apesar de terem se chocado com os habitantes originais - os pixies -, que não deixaram de molestá-las desde que se enfrentaram em uma batalha renhida que, com o triunfo dos pixies, determinou sua definitiva expulsão para o leste do rio Pedder, ainda nos tempos do rei Artur.
Os irlandeses acreditam que ainda hoje as fadas habitam entre eles. Aqueles que gozam do privilégio de havê-las enxergado asseguram que adotam a forma de seres humanos perfeitos, porém em miniatura, pois nunca aparecem mais altas que a cabeça de um cão. Todavia, elas têm a capacidade de aumentar ou diminuir sua estatura durante a condução de seus poderes, assumir o aspecto de um pinhão ou crescer ao longo do tempo como um ser humano comum.
Aquelas que, para sua desgraça, são capturadas por intervenção dos pixies ou por cederem ao galanteio dos homens - como as Gwrachs do País de Gales -, consumam o matrimônio com os humanos não sem interpor um tabu que, em geral, é violado, e com o tempo podem retornar a seu hábitat natural. Aquelas fadas que, devido à perversidade de seus captores ou por circunstâncias adversas, não conseguem regressar a seu meio, cedo ou tarde acabam definhando e morrem com uma expressão de profunda tristeza no rosto.

(Martha Robles - Mulheres, Mitos e Deusas - o feminino através dos tempos)


NOTAS:

1 Personagem central de Tragicomedia de Calista e Melibea, escrita por Fernando de Rojas em 1499. Celestina é a alcoviteira, pintada com uma veracidade e acuidade surpreendentes, todos caem em suas redes, enquanto resmunga máximas filosóficas mais ou menos morais; a influência desta peça foi tão grande que quase todas se transformaram em provérbios populares espanhóis. Cervantes, em um dos sonetos incluídos no Don Quixote, afirma que a história de Celestina seria um livro divino, se não revelasse tanto da natureza humana. [N.T.]

2 Giambattista Basile (1575-1632) publicou o Pentamerone, coletânea de contos de fadas, muitos dos quais foram adaptados por Perrault ou pelos irmãos Grimm. Todavia, não é certo que estes tenham tido acesso a Basile. É possível que tenham recolhido outras versões diretamente do folclore, tal como afirmavam. [N.T.]

publicado às 23:35

Não consigo conceber um Deus pessoal que tenha influência direta nas ações dos indivíduos ou que julgue as criaturas da sua própria criação... Minha religiosidade consiste numa humilde admiração pelo espírito infinitamente superior que se revela no pouco que conseguimos compreender sobre o mundo passível de ser conhecido. Essa convicção profundamente emocional da presença de um poder superior racional que se revela nesse universo incompreensível forma a minha ideia de Deus.
(Einstein) 
 
A emoção mais bela que podemos experimentar é o sentimento do mistério. É a emoção fundamental que está no berço de toda a verdadeira arte e ciência. Aquele que desconhece essa emoção, aquele que não consegue mais se maravilhar, ficar arrebatado pela admiração, é como se estivesse morto, é uma vela que foi apagada. Sentir que por trás de qualquer coisa que possa ser experimentada há algo que nossa mente não consegue captar, algo cuja beleza e solenidade nos atinge apenas indiretamente: essa é a religiosidade. Nesse sentido, e apenas nesse sentido, sou devotamente religioso.
 
 

(Para encontrar o nosso lugar no cosmos), para aprender a nele viver e nele inscrever as ações, é necessário antes conhecer o mundo que nos cerca. Essa é, como lhe disse, a primeira tarefa da teoria filosófica.
Em grego, ela se chama também theoria, e a etimologia da palavra merece nossa atenção: to theion ou ta theia orao significa “eu vejo (orao) o divino (theion)”, “eu vejo as coisas divinas (theia)”. Para os estoicos, de fato, a the-oria consiste exatamente em esforçar-se por contemplar o que é “divino” no real que nos cerca. Em outras palavras, a tarefa primeira da filosofia é ver o essencial do mundo, o que nele é mais real, mais importante, mais significativo. Ora, pela tradição que culmina no estoicismo, a essência mais íntima do mundo é a harmonia, a ordem, simultaneamente justa e bela, que os gregos designam pelo nome de cosmos.
Se você quer ter uma ideia exata daquilo que os gregos chamavam de cosmos, o mais simples é imaginar o todo do universo como se fosse um ser organizado e animado. Para os estoicos, de fato, a estrutura do mundo, ou, se você preferir, a ordem cósmica, não é apenas uma organização magnífica, mas também uma ordem análoga à de um ser vivo. O mundo material, o universo todo, é, no fundo, como um gigantesco animal do qual cada elemento — cada órgão — seria admiravelmente concebido e agenciado em harmonia com o conjunto. Cada parte do todo, cada membro desse corpo imenso está perfeitamente ordenado e, salvo catástrofe (às vezes elas acontecem, mas duram pouco e logo tudo volta à ordem), funciona de maneira impecável, no sentido próprio da palavra, sem defeito, em harmonia com os outros: é o que a teoria deve nos ajudar a desvendar e conhecer.
Em francês [como em português] o termo cosmos deu, entre outras, a palavra cosmético. Na origem, é a ciência da beleza dos corpos, que deve estar atenta à justeza das proporções, e, posteriormente, à arte da maquilagem que deve pôr em relevo o que é “benfeito” (e dissimular, caso seja necessário, o que é menos...). É essa ordem, esse cosmos como tal, essa estrutura ordenada do universo todo que os gregos chamam de “divino” (theion), e não, como para os judeus ou os cristãos, um Ser exterior ao universo, que existiria antes dele e que o teria criado.
É, pois, esse divino, que não tem nada de um Deus pessoal, mas se confunde com a ordem do mundo, que os estoicos nos convidam a contemplar (theorein) com a ajuda de todos os meios apropriados — por exemplo, estudando ciências específicas, a física, a astronomia ou a biologia e, além disso, multiplicando as observações que nos mostram como o universo todo (e não apenas esta ou aquela parte) é “benfeito”: o movimento regular dos planetas, a estrutura do menor organismo vivo, do mais ínfimo inseto, provam ao observador atento, àquele que pratica inteligentemente a “teoria”, como a ideia de cosmos, de ordem justa e bela, descreve de maneira adequada a realidade que nos cerca, desde que saibamos contemplá-la como convém.
Pode-se, portanto, dizer que a estrutura do universo não é apenas “divina”, perfeita, mas também “racional”, de acordo com o que os gregos chamam de logos (termo que dará em francês [como em português] a palavra “lógica”) e que designa justamente essa ordenação admirável das coisas. É por isso, aliás, que nossa razão vai se revelar capaz, justamente no exercício da theoria, de compreendê-la e decifrá-la, exatamente como um biólogo compreende a “significação” ou a função dos órgãos de um corpo vivo que ele disseca.
Para os estoicos, abrir os olhos para o mundo era, assim como para um biólogo, abrir os olhos para o corpo de um rato ou de um coelho, a fim de descobrir que tudo nele é perfeitamente “benfeito”: o olho admiravelmente constituído para “ver bem”, o coração e as artérias para bem irrigar todo o corpo com o sangue que o faz viver, o estômago para digerir os alimentos, os pulmões para oxigenar os músculos etc. Tudo isso é, para os estoicos, ao mesmo tempo lógico, racional no sentido do logos, e “divino”, theion. Por que esse termo? Não é para significar que um Deus pessoal teria criado todas essas maravilhas, mas, de preferência, para marcar o fato de que, primeiramente, se trata de maravilhas, e que nós também, os seres humanos, não somos absolutamente seus autores ou inventores. Ao contrário, nós apenas as descobrimos já completas, sem tê-las nós mesmos criado. O divino é o não humano quando é maravilhoso.
É o que Cícero, uma de nossas principais fontes para o conhecimento do pensamento dos primeiros estoicos, cujas obras, como já disse, foram quase todas perdidas, sublinha no ensaio dedicado à natureza dos deuses (I, 425). Nessa obra, ele caçoa dos pensadores, como Epicuro, segundo os quais o mundo, em oposição ao que dizem os estoicos, não é um cosmos, uma ordem, mas, ao contrário, um caos. Eis o que Cícero replica, justamente em nome do pensamento estoico:
Que Epicuro caçoe tanto quanto quiser [...] não deixa de ser verdade que nada é mais perfeito que o mundo... O mundo é um ser animado, dotado de consciência, inteligência e razão.
Citei esse pequeno texto para que você possa avaliar o quanto esse pensamento está afastado do nosso, de nós, Modernos. Se alguém hoje dissesse que o mundo é animado, quer dizer, que possui uma alma, e que a natureza é dotada de razão, passaria certamente por louco. Mas, se compreendemos bem os Antigos, o que queriam dizer não tem nada de absurdo: ao afirmar o caráter divino do universo todo, eles exprimiam sua convicção de que uma ordem “lógica” operava por trás do caos aparente das coisas, e que a razão humana poderia trazê-la à luz.
Aproveito para lhe dizer que é exatamente essa ideia, segundo a qual o mundo possui uma espécie de alma, que é como um ser vivo, que mais tarde se chamará de “animismo” (da palavra latina anima, que quer dizer “alma”). Falarei também a respeito dessa “cosmologia” (concepção do cosmos), de “hilozoísmo”, que quer dizer, literalmente, que a matéria (hylè) é como um animal (zoon), um ser vivo. É também a essa doutrina que daremos o nome de “panteísmo” (da palavra grega pan, que significa “tudo”, e theos, Deus), já que a totalidade do mundo é divina, e não um ser exterior ao mundo, que o teria criado, por assim dizer, de fora.
Se lhe apresento esse vocabulário, acredite que não é por gosto pelo jargão filosófico, mas, ao contrário, para que você possa ler as obras dos grandes autores sem ser impedido pela barreira, no fundo muito simples, desses termos “técnicos” que muitas vezes impressionam mais do que esclarecem.
Do ponto de vista da theoria estoica, o cosmos é, pois, com exceção de alguns episódios acidentais e provisórios que são as catástrofes, essencialmente harmonioso — o que terá, daqui a pouco veremos por quê, consequências importantes no plano “prático” (ou seja, nos planos moral, jurídico e político). É justamente porque a natureza inteira é harmoniosa que em certa medida vai poder servir de modelo de conduta aos homens. Assim, o famoso imperativo segundo o qual é preciso imitá-la em tudo vai poder se aplicar não apenas ao plano estético, da arte, mas também ao da moral e ao da política. Essa ordem harmoniosa, exatamente em razão dessa característica primeira, só pode ser justa e boa, como insiste Marco Aurélio em seu livro intitulado Meditações: Tudo o que acontece, acontece justamente; é o que descobrirás se observares as coisas com exatidão [...] como se alguém vos concedesse vossa parte segundo o que mereceis. Marco Aurélio pensa que a natureza, pelo menos em seu funcionamento normal, excetuando-se os acidentes ou catástrofes que às vezes nos submergem, faz justiça a cada um, tendo em vista que ela nos dota, quanto ao essencial, daquilo de que precisamos: um corpo que permite que nos movamos no mundo, uma inteligência que possibilita nossa adaptação a ele, e riquezas naturais que nos bastam para nele viver. De modo que, nessa grande partilha cósmica, cada um recebe o que lhe é devido.
Essa teoria do justo anuncia uma fórmula que servirá de princípio a todo o direito romano: “dar a cada um o que é seu”, colocar cada um em seu lugar — o que supõe consequentemente que haja para cada um como que um “lugar”, um “lugar natural”, como dizem os gregos, no seio do cosmos, e que esse próprio cosmos seja justo e bom. Você entende que, sob essa ótica, uma das finalidades últimas da vida humana será encontrar seu justo lugar no seio da ordem cósmica. Para a maioria dos pensadores gregos — com exceção dos epicuristas —, é perseguindo essa busca, ou melhor, realizando essa tarefa, que se pode conquistar a felicidade e a vida boa. Numa perspectiva análoga, a theoria possui também, de modo implícito, uma dimensão estética, já que a harmonia do mundo que ela desvela torna-se um modelo de beleza para os humanos. Evidentemente, assim como existem catástrofes naturais que parecem enfraquecer a ideia de que o cosmos seria justo e bom — mas dissemos que elas sempre são acidentes transitórios —, existem também no seio da natureza coisas que, pelo menos à primeira vista, parecem feias, até mesmo horríveis. É preciso, no entanto, segundo os estoicos, saber vencer as impressões imediatas e não permanecer na perspectiva comum das pessoas que não refletem. É isso que Marco Aurélio exprime com muita força em suas Meditações:
A juba do leão, a espuma que escorre da goela do javali, e muitas outras coisas, se observamos detalhadamente, sem dúvida estão longe de ser belas, e, no entanto, porque derivam do fato de terem sido engendradas pela natureza, são um ornamento e possuem encanto; se nos apaixonássemos pelos seres do universo, se tivéssemos uma inteligência mais profunda, sem dúvida, todos eles nos pareceriam sempre criaturas agradáveis. Mesmo em velhos e velhas, poderemos encontrar uma certa perfeição, uma beleza, como encontramos na graça infantil, se tivermos os olhos de um sábio.
Trata-se da mesma ideia que já se encontra em um dos maiores filósofos gregos no qual o estoicismo se inspira, Aristóteles, quando denuncia a ilusão daqueles que julgam o mundo mau, feio ou desordenado, porque só olham para o detalhe, sem chegar a uma inteligência conveniente da totalidade. Se as pessoas comuns pensam, de fato, que o mundo é imperfeito, é porque, segundo ele, cometem o erro de “dirigir ao universo todo observações que se referem apenas aos objetos sensíveis, e ainda assim poucos dentre eles. De fato, a extensão do mundo sensível que nos cerca é a única em que reinam a geração e a corrupção, mas ela nem chega, por assim dizer, a representar uma parte do todo. De modo que seria mais justo absolver o mundo sensível em benefício do mundo celeste do que condenar o mundo celeste por causa do mundo sensível”. Evidentemente, se nos limitamos a olhar nosso cantinho do mundo, não veremos a beleza do conjunto. Porém, o filósofo que contempla, por exemplo, o movimento admiravelmente regular dos planetas saberá elevar-se a um ponto de vista superior para compreender a perfeição do Todo do qual não somos senão um ínfimo fragmento.
Como você vê, nisso reside o caráter divino do mundo ao mesmo tempo imanente e transcendente.
Mais uma vez utilizo propositalmente as palavras do vocabulário filosófico porque elas lhe serão úteis mais adiante. Diz-se que uma coisa é imanente ao mundo, quando se situa em relação apenas a ele. Do contrário, diz-se que ela é transcendente. Nesse sentido, o Deus dos cristãos é transcendente em relação ao mundo, ao passo que o divino dos estoicos, que absolutamente não se situa em não sei que “além”, já que não é senão a estrutura harmoniosa, cósmica ou cosmética do próprio mundo, lhe é perfeitamente imanente.
O que não impede que, de outro ponto de vista, o divino dos estoicos possa ser do mesmo modo chamado de “transcendente”, não, com certeza, em relação ao mundo, mas em relação aos homens, tendo em vista que ele é radicalmente superior e exterior a eles. Estes, de fato, o descobrem maravilhados, pelo menos se são um pouco filósofos, mas não o inventam nem o produzem de modo algum.
A esse respeito, ouçamos Crisipo, aluno de Zenão e o segundo dirigente da escola estoica:
As coisas celestes e aquelas cuja ordem é sempre a mesma não podem ser feitas pelo homem.
Essas palavras são citadas por Cícero, que acrescenta, comentando o pensamento dos primeiros estoicos:
O mundo deve ser sábio, e a natureza, que comporta todas as coisas reunidas, deve exceder pela perfeição da razão [logos]; assim, o mundo é Deus, e o conjunto do mundo é englobado por uma natureza divina.
Podemos, pois, segundo os estoicos, dizer que o divino é “transcendência na imanência”, para melhor se perceber em que a theoria é uma contemplação de “coisas divinas” que, embora não inscritas em nenhum outro lugar a não ser no real, não deixam de ser inteiramente estranhas à atividade humana.
Gostaria que você observasse ainda, de passagem, uma ideia difícil, à qual voltaremos adiante, para melhor compreendê-la, mas que você já pode guardar num canto da memória: a theoria da qual nos falam os estoicos nos desvela, como acabamos de dizer, o mais perfeito e o mais “real” — o mais divino, no sentido grego — no mundo. Com efeito, você vê que o mais real, o mais essencial na descrição do cosmos, é sua ordenação, sua harmonia — e não o fato de que, em certos momentos, ele tenha defeitos, como por exemplo os monstros, ou as catástrofes naturais. É nisso que a theoria, que nos revela tudo isso e nos oferece meios de compreendê-lo, é ao mesmo tempo o que os filósofos chamarão mais tarde de “ontologia” (uma doutrina que define a estrutura ou a “essência” mais íntima do Ser) e uma teoria do conhecimento (um estudo dos meios intelectuais pelos quais se chega a esse conhecimento do mundo).
É importante perceber que a theoria filosófica, entendida nesse duplo sentido, não é redutível a uma ciência particular como a biologia, a astronomia, a física ou a química, por exemplo. Porque, embora recorra constantemente às ciências positivas, ela mesma não é nem experimental nem limitada a um objeto particular. Por exemplo, ela não se interessa apenas pelo ser vivo, como a biologia, ou apenas pelos planetas, como a astronomia, nem mesmo apenas pela matéria inanimada, como a física, mas tenta captar a essência ou a estrutura interna da totalidade do mundo. É algo bastante ambicioso, sem dúvida, e isso pode até mesmo parecer completamente utópico em face de nossas atuais exigências científicas. Contudo, a filosofia não é uma ciência entre outras, e mesmo que ela deva levar em conta os resultados científicos, seu propósito fundamental não é de ordem científica. Ela busca um sentido para este mundo que nos cerca, elementos que nos permitam nele inscrever nossa existência, e não apenas um conhecimento objetivo. Tudo isso ainda é bem difícil de se captar no estágio em que nos encontramos. Você pode, por enquanto, deixar esse aspecto de lado, mas saiba que precisaremos voltar a ele para demonstrar com precisão a natureza da diferença entre a filosofia e as ciências exatas. De qualquer modo, estou certo de que você já pressente que essa theoria, contrariamente às nossas ciências modernas que são, por princípio, “neutras”, visto que descrevem o que é e nunca o que poderia ser, vai ter implicações práticas nos planos moral, jurídico e político. É claro que a descrição do cosmos que acabamos de evocar não poderia deixar indiferentes os homens que se interrogam sobre o melhor modo de conduzir suas vidas.

(Luc Ferry - Aprender a Viver)

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publicado às 00:07


DEMÔNIOS

por Thynus, em 07.04.16
demônio (lat. daemon, do gr. daimon:
gênio bom ou mau) 1. Na filosofia grega,
gênio (espírito) bom ou mau, inferior a um
deus, mas superior ao homem: o demônio de
Sócrates era um gênio que lhe inspirava e
dava conselhos.
2. Na religião cristã, o demônio é um anjo
mau (diferente dos anjos), também chamado
*diabo, Satã ou Satanás, princípio ativo de
todo mal.
(HILTON JAPIASSÚ, DANILO MARCONDES -
DICIONÁRIO BÁSICO DE FILOSOFIA)


Nos diálogos de
Platão, Sócrates frequentemente faz alusão a
seu demônio (daimon), a um deus ou gênio
personificando seu destino e prevenindo-o
contra esta ou aquela escolha ou atitude a ser
tomada. Intervindo sempre para impedi-lo
de cair no erro, esse demônio simboliza ao
mesmo tempo a intuição, a presença do
divino e a retidão do pensamento.
(HILTON JAPIASSÚ, DANILO MARCONDES -
DICIONÁRIO BÁSICO DE FILOSOFIA)

 
Eu gostaria de lembrar, aqui, que “felicidade”, em grego, é eudaimonia,
palavra com dupla acepção que pode nos ajudar nesta discussão. Ela
é composta por eu, partícula ligada ao sentido de “bom”, e daimonia,
termo derivado de daimon, isto é, o meu espírito interno, aquilo que
os gregos chamavam de “estado de espírito”
.

(Mario Sergio Cortella, Yves de La Taille - 
NOS LABIRINTOS DA MORAL)

O AMOR É MESMO O DESEJO DE ALGO QUE NOS FALTA. 
É O MOTIVO PELO QUAL O AMOR NÃO PODE SER
DIVINO: OS DEUSES NÃO SENTEM FALTA ALGUMA! 

“O QUE NÃO TEMOS, O QUE NÃO SOMOS, AQUILO DE QUE
SENTIMOS FALTA: SÃO ESSES OS OBJETOS DO DESEJO DO AMOR”, 

EXPLICA SÓCRATES ( O Banquete, 200E). PARTINDO DESSA CONSTATAÇÃO, 
O FILÓSOFO VAI FALAR DO AMOR, EVOCANDO OUTRO MITO, O DE
EROS. E, COISA BASTANTE RARA, QUE VALE 

SUBLINHAR, ELE PRETENDE TER RECEBIDO ESSE ENSINAMENTO
DE UMA MULHER: DIOTIMA  ESSA MULHER DE MANTINEIA 

LHE ENSINOU QUE O AMOR, NÃO PODENDO SER UM DEUS, 
FEZ-SE UM daimon, UM MEDIADOR ENTRE OS DEUSES 
E OS HOMENS. SEMPRE INSATISFEITO, SEMPRE EM 
MOVIMENTO, SEMPRE EM BUSCA DE SEU OBJETO, 
SEMPRE MENDIGANDO, EROS LEVA OS HOMENS A 
DESEJAREM COISAS TÃO DIVERSAS COMO A RIQUEZA, 
A SAÚDE, AS HONRARIAS, OS PRAZERES DOS SENTIDOS ETC. 
MAS, EM ÚLTIMA INSTÂNCIA, O QUE ELES DESEJAM 
ACIMA DE TUDO É A IMORTALIDADE.  É O MOTIVO PELO QUAL 
ELES FAZEM FILHOS E CRIAM OBRAS, QUER DE ARTE, 
QUER DO ESPÍRITO. APESAR DE TUDO ISSO, 
CADA UM SABE NO FUNDO DE SI MESMO QUE A MORTE 
PERMANECE UMA REALIDADE INCONTORNÁVEL,  E QUE 
NEM O AMOR DE NOSSOS FILHOS NEM O DE NOSSAS OBRAS
jamais nos levará a uma felicidade durável.

(Lenoir, Frédéric - Sócrates, Jesus, Buda)
 



DEMÔNIO é aquele que contradiz a mesmice, os dogmas, o comum aceito pela maioria, o sagrado, os embustes, as fraudes e a mentira. É aquele que têm a coragem e a ousadia de desafiar o que está estabelecido como verdade absoluta; é aquele que mata o metódico desafiando os oprimidos a pensar e a reconhecer a hipocrisia presente nos sistemas sociais estabelecidos. John Lenon era um demônio, Giordano Bruno era um demônio, Niezstche era um demônio, Voltaire era um demônio, Galileu era um demônio e as mulheres que curavam as pessoas, usando medicina caseira, as chamadas feitiçeiras ou bruxas, eram demônios. E os ateus, em todas as épocas, são demônios.
Os demônios têm que ser expulsos. A coragem dos demônios envergonham os cadáveres putrefatos e malcheirosos daqueles que se apoiam nas crendices e superstições para fugir da vida e de si mesmos. Os demônios são aqueles cuja inteligência é temida devendo desaparecer para que o rebanho não se corrompa.
Lamia, a rainha da Líbia, que, segundo a mitologia grega, tornou-se um daemon (demônio).  Pintura de Herber James Draper, 1909 
 
O demônio quer que cada um conheça-se a si mesmo, tirem as suas máscaras e adquiram a coragem para debater, e rebater, conceitos excludentes e repressores.
Os demônios habitam dentro de todos nós mas só alguns eleitos são capazes de reconhecê-los como seres sábios e amigos capazes de nos elevar à categoria de deuses.

Ana Burke 

publicado às 16:02

O movimento albigense ou catarismo é parte de uma cadeia de religiões que se denominam dualistas. Dualismo é uma concepção religiosa que compreende o mundo dividindo-o entre dois poderes antagônicos: dois deuses ou entidades espirituais que se opõem, sendo geralmente um deles o Deus do bem e da espiritualidade e, no contraponto, um deus maligno e inserido no mundo material e carnal.
Esse dualismo é muito antigo e há evidências de que suas origens remontem às sociedades pré-históricas. Os registros que temos nos indicam que muitos movimentos dualistas foram contemporâneos ao surgimento do judaísmo e do cristianismo. Entre os locais onde surgiram essas religiões, se sobressai a região da Mesopotâmia e da Pérsia (Irã atual). Nesse espaço de encontro entre as expressões religiosas do Oriente e do Ocidente, deu-se a concepção de inúmeras religiões de caráter dualista. As razões são imprecisas. Alguns autores acreditam que a tensão entre os espaços contrastantes como o deserto com sua aridez e os vales alagados pelos rios, e o choque entre as populações sedentárias e os nômades, possam ser um fator de criação do embate criado no panteão dos deuses regionais, entre entidades benignas e dotadas de fertilidade por um lado e outras com potenciais opostos, ou seja, originadas no deserto e sendo malignas. Isso se altera na sequência, mas prevalece o dualismo.
Na Pérsia e na Mesopotâmia surgiram, por exemplo, o zoroastrismo (1000 a.C.) e o maniqueísmo (200 d.C.) além de outras concepções religiosas dualistas. Uma das hipóteses dos historiadores é que dali se expandiram para todas as direções. Outros historiadores entendem que nas sociedades agrárias ou pastoris existe uma maior dependência dos elementos da natureza. Assim podem tender ao animismo e ao politeísmo. Em certas condições, algumas inclinam-se a uma aguda dependência de elementos naturais e elaboram concepções dualistas. Isso não seria uma regra válida para todos os casos. No que tange a origem há duas hipóteses: surgimento local ou expansão do dualismo. No primeiro caso, a elaboração de concepções dualistas teria ocorrido de maneira espontânea no Ocidente, sem contato ou com pouca influência do Oriente. Na segunda hipótese, considera-se que a difusão do dualismo ocorreu de leste para oeste, o que fez com que chegasse à Europa ocidental. Nesse caso poderia ter sua origem na Pérsia.
Na nossa compreensão, a segunda hipótese tem maior sustentação: surgiram movimentos dualistas de leste a oeste e em tempos subsequentes. Ou seja, há uma cadeia de religiões dualistas surgindo e se expandindo a partir do gnosticismo (séculos II e III d.C.) e do maniqueísmo (século III d.C). Mani viveu e pregou na Pérsia (216-277 d.C.). Pregou o mito cosmológico dos princípios eternos e não engendrados dotados de um poder semelhante: luz x trevas; bem x mal; deus x matéria. Após sua morte a doutrina maniqueia se expandiu para todas as direções. Santo Agostinho no século IV e início do século V conviveu com o maniqueísmo: foi maniqueu na sua juventude e posteriormente combateu sua doutrina, na região do norte da África. O maniqueísmo chegara à região em pouco mais de um século após a morte de Mani ocorrida em 277. Isso no período baixoimperial. Há um claro movimento leste-oeste nesse e noutros casos.

As religiões dualistas no final do mundo antigo: maniqueísmo

publicado às 00:21

O papa Inocêncio III, que deflagrou em 1202-1204 a Quarta Cruzada, é também o mentor da Cruzada contra os “heréticos” albigenses. O pretexto estava dado: a resistência dos “hereges”, a negativa do poder temporal da região do Languedoc em intervir e atuar na repressão e o fato gerador com a morte do legado papal. Inocêncio entabulou conversações com o rei da França, que se omitiu de agir de maneira direta. Um exército heterogêneo foi constituído por nobres do norte da França, aquitanos, borgonheses, flamengos e normandos com a presença de nobres como o duque da Borgonha e os condes de Nevers e de Bar. A narrativa se encontra em três crônicas. A mais conhecida é a do monge cisterciense Pierre des Vaux-de-Cernay. Há outras duas, uma de autoria de Guilherme de Tudela e outra de Guilherme de Puylaurens. Os detalhes da guerra são diversos e nos omitiremos de descrevê-los. Relataremos apenas um detalhe do primeiro cerco realizado pelos cruzados. Diante da cidade de Beziers, na qual viviam misturados albigenses e católicos, a nobreza questiona o legado papal sobre a postura a ser adotada quando penetrassem na cidade. Como distinguir os “heréticos” dos fiéis? A quem poupar e a quem sacrificar? A resposta é polêmica. Disse o legado: “Matem a todos, que Deus saberá distinguir quem são os seus fiéis.” A matança em Beziers não poupou nem mulheres nem crianças. Um massacre que deixou marcas na região. A Cruzada prosseguiu até 1213, mas teve sequências ao longo do século XIII.
A resistência passiva da população acabou sendo o motivador da instalação da Inquisição medieval. A resistência se deu em rincões isolados da região, que era repleta de montanhas e vales isolados. Muitos se esconderam em aldeias dos Pirineus, tal como Montaillou; outros nas escarpas elevadas da fortaleza de Mont Ségur, a qual foi assediada algumas décadas mais tarde e teve sua população chacinada. Esse processo se deu após a morte de Inocêncio. Seus sucessores, Honório III e Gregório IX, quiseram impedir que os poderes civis se inserissem na repressão da “heresia”. Isso porque a nobreza local, mesmo sendo católica, era refratária à repressão dos “hereges”, sendo que os tolerava e por vezes protegia. Assim, uma ordem de monges mendicantes, os dominicanos, foi escolhida para servir de “tropa de choque” do papado na repressão aos “hereges”, tornado-se a articuladora e executora da Inquisição. O catarismo albigense manteve-se por mais um século na região do sul da França, mas foi suprimido pela Inquisição e pelos poderes seculares. Um núcleo sobreviveu na Itália, mas não há informações sobre sua continuidade.

 (Pedro Paulo Funari e outros - As Religiões que o Mundo esqueceu)

publicado às 00:20

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