As origens de Satã
Sem o Diabo não há Deus. Esta é a tradução do título deste capítulo e serve para ilustrar a importância que a crença no Príncipe das Trevas tem para a manutenção da Igreja, da religião e do temor que o homem ainda sente daquilo que foi por ele denominado de sobrenatural. Muitos creem que se não houvesse a figura de Satã, a maldade humana ficaria incontrolável, pois só o medo de ser punido com a eterna danação da alma no inferno serve como obstáculo à pratica da maldade. O Diabo presta um duplo serviço à Igreja (o termo é aqui usado como qualquer forma de instituição religiosa organizada em torno da crença de um deus e seus oponentes malévolos). Ele não é apenas um adversário temido, mas também é um forte instrumento de controle para manter os crentes obedientes e fieis aos ensinamentos de Cristo, mesmo quando movimentos externos – ou internos, como nos casos de pedofilia praticados pelos padres católicos – ameaçam os pilares da fé. Mas o Diabo dos tempos modernos – cuja concepção atual data dos primórdios do cristianismo – não guarda relação com os espíritos malignos da antiguidade e da pré-história. A visão de espíritos maus vagando pela terra ou possuindo o corpo humano é bastante antiga. Desde a pré-história, xamãs e feiticeiros diziam ser o receptáculo de deuses, que representavam tanto o bem quanto o mal.
Com o cristianismo e, em especial, a Inquisição, um personagem ganhou fama universal como o responsável pelos males que afligem a humanidade. O Diabo entrou em cena nos livros, teatros, nas igrejas, nas camas, mentes e corpos das pessoas, notadamente das mulheres, acusadas, julgadas e condenadas por serem as preferidas dos demônios que possuíam os seus corpos e seduziam os homens, levando-os à ruína. Era o período da caça às bruxas, consideradas as agentes de Satanás e da luxúria. Em 1486, o Papa Paulo II decretou que a tortura era aceitável nos casos de bruxaria e declarou que a bruxas eram as concubinas do Diabo e estavam em conluio com Satã. O Malleus Malleficarum (O martelo das feiticeiras), uma espécie de manual com métodos de interrogatório e tortura, foi escrito a fim de identificar as bruxas e arrancar confissões de que elas mantinham relações sexuais com o Príncipe das Trevas. Mais de 40 mil pessoas foram queimadas na Europa, vítimas de julgamentos ilegais e abusivos.
A Inquisição era uma forma de procedimento criminal elaborado para a apuração de delitos penais, mas foi largamente utilizado como um procedimento de “descoberta” de bruxas e feiticeiras. O juiz não poderia acusar uma pessoa a menos que houvesse uma causa provável de que ele ou ela houvesse praticado um crime. Se o réu negasse a acusação, o juiz poderia se utilizar dos inquisidores para extrair confissões, normalmente, mediante tortura.
O julgamento de Joana D´Arc é um exemplo clássico dos abusos do sistema inquisitivo. Joana, heroína francesa da Guerra dos Cem Anos entre a França e a Inglaterra, foi interrogada mediante tortura e as acusações de crimes cometidos instigados pelo Diabo foram fabricadas a partir de suas respostas.[Henry A. Kelly. Satã: uma biografia. São Paulo: Globo, 2008, p. 308] Eis um trecho do relatório final do Tribunal Eclesiástico que condenou Joana D’Arc à fogueira, em maio de 1431:
Por esses motivos,[...] declaramos que você é uma herege reincidente e [...], como aliada de Satã, infectada com a lepra da heresia, deve ser abandonada por nós e separada da igreja, para que não contamine outros membros.[BBC História: Cristianismo. Ano 1, nº 5. São Paulo: Tríada, p.47]
O Diabo teve o seu auge na Europa dos séculos XV ao XVI. Ele era visto em todos os lugares. Até mesmo o iniciador da Reforma Protestante, Martinho Lutero, disse ter sido tentado pelo Demo. A Peste Negra, guerras, doenças e mortes dizimavam a população e a fé era considerada a única arma contra o mal.
Mas de onde veio a idéia de um ser responsável pelas coisas ruins? Quem criou o Diabo? Ao contrário do que se imagina, principalmente entre os cristãos, a figura do Diabo ou Satã como responsável pela maldade do mundo não é um conceito unânime ou fato livre de controvérsias ao longo da História do homem e das religiões.
Na Antiguidade, as pessoas atribuíam tudo o que ocorria de bom ou ruim aos deuses, não havendo uma divindade específica que fosse a raiz de todos os males. A bondade e a maldade residiam em um mesmo ente, que costumava reunir ambas as características. Assim era no Egito, na Mesopotâmia, na Grécia e em Israel, só para citar alguns lugares.
Os israelitas, por exemplo, sempre adoraram um panteão de deuses e deusas antes de cultuar exclusivamente Iahweh. E essas divindades eram as responsáveis tanto pelas colheitas e chuvas, quanto pelas enchentes e fome. O Antigo Testamento não trazia a figura do Diabo ou de Satanás. Como nas demais culturas da Antiguidade, Iahweh era o responsável por tudo de bom ou ruim que acontecia, isso não somente em relação aos judeus, mas também no caso dos seus inimigos. As vitórias e derrotas dos judeus eram vistas como sendo obras do seu deus. Em Isaías, 45:7, é dito que: “Eu formo a luz e crio as trevas, asseguro o bem-estar e crio a desgraça: sim, eu, Iahweh, faço tudo isso.”
No Antigo Testamento a figura de Satã é desnecessária, afinal Iahweh é o responsável pelo mal. O mal é conseqüência da desobediência do homem aos comandos divinos. O mal é um castigo de Deus, logo não há necessidade de Satã.
Quando os profetas de Israel passaram a declarar que Iahweh era o único deus e os judeus foram exilados na Babilônia, alguns problemas teológicos surgiram: como explicar a origem do mal? Por que Deus permite que o mal exista? Existe outro ser que rivalize com Deus e seja o causador do sofrimento na Terra?
A resposta dos antigos judeus era que os suplícios pelos quais passaram, em especial o cativeiro na Babilônia, era parte do plano de Deus para puni-los pelas deslealdades e falta de fé. A conclusão encontra respaldo no perfil de Iahweh, que exigia fidelidade do seu povo em troca de grandes demonstrações de poder, assim como os castigava em virtude da idolatria ou desobediência. Mas o trauma do exílio e a destruição do Templo por Nabucodonosor fez que parte dos judeus duvidasse da força de Iahweh. Eles também não podiam aceitar que um deus que os havia escolhido, os submetesse a tantos sofrimentos. O contato com outras crenças e doutrinas, especialmente o zoroastrismo, que trouxe o conceito de existência de um ser divino responsável pelo bem, o Deus da Verdade, o Senhor da Vida, Sabedoria e Luz – Ahura Mazda - e outro pelo mal – Angra Mainyu, influiu na criação de uma figura maligna Essa nova concepção dualista do bem e do mal foi transmitida aos judeus pelo zoroastrismo, que explicava esse antagonismo de uma forma inteiramente nova. O zoroastrismo prega que o mal é uma coisa imperfeita e não pode vir de Deus, que é perfeito, bom. Desta feita, surgiu a proposição de um espírito mal, responsável pelo que acontece de ruim no mundo.
O símbolo do deus bom é o fogo e Zoroastro incentivava os seus seguidores a procurar o bem. Ele acreditava que, no futuro, Ahura Mazda triunfaria após a batalha contra Angra Mainyu e recompensaria os seus fieis ressuscitando-os dos mortos e guiando-os para uma nova era de imortalidade e luz. Pode-se ver no zoroastrismo uma espécie de monoteísmo, pois no final, a deus bom prevalecerá. Parte dos judeus e, mais tarde os cristãos, incorporaram essa concepção de batalha cósmica entre o bem e o mal (armagedom) e de ressurreição. Em um dos pergaminhos dos conhecidos Evangelhos do Mar Morto, descobertos na região de Qumran, em 1947, essa doutrina se mostra bastante presente. Nela, Deus é o criador de dois espíritos: o da Luz e o das Trevas. Os que são conduzidos e seguem o espírito da verdade são os filhos do Príncipe das Luzes; seus inimigos são os filhos do Príncipe das Trevas. O zoroastrismo era a religião dominante na Pérsia, região controlada pelos babilônios, e lá era um dos locais onde mais existiam judeus e muitos lá permaneceram, mesmo após o exílio.[Jonathan Hill. História do Cristianismo, p.43.]
A influência do zoroastrismo está presente de maneira profunda no cristianismo. Se Ahura Mazda era o Deus da Verdade, o Senhor da Vida, Sabedoria e Luz, no Evangelho de João, um dos quatro oficiais do Novo Testamento, Jesus disse: “Eu sou a luz do mundo” (Jo, 9:5). No mesmo Evangelho, ele ainda afirma que: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo, 14:6). Vê-se a semelhança entre as qualidades de Jesus e a do deus de Zoroastro. O dualismo, isto é, a luta entre o bem e o mal, é bastante presente no Evangelho de São João.
Entre os séculos VI e IV a.C e IV e I a.C, períodos de hegemonia persa e grega respectivamente, tais culturas influenciaram profundamente o judaísmo e consequentemente o cristianismo. Naquela época, teria ocorrido uma ruptura na personalidade de Deus, o qual se tornou exclusivamente benigno, deixando de agir de forma maléfica. No que se refere à cultura hebraica, houve uma divisão, um deslocamento da visão monista para uma visão dualista. No dualismo dos persas havia um Deus benevolente e um malévolo, sendo que o mal e o bem eram realidades diferentes de origens distintas.
Na doutrina zoroastrista, duas forças contrárias formaram e sustentam o mundo Ahura Mazda e Angra Mainyu, o Demônio da Mentira. Essas duas forças são contemporâneas e existiram desde o início, mas não são eternas porque esse Demônio será destruído no fim dos tempos, tal qual Satã será derrotado, conforme consta na Bíblia, na batalha apocalíptica do Armagedom. Mais uma semelhança entre o cristianismo e uma religião pagã.
Para ajudá-lo na sua empreitada contra o mal, Ahura Mazda criou os seus ajudantes, os arcanjos Boa Inteligência e Ordem Justa, apoiados por Perfeita Soberania, Piedade Divina, Excelência e Imortalidade, cujos opostos são Inteligência Malévola, Falsa Aparência, Covardia, Hipocrisia, Miséria e Extinção. Todos esses anjos foram, mais tarde, sistematizados em ordens e hierarquias, tais quais as ordens cristãs de anjos e demônios[Joseph Campbell. As máscaras de Deus: mitologia ocidental, p., 164] (serafins, querubins e os conhecidos Gabriel, Miguel e Rafael).
Esse conceito dualista não encontrou uma aceitação ampla entre os judeus, mas gozou de prestígio entre os fariseus – ramo do judaísmo que acreditava na ressurreição dos mortos, em anjos e demônios, no julgamento futuro e na vinda do rei Messias - e uma seita mais radical denominada essênios. A semente da ideia de que existia um deus bom e outro espírito (ou deus) mal fora plantada. Ao longo dos séculos seguintes, ela ganhou força, opondo o cristianismo ao judaísmo mais tradicional, que continuou acreditando que Iahweh era o único deus, não havendo nenhum Diabo ou espírito que pudesse rivalizar com ele em poder. O mal, na visão judaica, decorre do próprio homem e seus atos.
Originalmente, o judaísmo não acreditava em Satã ou no inferno, conforme a atual visão cristã do tema. Para os judeus primitivos, não havia perspectiva de julgamento final ou possibilidade de salvação da alma por meio de algum ritual ou graça. Após a morte, os mortos iriam para o sheol, um lugar de trevas e escuridão, de sede e pó, situado nas profundezas da terra. O sheol não era um lugar de punição, mas apenas o de destino “das almas, boas e ruins, que após a morte continuam a existir em uma espécie de estado comatoso semivivo.”[Henry A. Kelly. Satã: uma biografia, p. 272.]
O Talmude, segundo livro sagrado do judaísmo, compilado ao redor dos séculos I e II da Era Cristã, diz que as almas justas e as pecadoras descem para um abismo denominado Geena e lá ficam por 12 meses ou mais, para expiar os seus pecados em um rio de fogo. Os pecadores incorrigíveis são condenados e lá permanecem eternamente. O Geena, mais do que um lugar fictício, era um penhasco próximo de Jerusalém onde crianças cananeias eram sacrificadas.[Anne Logeay. O abismo dos malditos. In: História Viva, Especial Céu e Inferno n.º 25, p.42]
Todos os povos da Idade Antiga tinham os lugares para onde os mortos eram enviados. Os egípcios – que viviam a vida terrena eternamente preocupados com o além-túmulo – tinham o Tuat, mundo subterrâneo cuja descrição no Livro dos Mortos era similar ao inferno dos cristãos e para onde os defuntos iam, carregados por uma barca. Os gregos acreditavam que os seus mortos eram remetidos para o Tártaro, que recebia as almas dos criminosos, que sofriam a punição das faltas cometidas na Terra. Para chegar ao Tártaro, governado pelo deus Hades, as almas também cruzavam um rio, o Estige, levadas pelo barqueiro Caronte. Os puros e pios iam para os Campos Elísios, lugar luminoso e de paisagens encantadoras, que acolhia as almas dos justos.
Embora parte dos judeus rejeitasse a ideia de um deus ou ser maligno e de vida após a morte, nos moldes do que cristãos e outras religiões ainda acreditam, esses conceitos começaram a surgir de maneira mais evidente no século II a.C. e nos livros escritos após o exílio. O dualismo tornou-se mais presente na fé israelense, cujos sacerdotes, por motivos evidentes, hesitavam atribuir a Iahweh a origem do mal e buscaram um personagem para desempenhar os dois papéis: evitar a atribuição do mal a Javé e, simultaneamente, confirmar o controle deste último sobre a história do universo.[Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Diabo> Acesso em 09 de julho de 2010] Este ator foi Satã ou Satanás.
A primeira aparição de Satã no Antigo Testamento deu-se no livro de Jó. “No dia em que os Filhos de Deus vieram se apresentar a Iahweh, entre eles veio também Satã” (Jó, 1:6). Então Iahweh perguntou a Satã: “De onde vens?” – “Venho de dar uma volta pela terra, andando a esmo”, respondeu Satã. Vê-se, no texto, que Satã já era conhecido de Deus e já andava pelo mundo. A visão inicial de Satã trazida pela Bíblia não é, inicialmente, a de grande inimigo de Deus (Iahweh), ao contrário do que faz crer o senso comum. Muitas vezes, esses anjos (e Satã era um deles) executavam funções comandadas por Iahweh. Numa leitura atenta do livro de Jó percebe-se que Satã não é nada mais que um executor das ordens do seu chefe. Embora ele sugira os castigos ou provas para que Iahweh teste a fé de Jó, é o deus de Israel quem dá a última palavra, ou seja, aceita e ordena a realização do tormento. Eis um trecho exemplificativo:
Iaweh disse a Satã: “Reparaste no meu servo Jó? Na terra não há outro igual: é um homem íntegro e reto, que teme a Deus e se afasta do mal. Ele persevera em sua integridade, e foi por nada que me instigaste contra ele para aniquilá-lo.” Satã respondeu a Iahweh e disse: “Pele após pele! Para salvar a vida, o homem dá tudo o que possui. Mas estende a mão, fere-o na carne e nos ossos; eu te garanto que te lançará maldições em rosto.” “Seja!”, disse Iahweh a Satã, “ele está em teu poder, mas poupa-lhe a vida.” (Jó, 2:3-6)
Esse trecho supracitado é surpreendente por vários motivos. O primeiro é que Deus se deixa influenciar por um subalterno que, em tese, é-lhe inferior (“e foi por nada que me instigaste contra ele...”). O segundo é que Satã não faz o mal sem a aprovação de Iahweh. O anjo caído é apenas um executor das ordens do seu mestre.[Henry A. Kelly. Satã: uma biografia, p. 36] A afirmativa pode ser polêmica aos olhos mais conservadores e daqueles que se acostumaram a vê-lo como o Mestre do Mal, mas a sua primeira aparição na Bíblia não mostra isso.
Outra função exercida por Satã era a de uma espécie de promotor ou acusador. Em hebreu, “satã” significa “adversário” ou “acusador”. O profeta Zacarias (Zc 3:1) disse ter visto Josué, o sumo sacerdote, “de pé diante do Anjo do Senhor, e o Satã estava à sua direita para acusá-lo.” No livro de Zacarias, Satã assume outra função. O profeta tem um sonho no qual conversa com um anjo de Iahweh e pergunta ao enviado de Deus quem eram os homens que ele havia visto cavalgando. O anjo responde que “estes são os que Iahweh enviou para percorrerem a terra e patrulhá-la” (Zc 1:10-11).
Noutro livro, desta vez o de Daniel, Nabucodonosor, rei da Babilônia, também sonha com um anjo, “um Vigilante, um santo que descia do céu e que bradava com voz possante” (Daniel, 4:10). Aqui surge a visão dos anjos como vigilantes (anjos da guarda), patrulheiros da terra. Vê-se, portanto, que as funções dos anjos, membros da corte celestial de Iahweh, eram as de promotor, mensageiros, executores das ordens de Deus e de patrulheiros da Terra e dos Céus.
Posteriormente, esses anjos patrulheiros se rebelam e abandonam pecaminosamente as suas funções na Terra e passam a perseguir a luxúria e o sexo, tendo relações sexuais com as mulheres terrestres gerando os gigantes. Essa história é citada no capítulo 6, do Gênesis e contada em detalhes no livro de Henoc, que não faz parte do Antigo Testamento, mas consta da tradição literária e religiosa do judaísmo, tendo sido escrito no século II a.C..
A história dos anjos caídos tornou-se popular. Satanás - que fora criado como um anjo - quis se igualar ao seu criador. Como punição pelo orgulho, ele foi atirado às profundezas e jurou vingança contra Deus e a humanidade. Os demais anjos guardiões (200, segundo o livro de Henoc) também foram expulsos da corte celestial porque pecaram ao fazerem sexo com as mulheres.
A concepção dualista de uma batalha apocalíptica entre o Bem e o Mal, personificada entre Deus (Iahweh) e Satanás, foi ganhando adeptos entre os judeus, notadamente dentro de uma seita radical judaica denominada de essênios, principalmente depois de a Palestina (nome pelo qual os antigos reinos de Judá e Israel passaram conhecidos) ser invadida por Roma. Vários judeus, mais uma vez, passaram a questionar a força de Iahweh, pois Israel fora, novamente, ocupada por um povo estrangeiro. Mas os essênios rejeitaram a ideia de que Iahweh seria o responsável por essa nova infelicidade que acometia o Povo Escolhido. Os essênios concluíram que os infortúnios se deviam aos fatos de que o povo judeu não mais seguia o livro da Lei e de que havia se afastado de Deus ao se juntarem aos gentios, incorporando os seus costumes e religião, principalmente os dos gregos. Como Deus era bom, ele não poderia ser o causador desses males. Assim, só restou culpar Satã, Belial, o Diabo.
Os essênios eram mais radicais e não aceitavam essas mudanças ocorridas a partir do século II a.C., nas quais os judeus passaram a se misturar com os gentios, que eram “impuros”, na visão deles. No deserto, os essênios poderiam ter uma vida “pura” e conforme a Lei, aguardando o Messias que os livraria de Satanás, que vivia no mundo exterior tentando os gentios e judeus que não seguiam as leis de Deus.
A luta de Deus contra o Diabo nos desertos da Judeia reflete não apenas um momento religioso do povo judeu, mas também o político e histórico. Judá e Israel não mais existiam como reinos independentes porque foram ocupados pelos romanos que, depois, transformaram a região em um protetorado que passou a ser conhecido como Palestina, uma província do Império Romano. Roma simbolizava o mal, que deveria ser destruído, assim como Satã, o causador dos infortúnios dos israelitas. A luta de Iahweh contra Satã no campo espiritual era um espelho da batalha pela liberdade entre os judeus e os romanos.
Vários trechos do Novo Testamento tratam do tema da luta entre a Luz e as Trevas, mas o livro que marcou o imaginário ocidental sobre as visões de Satanás é o Apocalipse ou Livro das Revelações, que é atribuído ao apóstolo João, embora existam grandes controvérsias sobre o tema, pois na data na qual os historiadores acreditam que ele foi escrito, o seu autor já teria cerca de 90 anos, idade improvável para a época. A literatura apocalíptica tem uma importância considerável na história da tradição judaico-cristã-islâmica, ao veicular crenças como a ressurreição dos mortos, o dia do Juízo Final, o céu, o inferno. O Livro do Apocalipse ou das Revelações é um conjunto de profecias. Nele, João teria recebido mensagens de Jesus Cristo por meio de um anjo, que lhe mostrou o futuro até o fim do mundo, o Juízo Final.
O Apocalipse de São João, datado provavelmente da década de 90 d.C., descreve batalhas épicas entre Deus e o Diabo, entre os anjos do Senhor e os demônios. No livro, sobressai a figura mítica de um ser denominado “a Besta”, que virá do mar para aterrorizar a humanidade e tem dez chifres e sete cabeças. Batalhas entre os exércitos de anjos de Deus e os de Satanás serão travadas, a Besta é derrotada e Satanás é aprisionado em um abismo por mil anos, quando retornará para seduzir nações, provocar novas guerras e destruição, até ser derrotado definitivamente, com o retorno de Jesus e a salvação das almas justas.
Essa doutrina apocalíptica, de fim dos tempos, era bastante popular na época de Jesus e depois dele e, mais uma vez, refletia não apenas um pensamento religioso, mas as condições históricas do período. O Apocalipse foi escrito no primeiro século da Era Cristã, durante um tempo no qual os cristãos sofreram intensamente com as perseguições promovidas por Roma, e as famigeradas figuras do anticristo e da Besta - cujo número era 666, conforme as brincadeiras de numerologia da época - simbolizavam o imperador romano Nero.
Naqueles tempos, os antigos cristãos acreditavam que o fim dos tempos estava próximo, pois o seu mundo fora destruído juntamente com o Templo de Jerusalém. Os cristãos eram perseguidos, mortos e crucificados. Era o inferno na Terra. O livro das Revelações se utilizou de uma linguagem simbólica. Segundo este entendimento, João usou dessa simbologia para detalhar o sofrimento que estavam passando, se comunicar com outros cristãos e dificultar, assim, o entendimento por parte dos seus opressores. Os cristãos acreditavam nesta batalha final entre o Bem e o Mal, na qual as forças do bem venceriam, os maus (Roma) seriam derrotados e Jesus retornaria. Essa famosa batalha leva o nome de Armagedom. Mas essa seria uma batalha real ou imaginária? Para entender o que João quis dizer com o Armagedom, é preciso entender, mais uma vez, o contexto da época.
Em Israel, existe um vale chamado Jezreel no qual está localizada a planície de Megiddo, que é cercada de pequenas colinas e foi o ponto de dezenas de batalhas na Antiguidade. O local é extremamente estratégico, pois quem a controla tem o domínio da região. Até hoje ainda existem ruínas de antigas fortalezas no lugar. Ali foi onde o rei Josias foi morto pelo faraó Necau. Em Megiddo ficava acampada a Sexta Legião Romana, uma das tropas mais experientes e cruéis do império. Em uma revolta de judeus anos antes de O Apocalipse ser escrito, milhares de revoltosos foram crucificados, desde Megiddo até as portas de Jerusalém.
Em hebraico, Megiddo era escrito como Har Megiddo. Em uma versão do apocalipse em grego, a palavra virou Har Magedom, com o som aspirado, e depois, Armagedom. Como todo judeu da época, João deveria saber que qualquer batalha importante pela Palestina seria ali, pela sua importância estratégica. Em Megiddo seria travada a luta final entre as forças do Bem e do Mal (os romanos, representados por uma legião que tratava com crueldade todos os povos vencidos ou que se rebelaram contra o seu controle). Que lugar seria mais adequado para ilustrar tal conflito do que Megiddo?[Apocalipse: os enigmas do último livro bíblico. Grã-Bretanha: BBC/Discovery Channel, 2003. DVD (49 min.).]
Mas tudo deu errado. Entre os anos 66 e 70 da Era Cristã, os Judeus promoveram um guerra contra os romanos e foram derrotados. O Templo de Jerusalém foi destruído, a população foi massacrada, os sobreviventes foram vendidos como escravos ou tiveram que deixar a Palestina de maneira definitiva e o Messias, bem, esse nunca voltou, e alguns ainda esperam por ele até hoje. O fato é que, se Deus existisse realmente e fosse o Todo Poderoso, por que ele esperaria até o final dos tempos para destruir o Diabo? Essa é uma pergunta para o qual a Igreja não tem resposta e mostra que Satã, Iahweh, Deus ou Alá só existem como ideias e ferramentas utilizadas no controle dos fieis e das pessoas mais temerosas.
Não está claro se Jesus era essênio, mas há muitas semelhanças entre os escritos no Novo Testamento e os ensinamentos desse grupo. Se eles criaram Satanás, os cristãos rapidamente se apossaram dele e fizeram com que esse senhor do Mal fosse protagonista no resto da história da humanidade. Sem a presença do Diabo, “não há nada ou ninguém que Cristo possa combater, deixando de haver qualquer justificativa para afirmar a existência do ‘reino de Deus’.”[Peter Stanford: O Diabo: uma biografia. Rio de Janeiro: Gryphus, 2003, p. 54] No evangelho de Mateus, por exemplo, há a descrição de um exorcismo (Mateus, 12:22-32). Jesus expulsou um demônio do corpo de um epiléptico [Os povos antigos viam na epilepsia uma manifestação de deuses ou demônios que possuíam o corpo do doente. As deformações faciais resultantes das convulsões e contrações musculares, assustadoras para quem não conhece a doença, eram provocadas pelo demônio, pensavam essas pessoas. Doenças mentais e várias outras enfermidades eram vistas e tratados como possessões demoníacas. Até hoje, algumas seitas religiosas de natureza evangélica e o espiritismo consideram muitos desses males como casos de possessão, sem que expliquem o motivo pelo qual esses demônios deixam os corpos das pessoas após os tratamentos adequados] (Marcos, 9:14-29). De Maria, também chamada Madalena, Jesus retirou sete demônios (Lucas, 8:2). Mas Jesus é acusado pelos fariseus de se utilizar dos poderes de Belzebu para expulsar demônios (Mateus, 12:22-24). Belzebu nada mais é do que um dos nomes do Baal Zebud, patrono da cidade cananeia de Ekron (ou Acaron),[O nome é citado pela primeira vez em 2 Reis, 1:2. “Ocozias caiu da sacada de seu aposento em Samaria e adoeceu. Enviou mensageiros dizendo-lhes: ‘Ide consultar Baal Zebud, deus de Acaron, para saber se ficarei curado deste mal.’"] que significa “Baal, o príncipe” ou “Baal, o destruidor.”[Matthew Bullen (et al.). National Geographic: Essential Visual History of World Mythology, p.53] Da mesma maneira que o judaísmo, o cristianismo tratou de difamar, ou melhor, demonizar os antigos deuses de outros povos, tratando-os como demônios ou seres inferiores.
Os cristãos viram o demônio nos romanos, nos judeus que causaram a morte de Jesus, nos pagãos, nos infiéis árabes que morreram pelo fio da espada durante as Cruzadas, nas mulheres consideradas bruxas, nos protestantes reformadores (por sua vez, os mesmos protestantes também viram o diabo na figura do papa e dos católicos) e em qualquer um que se opusesse ao poder da Igreja. Hoje, o Diabo é visto e responsabilizado pela Igreja Católica pelos atos de pedofilia que são praticados pelos padres e sacerdotes. O Diabo é, portanto, um excelente bode expiatório para os que não querem assumir os seus erros.
Os primeiros cristãos eram, originariamente, judeus e dentro do judaísmo havia correntes que acreditavam no demônio e outras que rejeitavam esse ponto de vista. Parte dos judeus que se tornaram cristãos colocaram o Diabo como parte de sua teologia, como o inimigo de Deus. Esses judeus convertidos acreditavam que Jesus era o verdadeiro Messias e culparam os demais judeus pela morte de seu Cristo. Os primeiros cristãos não entendiam como é que o Povo Escolhido por Deus poderia rejeitar Jesus e crucificá-lo.
Quando os primeiros evangelhos do Novo Testamento foram escritos, décadas depois da morte de Jesus, fica clara a tentativa dos escribas da história do Nazareno de inocentar Roma pela morte do seu Messias, como no caso do episódio de Pilatos, que lavou as suas mãos e não condenou Jesus, deixando isso para os judeus (Mateus, 27:24). O evangelho de Mateus é fortemente antissemita. Nos relatos de Mateus, Jesus teria dito que os judeus, até então os herdeiros naturais das promessas de Deus, não ganhariam o Reino dos Céus (Mt, 8-11:12).
Do ponto de vista teológico, a morte de Cristo foi interpretada como a salvação do homem do Pecado Original, mas nas mentes das pessoas, principalmente durante a Idade Média, a culpa foi dos Judeus. Esse raciocínio foi resultado da leitura dos próprios evangelhos do Novo Testamento, que sempre procuraram colocar os judeus como parceiros do demônio (João, 13:2 e 27), pois Judas nada mais é que um sinônimo de judeu, que mais tarde se transformou no traidor. Como o Diabo havia entrado no corpo de Judas (judeu), ele e os compatriotas foram considerados os responsáveis pela morte de Cristo e, por isso, deveriam ser punidos. Todos os judeus pagaram pelo crime, em uma espécie de culpa eterna pela morte de Jesus. Eis a razão do preconceito histórico contra os judeus e do antissemitismo.
A Figura do Diabo
Os anos se passaram e o Messias tão esperando não veio. O Império Romano caiu, a humanidade entrou no período denominado Idade Média, também conhecida pelos historiadores como Idade das Trevas, em virtude das guerras, pragas, fome, miséria e queda geral no padrão de vida da população européia, não só no aspecto econômico, mas também no social e cultural. Invasões de bárbaros e massacres de populações inteiras levavam o medo e a insegurança para todos. A própria sobrevivência do cristianismo como religião era duvidosa uma vez que nos primeiros três séculos depois da morte de Jesus os seguidores do Nazareno eram perseguidos e massacrados pelos romanos, que os acusavam de ateísmo porque se recusavam a honrar os deuses patronos de Roma, e assim ameaçavam o império.
Na religião cristã, os apóstolos já haviam morrido e uma grande variedade de seitas que tinham Jesus como seu deus, mas não a Igreja como guia da fé, proliferaram. As ameaças à instituição eram tratadas como heresias muitas vezes punidas com a morte.
O cristianismo que já havia se tornado a religião oficial do Império Romano no ano 312, durante o reinado de Constantino, agora era predominante e lutava para manter a sua unidade, não só de poder político, mas também de doutrina. Havia os ebionitas, que eram judeus-cristãos e pregavam que Jesus de Nazaré não veio abolir a Torah como prega a doutrina de Paulo. Eles afirmavam que tanto judeus como gentios convertidos deveriam seguir os mandamentos da Torah, o que levou a um choque com outras ramificações do Cristianismo e do Judaísmo.
Outra corrente doutrinária foi a criada pelo monge Marcião, que enfatizava a diferença entre a concepção do Deus do Antigo Testamento e o do Novo Testamento. Para Marcião, os dois deuses eram diferentes. Iahweh era o criador do mundo que conhecemos, mas ele era mau, pois havia imposto uma lei severa que ninguém cumprira. Esse deus não era a divindade suprema, embora assim se considerasse, mas acima dele havia outro poder, o de Deus, que havia enviado o seu filho para salvar a humanidade do pecado.
Existia ainda o movimento gnóstico, bastante popular no início do cristianismo. Os gnósticos acreditavam nos opostos: o bem e o mal; o mundo físico (mal) e o espiritual (bem). Foram profundamente influenciados pelo zoroastrismo e platonismo. O mundo material fora criado por um deus menor, o Demiurgo, responsável por todo o mal. Tempos depois, esse demiurgo foi transformado em demônio, em Satã, com os gnósticos lhe imputando a raiz de todos os males que recaiam sobre a Terra.
O quarto movimento de relevância nos primórdios do cristianismo foi o liderado pelo bispo de Alexandria (Egito) Arius, denominado arianismo. Para Arius, Jesus era subordinado a Deus, e não o próprio Deus. Segundo Arius só existe um Deus e Jesus é o seu filho e não o próprio. Cristo era inferior e limitado, não possuía o mesmo poder divino, situando-se entre o Pai e os homens. Não se confundia com nenhuma das naturezas por se constituir em um semideus, como os heróis gregos. Arius afirmava ainda que o Filho era diferente do Pai em substância.
Todas essas disputas ameaçavam a unidade da Igreja. Um dos pais da Igreja, Justino Mártir, ao se referir a doutrina de Marcião, escreveu: “com a ajuda dos demônios, ele fez com que muitos em todas as nações dissessem blasfêmias e negassem que Deus é o criador do Universo, além de afirmar que algum outro ser maior do que Ele realizou obras mais importantes.”[Joseph Campbell. As máscaras de Deus: mitologia ocidental, p.306]
As querelas só tiveram fim, oficialmente, com a realização do Concílio de Niceia (ano 325), convocado pelo imperador Constantino, que estabeleceu alguns dos cânones oficiais do cristianismo. As doutrinas divergentes foram declaradas heréticas e seus seguidores perseguidos. Quem pensasse de maneira diferente era expulso do seio da Igreja. Em alguns casos era executado.
Meio século depois de Constantino, o imperador romano do Ocidente Teodósio I decretou o cristianismo como única religião permitida, extinguindo todas as demais. O cristianismo - que antes era a religião pagã do império e os seus seguidores considerados ateus – reverteu o jogou. A adoração a qualquer outro deus era considerada ilegal. Deuses antigos passaram a ser vistos como associados ao Diabo, que não perdera, todavia, o seu poder de desviar a humanidade do caminho de Deus e do traçado pela Igreja de Roma, que ainda sofria ameaças externas, sempre atribuídas ao demônio, desta vez, na figura dos bárbaros pagãos e não convertidos. Desta feita, Santo Agostinho (354-430), havendo presenciado a devastação de Roma pelos bárbaros visigodos sob o comando de Alarico, escreveu A Cidade de Deus, um clássico da literatura Ocidental, no qual responde ao argumento de que, embora a Cidade do Homens (Roma) tivesse florescido por mais de mil anos sob a proteção dos seus próprios deuses, quando se voltou para Cristo, pereceu em virtude de seus pecados, mas a Cidade de Deus, a Igreja, o Corpo de Cristo, viveria por toda a eternidade. Santo Agostinho deixou de considerar o mal como uma abstração e começou a vê-lo como punição, sempre decorrente de más escolhas ou da opção pelo mal. O mal pode decorrer do próprio livre arbítrio. De acordo com Santo Agostinho, “Satã é o chefe dos anjos decaídos que passaram a ser demônios. Embora esses anjos também tenham recebido o dom do livre arbítrio, eles pecam por causa da imperfeição dos seus desejos, que são desconhecidos [Mas se Deus é onisciente, porque os desejos dos demônios lhes são desconhecidos? É uma contradição inexplicável. (Nota do autor)] por Deus, mas que têm a permissão dele para se manifestarem”[Peter Stanford, ob. cit., p.100], em virtude dos desígnios misteriosos da vontade Divina.
Na visão de Santo Agostinho, o Diabo quis ser igual a Deus, mas foi derrotado e, para vingar-se, tentou Adão e Eva e, por conseqüência, a humanidade. Mas Jesus livrou a humanidade de Satanás e do Pecado Original com a sua morte e enganou-o com a sua posterior ressurreição. Mas mesmo derrotado (e será que foi mesmo?), ele ainda permaneceria na Terra até o retorno de Jesus (e ao que parece, ainda vai ficar por muito tempo).
Todas as respostas e justificativas teológicas para a existência de um Satã ou de anjos caídos mais confundem do que esclarecem. As evidências são claras e o pensamento racional, lógico, mostra que não existe um ser responsável pelos males que atingem o homem. Diante de todos os fatos e provas históricas do desenvolvimento da ideia de um deus único e de seu adversário, não se pode concordar com retóricas filosóficas de justificativas sobrenaturais para a existência de tudo o que há de bom ou ruim no mundo. Infelizmente, esta não tem sido a posição da grande maioria das pessoas, que ainda veem nas razões ou desígnios divinos, as causas de tudo, utilizando-se de Deus ou do Diabo para se escusarem de suas obrigações e atos, ou mesmo para responsabilizarem terceiros, sob a alegação de que estão possuídos ou influenciados por espíritos malignos.
Depois que o cristianismo se consolidou como religião dominante na Europa, chegou o momento de sua expansão e, para isso, o Diabo teve papel fundamental, pois tudo o que não estivesse de acordo com o ponto de vista da Igreja Cristã seria considerado como obra de Satanás. Durante e após o papado de Gregório, o Grande (540-604), o cristianismo deu grandes investidas na tentativa de ampliar a quantidade de seus seguidores e, consequentemente, a sua influência, mas esbarrou na força das antigas crenças que as pessoas ainda tinham nos deuses pagãos, em especial na Bretanha - onde estão atualmente a Inglaterra, País de Gales e Escócia - Germânia – atual Alemanha – e nos Países Nórdicos, Dinamarca, Suécia, Noruega e Finlândia.
Mas os cristãos ainda não tinham a força necessária para impor a nova fé aos povos bárbaros. Embora muitos reis bárbaros tivessem se convertido ao cristianismo, outros ainda resistiam em abandonar as velhas crenças, bem como suas populações.
O Papa Gregório, bastante pragmático, estabeleceu estratégias para que o cristianismo fosse aceito pelos povos do Norte[Peter Stanford, ob. cit., p.109]. A primeira foi a coexistência e a tolerância com a demais religiões pagãs; a segunda foi a incorporação de rituais das demais religiões como se fossem cristãs, adaptando-os aos já existentes no calendário oficial da Igreja; e, uma vez estabelecido o cristianismo, instaurou-se a perseguição às religiões pagãs.
Durante grande parte do primeiro e segundo milênios, o cristianismo teve que conviver com a existência de velhas crenças e superstições. Na Irlanda, Bretanha, Germânia e Escandinávia, os cristãos tiveram que enfrentar os deuses Thor, Loki e Odin (Wotan ou Woden). Odin era o maior dos deuses germânicos, governante de Asgard e senhor da magia. Os germânicos viam nele o protótipo da bravura, da altivez e do valor, assim como da sabedoria; os escandinavos dos últimos séculos pagãos, os Vikings aventureiros, terror do ocidente cristão, foram os derradeiros a combater invocando o seu nome. Thor, filho de Odin, era um dos mais populares deuses do panteão dos bárbaros do Norte. Sua arma era um martelo chamado Mjolnir , com uma enorme cabeça e um cabo curto que nunca errava o alvo e sempre retornava às suas mãos.
Outra divindade muito cultuada era Loki, deus do fogo, da trapaça e da travessura. Utilizava suas artimanhas para ludibriar e, muitas vezes, ajudar os demais deuses, como fez com Thor, na sua luta contra os gigantes. As ações de Loki eram, muitas vezes, voltadas para uma causa justa, mas por suas características e seu lado destrutivo logo foi associado ao Diabo pelos cristãos que divulgavam a nova fé. Conceitos cristãos introduzidos mais tarde na Escandinávia acabaram por destacar apenas suas piores características. Loki tinha uma filha cujo trabalho era vigiar o reino subterrâneo dos mortos e pecadores. Seu nome era Hel, palavra que deu origem a hell, que significa inferno, em inglês.
A mitologia nórdica era bastante criativa e forte. Mesmo após a vitória dos cristãos, ainda havia adoradores de Thor e Odin em pleno século XV, todos exterminados pela Inquisição. A influência dos seus mitos permaneceu, por exemplo, nos nomes dos dias da semana na língua inglesa: Tuesday (terça-feira) é o dia de Tyr; Wednesday (quarta) é homenagem a Odin (Woden) e Thursday (quinta-feira) celebra Thor.
Depois do período de convivência, a Igreja passou para a etapa de incorporação dos símbolos e deuses pagãos como se fossem seus. Já fizera isso anteriormente, ao criar e incentivar o culto a Maria, mãe de Jesus, utilizando-se de diversas características da deusa Ísis, que era uma divindade bastante popular no Mediterrâneo. A fé nesta deusa egípcia era uma força dominante. Em Pompeia, as evidências arqueológicas revelam que ela desempenhava um papel importante. Em Roma, templos e obeliscos foram erguidos em sua homenagem. Na Grécia Antiga, os tradicionais centros de culto em Delos, Delfos e Elêusis foram retomados por seguidores de Ísis, e isto ocorreu no norte da Grécia e também em Atenas. Ísis – assim como a Virgem Maria - era conhecida como Rainha do Céu e Estrela do Mar, a Santa Mãe de Deus e era retratada com um bebê no colo, tal qual a figura de Maria e o menino Jesus. A iconografia de Maria foi retirada da de Ísis. Depois do ano 500, o culto a Ísis foi banido e muitos dos seus templos foram convertidos em igrejas dedicadas à Virgem Maria.[Para detalhes da incorporação pelo cristianismo de outras religiões e cultos, confira: The Secret Bible: Rivals of Jesus. USA: Morningstar Entertainment for National Geographic Channel, 2006 (47 min.)]
Também não se pode deixar de falar da mais famosa incorporação de um culto pagão pelo cristianismo. Trata-se da religião do deus sírio Mitra, o Sol Invictus dos romanos. O 25 de dezembro só foi adotado como data do Natal por volta de 350 d.C. Naquela época, ocorria em Roma a festa pagã do Sol Invictus, o Sol Invencível. Comemorado logo após o solstício de inverno – quando o percurso aparente do Sol ocupa sua posição mais baixa no firmamento -, o festival homenageava o reinício do deslocamento da trajetória solar para o alto do céu, de onde os raios da estrela voltavam a aquecer generosamente a Terra. O imperador Constantino era adepto fervoroso da religião, muito popular entre os soldados romanos e não se pode deixar de ver a influência do mitraísmo na adoção do dia 25 de dezembro como data do nascimento de Jesus.
A incorporação dos mitos nórdicos e celtas pelos cristãos foi similar ao que aconteceu com as religiões dos povos da bacia do Mediterrâneo e Oriente Próximo. Peter Stanford explica muito bem esse processo:
Os longos festivais, realizados pelas populações das aldeias em homenagem às divindades pagãs protetoras da abundância das colheitas, foram bastante usados pelos clérigos. Eles se apropriaram dessa ideia para introduzir a noção do santo patrono da comunidade, de modo que estes festivais pudessem celebrá-lo; porém, aos olhos dos habitantes das vilas, tais santos não passavam de mais um nome para espíritos que eles estavam acostumados a cultuar.[O Diabo, uma biografia, p.112.]
Em Luxemburgo, por exemplo, o culto de São Huberto era similar ao da deusa da caça Diana. O símbolo dele era um veado com uma cruz reluzente; o de Diana, uma corsa, a fêmea da espécie. O dia de São João - muito popular no Brasil, Espanha e regiões da Escandinávia - era celebrado pelos pagãos no mês de junho, no solstício de verão do hemisfério Norte, com festas antes das colheitas e simbolizava a vitória da luz sobre as trevas, com o ritual de acender fogueiras para iluminar a noite. A Igreja não teve dificuldades em assimilá-lo, pois divulgaria a idéia de Cristo como aquele que trouxe a luz ao mundo. Mas alguns hábitos dessa festa, como nadar ou dançar despidos, foram proibidos, pois eram considerados comportamentos mundanos, incentivados por Satanás.
A escolha de santos como padroeiros remonta à Antiguidade, mais precisamente ao Egito. Os exemplos são vários. Nas antigas Terras dos Faraós, por exemplo, havia Bastet, deusa do lar, do fogo e das grávidas; Bes, deus da música, dança, da família e protetor das mulheres grávidas; Geb, patrono da terra; Hathor, a protetora das mulheres, do amor e da música; Imhotep, patrono dos escribas, curador, sábio e mágico. No cristianismo existem: Cosme e Damião, padroeiros dos médicos e protetores dos gêmeos e das crianças; São Brás, protetor dos que sofrem de engasgos ou doenças de garganta; Santo Antônio, casamenteiro e padroeiro dos pobres; São Cristóvão, protetor dos viajantes e motoristas; São Francisco de Sales, padroeiro dos escritores; São Judas Tadeu, advogado das causas desesperadas. Os exemplos são tantos que dariam um livro.
Quando se lê sobre esse processo de assimilação, pode-se concluir que houve, de fato, a conversão do cristianismo ao paganismo do Ocidente, não o contrário.
Mas nem todos os deuses ou seitas pagãs foram assimilados ou aceitos pela Igreja. Monges e padres diziam aos cristãos que o Diabo habitava os templos pagãos antigos, numa tentativa de destruir e desmoralizar as antigas religiões. Veja, por exemplo, o que aconteceu com o culto a Pã, o deus grego dos bosques, dos campos, dos rebanhos e dos pastores. Ele era temido por todos aqueles que necessitavam atravessar as florestas à noite, pois as trevas e a solidão da travessia os predispunham a pavores súbitos, desprovidos de qualquer causa aparente e que eram atribuídos a Pã. Daí o nome pânico.[Wikipedia. Disponível em: Acesso em 17 de julho de 2010.] Ele era representado com orelhas, chifres e pernas de bode, igual às descrições do Diabo nos dias atuais. Seu culto foi proibido e sua imagem foi associada ao demônio. Muitos dos habitantes das regiões mais tardiamente cristianizadas da Europa também se recusavam a abandonar, de uma vez, todos os deuses que eles adoraram por séculos e seriam os responsáveis, conforme as suas crenças e superstições, pelas colheitas, chuvas, secas, tempestades e outros eventos naturais. Se os antigos ritos e deuses garantiram, até aquela época, comida e colheitas fartas, por que eles mudariam?
Mutatis mutandis, ocorreu com os habitantes da Europa do Norte, durante a Idade Média, o mesmo que acontecera séculos antes com os judeus, que celebravam e cultuavam os deuses cananeus Baal, El e Astarte, mas, em poucos anos, foram obrigados a abandonar a antiga religião e a abraçar a crença num deus único, representado por Iahweh.
Também foi difícil para os novos cristãos assimilarem a doutrina da Igreja e os seus ensinamentos abstratos e confusos, tais como o da Santíssima Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo em uma única pessoa, mas que também eram três diferentes) e o de um Deus sem rosto que era considerado onisciente, onipresente e onipotente, mas que permitia a existência do Mal. Este problema teológico foi a chave para que a Igreja desenvolvesse a crença de que o Diabo e os seus servos eram os responsáveis pela fome, guerras e doenças, como a Peste Negra, que dizimou até um quarto da população europeia. Só a crença em Jesus e a fé em Deus, dizia a Igreja, poderiam salvar a Europa, porque elas derrotariam Satã, o malfeitor e responsável pelas desgraças. Se não acreditassem em Jesus, Satanás venceria. A falta de fé, nessa visão, era a responsável por tudo de bom ou ruim que acontecia. Quem não tivesse fé ou fosse de outra religião estava ao lado de Satanás. Somente a fé poderia salvar a Europa da danação eterna. Desta feita, muçulmanos, a Igreja Ortodoxa de Constantinopla – que havia se separado do poder central de Roma – os cátaros, [O movimento dos cátaros ocorreu no sul da França e no norte da Itália do final do século XI até meados do séculos XIV. Foi considerado herético pela Igreja Católica porque que suas ideias tinham fortes paralelos com o gnosticismo, do início da Era Cristã. Os seus adeptos procuravam levar vidas simples e castas, desprovidos de quaisquer posses materiais. Eles buscavam afastar-se ao máximo do mundo, que consideravam corrupto] com a sua visão dualista do mundo, os protestantes e as mulheres foram os principais alvos da luta contra o Demônio.
O auge da influência maligna do Diabo sobre o mundo aconteceu durante a esquizofrenia coletiva da caça às bruxas que varreu a Europa nos séculos XV e XVI. De acordo com o pensamento da época, num conluio com Satã, as bruxas estariam planejando destruir a grande obra de Cristo: a Igreja. Essa histeria coletiva ocorreu em uma época na qual a Igreja Romana estava bastante ameaçada, em virtude da Reforma Protestante na Alemanha; do rompimento do rei Henrique VIII da Inglaterra com Roma; das guerras entre protestantes e católicos na França e muitos outros episódios. O poder dos papas e dos imperadores católicos – que se consideravam os legítimos representantes da vontade de Deus na Terra – estava ameaçado, assim como a perspectiva de vitória final do cristianismo sobre as forças do Mal. Para todos esses exemplos, o Diabo foi colocado como bode expiatório.
Todo esse período turbulento deu oportunidade à Igreja Romana para desferir o último golpe sobre as antigas crenças e religiões que se opunham ou fossem diferentes dos ensinamentos e dogmas oficiais, mas a luta de Roma contra a heresia e para desqualificar as antigas religiões só serviu para difundir e alimentar o imaginário popular sobre as práticas que os clérigos queriam proibir.
É verdade que a crença em bruxas e nos demais deuses praticamente desapareceu do mundo contemporâneo. Mesmo o Diabo não goza mais o prestígio e fama que já teve durante a Idade Média e a Idade Moderna, embora ele ainda não tenha desaparecido e continue a assombrar as mentes dos mais ingênuos e incautos; dos religiosos e evangélicos que ainda acreditam na vinda de Jesus e na Batalha do Armagedom; nos que acreditam que a Terra é palco de uma luta contínua entre o Bem – muitas vezes representado pelos cristãos, noutros, conforme o ponto de vista, pelos muçulmanos – e o Mal; ou dos satanistas, que se dizem herdeiros das seitas pagãs e proclamam tudo de maneira oposta ao que dizem os cristãos, mas são, na realidade, parodias tragicômicas do cristianismo e religiões antigas.
(Élvio Gusmão Santos - As Histórias da Bíblia e os Mitos da Antiguidade)