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O grande enigma (2)

por Thynus, em 23.02.16

1- Ao longo da história, os homens, face ao enigma do universo, acreditaram numa Presença divina pessoal e transcendente, invocável, da qual esperaram a libertação para além da morte. Essa crença foi universal e impunha-se como quase evidente até do ponto de vista social. O número de ateus confessos era reduzido. Foi a partir da modernidade que a ideia de Deus se tornou problemática e o ateísmo, face ao teísmo dogmático, se afirmou a si próprio também dogmaticamente, num frente-a-frente de dogmatismos.

2- Aspecto essencial da obra já aqui citada no sábado, do jesuíta Javier Monserrat, O grande enigma. Ateus e crentes face à incerteza do Além, é afirmar uma "mudança crucial" na história do pensamento, concretamente nos últimos dois terços do século XX. Com o nascimento da nova ciência, da nova física, estamos colocados na consciência de enigma e de incerteza e, por isso, numa profunda inquietação quanto às perguntas e respostas pela ultimidade. Pessoalmente, diria que esta é a ferida profunda da consciência europeia: de modo mais ou menos consciente, mais ou menos explícito, vive-se com a consciência da possibilidade do niilismo e do vazio de sentido último. O dogmatismo, tanto teísta como ateu, dava segurança. O teísmo crítico e o ateísmo crítico, pelo contrário, de acordo com a nova consciência do enigma do universo e da incerteza metafísica, sabem que os seus argumentos "são hipotéticos, não impositivos, e devem ser avaliados pela razão de cada homem até chegar a uma decisão pessoal livre". Deus não se impõe, não se manifesta com evidência, e o crente sabe que Deus poderia não existir e o ateu sabe que Deus poderia existir.

3- Na modernidade crítica, "teísmo e ateísmo são possíveis e podem ser construídos pela razão de forma legítima e honesta moralmente. Aliás, é o que vemos socialmente": há crentes e ateus honestos, que sabem o que isso quer dizer e se respeitam mutuamente, já que o carácter enigmático do universo está aberto às duas alternativas.

Segundo o modelo cosmológico padrão, vivemos num universo que se produziu no big bang e terminará numa morte energética futura: "um universo que nasce a partir de um "fundo" desconhecido no qual será reabsorvido". Trata-se, pois, de um universo que, existindo num tempo finito, dificilmente pode ter a sua suficiência em si mesmo, pondo assim a pergunta: qual é o seu fundamento último e absoluto? Como entender esse fundo ou "mar de energia", "essa espécie de meta-realidade ou dimensão metafísica à qual este nosso universo parece estar referido, segundo as evidências empíricas?" Pode-se argumentar que, a partir da finitude e das propriedades antrópicas deste universo, a realidade última, raiz e fundamento último em que assenta, é "uma Inteligência Pessoal capaz de criá-lo". O ateísmo seria outra conjectura metafísica, também filosófica: no pressuposto das teorias especulativas de multiversos ou múltiplos universos e de supercordas, essa meta-realidade apresentar-se-ia como "uma realidade impessoal na qual se produziria de modo cego o nosso universo".

4- Teísmo e ateísmo são confrontados com o silêncio de Deus. Este silêncio manifesta-se num duplo plano: no plano cósmico, porque Deus não se revela de modo evidente enquanto criador do universo. O outro é o silêncio de Deus "perante o drama da história, devido ao sofrimento humano pessoal e colectivo e ao mal natural cego e à perversidade humana".

Para o ateísmo, o silêncio de Deus é "prova" da sua inexistência, pois há incompatibilidade entre um Deus real e o seu silêncio, sobretudo quando se pensa no calvário do mundo. Como é que um Deus criador, infinitamente bom e poderoso, cala, quando, perante o sofrimento atroz, insuportável, concretamente dos inocentes, se lhe pede ajuda, gritando, suplicando? O silêncio de Deus faz que o ateísmo seja como que "um ajuste de contas" com Deus, sobretudo quando se pensa na malvadez dos responsáveis religiosos. Se Deus existe, é como se não quisesse que acreditemos nele. Para o crente, não é menor o desconcerto, ao ver-se confrontado com a dor alucinante, o abandono, o fracasso, a traição, a guerra, um tsunami, a angústia da vida, o afundamento na morte...

5- "Tanto a religiosidade humana como o ateísmo são sempre rácio-emocionais", embora no juízo sobre Deus predomine a força dos impulsos emocionais, da esperança e do sentido. Afinal, a fé é um combate, e a razão e a emoção podem manter o homem aberto à esperança da existência de um Deus que quer salvar, "acreditando na existência de um Deus oculto e libertador, por cima do seu silêncio". É possível dar a Deus um voto livre e pessoal de confiança, voto que mostra a sua razoabilidade no próprio acto de confiar. "Não tem sentido viver sem sentido", mas, ousando entregar-se confiadamente a Deus pela fé, tudo aparece como mais razoável, com luz, com sentido, sentido final precisamente em Deus, o Deus oculto e salvador.

 


publicado às 13:19


O grande enigma (1)

por Thynus, em 23.02.16

É possível que Deus exista, mas também pode não existir. Ninguém pode dizer que sabe que Deus existe, mas também ninguém pode dizer que sabe que Deus não existe. Ninguém sabe se na morte encontramos a vida na sua plenitude em Deus ou se, pelo contrário, para cada pessoa tudo acaba na morte. Este é o grande enigma da vida de cada homem, de cada mulher. É o enigma da verdade metafísica última do universo: Deus como fundamento último ou um puro mundo sem Deus? Questão decisiva, no sentido pleno da palavra: que decide, em última análise, a existência de cada um. Questão essencial, porque, com Deus, dá-se a esperança da vida plena para lá da morte; num puro mundo sem Deus, a existência desemboca na aniquilação total enquanto pessoa. O ser humano é sempre confrontado com a eternidade: a eternidade da plenitude em Deus ou a eternidade do nada.

É com esta incerteza metafísica, num mundo enigmático, que se confronta, numa obra notável, acabada de publicar - El Gran Enigma: Ateos y Creyentes ante la Incertidumbre del más Allá ("O grande enigma. Ateus e crentes perante a incerteza do Além) -, o jesuíta Javier Monserrat, neurocientista, filósofo e teólogo.

1. Que todo o ser humano deseja e quer é viver. Pela sua própria constituição, é desejo de vida, vida plena, de tal modo que põe a questão da esperança para lá da morte. Vive, tentando realizar no mundo as suas possibilidades. E depara-se com o enigma do universo, ao aperceber-se de que, para lá da "aparência", do que se mostra do mundo onde decorre a sua vida, há um fundo abismal, metafísico, que o leva a perguntar pela sua verdade última. Mas precisamente essa verdade última do universo não é evidente, patente, nem para os sentidos nem para a razão, o que constitui fonte de incerteza e, consequentemente, de insegurança e inquietação metafísica. O universo apresenta-se como tendo um fundo metafísico, que está para lá da experiência física imediata tal como o homem a pode atingir. Mas precisamente esse fundo metafísico constitui o grande enigma: o que é verdadeiramente? "O que é o fundo das coisas? O que é que a imensidão do espaço-tempo contém? Qual é a natureza de uma matéria insondável na sua profundidade abissal?"

2. Na história da humanidade, encontramos desde sempre a ideia religiosa: o universo, desde as suas dimensões metafísicas desconhecidas, está dominado por um Ser pessoal, ou Seres pessoais, a que se podia recorrer e que poderia salvar para lá da morte. A construção e vivência das ideias religiosas, com Deus e a referência a um para lá da morte, acompanham a humanidade desde a pré-história. Com as grandes religiões, "consumou-se pouco a pouco, e de diversos modos, a introdução do metafísico na vida humana." A referência explícita ao metafísico entrou na história através das construções religiosas. E embora nunca ninguém tenha visto Deus, "o conteúdo das crenças religiosas e a sua ideia do divino chegaram a aceitar-se como algo quase evidente, que ninguém podia pôr em dúvida sem submeter-se à rejeição social". As sociedades entraram num dogmatismo teísta: a verdade religiosa era inquestionável, assegurada pela razão, as emoções, os interesses vitais, a tradição, a coesão social.

O próprio cristianismo, dentro dos pressupostos filosóficos e sociopolíticos do universo greco-romano, interpretou-se dogmaticamente. O paradigma greco-romano impôs-se como teocêntrico - "a razão conhecia com certeza absoluta a existência de Deus e a vida humana só podia ter Deus como centro essencial de referência, isto é, não era possível uma ideia do homem sem Deus" - e teocrático - "Deus era o único ponto de referência possível para organizar a sociedade civil e entender a origem do princípio de autoridade: na lei natural divina ou na lei positiva de Deus pela revelação".

3. Mesmo assim, houve sempre seres humanos que desconfiaram desta convicção. Mas era muito difícil a exposição de posições contrárias, pois contradizia o dogmatismo dominante, que reprimia os dissidentes.

Foi a partir dos séculos XV, XVI e XVII que teve início o movimento cultural da modernidade, sendo ele a tornar possível que "pela primeira vez se formulasse uma alternativa rigorosa ao pensamento teísta. A possibilidade de entender o universo sem Deus e, por conseguinte, viver uma vida individual e social sem Deus, na imanência do mundo, adquiriu carta de cidadania".

4. Depois, deu-se o enfrentamento de dois dogmatismos: o dogmatismo religioso e o dogmatismo ateu. Nestas condições de confronto, não era possível a mútua compreensão. Mas no século XX, com a nova ciência, operou-se uma mudança crucial, que obrigou a passar da modernidade dogmática à modernidade crítica, e o enigma do universo e a incerteza metafísica abriram ao teísmo e ao ateísmo críticos: é possível que Deus exista e é possível um puro mundo sem Deus. Com razões.

 


publicado às 13:17


Viver

por Thynus, em 23.02.16

Numa recente viagem à Índia, a um dado momento, no meio daquele trânsito absurdamente caótico e ensurdecedor, quando se fecha os olhos para não ver o que parece iminente: um choque em cadeia de uma infinidade de carros, motos, motoretas, bicicletas, riquexós e quejandos, pessoas em multidão a pé, alguém perguntou: "O que é que toda esta gente anda a fazer?" Resposta pronta e sábia de um professor ilustre: "Andam a viver." É isso: a viver. O que é que andamos a fazer? Tão simples como isto: a viver. Melhor ou pior, material, espiritual e moralmente falando. Todos, a viver.

E são tantas as vezes em que se não dá por isso: o milagre que é viver! Assim, numa sociedade na qual o perigo maior é a alienação - viver no fora de si -, quando a política se tornou um espectáculo indecoroso, quando Deus foi substituído pelo Dinheiro e o mundo se tornou globalmente perigoso e ameaçador, o jesuíta Juan Masiá, que, durante trinta anos, ensinou Filosofia, um semestre em Tóquio e outro em Madrid, vem com um belo livro, precisamente com o título: Vivir. Espiritualidad en pequeñas dosis. "Deixo-me acariciar pela brisa, saboreio a experiência de estar vivo, sentir palpitar a minha vida. E penso: viver, que maravilha e que enigma! Paro em silêncio a saborear esta vivência. Estou vivo, mas a minha vida supera-me: não é só minha nem a controlo. Viver é ser vivificado pela Vida que nos faz viver." A Vida vive-te, vive na Vida!

E aí estão três tarefas para a espiritualidade: dar-se conta do viver; agradecer por a Vida nos fazer viver, nos vivificar: vivemos graças à Fonte da Vida; vivificarmo-nos, darmos vida uns aos outros, na compaixão e na ajuda mútua para nos libertarmos. Lá está o poema zen: "O que é o mar? O que permite o peixe nadar. O que é o ar? O que permite o pássaro voar. O que é o Nada e o Vazio? A Vida que te faz viver." "Vejo a ervita entre as gretas do pavimento. Donde lhe virá a força para abrir passagem entre o asfalto?" "Palpo aqui uma Presença latente/Não sei quem é. /Mas brotam lágrimas de agradecimento." Então, o que é morrer senão sair para dentro da Vida verdadeira, definitiva e eterna: "vida no seio da Vida da vida"?

No meio do rebuliço estonteante, é decisiva a pausa e o silêncio. Chama-se cultura da pausa à tradição oriental de dar importância aos silêncios numa conversa, às margens numa folha escrita ou num quadro, aos intervalos entre as palavras, aos vazios nas letras, aos espaços livres na arquitectura, ao não dito na mensagem, à receptividade na contemplação. Parar para ouvir o silêncio e contemplar: em vez de olhares para ti e olhar para mim, deixemo-nos olhar ambos pela "Realidade-Assim-Sempre-Presente, cuja aura comum nos envolve". Sai de ti, para te encontrares no Todo. Deixa o eu superficial, transcende, descendo até ao eu profundo e ao "Assim-Sempre-Presente", que se manifesta. Sem pausas de silêncio, como poderíamos ouvir uma mensagem ou uma sinfonia? Sem intervalos, margens e vazios nas letras e entre as frases, como poderíamos ler e entender? E verdadeiramente viver?

O que é a liberdade? "Agir de acordo com o melhor de si mesmo." Mas "eu não sou eu. O meu autêntico eu é uno com tudo. Ser eu é não ser. Ser eu de verdade é ser-me no Todo", na consciência da inter-relação profunda de tudo com tudo. Perguntou ao jesuíta o monge budista: "Em que é que a sua religião e a nossa se parecem?" E respondeu: "Vós falais do amor de Deus e nós da compaixão do Buda. Mas nem vós nem nós praticamos. É nisso que mais nos parecemos." É essencial a lucidez da visão sem engano: sabedoria e solidariedade, contemplação e compaixão, lucidez cordial e cordialidade lúcida, sem tensão nem preguiça.

E como se reza? "Crer, viver e conviver" era o lema de um encontro de meditação e espiritualidade inter-religiosa, sendo um terço dos participantes budistas, a maioria sem filiação religiosa e uma minoria católicos. E ali se elaborou, com todos de acordo, colocando em duas colunas o "Pai Nosso" cristão e uma paráfrase do partilhar a espiritualidade inter-religiosa, a "Oração à Vida, a partir da vida": "Fonte da Vida, que estás na vida, que estás na minha vida, que estás em toda a parte, vivificando tudo. Que nos demos conta de que o Reinado da Vida vem e o construamos, vivificando-nos, dando vida uns aos outros e em tudo dando um sim à Vida. Que recebamos força de viver, fortaleza de corpo e espírito com pão de vida e esperança. Que nos capacitemos para conviver em reconciliação, recebendo e dando perdão, e para conviver com as pessoas mais desfavorecidas, com quem é diferente e com quem nos mostra inimizade. Que sejamos libertos de todo o mal: do mal no nosso interior e do mal que vulnera as relações humanas. Que dê fruto o trabalho pela libertação do mal social." Jesus ensinou: "Quando rezardes, dizei: Obrigado, Abbá, Pai e Mãe nossa. Dá-nos o pão do futuro no presente. Reconcilia-nos e livra-nos do mal."

 


publicado às 13:16


Sine Diabolo nullus Dominus

por Thynus, em 20.02.16
As origens de Satã
Sem o Diabo não há Deus. Esta é a tradução do título deste capítulo e serve para ilustrar a importância que a crença no Príncipe das Trevas tem para a manutenção da Igreja, da religião e do temor que o homem ainda sente daquilo que foi por ele denominado de sobrenatural. Muitos creem que se não houvesse a figura de Satã, a maldade humana ficaria incontrolável, pois só o medo de ser punido com a eterna danação da alma no inferno serve como obstáculo à pratica da maldade. O Diabo presta um duplo serviço à Igreja (o termo é aqui usado como qualquer forma de instituição religiosa organizada em torno da crença de um deus e seus oponentes malévolos). Ele não é apenas um adversário temido, mas também é um forte instrumento de controle para manter os crentes obedientes e fieis aos ensinamentos de Cristo, mesmo quando movimentos externos – ou internos, como nos casos de pedofilia praticados pelos padres católicos – ameaçam os pilares da fé. Mas o Diabo dos tempos modernos – cuja concepção atual data dos primórdios do cristianismo – não guarda relação com os espíritos malignos da antiguidade e da pré-história. A visão de espíritos maus vagando pela terra ou possuindo o corpo humano é bastante antiga. Desde a pré-história, xamãs e feiticeiros diziam ser o receptáculo de deuses, que representavam tanto o bem quanto o mal.
Com o cristianismo e, em especial, a Inquisição, um personagem ganhou fama universal como o responsável pelos males que afligem a humanidade. O Diabo entrou em cena nos livros, teatros, nas igrejas, nas camas, mentes e corpos das pessoas, notadamente das mulheres, acusadas, julgadas e condenadas por serem as preferidas dos demônios que possuíam os seus corpos e seduziam os homens, levando-os à ruína. Era o período da caça às bruxas, consideradas as agentes de Satanás e da luxúria. Em 1486, o Papa Paulo II decretou que a tortura era aceitável nos casos de bruxaria e declarou que a bruxas eram as concubinas do Diabo e estavam em conluio com Satã. O Malleus Malleficarum (O martelo das feiticeiras), uma espécie de manual com métodos de interrogatório e tortura, foi escrito a fim de identificar as bruxas e arrancar confissões de que elas mantinham relações sexuais com o Príncipe das Trevas. Mais de 40 mil pessoas foram queimadas na Europa, vítimas de julgamentos ilegais e abusivos.
A Inquisição era uma forma de procedimento criminal elaborado para a apuração de delitos penais, mas foi largamente utilizado como um procedimento de “descoberta” de bruxas e feiticeiras. O juiz não poderia acusar uma pessoa a menos que houvesse uma causa provável de que ele ou ela houvesse praticado um crime. Se o réu negasse a acusação, o juiz poderia se utilizar dos inquisidores para extrair confissões, normalmente, mediante tortura.
O julgamento de Joana D´Arc é um exemplo clássico dos abusos do sistema inquisitivo. Joana, heroína francesa da Guerra dos Cem Anos entre a França e a Inglaterra, foi interrogada mediante tortura e as acusações de crimes cometidos instigados pelo Diabo foram fabricadas a partir de suas respostas.[Henry A. Kelly. Satã: uma biografia. São Paulo: Globo, 2008, p. 308] Eis um trecho do relatório final do Tribunal Eclesiástico que condenou Joana D’Arc à fogueira, em maio de 1431:
Por esses motivos,[...] declaramos que você é uma herege reincidente e [...], como aliada de Satã, infectada com a lepra da heresia, deve ser abandonada por nós e separada da igreja, para que não contamine outros membros.[BBC História: Cristianismo. Ano 1, nº 5. São Paulo: Tríada, p.47]
O Diabo teve o seu auge na Europa dos séculos XV ao XVI. Ele era visto em todos os lugares. Até mesmo o iniciador da Reforma Protestante, Martinho Lutero, disse ter sido tentado pelo Demo. A Peste Negra, guerras, doenças e mortes dizimavam a população e a fé era considerada a única arma contra o mal.
Mas de onde veio a idéia de um ser responsável pelas coisas ruins? Quem criou o Diabo? Ao contrário do que se imagina, principalmente entre os cristãos, a figura do Diabo ou Satã como responsável pela maldade do mundo não é um conceito unânime ou fato livre de controvérsias ao longo da História do homem e das religiões.
Na Antiguidade, as pessoas atribuíam tudo o que ocorria de bom ou ruim aos deuses, não havendo uma divindade específica que fosse a raiz de todos os males. A bondade e a maldade residiam em um mesmo ente, que costumava reunir ambas as características. Assim era no Egito, na Mesopotâmia, na Grécia e em Israel, só para citar alguns lugares.
Os israelitas, por exemplo, sempre adoraram um panteão de deuses e deusas antes de cultuar exclusivamente Iahweh. E essas divindades eram as responsáveis tanto pelas colheitas e chuvas, quanto pelas enchentes e fome. O Antigo Testamento não trazia a figura do Diabo ou de Satanás. Como nas demais culturas da Antiguidade, Iahweh era o responsável por tudo de bom ou ruim que acontecia, isso não somente em relação aos judeus, mas também no caso dos seus inimigos. As vitórias e derrotas dos judeus eram vistas como sendo obras do seu deus. Em Isaías, 45:7, é dito que: “Eu formo a luz e crio as trevas, asseguro o bem-estar e crio a desgraça: sim, eu, Iahweh, faço tudo isso.”
No Antigo Testamento a figura de Satã é desnecessária, afinal Iahweh é o responsável pelo mal. O mal é conseqüência da desobediência do homem aos comandos divinos. O mal é um castigo de Deus, logo não há necessidade de Satã.
Quando os profetas de Israel passaram a declarar que Iahweh era o único deus e os judeus foram exilados na Babilônia, alguns problemas teológicos surgiram: como explicar a origem do mal? Por que Deus permite que o mal exista? Existe outro ser que rivalize com Deus e seja o causador do sofrimento na Terra?
A resposta dos antigos judeus era que os suplícios pelos quais passaram, em especial o cativeiro na Babilônia, era parte do plano de Deus para puni-los pelas deslealdades e falta de fé. A conclusão encontra respaldo no perfil de Iahweh, que exigia fidelidade do seu povo em troca de grandes demonstrações de poder, assim como os castigava em virtude da idolatria ou desobediência. Mas o trauma do exílio e a destruição do Templo por Nabucodonosor fez que parte dos judeus duvidasse da força de Iahweh. Eles também não podiam aceitar que um deus que os havia escolhido, os submetesse a tantos sofrimentos. O contato com outras crenças e doutrinas, especialmente o zoroastrismo, que trouxe o conceito de existência de um ser divino responsável pelo bem, o Deus da Verdade, o Senhor da Vida, Sabedoria e Luz – Ahura Mazda - e outro pelo mal – Angra Mainyu, influiu na criação de uma figura maligna Essa nova concepção dualista do bem e do mal foi transmitida aos judeus pelo zoroastrismo, que explicava esse antagonismo de uma forma inteiramente nova. O zoroastrismo prega que o mal é uma coisa imperfeita e não pode vir de Deus, que é perfeito, bom. Desta feita, surgiu a proposição de um espírito mal, responsável pelo que acontece de ruim no mundo.
O símbolo do deus bom é o fogo e Zoroastro incentivava os seus seguidores a procurar o bem. Ele acreditava que, no futuro, Ahura Mazda triunfaria após a batalha contra Angra Mainyu e recompensaria os seus fieis ressuscitando-os dos mortos e guiando-os para uma nova era de imortalidade e luz. Pode-se ver no zoroastrismo uma espécie de monoteísmo, pois no final, a deus bom prevalecerá. Parte dos judeus e, mais tarde os cristãos, incorporaram essa concepção de batalha cósmica entre o bem e o mal (armagedom) e de ressurreição. Em um dos pergaminhos dos conhecidos Evangelhos do Mar Morto, descobertos na região de Qumran, em 1947, essa doutrina se mostra bastante presente. Nela, Deus é o criador de dois espíritos: o da Luz e o das Trevas. Os que são conduzidos e seguem o espírito da verdade são os filhos do Príncipe das Luzes; seus inimigos são os filhos do Príncipe das Trevas. O zoroastrismo era a religião dominante na Pérsia, região controlada pelos babilônios, e lá era um dos locais onde mais existiam judeus e muitos lá permaneceram, mesmo após o exílio.[Jonathan Hill. História do Cristianismo, p.43.]
A influência do zoroastrismo está presente de maneira profunda no cristianismo. Se Ahura Mazda era o Deus da Verdade, o Senhor da Vida, Sabedoria e Luz, no Evangelho de João, um dos quatro oficiais do Novo Testamento, Jesus disse: “Eu sou a luz do mundo” (Jo, 9:5). No mesmo Evangelho, ele ainda afirma que: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo, 14:6). Vê-se a semelhança entre as qualidades de Jesus e a do deus de Zoroastro. O dualismo, isto é, a luta entre o bem e o mal, é bastante presente no Evangelho de São João.
Entre os séculos VI e IV a.C e IV e I a.C, períodos de hegemonia persa e grega respectivamente, tais culturas influenciaram profundamente o judaísmo e consequentemente o cristianismo. Naquela época, teria ocorrido uma ruptura na personalidade de Deus, o qual se tornou exclusivamente benigno, deixando de agir de forma maléfica. No que se refere à cultura hebraica, houve uma divisão, um deslocamento da visão monista para uma visão dualista. No dualismo dos persas havia um Deus benevolente e um malévolo, sendo que o mal e o bem eram realidades diferentes de origens distintas.
Na doutrina zoroastrista, duas forças contrárias formaram e sustentam o mundo Ahura Mazda e Angra Mainyu, o Demônio da Mentira. Essas duas forças são contemporâneas e existiram desde o início, mas não são eternas porque esse Demônio será destruído no fim dos tempos, tal qual Satã será derrotado, conforme consta na Bíblia, na batalha apocalíptica do Armagedom. Mais uma semelhança entre o cristianismo e uma religião pagã.
Para ajudá-lo na sua empreitada contra o mal, Ahura Mazda criou os seus ajudantes, os arcanjos Boa Inteligência e Ordem Justa, apoiados por Perfeita Soberania, Piedade Divina, Excelência e Imortalidade, cujos opostos são Inteligência Malévola, Falsa Aparência, Covardia, Hipocrisia, Miséria e Extinção. Todos esses anjos foram, mais tarde, sistematizados em ordens e hierarquias, tais quais as ordens cristãs de anjos e demônios[Joseph Campbell. As máscaras de Deus: mitologia ocidental, p., 164] (serafins, querubins e os conhecidos Gabriel, Miguel e Rafael).
Esse conceito dualista não encontrou uma aceitação ampla entre os judeus, mas gozou de prestígio entre os fariseus – ramo do judaísmo que acreditava na ressurreição dos mortos, em anjos e demônios, no julgamento futuro e na vinda do rei Messias - e uma seita mais radical denominada essênios. A semente da ideia de que existia um deus bom e outro espírito (ou deus) mal fora plantada. Ao longo dos séculos seguintes, ela ganhou força, opondo o cristianismo ao judaísmo mais tradicional, que continuou acreditando que Iahweh era o único deus, não havendo nenhum Diabo ou espírito que pudesse rivalizar com ele em poder. O mal, na visão judaica, decorre do próprio homem e seus atos.
Originalmente, o judaísmo não acreditava em Satã ou no inferno, conforme a atual visão cristã do tema. Para os judeus primitivos, não havia perspectiva de julgamento final ou possibilidade de salvação da alma por meio de algum ritual ou graça. Após a morte, os mortos iriam para o sheol, um lugar de trevas e escuridão, de sede e pó, situado nas profundezas da terra. O sheol não era um lugar de punição, mas apenas o de destino “das almas, boas e ruins, que após a morte continuam a existir em uma espécie de estado comatoso semivivo.”[Henry A. Kelly. Satã: uma biografia, p. 272.]
O Talmude, segundo livro sagrado do judaísmo, compilado ao redor dos séculos I e II da Era Cristã, diz que as almas justas e as pecadoras descem para um abismo denominado Geena e lá ficam por 12 meses ou mais, para expiar os seus pecados em um rio de fogo. Os pecadores incorrigíveis são condenados e lá permanecem eternamente. O Geena, mais do que um lugar fictício, era um penhasco próximo de Jerusalém onde crianças cananeias eram sacrificadas.[Anne Logeay. O abismo dos malditos. In: História Viva, Especial Céu e Inferno n.º 25, p.42]
Todos os povos da Idade Antiga tinham os lugares para onde os mortos eram enviados. Os egípcios – que viviam a vida terrena eternamente preocupados com o além-túmulo – tinham o Tuat, mundo subterrâneo cuja descrição no Livro dos Mortos era similar ao inferno dos cristãos e para onde os defuntos iam, carregados por uma barca. Os gregos acreditavam que os seus mortos eram remetidos para o Tártaro, que recebia as almas dos criminosos, que sofriam a punição das faltas cometidas na Terra. Para chegar ao Tártaro, governado pelo deus Hades, as almas também cruzavam um rio, o Estige, levadas pelo barqueiro Caronte. Os puros e pios iam para os Campos Elísios, lugar luminoso e de paisagens encantadoras, que acolhia as almas dos justos.
Embora parte dos judeus rejeitasse a ideia de um deus ou ser maligno e de vida após a morte, nos moldes do que cristãos e outras religiões ainda acreditam, esses conceitos começaram a surgir de maneira mais evidente no século II a.C. e nos livros escritos após o exílio. O dualismo tornou-se mais presente na fé israelense, cujos sacerdotes, por motivos evidentes, hesitavam atribuir a Iahweh a origem do mal e buscaram um personagem para desempenhar os dois papéis: evitar a atribuição do mal a Javé e, simultaneamente, confirmar o controle deste último sobre a história do universo.[Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Diabo> Acesso em 09 de julho de 2010] Este ator foi Satã ou Satanás.
A primeira aparição de Satã no Antigo Testamento deu-se no livro de Jó. “No dia em que os Filhos de Deus vieram se apresentar a Iahweh, entre eles veio também Satã” (Jó, 1:6). Então Iahweh perguntou a Satã: “De onde vens?”“Venho de dar uma volta pela terra, andando a esmo”, respondeu Satã. Vê-se, no texto, que Satã já era conhecido de Deus e já andava pelo mundo. A visão inicial de Satã trazida pela Bíblia não é, inicialmente, a de grande inimigo de Deus (Iahweh), ao contrário do que faz crer o senso comum. Muitas vezes, esses anjos (e Satã era um deles) executavam funções comandadas por Iahweh. Numa leitura atenta do livro de Jó percebe-se que Satã não é nada mais que um executor das ordens do seu chefe. Embora ele sugira os castigos ou provas para que Iahweh teste a fé de Jó, é o deus de Israel quem dá a última palavra, ou seja, aceita e ordena a realização do tormento. Eis um trecho exemplificativo:
Iaweh disse a Satã: “Reparaste no meu servo Jó? Na terra não há outro igual: é um homem íntegro e reto, que teme a Deus e se afasta do mal. Ele persevera em sua integridade, e foi por nada que me instigaste contra ele para aniquilá-lo.” Satã respondeu a Iahweh e disse: “Pele após pele! Para salvar a vida, o homem dá tudo o que possui. Mas estende a mão, fere-o na carne e nos ossos; eu te garanto que te lançará maldições em rosto.” “Seja!”, disse Iahweh a Satã, “ele está em teu poder, mas poupa-lhe a vida.” (Jó, 2:3-6)
Esse trecho supracitado é surpreendente por vários motivos. O primeiro é que Deus se deixa influenciar por um subalterno que, em tese, é-lhe inferior (“e foi por nada que me instigaste contra ele...”). O segundo é que Satã não faz o mal sem a aprovação de Iahweh. O anjo caído é apenas um executor das ordens do seu mestre.[Henry A. Kelly. Satã: uma biografia, p. 36] A afirmativa pode ser polêmica aos olhos mais conservadores e daqueles que se acostumaram a vê-lo como o Mestre do Mal, mas a sua primeira aparição na Bíblia não mostra isso.
Outra função exercida por Satã era a de uma espécie de promotor ou acusador. Em hebreu, “satã” significa “adversário” ou “acusador”. O profeta Zacarias (Zc 3:1) disse ter visto Josué, o sumo sacerdote, “de pé diante do Anjo do Senhor, e o Satã estava à sua direita para acusá-lo.” No livro de Zacarias, Satã assume outra função. O profeta tem um sonho no qual conversa com um anjo de Iahweh e pergunta ao enviado de Deus quem eram os homens que ele havia visto cavalgando. O anjo responde que “estes são os que Iahweh enviou para percorrerem a terra e patrulhá-la” (Zc 1:10-11).
Noutro livro, desta vez o de Daniel, Nabucodonosor, rei da Babilônia, também sonha com um anjo, “um Vigilante, um santo que descia do céu e que bradava com voz possante” (Daniel, 4:10). Aqui surge a visão dos anjos como vigilantes (anjos da guarda), patrulheiros da terra. Vê-se, portanto, que as funções dos anjos, membros da corte celestial de Iahweh, eram as de promotor, mensageiros, executores das ordens de Deus e de patrulheiros da Terra e dos Céus.
Posteriormente, esses anjos patrulheiros se rebelam e abandonam pecaminosamente as suas funções na Terra e passam a perseguir a luxúria e o sexo, tendo relações sexuais com as mulheres terrestres gerando os gigantes. Essa história é citada no capítulo 6, do Gênesis e contada em detalhes no livro de Henoc, que não faz parte do Antigo Testamento, mas consta da tradição literária e religiosa do judaísmo, tendo sido escrito no século II a.C..
A história dos anjos caídos tornou-se popular. Satanás - que fora criado como um anjo - quis se igualar ao seu criador. Como punição pelo orgulho, ele foi atirado às profundezas e jurou vingança contra Deus e a humanidade. Os demais anjos guardiões (200, segundo o livro de Henoc) também foram expulsos da corte celestial porque pecaram ao fazerem sexo com as mulheres.
A concepção dualista de uma batalha apocalíptica entre o Bem e o Mal, personificada entre Deus (Iahweh) e Satanás, foi ganhando adeptos entre os judeus, notadamente dentro de uma seita radical judaica denominada de essênios, principalmente depois de a Palestina (nome pelo qual os antigos reinos de Judá e Israel passaram conhecidos) ser invadida por Roma. Vários judeus, mais uma vez, passaram a questionar a força de Iahweh, pois Israel fora, novamente, ocupada por um povo estrangeiro. Mas os essênios rejeitaram a ideia de que Iahweh seria o responsável por essa nova infelicidade que acometia o Povo Escolhido. Os essênios concluíram que os infortúnios se deviam aos fatos de que o povo judeu não mais seguia o livro da Lei e de que havia se afastado de Deus ao se juntarem aos gentios, incorporando os seus costumes e religião, principalmente os dos gregos. Como Deus era bom, ele não poderia ser o causador desses males. Assim, só restou culpar Satã, Belial, o Diabo.
Os essênios eram mais radicais e não aceitavam essas mudanças ocorridas a partir do século II a.C., nas quais os judeus passaram a se misturar com os gentios, que eram “impuros”, na visão deles. No deserto, os essênios poderiam ter uma vida “pura” e conforme a Lei, aguardando o Messias que os livraria de Satanás, que vivia no mundo exterior tentando os gentios e judeus que não seguiam as leis de Deus.
A luta de Deus contra o Diabo nos desertos da Judeia reflete não apenas um momento religioso do povo judeu, mas também o político e histórico. Judá e Israel não mais existiam como reinos independentes porque foram ocupados pelos romanos que, depois, transformaram a região em um protetorado que passou a ser conhecido como Palestina, uma província do Império Romano. Roma simbolizava o mal, que deveria ser destruído, assim como Satã, o causador dos infortúnios dos israelitas. A luta de Iahweh contra Satã no campo espiritual era um espelho da batalha pela liberdade entre os judeus e os romanos.
Vários trechos do Novo Testamento tratam do tema da luta entre a Luz e as Trevas, mas o livro que marcou o imaginário ocidental sobre as visões de Satanás é o Apocalipse ou Livro das Revelações, que é atribuído ao apóstolo João, embora existam grandes controvérsias sobre o tema, pois na data na qual os historiadores acreditam que ele foi escrito, o seu autor já teria cerca de 90 anos, idade improvável para a época. A literatura apocalíptica tem uma importância considerável na história da tradição judaico-cristã-islâmica, ao veicular crenças como a ressurreição dos mortos, o dia do Juízo Final, o céu, o inferno. O Livro do Apocalipse ou das Revelações é um conjunto de profecias. Nele, João teria recebido mensagens de Jesus Cristo por meio de um anjo, que lhe mostrou o futuro até o fim do mundo, o Juízo Final.
O Apocalipse de São João, datado provavelmente da década de 90 d.C., descreve batalhas épicas entre Deus e o Diabo, entre os anjos do Senhor e os demônios. No livro, sobressai a figura mítica de um ser denominado “a Besta”, que virá do mar para aterrorizar a humanidade e tem dez chifres e sete cabeças. Batalhas entre os exércitos de anjos de Deus e os de Satanás serão travadas, a Besta é derrotada e Satanás é aprisionado em um abismo por mil anos, quando retornará para seduzir nações, provocar novas guerras e destruição, até ser derrotado definitivamente, com o retorno de Jesus e a salvação das almas justas.
Essa doutrina apocalíptica, de fim dos tempos, era bastante popular na época de Jesus e depois dele e, mais uma vez, refletia não apenas um pensamento religioso, mas as condições históricas do período. O Apocalipse foi escrito no primeiro século da Era Cristã, durante um tempo no qual os cristãos sofreram intensamente com as perseguições promovidas por Roma, e as famigeradas figuras do anticristo e da Besta - cujo número era 666, conforme as brincadeiras de numerologia da época - simbolizavam o imperador romano Nero.
Naqueles tempos, os antigos cristãos acreditavam que o fim dos tempos estava próximo, pois o seu mundo fora destruído juntamente com o Templo de Jerusalém. Os cristãos eram perseguidos, mortos e crucificados. Era o inferno na Terra. O livro das Revelações se utilizou de uma linguagem simbólica. Segundo este entendimento, João usou dessa simbologia para detalhar o sofrimento que estavam passando, se comunicar com outros cristãos e dificultar, assim, o entendimento por parte dos seus opressores. Os cristãos acreditavam nesta batalha final entre o Bem e o Mal, na qual as forças do bem venceriam, os maus (Roma) seriam derrotados e Jesus retornaria. Essa famosa batalha leva o nome de Armagedom. Mas essa seria uma batalha real ou imaginária? Para entender o que João quis dizer com o Armagedom, é preciso entender, mais uma vez, o contexto da época.
Em Israel, existe um vale chamado Jezreel no qual está localizada a planície de Megiddo, que é cercada de pequenas colinas e foi o ponto de dezenas de batalhas na Antiguidade. O local é extremamente estratégico, pois quem a controla tem o domínio da região. Até hoje ainda existem ruínas de antigas fortalezas no lugar. Ali foi onde o rei Josias foi morto pelo faraó Necau. Em Megiddo ficava acampada a Sexta Legião Romana, uma das tropas mais experientes e cruéis do império. Em uma revolta de judeus anos antes de O Apocalipse ser escrito, milhares de revoltosos foram crucificados, desde Megiddo até as portas de Jerusalém.
Em hebraico, Megiddo era escrito como Har Megiddo. Em uma versão do apocalipse em grego, a palavra virou Har Magedom, com o som aspirado, e depois, Armagedom. Como todo judeu da época, João deveria saber que qualquer batalha importante pela Palestina seria ali, pela sua importância estratégica. Em Megiddo seria travada a luta final entre as forças do Bem e do Mal (os romanos, representados por uma legião que tratava com crueldade todos os povos vencidos ou que se rebelaram contra o seu controle). Que lugar seria mais adequado para ilustrar tal conflito do que Megiddo?[Apocalipse: os enigmas do último livro bíblico. Grã-Bretanha: BBC/Discovery Channel, 2003. DVD (49 min.).]
Mas tudo deu errado. Entre os anos 66 e 70 da Era Cristã, os Judeus promoveram um guerra contra os romanos e foram derrotados. O Templo de Jerusalém foi destruído, a população foi massacrada, os sobreviventes foram vendidos como escravos ou tiveram que deixar a Palestina de maneira definitiva e o Messias, bem, esse nunca voltou, e alguns ainda esperam por ele até hoje. O fato é que, se Deus existisse realmente e fosse o Todo Poderoso, por que ele esperaria até o final dos tempos para destruir o Diabo? Essa é uma pergunta para o qual a Igreja não tem resposta e mostra que Satã, Iahweh, Deus ou Alá só existem como ideias e ferramentas utilizadas no controle dos fieis e das pessoas mais temerosas.
Não está claro se Jesus era essênio, mas há muitas semelhanças entre os escritos no Novo Testamento e os ensinamentos desse grupo. Se eles criaram Satanás, os cristãos rapidamente se apossaram dele e fizeram com que esse senhor do Mal fosse protagonista no resto da história da humanidade. Sem a presença do Diabo, “não há nada ou ninguém que Cristo possa combater, deixando de haver qualquer justificativa para afirmar a existência do ‘reino de Deus’.”[Peter Stanford: O Diabo: uma biografia. Rio de Janeiro: Gryphus, 2003, p. 54] No evangelho de Mateus, por exemplo, há a descrição de um exorcismo (Mateus, 12:22-32). Jesus expulsou um demônio do corpo de um epiléptico [Os povos antigos viam na epilepsia uma manifestação de deuses ou demônios que possuíam o corpo do doente. As deformações faciais resultantes das convulsões e contrações musculares, assustadoras para quem não conhece a doença, eram provocadas pelo demônio, pensavam essas pessoas. Doenças mentais e várias outras enfermidades eram vistas e tratados como possessões demoníacas. Até hoje, algumas seitas religiosas de natureza evangélica e o espiritismo consideram muitos desses males como casos de possessão, sem que expliquem o motivo pelo qual esses demônios deixam os corpos das pessoas após os tratamentos adequados] (Marcos, 9:14-29). De Maria, também chamada Madalena, Jesus retirou sete demônios (Lucas, 8:2). Mas Jesus é acusado pelos fariseus de se utilizar dos poderes de Belzebu para expulsar demônios (Mateus, 12:22-24). Belzebu nada mais é do que um dos nomes do Baal Zebud, patrono da cidade cananeia de Ekron (ou Acaron),[O nome é citado pela primeira vez em 2 Reis, 1:2. “Ocozias caiu da sacada de seu aposento em Samaria e adoeceu. Enviou mensageiros dizendo-lhes: ‘Ide consultar Baal Zebud, deus de Acaron, para saber se ficarei curado deste mal.’"] que significa “Baal, o príncipe” ou “Baal, o destruidor.”[Matthew Bullen (et al.). National Geographic: Essential Visual History of World Mythology, p.53] Da mesma maneira que o judaísmo, o cristianismo tratou de difamar, ou melhor, demonizar os antigos deuses de outros povos, tratando-os como demônios ou seres inferiores.
Os cristãos viram o demônio nos romanos, nos judeus que causaram a morte de Jesus, nos pagãos, nos infiéis árabes que morreram pelo fio da espada durante as Cruzadas, nas mulheres consideradas bruxas, nos protestantes reformadores (por sua vez, os mesmos protestantes também viram o diabo na figura do papa e dos católicos) e em qualquer um que se opusesse ao poder da Igreja. Hoje, o Diabo é visto e responsabilizado pela Igreja Católica pelos atos de pedofilia que são praticados pelos padres e sacerdotes. O Diabo é, portanto, um excelente bode expiatório para os que não querem assumir os seus erros.
Os primeiros cristãos eram, originariamente, judeus e dentro do judaísmo havia correntes que acreditavam no demônio e outras que rejeitavam esse ponto de vista. Parte dos judeus que se tornaram cristãos colocaram o Diabo como parte de sua teologia, como o inimigo de Deus. Esses judeus convertidos acreditavam que Jesus era o verdadeiro Messias e culparam os demais judeus pela morte de seu Cristo. Os primeiros cristãos não entendiam como é que o Povo Escolhido por Deus poderia rejeitar Jesus e crucificá-lo.
Quando os primeiros evangelhos do Novo Testamento foram escritos, décadas depois da morte de Jesus, fica clara a tentativa dos escribas da história do Nazareno de inocentar Roma pela morte do seu Messias, como no caso do episódio de Pilatos, que lavou as suas mãos e não condenou Jesus, deixando isso para os judeus (Mateus, 27:24). O evangelho de Mateus é fortemente antissemita. Nos relatos de Mateus, Jesus teria dito que os judeus, até então os herdeiros naturais das promessas de Deus, não ganhariam o Reino dos Céus (Mt, 8-11:12).
Do ponto de vista teológico, a morte de Cristo foi interpretada como a salvação do homem do Pecado Original, mas nas mentes das pessoas, principalmente durante a Idade Média, a culpa foi dos Judeus. Esse raciocínio foi resultado da leitura dos próprios evangelhos do Novo Testamento, que sempre procuraram colocar os judeus como parceiros do demônio (João, 13:2 e 27), pois Judas nada mais é que um sinônimo de judeu, que mais tarde se transformou no traidor. Como o Diabo havia entrado no corpo de Judas (judeu), ele e os compatriotas foram considerados os responsáveis pela morte de Cristo e, por isso, deveriam ser punidos. Todos os judeus pagaram pelo crime, em uma espécie de culpa eterna pela morte de Jesus. Eis a razão do preconceito histórico contra os judeus e do antissemitismo.

A Figura do Diabo
Os anos se passaram e o Messias tão esperando não veio. O Império Romano caiu, a humanidade entrou no período denominado Idade Média, também conhecida pelos historiadores como Idade das Trevas, em virtude das guerras, pragas, fome, miséria e queda geral no padrão de vida da população européia, não só no aspecto econômico, mas também no social e cultural. Invasões de bárbaros e massacres de populações inteiras levavam o medo e a insegurança para todos. A própria sobrevivência do cristianismo como religião era duvidosa uma vez que nos primeiros três séculos depois da morte de Jesus os seguidores do Nazareno eram perseguidos e massacrados pelos romanos, que os acusavam de ateísmo porque se recusavam a honrar os deuses patronos de Roma, e assim ameaçavam o império.
Na religião cristã, os apóstolos já haviam morrido e uma grande variedade de seitas que tinham Jesus como seu deus, mas não a Igreja como guia da fé, proliferaram. As ameaças à instituição eram tratadas como heresias muitas vezes punidas com a morte.
O cristianismo que já havia se tornado a religião oficial do Império Romano no ano 312, durante o reinado de Constantino, agora era predominante e lutava para manter a sua unidade, não só de poder político, mas também de doutrina. Havia os ebionitas, que eram judeus-cristãos e pregavam que Jesus de Nazaré não veio abolir a Torah como prega a doutrina de Paulo. Eles afirmavam que tanto judeus como gentios convertidos deveriam seguir os mandamentos da Torah, o que levou a um choque com outras ramificações do Cristianismo e do Judaísmo.
Outra corrente doutrinária foi a criada pelo monge Marcião, que enfatizava a diferença entre a concepção do Deus do Antigo Testamento e o do Novo Testamento. Para Marcião, os dois deuses eram diferentes. Iahweh era o criador do mundo que conhecemos, mas ele era mau, pois havia imposto uma lei severa que ninguém cumprira. Esse deus não era a divindade suprema, embora assim se considerasse, mas acima dele havia outro poder, o de Deus, que havia enviado o seu filho para salvar a humanidade do pecado.
Existia ainda o movimento gnóstico, bastante popular no início do cristianismo. Os gnósticos acreditavam nos opostos: o bem e o mal; o mundo físico (mal) e o espiritual (bem). Foram profundamente influenciados pelo zoroastrismo e platonismo. O mundo material fora criado por um deus menor, o Demiurgo, responsável por todo o mal. Tempos depois, esse demiurgo foi transformado em demônio, em Satã, com os gnósticos lhe imputando a raiz de todos os males que recaiam sobre a Terra.
O quarto movimento de relevância nos primórdios do cristianismo foi o liderado pelo bispo de Alexandria (Egito) Arius, denominado arianismo. Para Arius, Jesus era subordinado a Deus, e não o próprio Deus. Segundo Arius só existe um Deus e Jesus é o seu filho e não o próprio. Cristo era inferior e limitado, não possuía o mesmo poder divino, situando-se entre o Pai e os homens. Não se confundia com nenhuma das naturezas por se constituir em um semideus, como os heróis gregos. Arius afirmava ainda que o Filho era diferente do Pai em substância.
Todas essas disputas ameaçavam a unidade da Igreja. Um dos pais da Igreja, Justino Mártir, ao se referir a doutrina de Marcião, escreveu: “com a ajuda dos demônios, ele fez com que muitos em todas as nações dissessem blasfêmias e negassem que Deus é o criador do Universo, além de afirmar que algum outro ser maior do que Ele realizou obras mais importantes.”[Joseph Campbell. As máscaras de Deus: mitologia ocidental, p.306]
As querelas só tiveram fim, oficialmente, com a realização do Concílio de Niceia (ano 325), convocado pelo imperador Constantino, que estabeleceu alguns dos cânones oficiais do cristianismo. As doutrinas divergentes foram declaradas heréticas e seus seguidores perseguidos. Quem pensasse de maneira diferente era expulso do seio da Igreja. Em alguns casos era executado.
Meio século depois de Constantino, o imperador romano do Ocidente Teodósio I decretou o cristianismo como única religião permitida, extinguindo todas as demais. O cristianismo - que antes era a religião pagã do império e os seus seguidores considerados ateus – reverteu o jogou. A adoração a qualquer outro deus era considerada ilegal. Deuses antigos passaram a ser vistos como associados ao Diabo, que não perdera, todavia, o seu poder de desviar a humanidade do caminho de Deus e do traçado pela Igreja de Roma, que ainda sofria ameaças externas, sempre atribuídas ao demônio, desta vez, na figura dos bárbaros pagãos e não convertidos. Desta feita, Santo Agostinho (354-430), havendo presenciado a devastação de Roma pelos bárbaros visigodos sob o comando de Alarico, escreveu A Cidade de Deus, um clássico da literatura Ocidental, no qual responde ao argumento de que, embora a Cidade do Homens (Roma) tivesse florescido por mais de mil anos sob a proteção dos seus próprios deuses, quando se voltou para Cristo, pereceu em virtude de seus pecados, mas a Cidade de Deus, a Igreja, o Corpo de Cristo, viveria por toda a eternidade. Santo Agostinho deixou de considerar o mal como uma abstração e começou a vê-lo como punição, sempre decorrente de más escolhas ou da opção pelo mal. O mal pode decorrer do próprio livre arbítrio. De acordo com Santo Agostinho, “Satã é o chefe dos anjos decaídos que passaram a ser demônios. Embora esses anjos também tenham recebido o dom do livre arbítrio, eles pecam por causa da imperfeição dos seus desejos, que são desconhecidos [Mas se Deus é onisciente, porque os desejos dos demônios lhes são desconhecidos? É uma contradição inexplicável. (Nota do autor)] por Deus, mas que têm a permissão dele para se manifestarem”[Peter Stanford, ob. cit., p.100], em virtude dos desígnios misteriosos da vontade Divina.
Na visão de Santo Agostinho, o Diabo quis ser igual a Deus, mas foi derrotado e, para vingar-se, tentou Adão e Eva e, por conseqüência, a humanidade. Mas Jesus livrou a humanidade de Satanás e do Pecado Original com a sua morte e enganou-o com a sua posterior ressurreição. Mas mesmo derrotado (e será que foi mesmo?), ele ainda permaneceria na Terra até o retorno de Jesus (e ao que parece, ainda vai ficar por muito tempo).
Todas as respostas e justificativas teológicas para a existência de um Satã ou de anjos caídos mais confundem do que esclarecem. As evidências são claras e o pensamento racional, lógico, mostra que não existe um ser responsável pelos males que atingem o homem. Diante de todos os fatos e provas históricas do desenvolvimento da ideia de um deus único e de seu adversário, não se pode concordar com retóricas filosóficas de justificativas sobrenaturais para a existência de tudo o que há de bom ou ruim no mundo. Infelizmente, esta não tem sido a posição da grande maioria das pessoas, que ainda veem nas razões ou desígnios divinos, as causas de tudo, utilizando-se de Deus ou do Diabo para se escusarem de suas obrigações e atos, ou mesmo para responsabilizarem terceiros, sob a alegação de que estão possuídos ou influenciados por espíritos malignos.
Depois que o cristianismo se consolidou como religião dominante na Europa, chegou o momento de sua expansão e, para isso, o Diabo teve papel fundamental, pois tudo o que não estivesse de acordo com o ponto de vista da Igreja Cristã seria considerado como obra de Satanás. Durante e após o papado de Gregório, o Grande (540-604), o cristianismo deu grandes investidas na tentativa de ampliar a quantidade de seus seguidores e, consequentemente, a sua influência, mas esbarrou na força das antigas crenças que as pessoas ainda tinham nos deuses pagãos, em especial na Bretanha - onde estão atualmente a Inglaterra, País de Gales e Escócia - Germânia – atual Alemanha – e nos Países Nórdicos, Dinamarca, Suécia, Noruega e Finlândia.
Mas os cristãos ainda não tinham a força necessária para impor a nova fé aos povos bárbaros. Embora muitos reis bárbaros tivessem se convertido ao cristianismo, outros ainda resistiam em abandonar as velhas crenças, bem como suas populações.
O Papa Gregório, bastante pragmático, estabeleceu estratégias para que o cristianismo fosse aceito pelos povos do Norte[Peter Stanford, ob. cit., p.109]. A primeira foi a coexistência e a tolerância com a demais religiões pagãs; a segunda foi a incorporação de rituais das demais religiões como se fossem cristãs, adaptando-os aos já existentes no calendário oficial da Igreja; e, uma vez estabelecido o cristianismo, instaurou-se a perseguição às religiões pagãs.
Durante grande parte do primeiro e segundo milênios, o cristianismo teve que conviver com a existência de velhas crenças e superstições. Na Irlanda, Bretanha, Germânia e Escandinávia, os cristãos tiveram que enfrentar os deuses Thor, Loki e Odin (Wotan ou Woden). Odin era o maior dos deuses germânicos, governante de Asgard e senhor da magia. Os germânicos viam nele o protótipo da bravura, da altivez e do valor, assim como da sabedoria; os escandinavos dos últimos séculos pagãos, os Vikings aventureiros, terror do ocidente cristão, foram os derradeiros a combater invocando o seu nome. Thor, filho de Odin, era um dos mais populares deuses do panteão dos bárbaros do Norte. Sua arma era um martelo chamado Mjolnir , com uma enorme cabeça e um cabo curto que nunca errava o alvo e sempre retornava às suas mãos.
Outra divindade muito cultuada era Loki, deus do fogo, da trapaça e da travessura. Utilizava suas artimanhas para ludibriar e, muitas vezes, ajudar os demais deuses, como fez com Thor, na sua luta contra os gigantes. As ações de Loki eram, muitas vezes, voltadas para uma causa justa, mas por suas características e seu lado destrutivo logo foi associado ao Diabo pelos cristãos que divulgavam a nova fé. Conceitos cristãos introduzidos mais tarde na Escandinávia acabaram por destacar apenas suas piores características. Loki tinha uma filha cujo trabalho era vigiar o reino subterrâneo dos mortos e pecadores. Seu nome era Hel, palavra que deu origem a hell, que significa inferno, em inglês.
A mitologia nórdica era bastante criativa e forte. Mesmo após a vitória dos cristãos, ainda havia adoradores de Thor e Odin em pleno século XV, todos exterminados pela Inquisição. A influência dos seus mitos permaneceu, por exemplo, nos nomes dos dias da semana na língua inglesa: Tuesday (terça-feira) é o dia de Tyr; Wednesday (quarta) é homenagem a Odin (Woden) e Thursday (quinta-feira) celebra Thor.
Depois do período de convivência, a Igreja passou para a etapa de incorporação dos símbolos e deuses pagãos como se fossem seus. Já fizera isso anteriormente, ao criar e incentivar o culto a Maria, mãe de Jesus, utilizando-se de diversas características da deusa Ísis, que era uma divindade bastante popular no Mediterrâneo. A fé nesta deusa egípcia era uma força dominante. Em Pompeia, as evidências arqueológicas revelam que ela desempenhava um papel importante. Em Roma, templos e obeliscos foram erguidos em sua homenagem. Na Grécia Antiga, os tradicionais centros de culto em Delos, Delfos e Elêusis foram retomados por seguidores de Ísis, e isto ocorreu no norte da Grécia e também em Atenas. Ísis – assim como a Virgem Maria - era conhecida como Rainha do Céu e Estrela do Mar, a Santa Mãe de Deus e era retratada com um bebê no colo, tal qual a figura de Maria e o menino Jesus. A iconografia de Maria foi retirada da de Ísis. Depois do ano 500, o culto a Ísis foi banido e muitos dos seus templos foram convertidos em igrejas dedicadas à Virgem Maria.[Para detalhes da incorporação pelo cristianismo de outras religiões e cultos, confira: The Secret Bible: Rivals of Jesus. USA: Morningstar Entertainment for National Geographic Channel, 2006 (47 min.)]
Também não se pode deixar de falar da mais famosa incorporação de um culto pagão pelo cristianismo. Trata-se da religião do deus sírio Mitra, o Sol Invictus dos romanos. O 25 de dezembro só foi adotado como data do Natal por volta de 350 d.C. Naquela época, ocorria em Roma a festa pagã do Sol Invictus, o Sol Invencível. Comemorado logo após o solstício de inverno – quando o percurso aparente do Sol ocupa sua posição mais baixa no firmamento -, o festival homenageava o reinício do deslocamento da trajetória solar para o alto do céu, de onde os raios da estrela voltavam a aquecer generosamente a Terra. O imperador Constantino era adepto fervoroso da religião, muito popular entre os soldados romanos e não se pode deixar de ver a influência do mitraísmo na adoção do dia 25 de dezembro como data do nascimento de Jesus.
A incorporação dos mitos nórdicos e celtas pelos cristãos foi similar ao que aconteceu com as religiões dos povos da bacia do Mediterrâneo e Oriente Próximo. Peter Stanford explica muito bem esse processo:
Os longos festivais, realizados pelas populações das aldeias em homenagem às divindades pagãs protetoras da abundância das colheitas, foram bastante usados pelos clérigos. Eles se apropriaram dessa ideia para introduzir a noção do santo patrono da comunidade, de modo que estes festivais pudessem celebrá-lo; porém, aos olhos dos habitantes das vilas, tais santos não passavam de mais um nome para espíritos que eles estavam acostumados a cultuar.[O Diabo, uma biografia, p.112.]
Em Luxemburgo, por exemplo, o culto de São Huberto era similar ao da deusa da caça Diana. O símbolo dele era um veado com uma cruz reluzente; o de Diana, uma corsa, a fêmea da espécie. O dia de São João - muito popular no Brasil, Espanha e regiões da Escandinávia - era celebrado pelos pagãos no mês de junho, no solstício de verão do hemisfério Norte, com festas antes das colheitas e simbolizava a vitória da luz sobre as trevas, com o ritual de acender fogueiras para iluminar a noite. A Igreja não teve dificuldades em assimilá-lo, pois divulgaria a idéia de Cristo como aquele que trouxe a luz ao mundo. Mas alguns hábitos dessa festa, como nadar ou dançar despidos, foram proibidos, pois eram considerados comportamentos mundanos, incentivados por Satanás.
A escolha de santos como padroeiros remonta à Antiguidade, mais precisamente ao Egito. Os exemplos são vários. Nas antigas Terras dos Faraós, por exemplo, havia Bastet, deusa do lar, do fogo e das grávidas; Bes, deus da música, dança, da família e protetor das mulheres grávidas; Geb, patrono da terra; Hathor, a protetora das mulheres, do amor e da música; Imhotep, patrono dos escribas, curador, sábio e mágico. No cristianismo existem: Cosme e Damião, padroeiros dos médicos e protetores dos gêmeos e das crianças; São Brás, protetor dos que sofrem de engasgos ou doenças de garganta; Santo Antônio, casamenteiro e padroeiro dos pobres; São Cristóvão, protetor dos viajantes e motoristas; São Francisco de Sales, padroeiro dos escritores; São Judas Tadeu, advogado das causas desesperadas. Os exemplos são tantos que dariam um livro.
Quando se lê sobre esse processo de assimilação, pode-se concluir que houve, de fato, a conversão do cristianismo ao paganismo do Ocidente, não o contrário.
Mas nem todos os deuses ou seitas pagãs foram assimilados ou aceitos pela Igreja. Monges e padres diziam aos cristãos que o Diabo habitava os templos pagãos antigos, numa tentativa de destruir e desmoralizar as antigas religiões. Veja, por exemplo, o que aconteceu com o culto a Pã, o deus grego dos bosques, dos campos, dos rebanhos e dos pastores. Ele era temido por todos aqueles que necessitavam atravessar as florestas à noite, pois as trevas e a solidão da travessia os predispunham a pavores súbitos, desprovidos de qualquer causa aparente e que eram atribuídos a Pã. Daí o nome pânico.[Wikipedia. Disponível em: Acesso em 17 de julho de 2010.] Ele era representado com orelhas, chifres e pernas de bode, igual às descrições do Diabo nos dias atuais. Seu culto foi proibido e sua imagem foi associada ao demônio. Muitos dos habitantes das regiões mais tardiamente cristianizadas da Europa também se recusavam a abandonar, de uma vez, todos os deuses que eles adoraram por séculos e seriam os responsáveis, conforme as suas crenças e superstições, pelas colheitas, chuvas, secas, tempestades e outros eventos naturais. Se os antigos ritos e deuses garantiram, até aquela época, comida e colheitas fartas, por que eles mudariam?
Mutatis mutandis, ocorreu com os habitantes da Europa do Norte, durante a Idade Média, o mesmo que acontecera séculos antes com os judeus, que celebravam e cultuavam os deuses cananeus Baal, El e Astarte, mas, em poucos anos, foram obrigados a abandonar a antiga religião e a abraçar a crença num deus único, representado por Iahweh.
Também foi difícil para os novos cristãos assimilarem a doutrina da Igreja e os seus ensinamentos abstratos e confusos, tais como o da Santíssima Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo em uma única pessoa, mas que também eram três diferentes) e o de um Deus sem rosto que era considerado onisciente, onipresente e onipotente, mas que permitia a existência do Mal. Este problema teológico foi a chave para que a Igreja desenvolvesse a crença de que o Diabo e os seus servos eram os responsáveis pela fome, guerras e doenças, como a Peste Negra, que dizimou até um quarto da população europeia. Só a crença em Jesus e a fé em Deus, dizia a Igreja, poderiam salvar a Europa, porque elas derrotariam Satã, o malfeitor e responsável pelas desgraças. Se não acreditassem em Jesus, Satanás venceria. A falta de fé, nessa visão, era a responsável por tudo de bom ou ruim que acontecia. Quem não tivesse fé ou fosse de outra religião estava ao lado de Satanás. Somente a fé poderia salvar a Europa da danação eterna. Desta feita, muçulmanos, a Igreja Ortodoxa de Constantinopla – que havia se separado do poder central de Roma – os cátaros, [O movimento dos cátaros ocorreu no sul da França e no norte da Itália do final do século XI até meados do séculos XIV. Foi considerado herético pela Igreja Católica porque que suas ideias tinham fortes paralelos com o gnosticismo, do início da Era Cristã. Os seus adeptos procuravam levar vidas simples e castas, desprovidos de quaisquer posses materiais. Eles buscavam afastar-se ao máximo do mundo, que consideravam corrupto] com a sua visão dualista do mundo, os protestantes e as mulheres foram os principais alvos da luta contra o Demônio.
O auge da influência maligna do Diabo sobre o mundo aconteceu durante a esquizofrenia coletiva da caça às bruxas que varreu a Europa nos séculos XV e XVI. De acordo com o pensamento da época, num conluio com Satã, as bruxas estariam planejando destruir a grande obra de Cristo: a Igreja. Essa histeria coletiva ocorreu em uma época na qual a Igreja Romana estava bastante ameaçada, em virtude da Reforma Protestante na Alemanha; do rompimento do rei Henrique VIII da Inglaterra com Roma; das guerras entre protestantes e católicos na França e muitos outros episódios. O poder dos papas e dos imperadores católicos – que se consideravam os legítimos representantes da vontade de Deus na Terra – estava ameaçado, assim como a perspectiva de vitória final do cristianismo sobre as forças do Mal. Para todos esses exemplos, o Diabo foi colocado como bode expiatório.
Todo esse período turbulento deu oportunidade à Igreja Romana para desferir o último golpe sobre as antigas crenças e religiões que se opunham ou fossem diferentes dos ensinamentos e dogmas oficiais, mas a luta de Roma contra a heresia e para desqualificar as antigas religiões só serviu para difundir e alimentar o imaginário popular sobre as práticas que os clérigos queriam proibir.
É verdade que a crença em bruxas e nos demais deuses praticamente desapareceu do mundo contemporâneo. Mesmo o Diabo não goza mais o prestígio e fama que já teve durante a Idade Média e a Idade Moderna, embora ele ainda não tenha desaparecido e continue a assombrar as mentes dos mais ingênuos e incautos; dos religiosos e evangélicos que ainda acreditam na vinda de Jesus e na Batalha do Armagedom; nos que acreditam que a Terra é palco de uma luta contínua entre o Bem – muitas vezes representado pelos cristãos, noutros, conforme o ponto de vista, pelos muçulmanos – e o Mal; ou dos satanistas, que se dizem herdeiros das seitas pagãs e proclamam tudo de maneira oposta ao que dizem os cristãos, mas são, na realidade, parodias tragicômicas do cristianismo e religiões antigas.

 (Élvio Gusmão Santos - As Histórias da Bíblia e os Mitos da Antiguidade)

publicado às 21:24

E Cronos mais do que qualquer outro: foi quem mutilou o pai, Urano, e, consequentemente, o primeiro a entender o quanto os filhos podem ameaçar a ordem, o poder estabelecido e que se acha estar sob controle. Ou, dito de outra forma, é preciso desconfiar do tempo, fator de vida, é claro, mas também a dimensão por excelência de todas as desordens, de todas as complicações e desequilíbrios que virão. Cronos toma consciência desse fato indiscutível: a história é cheia de perigos, e para quem quiser manter o que adquiriu, garantir seu poder, mais vale aboli-la, para que nada mude.
Não sei se você se dá conta da profundidade do problema existencial que começa a se esboçar, embutido nessa primeira narrativa mitológica. Significa que toda a existência, inclusive a dos deuses imortais, vai se ver num dilema quase insolúvel. De fato, pode-se bloquear tudo, como Urano bloqueia os filhos na barriga de sua mulher/mãe, para evitar que as coisas mudem, correndo o risco de se degradarem. Nesse caso, porém, é a total imobilidade e o tédio que acabam levando a melhor, em vez da vida. Ou, para evitar isso, aceita-se o movimento, a história e o tempo, mas os perigos mais temíveis passam a ameaçar. Como, então, encontrar o perfeito equilíbrio? No fundo, é essa a grande questão da mitologia e, com isso, a grande questão da existência em geral! Como você pode ver, as respostas que nossas histórias vão dar ainda interessam, para dizer o mínimo, às pessoas de hoje.
 
Junto de um homem há sempre uma grande mulher...apesar dos ciúmes e infidelidades
 
E então Zeus finalmente se casou com Hera, que se manterá para sempre sua última e verdadeira esposa. É preciso que você saiba, porém, que ele não só teve inúmeras aventuras com outras mulheres, mortais e imortais, mas que também foi casado duas vezes antes. É importante, pois esses dois casamentos têm um sentido “cósmico”, um significado essencial na construção do mundo que nos interessa aqui. De fato, Zeus se casou primeiro com Métis e depois com Têmis, ou seja, a deusa da astúcia ou, se preferir, da inteligência, e, em seguida, com a da justiça.
Métis (astúcia, sabedoria) e Zeus
 Por que Métis? Métis, a astúcia, a inteligência, era filha de Tétis, uma Titânida, e de um dos primeiros Titãs, Oceano — o oceano, isto é, na visão do mundo que se lê no poema de Hesíodo, o gigantesco rio que circunda a totalidade da Terra. De Métis, Hesíodo nos diz que ela sabe mais coisas do que todos os outros deuses e, é claro, do que todos os homens mortais: é a própria inteligência, a astúcia personificada. Em seguida, ela engravida: espera uma filha de Zeus, a futura Atena, que, justamente, será ao mesmo tempo a deusa da astúcia, da inteligência, das artes e da guerra — mas, como eu disse, da guerra estratégica e tática mais do que dos conflitos brutais e violentos, que ficam reservados para Ares. Os avós de Zeus, Gaia e Urano — e lembro que eles o salvaram de ser engolido por Cronos, aconselhando Reia, sua mãe, a escondê-lo numa gigantesca gruta —, novamente o preveniram dos perigos que o aguardavam: se um dia Métis tivesse um filho, ele também destronaria o pai, como Cronos fizera com Urano... e o próprio Zeus com Cronos! Por quê? Hesíodo nada diz, mas podemos supor que o filho de Zeus e de Métis certamente reuniria as qualidades dos seus pais: ao mesmo tempo a maior força existente, a do raio, e uma inteligência semelhante à da mãe, ou seja, superior à dos demais Imortais e mortais. Todo cuidado é pouco: tal menino pode se tornar um adversário realmente temível, até mesmo para o rei dos deuses. Observe que os gregos não são tão misóginos ou “antimulheres” como às vezes dizem: com frequência a mulher encarna a inteligência sem nem por isso deixar de ter outras qualidades, inclusive aquelas relacionadas aos dotes físicos.
De qualquer maneira, para evitar ter um filho que o destrone, Zeus resolveu simplesmente engolir sua mulher (trata-se realmente de uma mania na família), a pobre Métis. Uma lenda mais tardia conta que Métis, entre suas astúcias, era capaz de mudar à vontade de forma e de aparência. Podia se transformar quando quisesse em objeto ou em animal. Zeus fez exatamente como o Gato de Botas enfrentando o ogro: você deve se lembrar que, nesse conto de fadas, o gato pede ao ogro que se transforme em leão, o que o deixa apavorado. Depois, como quem não quer nada, pede que se transforme em camundongo — para saltar sobre ele e devorá-lo. Zeus fez o mesmo: pediu a Métis que se transformasse em gota-d’água e bebeu-a! Quanto a Atena, que já estava em gestação no momento em que Métis foi bebida, como já lhe disse, acaba nascendo diretamente da cabeça do rei dos deuses. Escapole do seu crânio e se torna, à imagem do pai, a deusa ao mesmo tempo mais temível em combate e a mais inteligente.
Dito isso, não esqueça um detalhe importante nessa história toda: engolir não significa comer, mastigar, dilacerar. Quem é engolido não só se mantém vivo, como não se machuca. Assim como os filhos de Cronos permanecem vivos na barriga do pai — prova disso é que quando Cronos vomita, eles saem gozando de plena saúde —, também Métis, engolida por Zeus, permanece viva e, por assim dizer, em bom estado. A mesma ideia aparece em nossos contos; por exemplo, nos três porquinhos ou nos sete cabritinhos que, apesar de engolidos pelo lobo, saem bem vivos e nada machucados assim que se abre a barriga do malvado animal! No caso específico de Métis, ser engolida significa, simbolicamente é claro, que Zeus assume ele próprio, com o estratagema, todas as qualidades que sem dúvida iriam para o filho que nasceria daquela união. Ele tinha a força oferecida pelos Ciclopes ao lhe presentearem com o trovão, o relâmpago e o raio, mas, além disso, passou a ter, graças a Métis escondida em suas profundezas, uma inteligência superior a todas que se encontram em nosso mundo, e mesmo fora dele.
E com isso Zeus passa a ser imbatível — é o rei dos deuses, é o mais forte e o mais inteligente, o mais brutal se necessário, e também o mais sábio. E é justamente essa sabedoria que o levará a praticar, ao contrário do avô, Urano, e do pai, Cronos, a mais estrita justiça na organização do recentíssimo cosmos e na distribuição das honrarias e dos encargos que caberão a cada um dos que o ajudaram a vencer a geração dos primeiros deuses, a geração dos Titãs.
Esse ponto é absolutamente crucial na mitologia: é sempre com a justiça que se acaba vencendo, pois a justiça nada mais é, no fundo, que uma forma de se manter fiel à ordem cósmica, de se ajustar a ela. Toda vez que um ser negligencia ou vai contra a ordem, ela acaba se recuperando contra ele e o arrasa. É uma bela lição de vida que já se esboça em filigrana: apenas uma ordem justa é viável, a injustiça só pode ser provisória.
Têmis (justiça) e Zeus
 Este é o motivo pelo qual, tendo se casado com Métis e tendo, por assim dizer, incorporado-a — no sentido próprio, abrigada em seu próprio corpo —, Zeus se casa com uma segunda mulher, tão importante quanto a primeira no que se refere à conservação do poder no centro da nascente ordem cósmica: Têmis, a justiça. Têmis é uma das filhas de Urano e Gaia. É portanto uma Titânida. Com ela, Zeus terá filhos que também simbolizam as virtudes necessárias à construção e, em seguida, à manutenção de uma ordem cósmica harmoniosa e equilibrada — o que continua sendo, aproveito para lembrar, a meta de toda essa história, da qual você já começa a perceber com clareza que narra a passagem através do caos inicial a uma ordem cósmica viável e magnificamente bem-organizada. Dentre seus filhos, de fato, há Eunomia, que significa em grego “a boa lei”, e Diké, quer dizer a justiça entendida no sentido de justa divisão das coisas. Há também as divindades denominadas “Moiras”, isto é, as deusas do destino — são chamadas ainda “Destinos”. Têm como tarefa distribuir boa sorte e azar entre os mortais, mas também decidem qual tempo de vida cabe a cada um.(Segundo a lenda, as Moiras são três irmãs, Átropos, Cloto e Láquesis, que regulam a duração da vida de cada mortal através de um fio que a primeira delas tece, a segunda enrola e a terceira corta, no momento da morte. Em latim, as Moiras foram chamadas “Parcas”) Muitas vezes, elas se juntam para fazer essa distribuição ao acaso, ou seja, por aquilo que, para os gregos, é uma forma suprema de justiça: afinal, na loteria do acaso, estamos todos em pé de igualdade, sem haver privilegiados, fura-filas nem “pistolões”, como se diz no coloquial. E há ainda uma série de deusas com nomes que evocam a harmonia, como, por exemplo, as três Graças, Esplendor, Bom Humor e Festa...
Compreende-se facilmente, então, o significado desse segundo casamento: assim como não é possível ser rei dos deuses e senhor do mundo apenas pela força bruta, sem ajuda da inteligência simbolizada por Métis, não é possível também assumir tal tarefa sem justiça, isto é, faltando Têmis, essa segunda esposa que se torna tão útil quanto a primeira. Ao contrário de Urano e de Cronos — seu avô e seu pai —, Zeus compreende então que é preciso ser justo para reinar. Antes até do fim da guerra contra os Titãs, a promessa já fora feita a todos que a ele se juntassem no combate contra os primeiros deuses: a divisão do mundo se faria com toda justiça, de maneira harmoniosa e equilibrada. Quem já gozava de privilégios os manteria, e quem ainda não, os ganharia.
Hesíodo conta com os seguintes termos essa decisão de Zeus:
O Olímpico, senhor do raio, chamou todos os deuses imortais para as alturas do Olimpo e lhes disse que daqueles que se colocassem a seu lado no combate aos Titãs ele não retiraria os privilégios, quaisquer que fossem, e, muito pelo contrário, todos no mínimo manteriam as distinções de que já se beneficiavam como deuses imortais. E Zeus acrescentou que todos aqueles, perseguidos por Cronos, que se encontravam sem honrarias próprias e sem privilégios os obteriam, como exige a justiça (Têmis).
Ou seja, Zeus propôs a todos os deuses uma divisão igualitária dos direitos e deveres, das missões e também das honrarias que, mais tarde, os homens lhes prestariam sob a forma de culto e sacrifícios — os deuses gregos adoram ser venerados e, muito particularmente, apreciam o aroma da carne grelhada que os humanos lhes preparam em belas “hecatombes”, isto é, em belos sacrifícios. Continuando o texto, Hesíodo relata como Zeus imagina recompensar tanto os Cem- Braços quanto os Ciclopes e os Titãs, que, como Oceano, não se aliaram a Cronos. Oceano, de fato, teve o bom discernimento de fazer com que a filha, Estige, a deusa que é também o rio dos infernos (mais uma vez, uma divindade coincide com um pedaço da ordem cósmica), se aliasse ao campo de Zeus, com seus filhos Cratos e Bia, o poder e a força. Como recompensa, Estige se tornou para sempre homenageada, e seus dois filhos ganharam a insigne honra de em todas as circunstâncias estar ao lado de Zeus. Sem entrar muito em detalhes, tudo isso significa que Zeus entendeu a necessidade, para instituir uma ordem cósmica duradoura, de fundamentá-la na justiça: deve-se atribuir a cada um a sua parte justa e somente a esse preço o equilíbrio obtido será estável. Justiça e inteligência são necessárias para guardar do poder, além da força, não só os Ciclopes e os Cem-Braços, mas também Têmis e Métis.

(Luc Ferry - A Sabedoria dos Mitos Grergos)

publicado às 00:16

Veja como o jovem Nietzsche explicou, com muita justeza e profundidade, a
diferença entre Apolo e Dioniso:
Apolo, deus ético, pede comedimento aos seus e, para que o preservem, indica o
conhecimento de si mesmo. Por isso “conhece-te a ti mesmo” e “nada em
excesso” acompanham a exigência estética, enquanto o orgulho exagerado e o
descomedimento que, dentre todos os demônios, são os principais inimigos da
esfera apolínica, foram considerados atributos dos tempos pré-apolínicos, da
Idade dos Titãs ou do mundo extra-apolínico, ou seja, bárbaro [...] O grego
apolínico deve igualmente ter considerado titânica e bárbara a ação do
dionisíaco, sem, no entanto, poder esconder que, no fundo do seu ser, mantinha-se
um parentesco com aqueles Titãs [...] Mais do que isso, deve ter compreendido
que sua existência inteira, com toda beleza e comedimento, repousava sobre um
fundo oculto de sofrimento e de conhecimento que o dionisíaco o fazia
redescobrir. Desse modo, Apolo não pode viver sem Dioniso! O elemento titânico
e bárbaro mostrava-se definitivamente tão necessário quanto o apolínico. Que se
imagine o efeito produzido pela festa dionisíaca, com suas enfeitiçantes músicas,
sobre aquele mundo artificialmente protegido, construído sobre a aparência e o
comedimento [...] Que se imagine o que podia significar, diante dos demoníacos
cantos populares, o artista apolínico, cantando salmos e com suas fantasmagóricas
sonoridades de harpa [...] O descomedimento se revelou verdade; a contradição e
a alegria nascida da dor falaram uma linguagem que brotava do coração da
natureza. De forma que, em todos os lugares conquistados pelo dionisíaco, o
apolínico foi abolido e destruído.
(Nietzsche - O Nascimento da Tragédia, § 4)
Nietzsche, que era bom músico, compreendeu perfeitamente três coisas essenciais. A
primeira delas é que o tema do concurso musical não é anedótico, e sim essencial na
mitologia, por uma razão básica: a música, trazendo ao cerne da arte a ideia de
harmonia, é uma metáfora, em analogia com o cosmos ou, como o próprio filósofo
escreveu, “uma réplica e uma segunda versão do universo”.(Ibid., § 5) A segunda é que na
oposição entre Apolo e Dioniso — com este último representado por Pã ou Mársias,
mas que foram, todo mundo percebe, postos em cena como substitutos, tratando-se de
personagens que apenas representam Dioniso — é de novo a questão do caos e do
cosmos, do titânico caótico e do olímpico cósmico que surge constantemente desde as
origens do mundo. E a terceira é que, evidentemente, apesar de os dois universos
divinos, o harmonioso e calmo, simbolizado por Apolo, e o outro, contraditório e
dilacerado, que Dioniso representa, se oporem radicalmente nas aparências, eles, na
verdade, são inseparáveis. Sem a harmonia cósmica, o caos vence e tudo fica
devastado, mas sem caos, a ordem cósmica se paralisa, desaparecendo toda vida e
toda história.
(Luc Ferry - A Sabedoria dos Mitos Gregos)

Pã, certa vez. interessou-se pela ninfa Siringe e começou a perseguí-la. Para fugir do assédio de Pã, que era tido como hiperativo sexualmente e passível de cometer estupros, ela se transformou em junco. Pã apanhou alguns juncos e os amarrou, transformando assim num instrumento, a flauta de Pã ou a siringe.
   A palavra “pan” em grego significa “tudo”, portanto o deus Pã é expressão da totalidade da Natureza.
                        Quando nos deparamos com pessoas portadoras da Síndrome do Pânico percebemos sua angústia frente ao novo, sua dependência de alguma figura importante, o temor de rejeição e abandono. E, via de regra, as pessoas que os conhecem acham que eles estão apenas querendo chamar a atenção, tendo chiliques. É uma situação dramática. O pior é que muitas vezes os portadores da síndrome nem mesmo conseguem identificar o que os apavora tanto. Parece que os fantasmas do inconsciente virão atormentá-los. Todos são unânimes em relatar o medo de morrer ou de passar mal e não ter auxílio, aspectos que os tornam dependentes de outras pessoas. Passam por vários médicos procurando por alguma saída ou se descobrem alguma doença, e, ficam mais angustiados por descobrirem que não há uma doença física. Tudo vai bem. Mas por que permanece tão intenso medo de morrer?
 




Sigamos, uma vez mais, a narrativa do mito pela versão de Ovídio.
Aparentemente, Midas se acalmou depois do revés de seu desastroso toque de ouro. Parece ter ficado mais humilde, quase modesto. Longe do fausto e do luxo que esperou do ouro, ele passa a viver em retiro na floresta. Afastado do palácio suntuoso, contenta-se com a vida rústica e simples, nos campos e prados pelos quais gosta de passear sozinho ou, às vezes, na companhia de Pã, o deus dos pastores e das florestas. Você deve saber que Pã se parece estranhamente com Sileno e com os Sátiros. De fato, é também um deus de grande feiura. No sentido exato da palavra, ele é apavorante: todos que o veem levam um susto, ficam gelados de horror, com o medo chamado “pânico” e derivado do seu nome, em homenagem bem negativa. Pela aparência, Pã é meio homem e meio bicho: peludo, chifrudo e “fora de esquadro”; ostenta os cornos e as pernas, ou patas, de um bode. O nariz é achatado como o de Sileno, o queixo proeminente, as orelhas gigantescas e peludas como as de um cavalo, os cabelos lanosos como os de um mendigo. Às vezes dizem que sua própria mãe, uma ninfa, ficou tão aterrorizada quando ele nasceu que o abandonou. Teria então sido pego por Hermes, que o levou ao Olimpo para mostrar aos outros deuses — os quais teriam literalmente urrado de tanto rir, achando engraçadíssima tanta feiura. Atraído por suas disformidades, Dioniso — que por princípio gosta de tudo que é estranho e diferente — teria resolvido torná-lo mais tarde um companheiro para folguedos e viagens. Prodigiosamente forte e rápido, Pã gasta boa parte do seu tempo perseguindo ninfas, mas também rapazes, tentando por todos os meios obter seus favores. Dizem inclusive que um dia em que perseguia uma jovem ninfa chamada Siringe ela preferiu se matar, lançando-se num rio, para não ter que ceder às suas “investidas”. Siringe se transformou então em cana à beira do rio, e Pã, pegando o caule ainda trêmulo, o transformou em flauta e tornou-a seu instrumento-fetiche, a famosa “flauta de Pã”, que se toca ainda nos dias de hoje. Muitos séculos depois, Debussy, um dos maiores compositores franceses, escreveu uma peça para esse instrumento (na verdade para uma flauta transversa), chamando-a justamente Syrinx, em homenagem à infeliz ninfa. Muitas vezes podemos ver o deus Pã, assim como Sileno e os Sátiros, na companhia de Dioniso, dançando como um demônio, festejando e bebendo vinho até o delírio: o que mostra que esse deus nada tem de “cósmico”! Não é um artesão da ordem, e sim um fervoroso amador de todo tipo de desordem. Claramente pertence à linhagem das forças do caos, a ponto de certas narrativas simplesmente o tornarem filho de Hybris, a deusa do descomedimento.

Pan and Syrinx - oigem da palavra pânico
 

 Com isso podemos achar que Midas, tendo em vista suas companhias, talvez não tenha se ajuizado tanto assim. Ainda mais porque a tolice e a lentidão mental continuam firmes em sua pobre cabeça. Um dia em que Pã tocava sua famosa flauta, tentando seduzir umas moças, o deus se empolga e se gaba, como muitas vezes acontece nesse tipo de situação, afirmando que seu talento musical supera inclusive o de Apolo. E perdendo todo o controle, no cúmulo da hybris, chega a desafiar esse senhor do Olimpo! Um concurso imediatamente se organiza, entre a lira de Apolo e a flauta de Pã. E Tmolus, uma divindade da montanha, é escolhido como juiz. Pã começa a soprar seu instrumento, e os sons que saem são roucos e rústicos, à imagem de quem os toca. Têm muitos encantos, é claro, mas são brutos, para não dizer bestiais; o som que o sopro tira dos tubos de cana é idêntico ao que o vento produz na natureza, entre as taquaras. A lira de Apolo, em contrapartida, é um instrumento sofisticadíssimo; explora com precisão matemática as relações entre o comprimento das cordas e sua respectiva tensão, garantindo uma perfeita justeza em suas relações, mais ou menos simbolizando a harmonia, igualmente sofisticada, que os deuses estabeleceram na escala do universo. É um instrumento ao mesmo tempo delicado e civilizado, o oposto da rusticidade da flauta, sendo a sedução suscitada pela lira inteiramente originada na suavidade. O público está encantado e unanimemente escolhe Apolo. Com apenas um voto contrário, o do grosseirão Midas, que ergue sua opinião dissonante em pleno festival de elogios dirigidos a Apolo. Amigo de Pã e já habituado à vida na floresta e no campo, Midas, tendo perdido o senso da civilidade, diz claramente preferir, e de longe, o som gutural da flauta em vez das harmonias delicadas da lira. As consequências são péssimas para ele! Não se desafia Apolo impunemente, e, como sempre em casos desse tipo, o castigo vem relacionado à natureza do “crime” cometido pelo desafortunado Midas; ele pecou ao mesmo tempo pelo ouvido e pela inteligência, sendo, então, pelas orelhas e pelo espírito que será punido. Vejamos como, de novo segundo Ovídio:
O deus de Delos (Apolo) não quer que orelhas tão grosseiras conservem a forma humana: ele as alonga e enche de pelos cinzentos. Deu-lhes uma raiz flexível, e elas guardam a faculdade de se mover em todas as direções. Midas mantém todo o restante de homem. Apenas nessa parte do corpo foi punido, exibindo as orelhas do asno de lentas passadas.
É claro, com suas novas orelhas de asno, Midas morre de vergonha. Não sabe mais o que fazer para esconder dos olhos do mundo sua feiura — feiura que publicamente o denuncia não apenas como um ser desprovido de ouvido, de senso musical, mas também como um imbecil, sem maior inteligência do que um ruminante. Ele tenta disfarçar seus novos atributos sob formas diversas, chapéus e tiras de pano com que enrola cuidadosamente a cabeça. Mas não há como seu barbeiro não perceber e perguntar: “Majestade, o que aconteceu? O senhor parece ter orelhas de asno...” Azar o seu, pois Midas também não prima pela delicadeza: avisa-lhe imediatamente que se contar a alguém o que acaba de descobrir, será levado ao suplício e à morte. O pobre barbeiro faz o que pode para manter o calamitoso segredo. Ao mesmo tempo, entretanto — imagine-se no lugar dele —, ele arde de vontade de contar aos amigos e à família, e treme diante da possibilidade de um dia, até por inadvertência, alguma palavra escapar. Para se livrar desse peso, ele tem uma ideia: “Vou cavar um buraco grande no chão e confiar meu segredo às profundezas da terra, tapando-o logo em seguida.” Dito e feito. O barbeiro encontra um lugar afastado da cidade, escava a terra, grita ou até mesmo urra o que quer, fecha em seguida com todo cuidado o buraco e volta para casa, com o coração mais leve. Na primavera, porém, uma floresta de canas cresce no piso recentemente revolvido. E quando o vento sopra, pode-se ouvir uma voz formidável se erguer e se inflar, gritando para quem quiser ouvir: “O rei Midas tem orelhas de aaaaasno, o rei Midas tem orelhas de aaaaasno...”

Midas tem orelhas de burro!
O segredo foi desvendado.
Midas só não dava esturro
Porque era educado.

E assim a falta de discernimento de Midas foi punida por Apolo. Talvez você ache que dessa vez não se vê muito bem em que esse pobre Midas ameaçava a ordem do mundo. É bem verdade, ele desafiou um deus, e um dos principais — pois Apolo, que é deus da música e da medicina, é um dos olímpicos. Mas, no final das contas, era apenas um caso de gosto, e cada um tem o direito de dizer o que acha. Se Apolo se sentiu ferido, parece ter sido apenas no amor-próprio, ou até mesmo na vaidade. Assim sendo, sua reação parece excessiva, para não dizer um tanto ridícula. Tal opinião, no entanto, só se sustenta se, uma vez mais, não estivermos prestando atenção aos detalhes da história e nos limitarmos a julgá-la de um ponto de vista moderno. Pois olhando mais de perto, trata-se, como no final do combate de Zeus contra Tífon, de uma disciplina, a música, com a qual não se brinca; ela se remete diretamente à nossa relação com a harmonia do mundo. Como expliquei a você, a lira é um instrumento harmônico, enquanto a flauta só pode tocar uma nota de cada vez e, com isso, é um instrumento “melódico”. Com a lira, como no caso de um violão, a gente pode acompanhar o próprio canto, e mesmo que os gregos ignorassem a harmonia, no sentido em que vão entendê-la compositores como Rameau e Bach, eles começavam, de qualquer forma, a mais ou menos pôr em consonância entre si sons diferentes. Com a flauta, essa harmonização da diversidade é impossível. Sob a aparência de uma competição apenas musical, representa-se, na verdade, a oposição cardeal de dois mundos, o de Apolo, civilizado e harmonioso, e o de Dioniso, de quem Pã é companheiro, caótico e desordenado, como qualquer uma das suas festas que podem, de uma hora para outra, degenerar em horror. Nas famosas bacanais organizadas por Dioniso e seus amigos — é como se chamam as festas dionisíacas —, mulheres ao redor do deus, as “Bacantes”, eventualmente se entregam a orgias que ultrapassam qualquer entendimento. Sob o domínio do delírio dionisíaco, perseguem filhotes de animais e os dilaceram vivos, devorando-os crus. E, às vezes, não são apenas os animais que elas tratam da maneira mais abominável, também crianças ou até adultos, como Penteu, um rei de Tebas que vai terminar dilacerado pelas garras deles e devorado por seus dentes. Para que possa medir o quanto a oposição entre os dois universos, o cósmico de Apolo e o caótico de Dioniso, pode ser brutal, me parece útil contar para você uma variante mais dura dessa mesma competição de música, uma que traz à cena o suplício atroz do infeliz Mársias.

 (Luc Ferry - A Sabedoria dos Mitos Gregos)

publicado às 04:29

Segundo o filólogo e filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844 - 1900):
"Reza a antiga lenda que o rei Midas perseguiu o sábio Sileno na floresta, durante longo tempo, sem conseguir apanhá-lo. Quando, por fim, ele veio a cair em suas mãos, perguntou-lhe qual dentre as coisas era a melhor e a mais preferível para o homem. Obstinado e imóvel, calava-se; até que, torturado pelo rei, prorrompeu finalmente, por entre um riso amarelo, nestas palavras: - Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! Por que me obrigas a dizer-te o que seria para ti mais salutar não ouvir? O melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer"
(Nietzsche, O nascimento da tragédia).
 
Midas pecou por hybris. Por isso a dura resposta de Sileno ao rei: "o  melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer". Analise as consequências dramáticas que a hybris acarreta à ordem cósmica (reflita sobre as citações do post "Hybris o cosmos ameaçado de retorno ao caos ou como a falta de sabedoria estraga a existência dos mortais"
 
Esta história encantadora traz uma mensagem bastante clara: a
riqueza é inútil quando as necessidades mais básicas da vida não podem ser atendidas.
Em última instância, os prazeres comuns do cotidiano adoçam a vida tanto de ricos
quanto de pobres. Quando não há esses prazeres — ou quando se perde a capacidade
de desfrutá-los —, não há riqueza capaz de supri-los. Num plano mais profundo, o
toque mortífero de Midas não diz respeito apenas à ganância e ao desejo de acumular
mais e mais riquezas; ele é também reflexo de algo interno ao ser humano que congela
tudo o que é vivo e caloroso, e impossibilita o simples relacionamento. É assim que
muitas pessoas, movidas pela necessidade de acumular riqueza, acabam congelando
sua capacidade de usufruir o simples prazer e trocas humanos; e a comida e a bebida
por que elas anseiam não são físicas, mas sim um tipo mais sutil de alimento, sem o
qual a vida não vale a pena.
Quando Midas toca em sua filha, ela também se transforma em ouro. As pessoas
não podem ser compradas, especialmente aquelas com quem desejamos ter os laços
mais fundamentais de afeição; e essa é uma imagem do “assassinato” de um
relacionamento pela valorização exagerada do dinheiro. Podemos vislumbrar os traços
reluzentes do rei Midas naquelas pessoas que se preocupam a tal ponto com a
acumulação de bens que afastam seus familiares e amigos, e depois se perguntam por
que se tornaram tão solitárias. Essa história simples ilustra vividamente a ingenuidade
dos homens em supor que a riqueza pode comprar a felicidade. É verdade que a
abundância de recursos pode afastar de nós muitas das vicissitudes da vida, e quem
sofreu com a falta de recursos sabe muito bem quanto a busca do dinheiro pode
dominar nossa vida, quando ele falta. Mas “suficiente” não é uma palavra que faça
parte do vocabulário de Midas. Ele não se contenta em ser um rei rico; quer ainda
mais. E é assim que sua ganância envenena tudo o que um dia lhe dera prazer.
Dioniso é um deus ambíguo, que fica feliz por conceder uma graça a Midas e, ao
mesmo tempo, diverte-se com as consequências trágicas da ganância do rei. É o senhor
do caos e do êxtase e o patrono de todos os que tentam ir além de seus limites terrenos
através da bebida, das drogas, da dança e da visão artística. Em suma, Dioniso é uma
força vital primária, que não está interessada na moral corriqueira, mas simboliza o
próprio fluxo da natureza. Ele não dá conselhos a Midas; simplesmente deixa que o rei
se meta numa enrascada e aprenda com seus próprios erros. E no fim é Dioniso quem o
liberta, ao recomendar um banho nas águas puras do Páctolo. Quando a cabeça de
Midas submerge, a maldição disfarçada de bênção é lavada. Em outras palavras,
Midas precisa se perder nessas águas e abrir mão de qualquer ideia de controle; só
então ficará livre para voltar à sua vida corriqueira. O único antídoto para o tipo de
ganância corrosiva que aflige Midas é a renúncia no nível mais profundo, ao orgulho e
ao desejo. Essa mensagem, aqui expressa em forma mítica, está no cerne de todos os
grandes ensinamentos religiosos do mundo.
Quantas vezes ouvimos as pessoas falarem em como serão felizes no dia em que
ganharem na loteria! Elas querem acreditar que a riqueza solucionará todos os seus
problemas, mas, com igual frequência, sabemos de ganhadores que ficam mais infelizes
do que nunca, por terem perdido todos os seus amigos e não conseguirem mais confiar
no amor e na lealdade dos outros. A riqueza não traz automaticamente a infelicidade.
Mas tampouco traz automaticamente a felicidade, a menos que o indivíduo seja capaz
de preservar a capacidade de satisfação comum na vida cotidiana. Em última análise, a
história do rei Midas não diz respeito aos supostos males da riqueza, mas ao poder que
a ganância tem de congelar e macular tudo aquilo que vivenciamos como belo e digno.

(Liz Greene, Juliet Sharman-Burke - Uma Viagem através dos Mitos)
 
 
 
O toque de Midas
 
Midas é rei. Mais precisamente, é um dos que reinam numa região chamada Frígia. Há quem diga que é filho de uma deusa com um mortal. É bem possível, mas o que se pode, de qualquer forma, garantir é que Midas não se destaca pela perspicácia. Para ser mais exato, ele inclusive é bastante idiota. Pensa muito devagar, “atrasado”, tarde demais. Age sem raciocinar, e sua tolice, como você vai ver, às vezes o deixa em má situação.
O caso que nos interessa começa com as desventuras de outro personagem importante na mitologia grega: Sileno. Ele é um deus de segundo escalão, uma divindade secundária, mas, mesmo assim, filho de Hermes.(Ou, para alguns, de Pã. Em francês, inclusive, é chamado “sileno” quem tem mais ou menos o seu perfi) Ele tem duas características notáveis. A primeira é uma cara que dá medo nas crianças. É incrivelmente feio: pesado, gordo, careca e barrigudo, ostenta um nariz horrivelmente achatado e orelhas de cavalo, peludas e pontudas, que lhe dão uma aparência apavorante. No mais, é inteligente e sensato. Não foi à toa que Zeus lhe confiou a educação de seu filho, Dioniso, que saiu da sua coxa. Com o tempo, Sileno fica amigo do pupilo e se inicia nos segredos mais profundos de que dispõe o deus do vinho e da festa, tornando-se, apesar das aparências, um autêntico sábio. Exceto numa particularidade, pois pertencendo ao séquito habitual dos foliões que em todas as circunstâncias acompanham Dioniso, ele às vezes exagera nas libações e abusa da garrafa. Em outras palavras, no momento em que começa a nossa história, Sileno está bêbado como um gambá ou, se preferir, não se lembra do seu nome nem onde mora! Segundo Ovídio, de quem adoto o poema, ele segue trôpego pelo peso da idade e do vinho, e os homens de Midas, ao verem o vagabundo cambaleante e de horrível aspecto, o interpelam, o prendem bem preso e o conduzem ao rei.
Acontece porém que Midas também já havia participado de algumas orgias e festas bem-regadas e reconhece Sileno. E como não ignora suas relações ao mesmo tempo paternais e amigáveis com Dioniso — um deus poderoso, sendo melhor não atrair sua ira —, manda que o soltem imediatamente. Mais ainda: com esperança de agradar ao deus, ordena que se celebrem festas suntuosas em homenagem ao hóspede, festas que duram nada menos do que dez dias e dez noites! Depois disso, Midas devolve seu novo melhor amigo ao jovem, mas poderoso, Dioniso. É claro, este último, agradecido, oferece a Midas a possibilidade de escolher a recompensa que quiser. “Recompensa agradável, mas perniciosa”, na bela expressão de Ovídio. Pois Midas, como eu disse, não é dos mais espertos. Além do quê, é ganancioso e cheio de cobiça. De forma que abusa — é onde começa sua hybris — da promessa de Dioniso. Faz um pedido exorbitante, propriamente desmedido; pede ao deus que lhe dê o poder de imediatamente transformar em ouro tudo em que tocar! É o famoso “toque de Midas”. Imagine só o que isso significa: onde quer que ele descanse a mão, tudo em que encosta, seja planta, pedra, líquido, animal ou ser humano, se transforma na mesma hora em metal amarelo e precioso! Nos primeiros momentos, o imbecil fica feliz e até louco de alegria. Como uma criança, Midas se diverte no caminho de volta para o palácio, transformando em tesouro precioso todas as coisas. Repara num galho de oliveira e — plim! — as belas folhas verdes ficam brilhantemente fulvas! Apanha no chão uma pedra, um miserável torrão de terra, quebra alguns gravetos e tudo se torna lingotes! “Rico, estou rico, o mais rico do mundo!”, o infeliz não para de exclamar, sem enxergar ainda o que o espera.
Pois você sem dúvida já adivinhou, e o que ele acha ser a absoluta fortuna logo, é claro, se metamorfoseia em desgraça funesta: no sentido próprio do termo, aquilo que traz a morte e anuncia o funeral da sua estúpida alegria. De fato, assim que Midas se instala bem confortável em seu palácio — do qual, evidentemente, ele com toda pressa transforma em ouro fino as paredes, os móveis e o soalho —, pede que sirvam algo para comer e beber. A alegria lhe abrira o apetite. No momento, porém, em que pega a taça de vinho fresco para relaxar, é um desagradável pó amarelo, horrível, que escorre por sua boca! O ouro não é bom de se beber. Ao agarrar a coxa de frango trazida pelo criado, atacando-a com entusiasmo, quase quebra os dentes! Midas entende então, meio tarde, que se não se livrar daquele dom, ele simplesmente vai morrer de fome e de sede. E começa a maldizer e a detestar todo esse ouro que o cerca, como também a tolice e a cobiça que o levaram a agir sem pensar. Felizmente para ele, Dioniso, que, é claro, havia previsto tudo, cavalheirescamente aceita retirar o dom transformado em maldição. Veja, segundo Ovídio, como o deus se dirige a Midas:
“Não podes ficar coberto pelo ouro que tão imprudentemente desejaste. Vai ao rio das proximidades da grande cidade de Sardes e, subindo o seu curso pela ribanceira das margens, segue o caminho até chegar à nascente; e ali, diante da fonte borbulhante, onde brotam águas abundantes, mergulha tua cabeça, lavando ao mesmo tempo teu corpo e o teu erro.” O rei, obediente à ordem, vai mergulhar na fonte; a virtude que possuía de tudo mudar em ouro dá às águas uma nova coloração, passando do corpo do homem ao rio. Hoje ainda, por ter recebido o gérmen do antigo filão, o chão daquele campo é endurecido pelo ouro que lança seus pálidos reflexos na gleba úmida.(Ovídio, Metamorfoses, XI)
Banhando-se, então, num rio, Midas recobra seu estado normal. É um belo símbolo: com a água pura do rio ele lava, como sugeriu Ovídio, tanto o ouro quanto a culpa. Mas a água em si fica afetada: dizem que, desde essa época, ela não para de carregar em seu fluxo magníficas pepitas de ouro. E sabe como se chama esse rio? Pactolo! Por isso a palavra continua designando, até hoje, um tesouro, uma fortuna, e dizemos de alguém que descobre alguma riqueza inexplorada que “encontrou o pactolo”. No entanto, não sei se ainda compreendemos bem o sentido desse mito. Com nossa visão moderna, marcada por vinte séculos de cristianismo, temos tendência a achar que a fábula significa, de maneira geral, que Midas pecou sobretudo por avareza e cobiça. Para nós, a lição da história pode se formular mais ou menos da seguinte maneira: Midas confundiu o superficial com o essencial e acreditou que a riqueza, o ouro, o poder e as posses que isso traz constituem a meta maior da vida humana. Confundiu o ter e o ser, a aparência e a verdade. E foi, de forma justa, punido. Teve o que merecia. Na verdade, porém, o mito grego vai bem mais longe. Tem, mais secretamente, uma dimensão cósmica que não se limita de forma alguma ao lugar-comum, dizendo que “o dinheiro não traz a felicidade”.
Com seu toque de ouro, de fato, Midas se tornou uma espécie de monstro. Potencialmente, é a própria ordem cósmica em sua totalidade que ele passa a ameaçar: tudo o que ele toca, morre, pois seu poder terrível chega a transformar o orgânico em inorgânico, o vivo em matéria inanimada. De certa maneira, ele é o contrário de um criador de mundo, uma espécie de antideus, para não dizer de demônio. As folhas, os galhos de árvore, as flores, os pássaros e demais animais em que ele toca deixam de ocupar o lugar e a função no coração do universo com o qual, até um instante atrás, ainda viviam em perfeita harmonia. Basta que Midas encoste neles para que mudem de natureza e, potencialmente, tal poder devastador é infinito, sem fim; ninguém sabe até que ponto isso pode chegar. No limite, talvez o cosmos inteiro possa ser assim alterado. Imagine só se Midas viajar e conseguir metamorfosear nosso planeta em uma gigantesca bola metálica dourada, mas morta, totalmente desprovida das qualidades que os deuses lhe conferiram inicialmente, no momento da divisão primordial do mundo por Zeus, após a vitória sobre as forças caóticas dos Titãs, dos Gigantes e de Tífon! Seria o fim de todas as formas de vida e de harmonia...
Se quisermos a todo custo fazer uma comparação com o cristianismo, a mesma ideia incide em maior profundidade do que parece à primeira vista. Como no mito do doutor Frankenstein, inspirado em lendas antigas nascidas na Alemanha do século XVI, as desventuras do rei Midas, na verdade, contam a história de uma trágica privação. O doutor Frankenstein também queria se igualar aos deuses. Sonha poder dar vida, como fizera o Criador. Passa a existência inteira procurando como conseguir reanimar os mortos. E, um belo dia, consegue. Reúne cadáveres, roubados do necrotério do hospital, e, usando a eletricidade do céu, dá vida ao monstro fabricado a partir de corpos em decomposição. De início, tudo funciona bem, e Frankenstein se toma por um verdadeiro gênio da medicina. Mas o monstro pouco a pouco assume sua independência e foge. Como seu aspecto é abominável, ele espalha o terror e a desolação por todo lugar em que passa, de forma que, como reação, ele próprio se torna mau e ameaça devastar a terra e seus habitantes. Privação trágica: a criatura escapa de seu criador, que fica, por assim dizer, frustrado. Ele perde o controle — o que, é claro, na perspectiva cristã que domina esse mito, significa que o homem que se toma por Deus segue direto para a catástrofe.
É num sentido análogo que se deve entender o mito de Midas, mesmo que o deus, ou, no caso dos gregos, os deuses, não seja o dos cristãos. Midas, como Frankenstein, quis atribuir a si mesmo, com o toque de ouro, um poder divino, uma capacidade que ultrapassa de longe qualquer sabedoria humana, a começar pela sua própria, que era reduzida: revirar a ordem cósmica. Como o doutor Frankenstein, ele rapidamente perde todo o controle relativo às suas novas atribuições. O que ele acreditava dominar lhe escapa inteiramente, de forma que lhe resta apenas implorar à divindade, Dioniso no caso, para voltar a ser um simples humano. De maneira bem significativa, é essa mesma ameaça de caos por hybris que volta à cena na segunda parte do mito de Midas, em que esse grande bobalhão será severamente punido por Apolo.

(Luc Ferry _ A Sabedoria dos Mitos Gregos)

publicado às 02:13


O mito da caverna (c. 375 aC)

por Thynus, em 13.02.16
Imagine que você passou a vida inteira aprisionado numa caverna. Seus pés e suas mãos estão acorrentados e a sua cabeça está presa, de modo que você só consegue olhar para uma parede à sua frente. Atrás de você há uma fogueira acesa, e entre você e o fogo há uma passarela usada por seus captores para transportar estátuas de pessoas e vários outros objetos de um lado para outro. As sombras que esses objetos lançam na parede são as únicas coisas que você e seus companheiros de prisão já viram na vida, as únicas coisas sobre as quais pensam e conversam.

Talvez a mais conhecida das muitas imagens e analogias usadas pelo filósofo grego Platão, o mito da caverna aparece no volume 7 da República, obra monumental na qual ele investiga o que seria o Estado ideal e seu governante ideal – o rei filósofo. A justificativa de Platão para entregar as rédeas do governo aos filósofos apoia-se num detalhado estudo da verdade e do conhecimento, e é nesse contexto que a alegoria da caverna é usada.
A concepção de Platão sobre o conhecimento e seus objetos é complexa e multifacetada, como se torna claro à medida que a parábola da caverna continua. Agora suponha que você foi libertado das correntes e pode andar pela caverna. A princípio meio cego pela claridade do fogo, aos poucos você passa a ver a caverna como ela é e entende a origem das sombras que anteriormente você considerava como realidade. Por fim, você recebe permissão para sair da caverna e conhecer o mundo do lado de fora, ensolarado, onde você enxerga a plenitude da realidade iluminada pelo mais brilhante objeto no céu, o Sol.
As sombras da vida
 
Interpretando a caverna
A detalhada interpretação da caverna de Platão já foi muito debatida, mas existe um significado mais amplo bastante claro. A caverna representa “o campo do existir” – o mundo visível da nossa experiência cotidiana, no qual tudo é imperfeito e muda constantemente. Os prisioneiros acorrentados (que simbolizam as pessoas comuns) vivem num mundo de conjecturas e ilusão, enquanto o antigo prisioneiro, livre para explorar a caverna, obtém a visão mais fiel possível da realidade dentro do mundo sempre mutante da percepção e da experiência. Por contraste, o mundo fora da caverna representa “o campo do ser” – o mundo inteligível da verdade povoado pelos objetos do conhecimento, que são perfeitos, eternos e imutáveis.

A Teoria das Formas
Na visão de Platão, o que é conhecido deve não apenas ser verdadeiro como também perfeito e imutável. No entanto, nada no mundo empírico (representado pela vida dentro da caverna) se encaixa nessa descrição: uma pessoa alta parece baixa perto de uma árvore; a maçã que parece vermelha de dia, à noite parece preta; e assim por diante. Como nada no mundo empírico é um objeto do conhecimento, Platão propôs que deve existir outro domínio (o mundo fora da caverna) de entidades perfeitas ou imutáveis, que ele denominou “Formas” (ou Ideias).

«Cuidado! Seres humanos vivendo numa caverna subterrânea… Como nós… Eles veem apenas as próprias sombras, ou as sombras uns dos outros, que o fogo lança na parede oposta da caverna.» Platão, c. 375 a.C.

Amor platônico 
A ideia com a qual Platão é mais identificado hoje em dia – a do chamado amor platônico – vem naturalmente do forte contraste feito pelo mito da caverna entre o mundo intelectual e o mundo dos sentidos. A afirmação clássica da ideia de que o tipo de amor mais perfeito é expresso não só fisicamente, mas também intelectualmente, aparece em outro famoso diálogo, Simpósio.

Então, por exemplo, é por meio da imitação ou cópia da Forma da Justiça que todas as ações especificamente justas são justas. Como é sugerido pelo mito da caverna, existe uma hierarquia entre as Formas, e acima de todas está a Forma do Bem (representada pelo Sol), que dá às outras o seu significado maior e, inclusive, é a base de sua existência.

A questão dos universais
A Teoria das Formas de Platão – e a base metafísica que a sustenta – pode parecer exótica e complicada, mas a questão da qual ela procura tratar – a chamada “questão dos universais” – tem sido um tema recorrente na filosofia, de uma maneira ou de outra, desde então. Na Idade Média, as linhas de batalha filosóficas separavam de um lado os realistas (ou platonistas), que acreditavam que universais como vermelhidão e altura existiam independentemente de coisas vermelhas ou altas em si, e de outro lado os nominalistas, que afirmavam que vermelhidão e altura eram meros nomes ou rótulos colocados em objetos para salientar similaridades particulares entre eles.
A mesma distinção básica, que costuma ser expressa em termos de realismo e antirrealismo, ainda ecoa em várias áreas da filosofia moderna. Uma posição realista sustenta que há entidades “lá fora” no mundo – coisas físicas ou ações éticas ou propriedades matemáticas – que existem independentemente do nosso conhecimento ou do fato de já as termos experimentado. Opostos a esse ponto de vista, outros filósofos, conhecidos como antirrealistas, propõem que existe uma ligação ou relação necessária e interna entre o que é conhecido e o nosso conhecimento disso. Os termos básicos de todos esses debates foram estabelecidos mais de 2000 anos atrás por Platão, um dos primeiros e mais radicais dos filósofos realistas. 

Na cultura popular 
Há um claro eco do mito da caverna de Platão nos escritos de C. S. Lewis, autor de sete obras de literatura fantástica que, juntas, formam As crônicas de Nárnia. No fim do último livro, A última batalha, as crianças protagonistas da história testemunham a destruição de Nárnia e vão para o País de Aslan, um lugar maravilhoso que engloba tudo o que havia de melhor em Nárnia e na Inglaterra que ficou em suas lembranças. As crianças descobrem, por fim, que na verdade haviam morrido e saído das Terras Sombrias, uma pálida imitação do mundo eterno e imutável que habitavam agora. Apesar da mensagem cristã óbvia aqui, a influência de Platão é clara – um dos incontáveis exemplos do enorme (e muitas vezes inesperado) impacto que o filósofo grego tem sobre a cultura, a religião e a arte ocidentais.

Em defesa de Sócrates
Em seu mito da caverna, Platão tenta fazer mais que iluminar suas ideias características sobre a realidade e o nosso conhecimento a respeito dela. Isso se torna claro no final da história. Tendo ascendido ao mundo externo e reconhecido a natureza última da verdade e da realidade, o prisioneiro liberto fica ansioso para voltar à caverna e tirar os seus antigos companheiros das trevas do conhecimento. Mas, acostumado agora à luz do mundo externo, a princípio ele tropeça na escuridão da caverna e é considerado um tolo pelos que ainda estão acorrentados. Eles acham que a viagem feita pelo amigo perturbou-o; não querem ouvi-lo, e podem até matá-lo, se ele persistir. Nessa passagem, Platão alude à dificuldade encontrada pelos filósofos – serem ridicularizados ou rejeitados – ao tentar levar conhecimento às pessoas comuns e conduzi-las ao caminho da sabedoria. Ele também pensa no destino de seu professor, Sócrates (seu porta-voz em República e na maioria de seus outros diálogos), que a vida toda se recusou a moderar seus ensinamentos filosóficos e, em 399 a.C., foi executado pelo Estado ateniense.

a ideia resumida:
O conhecimento mundano é
apenas uma
sombra

(Dupré, Ben - 50 ideias de filosofia que você precisa conhecer)

 

publicado às 23:06


Atos e omissões

por Thynus, em 13.02.16
A água já chegou ao peito dos que estão na caverna e continua a subir rapidamente. Se a equipe de resgate não agir logo, os oito homens morrerão em menos de meia hora. Mas o que os salvadores podem fazer? Não há como tirar os homens do local a tempo, não há como cortar o fluxo de água. A única opção é desviar o fluxo para uma caverna menor nas proximidades. Mas na caverna menor ficaram presos os dois outros homens que se separaram do grupo principal: eles estão bem e esperam pacientemente serem resgatados de lá. Desviar o fluxo de água inundará a caverna menor em minutos e os dois homens lá dentro vão se afogar. O que a equipe de regate deve fazer? Cruzar os braços e deixar os oito homens morrerem, ou salvá-los à custa da vida dos outros dois homens?

Um dilema terrível, sem resposta fácil. Suponha que realmente existam apenas duas opções: desviar o fluxo de água, que é uma intervenção deliberada que causará a morte de dois homens que, se nada for feito, continuarão vivos; e cruzar os braços sem fazer nada, o que causará a morte de oito homens que poderiam ter sido salvos. Embora a segunda opção seja pior quando se trata de vidas perdidas, muitos consideram pior agir de um modo que cause a morte de alguém do que permitir que alguém morra por falta de ação. A suposta diferença moral entre o que você faz e o que você permite que aconteça – a chamada doutrina ato-omissão – divide, de modo previsível, os teoristas éticos. Os que insistem que o valor moral de uma ação deveria ser julgado apenas por suas consequências rejeitam a doutrina, ao passo que ela é aprovada pelos filósofos que dão ênfase à propriedade intrínseca de certos tipos de ação e ao nosso dever de executar tais ações sem considerar as consequências (veja a página 76).

O princípio do duplo efeito 
Na avaliação moral de uma ação, a intenção do agente costuma ser crucial. Nossas ações podem ser censuráveis mesmo que suas más consequências não tenham sido intencionais (elas podem indicar negligência, por exemplo), mas as mesmas ações podem ser julgadas com mais rigor se as consequências forem intencionais. Muito próximo da doutrina ato-omissão, o princípio do duplo efeito aciona a ideia de separar as consequências intencionais de uma ação das consequências meramente previstas. Uma ação que tem resultados bons e ruins pode então ser justificada moralmente se foi realizada com a intenção de produzir bons resultados, enquanto que os resultados ruins foram previstos, mas não intencionais. O princípio tem sido aplicado a casos como os descritos a seguir:
• A vida de uma mãe é salva pela remoção cirúrgica (pela morte, portanto) de um feto: salvar a vida da mãe é intencional; matar o feto é previsto, mas não intencional. 
• Medicamentos contra a dor são dados a pacientes terminais: a intenção é aliviar a dor que sentem; o efeito colateral conhecido, mas não intencional, é que a vida dos pacientes será abreviada. 
• A fábrica de munição do inimigo é bombardeada: a intenção é destruir a fábrica; a consequência prevista, mas não intencional (ou “dano colateral”), é a morte de muitos civis que moram perto da fábrica.
Em todos esses casos, a ideia do efeito duplo é usada para sustentar a alegação de que as ações realizadas são moralmente defensáveis. A doutrina costuma ser usada por pensadores que favorecem uma concepção de moralidade absolutista ou baseada no dever (deontológica) para explicar casos nos quais há deveres conflitantes e direitos são aparentemente desrespeitados. O princípio tem êxito ou fracassa quando se faz a distinção entre intenção e previsão; mas ainda é motivo de debates o fato de essa distinção ser capaz ou não de suportar o peso que lhe é imposto.  

Brincando de Deus
Qualquer que seja a força de nossas intuições aqui, a distinção parece enfraquecer quanto mais a examinamos. Muito do seu apelo, especialmente em questões de vida e morte, mexe com o nosso medo de, ao fazermos algo, “brincarmos de Deus” – decidindo quem deve viver e quem deve morrer. Mas em que sentido moralmente relevante “cruzar os braços” é não fazer nada? Não agir é uma decisão, assim como agir, então parece que nos dois casos não há opção além de brincar de Deus. Seríamos mais clementes com pais que decidem afogar os filhos na banheira ou com pais que não alimentam os filhos e os deixam morrer de fome lentamente? Distinções precisas entre matar e deixar morrer parecem grotescas nesses casos, e relutaríamos em dizer que a “omissão” foi em qualquer sentido menos censurável que a “ação”.
A suposta distinção moral entre coisas feitas e coisas que receberam permissão para acontecer costuma ser evocada em áreas médicas eticamente delicadas, como a eutanásia. Nesse caso, a distinção costuma ser feita entre a eutanásia ativa, na qual o tratamento médico apressa a morte de um paciente, e a eutanásia passiva, na qual a morte resulta da interrupção do tratamento. Muitos sistemas legais (provavelmente seguindo nossos instintos, nesse caso) escolhem reconhecer essa diferença, mas, de novo, é difícil ver qualquer distinção moralmente relevante entre, digamos, administrar drogas que induzem a morte (um ato deliberado) e parar de administrar drogas que prolongam a vida (uma não ação deliberada). A posição legal se baseia, em parte, na noção (quase sempre religiosa em sua origem) da santidade da vida humana; mas, ao menos no que se refere ao debate sobre a eutanásia, essa é primariamente uma preocupação com a vida humana em si, sem levar em consideração sua qualidade ou as preferências do ser humano cuja vida está sendo decidida. Dessa maneira, a lei tem a consequência bizarra de tratar um ser humano em situação de extremo desconforto ou sofrimento com uma consideração menor que a normalmente oferecida a um animal de estimação ou de fazenda em circunstâncias semelhantes. 

São Tomás de Aquino sobre a autodefesa
 
A formulação do princípio que mais tarde se tornou conhecido como doutrina do efeito duplo costuma ser creditada a Tomás de Aquino, filósofo do século XIII. Ao discutir a justificação moral de matar em autodefesa, ele criou distinções que são notavelmente próximas das utilizadas em definições legais modernas. A asserção clássica da doutrina aparece na sua obra Suma Teológica:
“Nada emperra mais uma ação que ter dois efeitos, com apenas um intencional, enquanto o outro está além da intenção… o ato de autodefesa pode ter dois efeitos, um é o de salvar a própria vida, o outro é o de matar o agressor. Consequentemente, esse ato, desde que a intenção da pessoa seja salvar a própria vida, não é ilegal, visto que é em tudo natural querer conservar a existência, até quando for possível. Mesmo assim, embora procedendo de uma boa intenção, um ato pode tornar-se ilegal, se for desproporcional ao fim. Por essa razão, se um homem, em autodefesa, usar de mais violência que o necessário, estará fora da lei; mas, se ele repelir a força com moderação, sua defesa será legal”.

Enola Gay 
O que teria acontecido se o bombardeiro B-29 Enola Gay não tivesse jogado a primeira bomba atômica em Hiroshima em 6 de agosto de 1945? É bem provável que essa ação, seguida pelo lançamento de uma segunda bomba em Nagasaki três dias depois, tenha apressado o fim da Segunda Guerra Mundial: o Japão se rendeu em 14 de agosto.
Pode-se argumentar que, apesar de o ato deliberado ter causado uma quantidade horrenda de mortes, muito mais vidas foram salvas quando se evitou uma invasão sangrenta do Japão. Sendo assim, a decisão de jogar “a bomba” foi justificada? Na opinião do presidente Truman, “Lançar a bomba não foi uma decisão difícil”. 

 
a ideia resumida:
Agir ou não agir?
 
(Dupré, Ben - 50 ideias de filosofia que você precisa conhecer)

publicado às 02:39


A carne de um homem…

por Thynus, em 12.02.16
“Quando Dario era rei da Pérsia, chamou os gregos que estavam em sua corte e perguntou-lhes o que aceitariam para comer os cadáveres de seus pais. Eles responderam que não o fariam nem por todo o dinheiro do mundo. Mais tarde, na presença dos gregos, e por meio de um intérprete, Dario perguntou a alguns indianos, da tribo chamada Callatiae, que comem os cadáveres dos pais, o que aceitariam para queimar-lhes os corpos [como era costume dos gregos]. Eles deram um grito de horror e o proibiram de mencionar algo tão terrível.”

Quem tinha razão, os gregos ou os callatians? Podemos empalidecer diante da ideia de comer nossos pais, mas não mais que os callatians empalideceriam com a ideia de queimar os próprios pais. No fim, concordaríamos com Heródoto, o filósofo grego que registrou essa história, quando ele citou com aprovação o poeta Píndaro: “O costume é soberano”. Não se trata de um lado estar certo e o outro, errado; não existe “resposta certa”. Cada grupo tem seu próprio código de costumes e tradições; cada um se comporta corretamente de acordo com o seu próprio código, e é a esse código que cada grupo apela ao defender suas respectivas formas de funeral. Nesse caso, o que é moralmente certo não parece ser absoluto, de um jeito ou de outro – é relativo à cultura e às tradições dos grupos sociais envolvidos. Existem, é claro, inúmeros outros exemplos dessa diversidade cultural, tanto geográfica quanto histórica.
É com base em casos como esses que o relativista argumenta que não existem verdades absolutas ou universais: todas as avaliações e considerações deveriam ser feitas apenas em relação às normas sociais dos grupos envolvidos. 

Vive la différence
A proposta do relativista é, com efeito, que tratemos julgamentos morais como se fossem estéticos. Em matéria de gosto, não costuma ser apropriado falar em erro: de gustibus non disputandum – “sobre gostos não se discute”. Se você diz que gosta de tomate e eu não gosto, concordamos em discordar; algo é verdadeiro para você, mas não é para mim. Em tais casos, a verdade segue a sinceridade: se digo com sinceridade que gosto de algo, não posso estar errado – isso é verdade (para mim). Seguindo essa analogia, se nós (como sociedade) aprovamos a pena de morte, ela é moralmente certa (para nós), e não é algo sobre o qual possamos estar equivocados. E assim como não tentaríamos persuadir as pessoas a pararem de gostar de tomates nem as criticaríamos por isso, no caso moral a persuasão ou a crítica seriam inapropriadas. Na verdade, é claro, nossa vida moral está cheia de argumento e censura, e costumamos ter opiniões fortes sobre assuntos como a pena de morte. Podemos até discutir o assunto com nós mesmos ao longo dos anos; posso mudar de ideia sobre uma questão moral, e podemos coletivamente mudar de opinião sobre, por exemplo, uma questão como a escravidão. O relativista absoluto diria que uma coisa é certa para alguns e não para outros, ou certa para mim (ou nós) num momento, mas não em outro. E, no caso da escravidão, da circuncisão feminina, do infanticídio legal etc., o relativista ficaria numa posição bastante desconfortável.
Essa falha do relativismo em levar a sério aspectos que são tão obviamente característicos da nossa vida moral verdadeira costuma ser vista como um golpe fatal contra essa tese, mas os relativistas tentam transformá-la numa vantagem. Talvez, argumentam eles, não devêssemos julgar ou criticar os outros. A lição dos gregos e callatians é que precisamos ser mais tolerantes com os outros, mais abertos, mais sensíveis a outros costumes e práticas. Essa linha de argumentação levou muitos a associarem relativismo a tolerância e abertura de espírito, e, por contraste, os não relativistas são retratados como intolerantes e impacientes em relação a práticas diferentes das suas.
Levada ao extremo, essa diferença leva à imagem de um Ocidente de cultura imperialista que arrogantemente impõe seus pontos de vista a outros ignorantes. Mas isso é uma caricatura: na verdade, não existe incompatibilidade entre ter uma visão geralmente tolerante das coisas e ainda assim admitir que em alguns assuntos outros povos ou culturas cometem erros. De fato, algo que frustra o relativista é que só o não relativista pode ter tolerância e sensibilidade cultural como virtudes universais (veja box a seguir)!

«O que é moralidade num dado tempo ou lugar? É aquilo de que a maioria naquele tempo e lugar gosta, e imoralidade é aquilo de que não gosta.»
Alfred North Whitehead, 1941
 
Colocando o conhecimento em perspectiva 
 O absurdo do relativismo absoluto e os perigos de sua adoção indiscriminada como mantra político (veja boxes) significam que insights oferecidos por uma forma mais branda de relativismo às vezes passam despercebidos. A mais importante lição do relativismo é que o conhecimento em si é perspectivo: nossa visão de mundo parte sempre de certa perspectiva ou de um ponto de vista; não existe uma plataforma de observação externa da qual possamos enxergar o mundo “como realmente é”.
Esse ponto costuma ser explicado em termos de quadros conceituais, ou, mais simplesmente: só podemos ter uma compreensão intelectual da realidade de dentro do nosso próprio quadro conceitual, determinado por uma combinação complexa de fatores que incluem nossa cultura e história. Mas o fato de não podermos sair de nosso esquema conceitual particular e ter uma visão objetiva das coisas – uma “visão ampla” – não significa que sejamos incapazes de conhecer as coisas. Uma perspectiva tem de ser uma perspectiva sobre algo, e ao compartilhar e comparar nossas diferentes perspectivas podemos ter esperança de expor várias crenças à luz e alcançar uma visão mais completa e “estereoscópica” do mundo. Essa imagem benigna sugere que o progresso rumo ao entendimento será feito por meio de colaboração, comunicação e intercâmbio de pontos de vista: um legado bastante positivo de relativismo.
 

Às voltas com o relativismo 
O relativismo forte ou radical – a ideia de que todas as afirmações (morais e tudo o mais) são relativas – logo se enrosca em um monte de laçadas. A afirmação de que todas as afirmações são relativas é em si relativa? Bem, precisa ser, para evitar a autocontradição; mas, se for, significa que minha afirmação de que todas as afirmações são absolutas é verdadeira para mim. Esse tipo de incoerência rapidamente contamina tudo o mais. Os relativistas não podem dizer que é sempre errado criticar os hábitos culturais de outras sociedades, pois isso pode ser algo certo para eu fazer. E eles não podem manter que é sempre certo ser tolerante e ter espírito aberto, pois pode ser correto para algum autocrata esmagar todos os sinais de dissidência. No geral, relativistas não podem, com coerência e sem hipocrisia, afirmar a validade de sua própria posição. A natureza de autocontestação do relativismo absoluto foi detectada em seu início por Platão, que prontamente apontou as inconsistências na posição relativista adotada pelo sofista Protágoras (no diálogo de mesmo nome). A lição tirada disso tudo é que a discussão racional depende do compartilhamento de algum ponto em comum; temos de concordar em algo, ter alguma verdade em comum, para nos comunicarmos de modo significativo. Mas é justamente esse ponto em comum que o relativismo radical nega.

Vale tudo? 
“Hoje em dia, um obstáculo particularmente insidioso à tarefa de educar é a presença maciça, em nossa sociedade e cultura, de um relativismo que, sem reconhecer nada como definitivo, estabelece como critério principal o eu e seus desejos. E sob uma aparência de liberdade isso se torna uma prisão para cada indivíduo, pois separa as pessoas umas das outras, aprisionando cada pessoa no seu próprio ‘ego’.” (Papa Bento XVI, junho de 2005)

Ao longo das últimas décadas, a ideia de relativismo adquiriu um significado político e social que estende seu significado original além de qualquer ponto de ruptura. Da ideia de que não existem verdades absolutas – “tudo é relativo” – foi deduzido que tudo é igualmente válido, portanto, “vale tudo”. Pelo menos, o fato de que tal dedução exista é algo no qual acreditam forças reacionárias, incluindo partes da Igreja Católica, que ligam licenciosidade moral (especialmente sexual) e desintegração social a forças relativistas à solta no mundo. Por outro lado, alguns libertários esquivam-se alegremente de analisar a lógica de perto e transformaram a frase “vale tudo” em seu mantra político. Ou seja, lados opostos tomaram posição: alegria de um lado, horror do outro, com o relativismo encolhido no meio.


a ideia resumida:
Tudo é relativo?
 
(Dupré, Ben - 50 ideias de filosofia que você precisa conhecer)

publicado às 05:55



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