Pode ser simples querer, mas não é fácil compreender a mídia nos dias de hoje. Se há um campo em que as teorizações estão tendo enormes dificuldades, esse é um deles. Normalmente o que acontece é que os fatos vão se sucedendo e os estudiosos tentam refletir sobre eles para descrevê-los, sistematizá-los, compreendê-los, explicá-los e, raras vezes as teorias chegam a tal, transformá-los. Essas seriam as funções das teorias. Mas no caso da mídia, os fatos correm muito mais velozes que as teorias e quando chegamos lá, a realidade já está muito mudada. O que vemos, então, são vazamentos teóricos de todo tipo. Um exemplo, apenas para comprovar isso.
É fácil constatar a enorme influência da mídia na política. O livro de Thompson (2002), sobre escândalo político, mostra que a política é, hoje, ininteligível sem que levemos em consideração a variável mídia. A política e os políticos trabalham com um material especial, que é a credibilidade. A matéria prima da política é a credibilidade, um capital simbólico. Ora, a mídia é o meio de produção desse capital, tanto para construí-lo, como para destruí-lo, como é o caso do escândalo político. Agora vejamos: os analistas políticos são unânimes em mostrar que a grande mídia, no caso da campanha de Luiz Inácio Lula da Silva para Presidente da República do Brasil, tanto no primeiro como no segundo turno das eleições de outubro de 2006, tentou impedir que ele fosse reeleito, chegando a apostar, de modo inequívoco, em sua queda. Alguns chegam a afirmar que a mídia deu um tiro no pé. O jornalista Luis Nassif (2006) escreveu que
ao adotar um pensamento único, elitista e anti-Lula, a mídia entrou numa rota suicida. Um suicídio editorial. Jornalistas com 40 anos de carreira, com 365 artigos por ano, um por dia, sobre o mesmo assunto, todo dia pedindo a cabeça do Lula. Uma guerra santa, inconcebível com o papel da mídia, capitaneada por Veja, Folha de S. Paulo, Estadão, Globo, na imprensa, e pela própria Globo, na TV.
E no que deu tudo isso? Apesar do suposto poderio arrasador da mídia, não conseguiram seu intento. Como explicar? Essa é mais uma rachadura nas teorias. Precisamos de teorias que fechem essas brechas. O que nos propomos aqui é uma discussão que traga elementos para melhor compreender o papel que a mídia exerce em nossa sociedade, juntamente com sugestões para podermos transformar certas práticas por ela empregadas que dificilmente podem ser consideradas democráticas.
Dividimos esse trabalho em três partes interligadas. Iniciamos com uma sensibilização sobre a importância e o papel da mídia. Muitos ainda não se deram conta do que a mídia representa nos dias de hoje. A seguir, discutimos a questão de democratização da mídia. Se a mídia é tão importante, devemos nos perguntar se ela está de fato a serviço da sociedade. Finalmente, numa terceira parte, queremos apresentar algo propositivo: o que se pode fazer, se quisermos pensar numa mídia democrática e cidadã.
Para uma sensibilização sobre a mídia As sociedades modernas são marcadas por uma característica nova, que penetra todas as esferas dessa sociedade: é a presença, ou a onipresença, do que se costuma chamar de mídia. Vivemos hoje, na expressão de J. Thompson (2005) uma sociedade midiada e uma cultura midiada: não há instância de nossa sociedade que não tenha uma relação profunda com a mídia e que não esteja intrinsecamente contaminada por ela, desde a economia, passando pela educação, religião, etc. e chegando, de maneira mais radical, à própria política (THOMPSON, 2002).
Ao olharmos ao redor constatamos que cada um de nós está obviamente cercado, tanto individual como coletivamente, por palavras, idéias e imagens que penetram nossos olhos, nossos ouvidos e nossa mente, quer queiramos ou não e que nos atingem, sem que o saibamos, do mesmo modo que milhares de mensagens enviadas por ondas eletromagnéticas circulam no ar sem que as vejamos e se tornam palavras em um receptor de telefone, ou se tornam imagens na tela de televisão.
Nessa realidade permeada de sinais vemos, como diz Moscovici (2002, p. 205), “as representações sociais se construindo, por assim dizer, diante de nossos olhos, na mídia, nos lugares públicos, através desse processo de comunicação que nunca acontece, contudo, sem alguma transformação” e contradição. O Zeitgeist, hoje, é a comunicação. Depois da II Grande Guerra não foi mais possível, como o fora antes, fundamentar a sociedade ou em crenças ou nas relações de trabalho: ela se fundamenta agora na comunicação e na produção de conhecimento através da informação. “É isso que escapa aos psicólogos sociais, que ficam apenas nas relações interpessoais” (MOSCOVICI, 2002, p. 206). A comunicação constrói, hoje, o novo ambiente social. À medida que a comunicação se acelera em nossa sociedade, a extensão da mídia- visual, escrita e áudio- no espaço social vai crescendo sem interrupção. Tal fato traz conseqüências no que se refere à percepção da realidade: as diferenças entre os vários aspectos dessas realidades são obscurecidas, os limites entre o aspecto material e seu aspecto conceitual são eliminados e o que se vê são sempre mais representações de representações, mais e mais simbólicas. A questão de ligar representações a realidades não é mais, então, uma questão filosófica, mas psicológica.
No intuito de aprofundar um pouco mais esse novo ambiente social e cultural, comento quatro afirmações que podem ajudar a compreender a importância do fenômeno dos meios de comunicação hoje.
A primeira afirmativa é: a comunicação, hoje, constrói a realidade. É difícil definir o que seja realidade. Entendemos por realidade aqui o que existe, o que tem valor, o que traz as respostas, o que legitima e dá densidade significativa ao nosso cotidiano. Desse modo, hoje algo passa a existir ou deixa de existir, sociologicamente falando, se é midiado, ou não. É o que se deduz, por exemplo, de diálogos cotidianos e rotineiros, ouvidos com muita freqüência, como quando alguém diz: Interessante, acabou a greve! E se o interlocutor pergunta por que, a resposta é rápida e convincente: Não se vê mais nada na TV! Não há mais nada nos jornais! Pois é a isso que me refiro: alguma realidade, algum fato nos dias de hoje existe, ou deixa de existir, se é ou não veiculado pelos meios de comunicação. A mídia tem, na contemporaneidade, o poder de instituir o que é ou não real, existente.
A segunda afirmativa é um complemento da primeira e muito importante quando se discutem as Representações Sociais (RS): a mídia não só diz o que existe e, conseqüentemente, o que não existe, por não ser veiculado, mas dá uma conotação valorativa à realidade existente. Ao dizer que algo existe, digo, igualmente, se aquilo é bom ou ruim. Em princípio, as realidades veiculadas pela mídia são boas e verdadeiras, a não ser que seja dito expressamente o contrário. O que está na mídia não é só, então, o existente, mas contém igualmente algo de positivo. Isso é transmitido aos ouvintes ou telespectadores, isto é, as pessoas que aparecem na mídia são as que existem e são importantes, dignas de respeito.
A terceira afirmativa aprofunda a compreensão da primeira: a mídia, hoje, coloca a agenda de discussão. Isto é, ao redor de 80% dos temas e assuntos que são falados no trânsito, no trabalho, em casa e nos encontros sociais são colocados em discussão pela mídia. Neste sentido, ela determina, até certo ponto, o que deve ser falado e discutido. Alguém ao ler essa afirmativa pode retrucar: tudo bem, até pode ser verdade que a mídia coloca os assuntos em pauta, mas nós podemos discordar deles, criticá-los, não aceitá-los. Que bom se assim fosse! Há algo, contudo, que nós não podemos fazer- e aqui está a conseqüência mais séria dessa questão: se a mídia decidir que algum assunto, ou algum tema, não deva ser discutido pela população de determinada sociedade, ela tem o poder de excluí-lo da pauta! Uma população inteira fica impossibilitada de saber e conhecer que tal problema existe numa sociedade ou que tal fato sucedeu nesse local. Essa é a força de quem detém o poder de decidir sobre o conteúdo da pauta. Na grande discussão nacional que a mídia tem como tarefa fundamental instituir, ela tem o poder de selecionar e criar a pauta, podendo incluir apenas temas que lhe interessam e excluir os que podem vir a contestá-la. Uma das informações mais importantes, por exemplo, que é negada aos ouvintes e telespectadores é a informação sobre a própria mídia e sobre os direitos que as pessoas têm com respeito à informação e à comunicação.
Finalmente, há uma quarta afirmativa extremamente central ao que se pretende discutir. Sabemos que o ser humano se constrói a partir das relações que ele vai estabelecendo no espaço de sua existência. Nos dias de hoje, contudo, principalmente a partir dos últimos 30 anos, pode-se dizer que existe um novo personagem dentro de casa, que está presente em nossas vidas e com quem nós mais estamos em contato. A média de horas diárias que o brasileiro fica diante da TV, por exemplo, é de 4. Em algumas vilas periféricas de cidades brasileiras que pesquisamos, a média chega a 6 horas e para as crianças, que os pais têm medo de deixar na rua, chega a 9 horas diárias. Pois é com esse novo personagem que nós passamos hoje a nos relacionar, numa relação que Thompson (1998) chamou de quase interação midiada.
Queiramos ou não, tal fato tem a ver com a constituição e construção de nossa subjetividade. Se examinarmos as características de tal personagem, constatamos que ele é praticamente o único que fala; estabelece com os interlocutores uma comunicação vertical, de cima para baixo; não faz perguntas, apenas dá respostas. Já imaginaram o poder de tal personagem? Deve-se ver a comunicação, como diz Moscovici (2002, p. 105) “do ponto de vista da gênese das relações sociais e dos produtos sociais e também sermos capazes de considerar o ser humano como um produto de sua própria atividade como, por exemplo, na educação e na socialização”.
Mídia e Democracia O intento, nessa segunda parte, é demonstrar que a mídia no Brasil está longe de poder ser chamada de democrática. O sociólogo Herbert de Souza, o querido Betinho, afirmava, principalmente nos últimos anos de sua vida, que “o termômetro que mede a democracia numa sociedade é o mesmo que mede a participação dos cidadãos na comunicação” (SOUZA apud GUARESCHI, 2002). Vejamos então o que é democracia e como ela se faz, ou não, presente na mídia.
Referimo-nos aqui apenas à mídia eletrônica, pois a mídia impressa obedece a diferentes regulamentações. Enquanto a mídia impressa existe como uma propriedade privada de alguém, apesar de exigir dos seus donos e jornalistas uma responsabilidade social (GUARESCHI e BIZ, 2004), a mídia eletrônica, ao contrário, não pode ter donos, pois é uma concessão temporária (rádio, dez anos e TV, quinze), para prestar um serviço público.
Mas o que é democracia? A democracia implica a soberania popular e a distribuição eqüitativa dos poderes. Os meios de comunicação fazem parte desses poderes. Para que haja democracia numa sociedade, é necessário que haja democracia também no exercício do poder de comunicar.
Herbert de Souza, o Betinho, pensador e ativista na construção de uma sociedade mais humanista e justa, ao final de sua vida foi se dando conta da importância da comunicação para uma verdadeira democracia. Apesar de não ser tão simples, é indispensável refletir sobre o que constitui uma verdadeira democracia. Retiramos de um discurso proferido por Betinho na Organização das Nações Unidas, em preparação à Conferência de Cúpula para o Desenvolvimento Social, realizada em Copenhagen, em 1994 (SOUZA apud GUARESCHI, 2000, p. 65-66), algumas características que nos ajudam a definir o que seja democracia. Somente a democracia pode atender às questões de integridade social e superação das divisões e discriminações. A democracia representa um valor ético e um conjunto de princípios que precisam ser perseguidos todo o tempo e se concretiza através de cinco pontos fundamentais:
- Igualdade: todas as pessoas, nessa sociedade, são fundamentalmente iguais no que se refere à dignidade fundamental da pessoa, que é igualmente sujeita de direitos e deveres;
- Diversidade: na igualdade fundamental dos membros é necessário respeitar as diferenças que constituem e singularizam os diversos membros dessa sociedade;
- Participação: numa sociedade, todos são sujeitos de direitos e deveres. Sendo sujeitos, devem ter voz e vez, ter a oportunidade de poder se manifestar e contribuir na construção dessa sociedade comum. Ninguém quer de graça nem a liberdade, nem a igualdade. Tudo isso tem de ser construído com a participação de todos;
- Solidariedade: todos os valores acima têm de ser permeados pelo sentimento e pela emoção de ser solidário. A solidariedade é a emoção mais forte que a humanidade pode viver e experimentar;
- Liberdade: é uma conquista diária, através da participação conjunta. Nunca posso ser totalmente livre se o irmão ou a irmã, a quem devo ser solidário, sofre restrições básicas em sua humanidade. A plena liberdade só é conseguida quando todos os direitos são respeitados.
O exercício da democracia e da cidadania supõe, pois, a participação das pessoas na construção da cidade que se quer. Quando falamos em isonomia referimo-nos à igualdade de todos perante a lei: todos os cidadãos têm os mesmos direitos e deveres.
A antiga Grécia, de acordo com Chauí (1995), surge, na tentativa de enfatizar a importância do direito de participação na comunicação, a noção de isegoria, isto é, o direito de manifestar-se e de ser ouvido, o direito de expor e discutir em público opiniões sobre ações que a Cidade deve ou não realizar, no referente à Polis.
Mas há algo mais: a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, em seu artigo 19 afirma: “Todo o homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui o de não ser molestado por causa de suas opiniões, o de investigar e receber informações e opiniões e o de difundi-las, sem limitação de fronteiras, por qualquer meio de expressão” (ONU, 1948, art. 19).
É importante acentuar que na enunciação acima estão presentes dois direitos: o direito à informação, isto é, de ser bem informado, sem parcialidade, e o de buscar a informação em qualquer lugar, livremente; mas há também outro direito, e esse o mais importante, que se pode chamar de direito à comunicação, isto é, de expressar nossa opinião, manifestar nosso pensamento, dizer nossa palavra, por qualquer meio de expressão.
Numa pesquisa realizada entre estudantes de fim de ensino médio e de curso superior, 97% dos entrevistados desconheciam a existência desses dois direitos, da informação e da livre expressão (GUARESCHI e BIZ, 2005, capítulo 1). Isso vem confirmar a precariedade de nossas instituições educacionais e, concomitantemente, de nossa mídia, pois ela também tem uma tarefa educativa, como é expresso claramente na Constituição, Capítulo V, artigo 221: “A produção e programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios: I) Preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas [...]” (BRASIL, 1988).
Importante acentuar que o artigo 19 da Declaração dos Direitos Humanos fala no direito à expressão por todos os meios, incluídos aqui os grandes meios. Esse direito à participação na comunicação deve realizar-se, portanto, em todos os níveis, a começar pela grande mídia (imprensa, rádio, tv, etc.), passando pela mídia local, de baixa potência e/ou segmentada, chegando até os meios de comunicação populares e comunitários.
Dos cinco princípios mencionados acima, que consolidam o que seja democracia, o mais comumente esquecido e excluído na mídia é o da participação. A participação está intimamente ligada à questão da democracia e à questão da mídia. Aprofundemos essa questão crucial. É fundamental distinguir, ao falar de participação, ao menos três níveis: a participação no planejamento, na execução e nos resultados. Quanto à participação na execução, são os trabalhadores que produzem todas as riquezas: nisso eles participam de corpo inteiro. Quanto à participação nos resultados, isto é, com quem fica o fruto do trabalho, ela se dá, em geral, de maneira altamente discriminatória e injusta: o Brasil é o vicecampeão mundial em má distribuição de renda. A questão central é a participação no planejamento, porque é dela que dependem as outras duas: é no planejamento que se decide quem faz o quê (execução) e com quanto cada qual fica (resultados).
Podemos agora introduzir a questão fundamental. Hoje, a participação no planejamento só é possível através da mídia. Na verdade, essa deveria ser sua tarefa fundamental: instituir grandes debates nacionais onde todos, organizadamente, fossem convocados a apresentar seu projeto e discutir a maneira de construir a cidade democraticamente.
Para o nosso caso a exigência de participação é fundamental.
Evidentemente, trata-se da participação em nível de planejamento, da reflexão sobre a construção do projeto de sociedade e de cidade que se quer. É a esse nível que as pessoas são chamadas a dizer a palavra, expressar sua opinião, manifestar seu pensamento. Repetimos: isso se torna impossível, nos dias de hoje, sem a mídia. A mídia é, na contemporaneidade, a nova ágora, análoga à praça onde os antigos gregos discutiam seus problemas sobre o projeto de cidade que queriam. A mídia deve ser a porta-voz de todos os grupos organizados da sociedade. Essa é sua função principal e constitucional.
Poderíamos, então, perguntar: existe tal participação em nossa sociedade? Afirmamos com o peito estufado, que somos e vivemos uma democracia. Mas têm os brasileiros a oportunidade de apresentar seu projeto? Podem dizer sua palavra? Nossa comunicação é realmente um serviço público, com a tarefa de ser porta-voz dos seus membros na construção da cidade que se quer? Os meios de comunicação são a nova ágora, imprescindível numa democracia e fundamental para a cidadania?
Fica-se, então, surpreso ao analisar o comportamento da mídia entre nós. A voz da maioria dos cidadãos é silenciada e eles não têm a oportunidade de poder interferir no projeto de construção de sua cidade democraticamente.
Há uma estreita relação entre a caminhada da democracia brasileira, suas interrupções, seus longos períodos de ditadura e a formação dos monopólios da comunicação eletrônica aliados, desde sempre, com o poder concedente. Para Bucci (1997)
televisão é poder porque ela se confunde com o próprio poder. O andamento moroso da evolução da TV no Brasil para um modelo mais plural é exatamente análogo e simultâneo ao da evolução da democracia. A TV anda devagar porque a evolução política é vagarosa e é sabido que, no Brasil, as mudanças na política (e no próprio Estado) costumam ser lentas e graduais, quase nunca se dão por ruptura. Pois assim é com a TV. Ela avança (ou não) segundo as mesmas leis que regem os avanços (ou não) das formas de poder (p. 18).
Uma análise acurada da democratização da comunicação evidencia que o cerne da questão está na apropriação e concentração da mídia nas mãos de poucos. É impossível pensar uma sociedade democrática onde a mídia (informação e comunicação) é apropriada por poucos, que determinam e decidem quem pode ter acesso e que serviços serão disponibilizados.
É possível estabelecer um paralelo entre a colonização do Brasil e a implantação da mídia eletrônica. Assim como nosso território foi loteado em capitanias hereditárias, doadas a determinadas famílias, do mesmo modo há hoje um loteamento da mídia, rádio e televisão entre algumas famílias privilegiadas. Há um estreito paralelismo entre esses dois coronelismos: um tradicional, que se definia pelo poder e autoridade dos proprietários das terras no controle político e outro moderno, que consiste na posse da mídia eletrônica a serviço dos donos do capital, uma vez que é estreita esta relação.
Na análise da democratização da comunicação, percebe-se também, com nitidez, um círculo vicioso. Por que a mídia não discute a mídia? Por que a mídia não educa para que possa ser entendida? Por que não discute a diferença entre mídia impressa e mídia eletrônica, com suas conseqüências, finalidades e responsabilidades? Por que a legislação sobre a mídia não é veiculada? Há uma espécie de burla da legislação que é clara sobre o papel educativo da mídia. Se a mídia não cumprir esse papel, dificilmente outro setor poderá fazê-lo: aqui está, então, uma espécie de círculo vicioso. Além do mais, a mídia influi poderosamente nas escolas, nas famílias e em todas as instâncias da sociedade. Se ela não for crítica dela mesma, não haverá maneira de chegarmos a uma verdadeira democracia na comunicação.
Finalmente, a força da mídia não está apenas em construir a realidade, mas também em ocultar a realidade. É sintomático o alerta do sociólogo da Universidade de Coimbra, Boaventura S. Santos (1998)
quem tem poder para difundir notícias, tem poder para manter segredos e difundir silêncios. Tem poder para decidir se o seu interesse é mais bem servido por notícias ou por silêncio. Podemos concluir, pois, que uma parte do que de importante ocorre no mundo, ocorre em segredo e em silêncio, fora do alcance dos cidadãos (p. 2).
Mas a mídia não é onipotente. Se é verdade que seria muito mais fácil e rápido podermos chegar a uma educação e a uma leitura crítica da mídia com a ajuda da própria mídia (que tem como primeira tarefa, como vimos, ser educativa), não é por isso que ela nos fecha num círculo de ferro. Não. Uma reflexão séria e crítica nos vai mostrar, ao menos é assim que eu vejo até o momento, que é ainda a educação que poderá iniciar esse processo de superação da dominação a que a mídia nos condena. Mas é necessário que seja uma educação problematizadora, libertadora, que faça a pergunta, que questione a origem, os papéis e as práticas de nossa mídia.
Permanece, contudo, verdadeiro que uma das razões por que os direitos humanos e sociais dos cidadãos serem ainda desconhecidos da imensa maioria da população deve-se, em grande parte, à própria mídia que, sistematicamente, não os discute, mantendo um silêncio proposital sobre essa questão crucial. Numa sociedade como a nossa, permeada pela comunicação, nenhuma instância subsiste isolada da mídia, principalmente a instância política e dos direitos humanos. No momento em que a mídia for democratizada, com mais facilidade os privilégios injustos de alguns irão desaparecer, pois os conhecimentos, as informações, a mobilização popular, as iniciativas de mudança serão muito mais fáceis e rápidas. Por isso que é importante esconder essa arma do povo. Com ela, as pessoas podem conseguir mais liberdade. Mas, paradoxalmente, é com ela que também se pode, com grande facilidade, reprimir e manter a situação inalterada.
A mídia e o quinto poder: para uma mídia democrática e participativa É freqüente ouvir a afirmação de que a mídia é o quarto poder. Nessa terceira parte gostaria de refletir mais acuradamente sobre a questão do poder e problematizar dois pontos: primeiro, discutir que tipo de poder é a mídia; segundo, perguntar se poderia existir, ao falar da mídia, um quinto poder.
Em primeiro lugar é crucial ressaltar que, ao se discutir a mídia, não podemos esquecer que ela se coloca dentro de um espaço diferente e especial, ela não é igual a qualquer outra empresa: ela é formadora de consciência e de opinião pública. Cria a realidade. É ingênuo querer compará-la a outro meio de produção qualquer.
É fácil constatar que as batalhas hoje travadas na sociedade extrapolam a esfera dos poderes tradicionais como o executivo, o legislativo e o judiciário, e são carregadas e arrastadas por outro poder que se costuma atribuir à mídia. Mas é crucial aqui discernir dois tipos de poderes: um ilegítimo e outro democrático e legítimo.
Quando se fala em mídia como quarto poder é necessário ressaltar, de imediato, que esse assim chamado poder pode também ser um poder usurpado. Isso por que esse poder que a mídia se atribui não lhe foi conferido pelo povo, origem do poder legítimo nas sociedades democráticas. A mídia se arrogou esse poder por conta própria, sem levar em conta a população, mas baseada apenas em sua força econômica, política e ideológica. Ninguém conferiu esse poder a ela. Pode haver aqui, portanto, um equívoco ao se falar em poder.
Pode dar-se o fato de que estejamos sob a ditadura de um poder usurpado. E quem detém o poder da mídia tem também o poder de decidir sobre a organização dessas sociedades. É o que acontece, como vemos, com a mídia hoje no Brasil, onde nove famílias controlam mais de 90% da mídia eletrônica. Ela decide o que deve ser dito e, principalmente, o que não deve ser dito, o que os brasileiros não podem e não devem saber. A população brasileira é refém dessas nove famílias. Do mesmo modo, não há equipe de sociólogos capaz de competir com as equipes de publicidade.
Esse problema se agrava quando se examina a acelerada concentração da mídia pelo mundo afora. Segundo a UNESCO, na década de 1990 os EUA, a União Européia, e o Japão possuíam 273 dos 300 principais meios de comunicação; o resto do mundo possuía apenas 27. Dos usuários da Internet, 92% estavam nesses países. E esse processo de concentração midiática tem se acelerado no novo milênio. E o mais grave de tudo é a aliança que esse poder perigoso fez com as armas e a guerra. Grandes jornais são adquiridos por empresas cuja fortuna se baseia principalmente na fabricação de armas. Devido a isso, as últimas guerras mostraram que a primeira vítima das batalhas é a verdade.
Na discussão, portanto, do assim chamado quarto poder, é fundamental perguntar: quem avaliza tal poder? Quem lhe deu a garantia de exercê-lo com legitimidade? Foram esses meios escolhidos pelo povo? Percebe-se logo que na maioria das vezes seu poder é usurpador, dominador, antidemocrático. Não tem a chancela dos cidadãos/ãs.
Introduzimos agora o problema que gostaríamos de discutir. A mídia está aí, exercendo seu poderio praticamente sem controle nenhum. Que se poderia fazer, para tornar óbvia essa situação? Acreditamos que, contra esse poder dominador e antidemocrático, faz-se urgente um novo poder, esse sim democrático e popular, das ONGs, das organizações de base, das associações populares: uma imprensa popular e alternativa, rádios e TVs comunitárias, uma mídia que seja do povo, feita pelo povo, para o povo. É o que se pode chamar de quinto poder, expressão criada por Roger Silverstone (2004). Ao contrário do tipo de poder vigente agora, esse sim, seria um poder verdadeiro porque democrático, legitimado pela população, com o objetivo de fiscalizar, monitorar, denunciar e confrontar esse quarto poder. É sobre a possibilidade e a necessidade de organização desse quinto poder que passamos a refletir em seguida. De início, gostaríamos de alertar para um fenômeno curioso, que poderíamos chamar de roubo, ou apropriação, de uma representação social altamente legítima e louvável, que é ancorada, pela mídia dominante, a uma prática completamente oposta à preconizada: referimo-nos à questão da liberdade de imprensa e da censura.
Na imaginação popular nada mais nobre e saudável do que a liberdade de imprensa; e nada mais deplorável e injusto do que a censura. Os meios de comunicação, principalmente a imprensa, durante vários séculos exerceram um papel importante na denúncia dos abusos do poder, dos atropelos e discriminações de muitos governos e sociedades autoritárias. A história da imprensa foi, até certo ponto, marcada por essas lutas em prol da democracia e da liberdade de expressão de todos os cidadãos.
Foi a partir dessas práticas que o conceito ou a representação social da liberdade de imprensa, por um lado, e o exercício da censura, por outro, foram assumindo conotações valorativas. Por agir como crítica aos poderes constituídos, como um contra-poder, a imprensa passou a ser chamada de quarto poder e a liberdade de imprensa como algo importante e imprescindível para a garantia da democracia numa sociedade.
Acontece, contudo, que nas últimas décadas, à medida que se acelerou a globalização liberal, este quarto poder foi perdendo sua função de contra- poder. Surgiu um capitalismo de novo estilo, que não é mais meramente industrial, mas financeiro, de especulação e de escala planetária. Nessa fase em que, em definitivo, o debate principal se coloca no enfrentamento frontal entre o mercado e a sociedade, entre o privado e o público, entre o individual e o coletivo, entre o egoísmo e a solidariedade, observamos também um fato novo e crucial: os meios de informação deixaram de se constituir em um contra- poder, e passaram a se aliar a esses poderes. E esses conglomerados globais de comunicação têm, muitas vezes, um papel mais importante que muitos governos e Estados. Hoje, globalmente, os meios de comunicação (emissoras de rádio, imprensa escrita, canais de televisão, Internet) pertencem, cada vez mais, a grandes grupos que têm uma vocação global, como o grupo News Corp de Rubert Murdoch, América Online, Viacom, Microsoft.
É fundamental, então, enfatizar essa mudança fundamental nas representações de censura e de liberdade de imprensa. Os atores da comunicação mudaram. Eles não são mais os pequenos grupos, ou pessoas particulares, que enfrentam os governos autoritários e ditatoriais. A situação, hoje, é totalmente diversa: os meios de comunicação se constituíram em grandes conglomerados, verdadeiros oligopólios, grandes grupos que exercem monopólios, com concentração das propriedades da mídia verticais, horizontais e cruzadas (RAMONET, 2006). No caso brasileiro, como vimos, nove famílias detêm 90% dessa mídia. Como decorrência disso a censura também mudou de local: não é mais a mídia que é censurada, mas é a maioria da população que não pode exercer seu direito de dizer a palavra, expressar sua opinião, comunicar seu pensamento.
A questão que queremos discutir, ao final desse trabalho, é a maneira como se poderia concretizar e estruturar esse quinto poder. Já se vislumbram diversas iniciativas, algumas até bem diretas e próximas. Aprofundamos aqui uma delas, que já pode ser colocada em prática de imediato. Muitas outras estão a nosso alcance, depende apenas de nossa vontade política colocá-las em ação.
A iniciativa mais ampla e eficiente que surgiu, a partir de 2004, como reação às práticas todo-poderosas da mídia, é a CAP (Comissão de Acompanhamento à Programação de Rádio e TV), com sua Campanha Quem financia a baixaria é contra a cidadania. Esse movimento se originou quase que de um clamor da sociedade civil contra o baixo nível de nossa mídia e a falta de ética nela presente. Com o apoio logístico da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, a CAP propõe um controle social (não censura) por parte da população em relação aos programas de televisão e um desestímulo ao financiamento privado e público dos programas que reiteradamente violam os direitos humanos. Por isso, os programas que recebem muitas reclamações passam a ser minuciosamente analisados pelos participantes da Campanha que, ao final, proferem um parecer explicitando as razões pelas quais o mesmo é indigitado como baixaria.
A Campanha consolidou, nesses quatro anos de existência, um espaço público onde os cidadãos podem defender-se da programação de rádio e TV nos termos da Constituição Federal. Por meio de uma central telefônica ocorre o recebimento de denúncias e sugestões sobre a programação desses meios e um site na Internet contribui para divulgar todos os mecanismos de participação existentes
(Os endereços disponíveis para fim de reclamação, além do e-mail principal, eticanatv@câmara.gov.br, são: via correio= Câmara dos Deputados, Comissão de Direitos Humanos, Sala 185- A- Brasília/ DF- CEP: 70169-970; por fax= (61) 3216. 2170; por telefone= (61) 3216. 6570; ou pelo site na Internet= www.eticanatv.org.br.).
Os programas que mais recebem reclamações por parte do público passam a constar de uma lista, o ranking, feita quadrimensalmente. A partir dela, os responsáveis pela Campanha ensejam um processo de conscientização junto às empresas que anunciam nos programas listados a fim de que passem a não mais financiar os referidos programas. A Campanha ainda estabeleceu uma carta de princípios (GUARESCHI e BIZ, 2004, p. 94-98), e elegeu um conselho, cuja função é assistir aos programas denunciados e verificar a ocorrência de abusos e violações aos direitos humanos. O conselho é composto por pessoas dos mais diversos setores da sociedade civil como a Ordem dos Advogados, entidades de defesa dos direitos humanos, Conselho Federal de Psicologia, movimentos homossexuais, movimentos feministas, igrejas, profissionais de mídia, entre outros.
O procedimento adotado é similar àquele que se espera que seja um dia estabelecido oficialmente como política pública de Estado: um conselho representativo que possa estabelecer punições administrativas a posteriori aos concessionários de televisão. Sem isso, dificilmente podem ser garantidos os direitos fundamentais do ser humano. Sem censura, moralismo ou limite à liberdade de expressão, mas regras que precisam ser previamente acordadas para que o direito à livre comunicação possa ser exercido plenamente por todos. Essa é uma boa maneira para incentivar as pessoas a lutarem por seus direitos de cidadania e para obterem espaços mais efetivos no planejamento da gestão pública.
Pela primeira vez os cidadãos e cidadãs têm ao seu alcance a oportunidade de criticar a mídia que lhes é oferecida praticamente como única opção. Espera-se que tal prática possa ajudar na formulação de políticas mais democráticas de comunicação social. Uma comunicação democrática é um processo de construção conjunta e participativa que deve permitir a todos, sem exceção, iguais oportunidades de acesso aos meios e tecnologias para manifestação de opiniões, de idéias, como afirma Murilo Ramos (2004).
Além da CAP, existem já dezenas de outros grupos, alguns sediados em universidades, outros ligados a diversas organizações da sociedade civil, tanto nacionais, como estrangeiros, que lutam pela democratização da mídia. Entre outros, podemos citar os seguintes: o Observatório Brasileiro de Mídia, da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP); o Observatório da Imprensa, da Universidade de Campinas; o Observatório da Imprensa, programa televisivo da TVE; o Fórum Nacional pela Democratização na Comunicação (FNDC), fundado em 1991, que reúne quatorze outras entidades da sociedade civil e dos movimentos organizados; a Agência Carta Maior (acessível apenas pela Internet); o Coletivo Intervozes- Coletivo Brasil de Comunicação Social, formado por profissionais e estudantes de comunicação; Midi@etica, surgida em Porto Alegre em 2002; Midiativa; Centro de Mídia Independente (CMI), Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação Social (ENECOS), de estudantes de comunicação, e outros.
Considerações Finais O sinal dos tempos, hoje, é de que vivemos um tempo de sinais. Constata-se uma espécie de invasão da mídia na vida das pessoas. As TVs de canal aberto no Brasil não se constituem, na verdade, como opções alternativas para a população. Comportam-se como se tivessem donos, e são consideradas como uma propriedade privada. Em conseqüência disso passam a ter como primeira finalidade o lucro, e não a educação das pessoas. Não há liberdade de escolha. Agem como invasoras da vida e da privacidade das famílias e pessoas. Mas há um outro problema que gostaríamos de trazer ao debate ao final dessa discussão. Como conseqüência, em parte de certa naturalização e imprescindibilidade da mídia, construída por ela mesma, cria-se o que alguns estudiosos passaram a chamar de poluição midiática, ou contaminação midiática. Além de a mídia ser utilizada como arma de luta na nova guerra ideológica, ela também, devido a sua explosão e multiplicação, pela sua super-abundância, passa a contaminar, a envenenar, com todo tipo de mentiras, rumores, distorções e manipulações, o ambiente social. Está acontecendo com a informação o que se passou com a alimentação. Durante muito tempo a alimentação foi escassa, causando penúria. Mas com a revolução agrícola a superprodução permitiu, principalmente nos países ricos, produzir uma abundância de alimentos. Mas não nos damos conta que muitos desses alimentos estão contaminados e envenenados por pesticidas, causando doenças e morte, como a peste das vacas loucas. Antes podíamos morrer de fome, mas hoje morremos por comer alimentos contaminados.
O mesmo acontece com a informação. Historicamente, era escassa ou inexistente. Ainda hoje, em algumas ditaduras, não há informação, ou ela é escassa, de má qualidade. Nos países assim ditos democráticos, contudo, a informação se multiplicou, transborda por todas as partes. É como se fosse um quinto elemento além do ar, água, terra e fogo. A partir dessa constatação, começa-se a falar, hoje, na necessidade de uma “ecologia da informação” (RAMONET, 2006, p. 27), com o propósito de limpar essa informação da maré negra das mentiras, para descontaminá-la. Essa mobilização deve fazer parte da agenda de trabalho do que discutimos como quinto poder. É preciso resgatar o respeito elementar pela verdade. A comunicação é um serviço público, não particular; não se pode confundir liberdade de empresa com liberdade de imprensa. Como muito bem expressa Ramonet (2006, p. 27, grifos do autor), “a liberdade dos meios de comunicação não é mais do que a extensão da liberdade coletiva de expressão, fundamento da democracia. Como tal, implica uma responsabilidade social e seu exercício está, portanto, sujeito, em última instância, ao controle responsável da sociedade”.
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Pedrinho A. Guareschi é Doutor em Psicologia Social e Comunicação, Professor e Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUCRS.)