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Vitimados por uma educação desestimulante, submetidos ao
julgamento crítico da opinião pública, massificados pela mídia, vivemos nossas vidas
adiando ou perdendo nossos sonhos e isso nos torna infelizes.
(Antônio Suárez Abreu)
 
A opinião pública é uma peste. A sociedade
moderna a contraiu como uma
doença. Tocqueville, o analista da alma do
homem democrático, já sabia disso no século
XIX: na democracia repete-se o que a maioria diz
.
(Luiz Felipe Pondé - A Filosofia da Adúltera)
 
O que você chama, de “opinião pública”, Zé Ninguém 
é o conjunto das opiniões de todos os Zés Ninguéns,
homens e mulheres. Cada homem e cada mulher Zé Ninguém tem no seu íntimo uma
opinião própria correta e um tipo especial de opinião incorreta. Suas opiniões incorretas derivam do
medo das opiniões incorretas de todos os outros Zés Ninguéns e mulheres-ninguéns. É por isso que as opiniões corretas não vêm à luz. Por exemplo, você não vai mais acreditar que você “não tem
nenhuma importância”. Você irá saber e proclamar que é o esteio e o alicerce desta sociedade
humana. Não fuja! Não tenha medo! Não é tão mau assim ser um esteio responsável da sociedade
humana.
(Wilhelm Reich - Escuta Zé Ninguém)
 
 
 
Pode ser simples querer, mas não é fácil compreender a mídia nos dias de hoje. Se há um campo em que as teorizações estão tendo enormes dificuldades, esse é um deles. Normalmente o que acontece é que os fatos vão se sucedendo e os estudiosos tentam refletir sobre eles para descrevê-los, sistematizá-los, compreendê-los, explicá-los e, raras vezes as teorias chegam a tal, transformá-los. Essas seriam as funções das teorias. Mas no caso da mídia, os fatos correm muito mais velozes que as teorias e quando chegamos lá, a realidade já está muito mudada. O que vemos, então, são vazamentos teóricos de todo tipo. Um exemplo, apenas para comprovar isso.
É fácil constatar a enorme influência da mídia na política. O livro de Thompson (2002), sobre escândalo político, mostra que a política é, hoje, ininteligível sem que levemos em consideração a variável mídia. A política e os políticos trabalham com um material especial, que é a credibilidade. A matéria prima da política é a credibilidade, um capital simbólico. Ora, a mídia é o meio de produção desse capital, tanto para construí-lo, como para destruí-lo, como é o caso do escândalo político. Agora vejamos: os analistas políticos são unânimes em mostrar que a grande mídia, no caso da campanha de Luiz Inácio Lula da Silva para Presidente da República do Brasil, tanto no primeiro como no segundo turno das eleições de outubro de 2006, tentou impedir que ele fosse reeleito, chegando a apostar, de modo inequívoco, em sua queda. Alguns chegam a afirmar que a mídia deu um tiro no pé. O jornalista Luis Nassif (2006) escreveu que
ao adotar um pensamento único, elitista e anti-Lula, a mídia entrou numa rota suicida. Um suicídio editorial. Jornalistas com 40 anos de carreira, com 365 artigos por ano, um por dia, sobre o mesmo assunto, todo dia pedindo a cabeça do Lula. Uma guerra santa, inconcebível com o papel da mídia, capitaneada por Veja, Folha de S. Paulo, Estadão, Globo, na imprensa, e pela própria Globo, na TV.
E no que deu tudo isso? Apesar do suposto poderio arrasador da mídia, não conseguiram seu intento. Como explicar? Essa é mais uma rachadura nas teorias. Precisamos de teorias que fechem essas brechas. O que nos propomos aqui é uma discussão que traga elementos para melhor compreender o papel que a mídia exerce em nossa sociedade, juntamente com sugestões para podermos transformar certas práticas por ela empregadas que dificilmente podem ser consideradas democráticas.
Dividimos esse trabalho em três partes interligadas. Iniciamos com uma sensibilização sobre a importância e o papel da mídia. Muitos ainda não se deram conta do que a mídia representa nos dias de hoje. A seguir, discutimos a questão de democratização da mídia. Se a mídia é tão importante, devemos nos perguntar se ela está de fato a serviço da sociedade. Finalmente, numa terceira parte, queremos apresentar algo propositivo: o que se pode fazer, se quisermos pensar numa mídia democrática e cidadã.

Para uma sensibilização sobre a mídia
As sociedades modernas são marcadas por uma característica nova, que penetra todas as esferas dessa sociedade: é a presença, ou a onipresença, do que se costuma chamar de mídia. Vivemos hoje, na expressão de J. Thompson (2005) uma sociedade midiada e uma cultura midiada: não há instância de nossa sociedade que não tenha uma relação profunda com a mídia e que não esteja intrinsecamente contaminada por ela, desde a economia, passando pela educação, religião, etc. e chegando, de maneira mais radical, à própria política (THOMPSON, 2002).
Ao olharmos ao redor constatamos que cada um de nós está obviamente cercado, tanto individual como coletivamente, por palavras, idéias e imagens que penetram nossos olhos, nossos ouvidos e nossa mente, quer queiramos ou não e que nos atingem, sem que o saibamos, do mesmo modo que milhares de mensagens enviadas por ondas eletromagnéticas circulam no ar sem que as vejamos e se tornam palavras em um receptor de telefone, ou se tornam imagens na tela de televisão.
Nessa realidade permeada de sinais vemos, como diz Moscovici (2002, p. 205), “as representações sociais se construindo, por assim dizer, diante de nossos olhos, na mídia, nos lugares públicos, através desse processo de comunicação que nunca acontece, contudo, sem alguma transformação” e contradição. O Zeitgeist, hoje, é a comunicação. Depois da II Grande Guerra não foi mais possível, como o fora antes, fundamentar a sociedade ou em crenças ou nas relações de trabalho: ela se fundamenta agora na comunicação e na produção de conhecimento através da informação. “É isso que escapa aos psicólogos sociais, que ficam apenas nas relações interpessoais” (MOSCOVICI, 2002, p. 206). A comunicação constrói, hoje, o novo ambiente social. À medida que a comunicação se acelera em nossa sociedade, a extensão da mídia- visual, escrita e áudio- no espaço social vai crescendo sem interrupção. Tal fato traz conseqüências no que se refere à percepção da realidade: as diferenças entre os vários aspectos dessas realidades são obscurecidas, os limites entre o aspecto material e seu aspecto conceitual são eliminados e o que se vê são sempre mais representações de representações, mais e mais simbólicas. A questão de ligar representações a realidades não é mais, então, uma questão filosófica, mas psicológica.
No intuito de aprofundar um pouco mais esse novo ambiente social e cultural, comento quatro afirmações que podem ajudar a compreender a importância do fenômeno dos meios de comunicação hoje.
A primeira afirmativa é: a comunicação, hoje, constrói a realidade. É difícil definir o que seja realidade. Entendemos por realidade aqui o que existe, o que tem valor, o que traz as respostas, o que legitima e dá densidade significativa ao nosso cotidiano. Desse modo, hoje algo passa a existir ou deixa de existir, sociologicamente falando, se é midiado, ou não. É o que se deduz, por exemplo, de diálogos cotidianos e rotineiros, ouvidos com muita freqüência, como quando alguém diz: Interessante, acabou a greve! E se o interlocutor pergunta por que, a resposta é rápida e convincente: Não se vê mais nada na TV! Não há mais nada nos jornais! Pois é a isso que me refiro: alguma realidade, algum fato nos dias de hoje existe, ou deixa de existir, se é ou não veiculado pelos meios de comunicação. A mídia tem, na contemporaneidade, o poder de instituir o que é ou não real, existente.
A segunda afirmativa é um complemento da primeira e muito importante quando se discutem as Representações Sociais (RS): a mídia não só diz o que existe e, conseqüentemente, o que não existe, por não ser veiculado, mas dá uma conotação valorativa à realidade existente. Ao dizer que algo existe, digo, igualmente, se aquilo é bom ou ruim. Em princípio, as realidades veiculadas pela mídia são boas e verdadeiras, a não ser que seja dito expressamente o contrário. O que está na mídia não é só, então, o existente, mas contém igualmente algo de positivo. Isso é transmitido aos ouvintes ou telespectadores, isto é, as pessoas que aparecem na mídia são as que existem e são importantes, dignas de respeito.
A terceira afirmativa aprofunda a compreensão da primeira: a mídia, hoje, coloca a agenda de discussão. Isto é, ao redor de 80% dos temas e assuntos que são falados no trânsito, no trabalho, em casa e nos encontros sociais são colocados em discussão pela mídia. Neste sentido, ela determina, até certo ponto, o que deve ser falado e discutido. Alguém ao ler essa afirmativa pode retrucar: tudo bem, até pode ser verdade que a mídia coloca os assuntos em pauta, mas nós podemos discordar deles, criticá-los, não aceitá-los. Que bom se assim fosse! Há algo, contudo, que nós não podemos fazer- e aqui está a conseqüência mais séria dessa questão: se a mídia decidir que algum assunto, ou algum tema, não deva ser discutido pela população de determinada sociedade, ela tem o poder de excluí-lo da pauta! Uma população inteira fica impossibilitada de saber e conhecer que tal problema existe numa sociedade ou que tal fato sucedeu nesse local. Essa é a força de quem detém o poder de decidir sobre o conteúdo da pauta. Na grande discussão nacional que a mídia tem como tarefa fundamental instituir, ela tem o poder de selecionar e criar a pauta, podendo incluir apenas temas que lhe interessam e excluir os que podem vir a contestá-la. Uma das informações mais importantes, por exemplo, que é negada aos ouvintes e telespectadores é a informação sobre a própria mídia e sobre os direitos que as pessoas têm com respeito à informação e à comunicação.
Finalmente, há uma quarta afirmativa extremamente central ao que se pretende discutir. Sabemos que o ser humano se constrói a partir das relações que ele vai estabelecendo no espaço de sua existência. Nos dias de hoje, contudo, principalmente a partir dos últimos 30 anos, pode-se dizer que existe um novo personagem dentro de casa, que está presente em nossas vidas e com quem nós mais estamos em contato. A média de horas diárias que o brasileiro fica diante da TV, por exemplo, é de 4. Em algumas vilas periféricas de cidades brasileiras que pesquisamos, a média chega a 6 horas e para as crianças, que os pais têm medo de deixar na rua, chega a 9 horas diárias. Pois é com esse novo personagem que nós passamos hoje a nos relacionar, numa relação que Thompson (1998) chamou de quase interação midiada.
Queiramos ou não, tal fato tem a ver com a constituição e construção de nossa subjetividade. Se examinarmos as características de tal personagem, constatamos que ele é praticamente o único que fala; estabelece com os interlocutores uma comunicação vertical, de cima para baixo; não faz perguntas, apenas dá respostas. Já imaginaram o poder de tal personagem? Deve-se ver a comunicação, como diz Moscovici (2002, p. 105) “do ponto de vista da gênese das relações sociais e dos produtos sociais e também sermos capazes de considerar o ser humano como um produto de sua própria atividade como, por exemplo, na educação e na socialização”.

Mídia e Democracia
O intento, nessa segunda parte, é demonstrar que a mídia no Brasil está longe de poder ser chamada de democrática. O sociólogo Herbert de Souza, o querido Betinho, afirmava, principalmente nos últimos anos de sua vida, que “o termômetro que mede a democracia numa sociedade é o mesmo que mede a participação dos cidadãos na comunicação” (SOUZA apud GUARESCHI, 2002). Vejamos então o que é democracia e como ela se faz, ou não, presente na mídia.
Referimo-nos aqui apenas à mídia eletrônica, pois a mídia impressa obedece a diferentes regulamentações. Enquanto a mídia impressa existe como uma propriedade privada de alguém, apesar de exigir dos seus donos e jornalistas uma responsabilidade social (GUARESCHI e BIZ, 2004), a mídia eletrônica, ao contrário, não pode ter donos, pois é uma concessão temporária (rádio, dez anos e TV, quinze), para prestar um serviço público.
Mas o que é democracia? A democracia implica a soberania popular e a distribuição eqüitativa dos poderes. Os meios de comunicação fazem parte desses poderes. Para que haja democracia numa sociedade, é necessário que haja democracia também no exercício do poder de comunicar.
Herbert de Souza, o Betinho, pensador e ativista na construção de uma sociedade mais humanista e justa, ao final de sua vida foi se dando conta da importância da comunicação para uma verdadeira democracia. Apesar de não ser tão simples, é indispensável refletir sobre o que constitui uma verdadeira democracia. Retiramos de um discurso proferido por Betinho na Organização das Nações Unidas, em preparação à Conferência de Cúpula para o Desenvolvimento Social, realizada em Copenhagen, em 1994 (SOUZA apud GUARESCHI, 2000, p. 65-66), algumas características que nos ajudam a definir o que seja democracia. Somente a democracia pode atender às questões de integridade social e superação das divisões e discriminações. A democracia representa um valor ético e um conjunto de princípios que precisam ser perseguidos todo o tempo e se concretiza através de cinco pontos fundamentais:
 - Igualdade: todas as pessoas, nessa sociedade, são fundamentalmente iguais no que se refere à dignidade fundamental da pessoa, que é igualmente sujeita de direitos e deveres;
 - Diversidade: na igualdade fundamental dos membros é necessário respeitar as diferenças que constituem e singularizam os diversos membros dessa sociedade;
 - Participação: numa sociedade, todos são sujeitos de direitos e deveres. Sendo sujeitos, devem ter voz e vez, ter a oportunidade de poder se manifestar e contribuir na construção dessa sociedade comum. Ninguém quer de graça nem a liberdade, nem a igualdade. Tudo isso tem de ser construído com a participação de todos;
 - Solidariedade: todos os valores acima têm de ser permeados pelo sentimento e pela emoção de ser solidário. A solidariedade é a emoção mais forte que a humanidade pode viver e experimentar;
 - Liberdade: é uma conquista diária, através da participação conjunta. Nunca posso ser totalmente livre se o irmão ou a irmã, a quem devo ser solidário, sofre restrições básicas em sua humanidade. A plena liberdade só é conseguida quando todos os direitos são respeitados.
O exercício da democracia e da cidadania supõe, pois, a participação das pessoas na construção da cidade que se quer. Quando falamos em isonomia referimo-nos à igualdade de todos perante a lei: todos os cidadãos têm os mesmos direitos e deveres.
A antiga Grécia, de acordo com Chauí (1995), surge, na tentativa de enfatizar a importância do direito de participação na comunicação, a noção de isegoria, isto é, o direito de manifestar-se e de ser ouvido, o direito de expor e discutir em público opiniões sobre ações que a Cidade deve ou não realizar, no referente à Polis.
Mas há algo mais: a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, em seu artigo 19 afirma: “Todo o homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui o de não ser molestado por causa de suas opiniões, o de investigar e receber informações e opiniões e o de difundi-las, sem limitação de fronteiras, por qualquer meio de expressão” (ONU, 1948, art. 19).
É importante acentuar que na enunciação acima estão presentes dois direitos: o direito à informação, isto é, de ser bem informado, sem parcialidade, e o de buscar a informação em qualquer lugar, livremente; mas há também outro direito, e esse o mais importante, que se pode chamar de direito à comunicação, isto é, de expressar nossa opinião, manifestar nosso pensamento, dizer nossa palavra, por qualquer meio de expressão.
Numa pesquisa realizada entre estudantes de fim de ensino médio e de curso superior, 97% dos entrevistados desconheciam a existência desses dois direitos, da informação e da livre expressão (GUARESCHI e BIZ, 2005, capítulo 1). Isso vem confirmar a precariedade de nossas instituições educacionais e, concomitantemente, de nossa mídia, pois ela também tem uma tarefa educativa, como é expresso claramente na Constituição, Capítulo V, artigo 221: “A produção e programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios: I) Preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas [...]” (BRASIL, 1988).
Importante acentuar que o artigo 19 da Declaração dos Direitos Humanos fala no direito à expressão por todos os meios, incluídos aqui os grandes meios. Esse direito à participação na comunicação deve realizar-se, portanto, em todos os níveis, a começar pela grande mídia (imprensa, rádio, tv, etc.), passando pela mídia local, de baixa potência e/ou segmentada, chegando até os meios de comunicação populares e comunitários.
Dos cinco princípios mencionados acima, que consolidam o que seja democracia, o mais comumente esquecido e excluído na mídia é o da participação. A participação está intimamente ligada à questão da democracia e à questão da mídia. Aprofundemos essa questão crucial. É fundamental distinguir, ao falar de participação, ao menos três níveis: a participação no planejamento, na execução e nos resultados. Quanto à participação na execução, são os trabalhadores que produzem todas as riquezas: nisso eles participam de corpo inteiro. Quanto à participação nos resultados, isto é, com quem fica o fruto do trabalho, ela se dá, em geral, de maneira altamente discriminatória e injusta: o Brasil é o vicecampeão mundial em má distribuição de renda. A questão central é a participação no planejamento, porque é dela que dependem as outras duas: é no planejamento que se decide quem faz o quê (execução) e com quanto cada qual fica (resultados).
Podemos agora introduzir a questão fundamental. Hoje, a participação no planejamento só é possível através da mídia. Na verdade, essa deveria ser sua tarefa fundamental: instituir grandes debates nacionais onde todos, organizadamente, fossem convocados a apresentar seu projeto e discutir a maneira de construir a cidade democraticamente.
Para o nosso caso a exigência de participação é fundamental.
Evidentemente, trata-se da participação em nível de planejamento, da reflexão sobre a construção do projeto de sociedade e de cidade que se quer. É a esse nível que as pessoas são chamadas a dizer a palavra, expressar sua opinião, manifestar seu pensamento. Repetimos: isso se torna impossível, nos dias de hoje, sem a mídia. A mídia é, na contemporaneidade, a nova ágora, análoga à praça onde os antigos gregos discutiam seus problemas sobre o projeto de cidade que queriam. A mídia deve ser a porta-voz de todos os grupos organizados da sociedade. Essa é sua função principal e constitucional.
Poderíamos, então, perguntar: existe tal participação em nossa sociedade? Afirmamos com o peito estufado, que somos e vivemos uma democracia. Mas têm os brasileiros a oportunidade de apresentar seu projeto? Podem dizer sua palavra? Nossa comunicação é realmente um serviço público, com a tarefa de ser porta-voz dos seus membros na construção da cidade que se quer? Os meios de comunicação são a nova ágora, imprescindível numa democracia e fundamental para a cidadania?
Fica-se, então, surpreso ao analisar o comportamento da mídia entre nós. A voz da maioria dos cidadãos é silenciada e eles não têm a oportunidade de poder interferir no projeto de construção de sua cidade democraticamente.
Há uma estreita relação entre a caminhada da democracia brasileira, suas interrupções, seus longos períodos de ditadura e a formação dos monopólios da comunicação eletrônica aliados, desde sempre, com o poder concedente. Para Bucci (1997)
televisão é poder porque ela se confunde com o próprio poder. O andamento moroso da evolução da TV no Brasil para um modelo mais plural é exatamente análogo e simultâneo ao da evolução da democracia. A TV anda devagar porque a evolução política é vagarosa e é sabido que, no Brasil, as mudanças na política (e no próprio Estado) costumam ser lentas e graduais, quase nunca se dão por ruptura. Pois assim é com a TV. Ela avança (ou não) segundo as mesmas leis que regem os avanços (ou não) das formas de poder (p. 18).
Uma análise acurada da democratização da comunicação evidencia que o cerne da questão está na apropriação e concentração da mídia nas mãos de poucos. É impossível pensar uma sociedade democrática onde a mídia (informação e comunicação) é apropriada por poucos, que determinam e decidem quem pode ter acesso e que serviços serão disponibilizados.
É possível estabelecer um paralelo entre a colonização do Brasil e a implantação da mídia eletrônica. Assim como nosso território foi loteado em capitanias hereditárias, doadas a determinadas famílias, do mesmo modo há hoje um loteamento da mídia, rádio e televisão entre algumas famílias privilegiadas. Há um estreito paralelismo entre esses dois coronelismos: um tradicional, que se definia pelo poder e autoridade dos proprietários das terras no controle político e outro moderno, que consiste na posse da mídia eletrônica a serviço dos donos do capital, uma vez que é estreita esta relação.
Na análise da democratização da comunicação, percebe-se também, com nitidez, um círculo vicioso. Por que a mídia não discute a mídia? Por que a mídia não educa para que possa ser entendida? Por que não discute a diferença entre mídia impressa e mídia eletrônica, com suas conseqüências, finalidades e responsabilidades? Por que a legislação sobre a mídia não é veiculada? Há uma espécie de burla da legislação que é clara sobre o papel educativo da mídia. Se a mídia não cumprir esse papel, dificilmente outro setor poderá fazê-lo: aqui está, então, uma espécie de círculo vicioso. Além do mais, a mídia influi poderosamente nas escolas, nas famílias e em todas as instâncias da sociedade. Se ela não for crítica dela mesma, não haverá maneira de chegarmos a uma verdadeira democracia na comunicação.
Finalmente, a força da mídia não está apenas em construir a realidade, mas também em ocultar a realidade. É sintomático o alerta do sociólogo da Universidade de Coimbra, Boaventura S. Santos (1998)
quem tem poder para difundir notícias, tem poder para manter segredos e difundir silêncios. Tem poder para decidir se o seu interesse é mais bem servido por notícias ou por silêncio. Podemos concluir, pois, que uma parte do que de importante ocorre no mundo, ocorre em segredo e em silêncio, fora do alcance dos cidadãos (p. 2).
Mas a mídia não é onipotente. Se é verdade que seria muito mais fácil e rápido podermos chegar a uma educação e a uma leitura crítica da mídia com a ajuda da própria mídia (que tem como primeira tarefa, como vimos, ser educativa), não é por isso que ela nos fecha num círculo de ferro. Não. Uma reflexão séria e crítica nos vai mostrar, ao menos é assim que eu vejo até o momento, que é ainda a educação que poderá iniciar esse processo de superação da dominação a que a mídia nos condena. Mas é necessário que seja uma educação problematizadora, libertadora, que faça a pergunta, que questione a origem, os papéis e as práticas de nossa mídia.
Permanece, contudo, verdadeiro que uma das razões por que os direitos humanos e sociais dos cidadãos serem ainda desconhecidos da imensa maioria da população deve-se, em grande parte, à própria mídia que, sistematicamente, não os discute, mantendo um silêncio proposital sobre essa questão crucial. Numa sociedade como a nossa, permeada pela comunicação, nenhuma instância subsiste isolada da mídia, principalmente a instância política e dos direitos humanos. No momento em que a mídia for democratizada, com mais facilidade os privilégios injustos de alguns irão desaparecer, pois os conhecimentos, as informações, a mobilização popular, as iniciativas de mudança serão muito mais fáceis e rápidas. Por isso que é importante esconder essa arma do povo. Com ela, as pessoas podem conseguir mais liberdade. Mas, paradoxalmente, é com ela que também se pode, com grande facilidade, reprimir e manter a situação inalterada.

A mídia e o quinto poder: para uma mídia democrática e participativa
É freqüente ouvir a afirmação de que a mídia é o quarto poder. Nessa terceira parte gostaria de refletir mais acuradamente sobre a questão do poder e problematizar dois pontos: primeiro, discutir que tipo de poder é a mídia; segundo, perguntar se poderia existir, ao falar da mídia, um quinto poder.
Em primeiro lugar é crucial ressaltar que, ao se discutir a mídia, não podemos esquecer que ela se coloca dentro de um espaço diferente e especial, ela não é igual a qualquer outra empresa: ela é formadora de consciência e de opinião pública. Cria a realidade. É ingênuo querer compará-la a outro meio de produção qualquer.
É fácil constatar que as batalhas hoje travadas na sociedade extrapolam a esfera dos poderes tradicionais como o executivo, o legislativo e o judiciário, e são carregadas e arrastadas por outro poder que se costuma atribuir à mídia. Mas é crucial aqui discernir dois tipos de poderes: um ilegítimo e outro democrático e legítimo.
Quando se fala em mídia como quarto poder é necessário ressaltar, de imediato, que esse assim chamado poder pode também ser um poder usurpado. Isso por que esse poder que a mídia se atribui não lhe foi conferido pelo povo, origem do poder legítimo nas sociedades democráticas. A mídia se arrogou esse poder por conta própria, sem levar em conta a população, mas baseada apenas em sua força econômica, política e ideológica. Ninguém conferiu esse poder a ela. Pode haver aqui, portanto, um equívoco ao se falar em poder.
Pode dar-se o fato de que estejamos sob a ditadura de um poder usurpado. E quem detém o poder da mídia tem também o poder de decidir sobre a organização dessas sociedades. É o que acontece, como vemos, com a mídia hoje no Brasil, onde nove famílias controlam mais de 90% da mídia eletrônica. Ela decide o que deve ser dito e, principalmente, o que não deve ser dito, o que os brasileiros não podem e não devem saber. A população brasileira é refém dessas nove famílias. Do mesmo modo, não há equipe de sociólogos capaz de competir com as equipes de publicidade.
Esse problema se agrava quando se examina a acelerada concentração da mídia pelo mundo afora. Segundo a UNESCO, na década de 1990 os EUA, a União Européia, e o Japão possuíam 273 dos 300 principais meios de comunicação; o resto do mundo possuía apenas 27. Dos usuários da Internet, 92% estavam nesses países. E esse processo de concentração midiática tem se acelerado no novo milênio. E o mais grave de tudo é a aliança que esse poder perigoso fez com as armas e a guerra. Grandes jornais são adquiridos por empresas cuja fortuna se baseia principalmente na fabricação de armas. Devido a isso, as últimas guerras mostraram que a primeira vítima das batalhas é a verdade.
Na discussão, portanto, do assim chamado quarto poder, é fundamental perguntar: quem avaliza tal poder? Quem lhe deu a garantia de exercê-lo com legitimidade? Foram esses meios escolhidos pelo povo? Percebe-se logo que na maioria das vezes seu poder é usurpador, dominador, antidemocrático. Não tem a chancela dos cidadãos/ãs.
Introduzimos agora o problema que gostaríamos de discutir. A mídia está aí, exercendo seu poderio praticamente sem controle nenhum. Que se poderia fazer, para tornar óbvia essa situação? Acreditamos que, contra esse poder dominador e antidemocrático, faz-se urgente um novo poder, esse sim democrático e popular, das ONGs, das organizações de base, das associações populares: uma imprensa popular e alternativa, rádios e TVs comunitárias, uma mídia que seja do povo, feita pelo povo, para o povo. É o que se pode chamar de quinto poder, expressão criada por Roger Silverstone (2004). Ao contrário do tipo de poder vigente agora, esse sim, seria um poder verdadeiro porque democrático, legitimado pela população, com o objetivo de fiscalizar, monitorar, denunciar e confrontar esse quarto poder. É sobre a possibilidade e a necessidade de organização desse quinto poder que passamos a refletir em seguida. De início, gostaríamos de alertar para um fenômeno curioso, que poderíamos chamar de roubo, ou apropriação, de uma representação social altamente legítima e louvável, que é ancorada, pela mídia dominante, a uma prática completamente oposta à preconizada: referimo-nos à questão da liberdade de imprensa e da censura.
Na imaginação popular nada mais nobre e saudável do que a liberdade de imprensa; e nada mais deplorável e injusto do que a censura. Os meios de comunicação, principalmente a imprensa, durante vários séculos exerceram um papel importante na denúncia dos abusos do poder, dos atropelos e discriminações de muitos governos e sociedades autoritárias. A história da imprensa foi, até certo ponto, marcada por essas lutas em prol da democracia e da liberdade de expressão de todos os cidadãos.
Foi a partir dessas práticas que o conceito ou a representação social da liberdade de imprensa, por um lado, e o exercício da censura, por outro, foram assumindo conotações valorativas. Por agir como crítica aos poderes constituídos, como um contra-poder, a imprensa passou a ser chamada de quarto poder e a liberdade de imprensa como algo importante e imprescindível para a garantia da democracia numa sociedade.
Acontece, contudo, que nas últimas décadas, à medida que se acelerou a globalização liberal, este quarto poder foi perdendo sua função de contra- poder. Surgiu um capitalismo de novo estilo, que não é mais meramente industrial, mas financeiro, de especulação e de escala planetária. Nessa fase em que, em definitivo, o debate principal se coloca no enfrentamento frontal entre o mercado e a sociedade, entre o privado e o público, entre o individual e o coletivo, entre o egoísmo e a solidariedade, observamos também um fato novo e crucial: os meios de informação deixaram de se constituir em um contra- poder, e passaram a se aliar a esses poderes. E esses conglomerados globais de comunicação têm, muitas vezes, um papel mais importante que muitos governos e Estados. Hoje, globalmente, os meios de comunicação (emissoras de rádio, imprensa escrita, canais de televisão, Internet) pertencem, cada vez mais, a grandes grupos que têm uma vocação global, como o grupo News Corp de Rubert Murdoch, América Online, Viacom, Microsoft.
É fundamental, então, enfatizar essa mudança fundamental nas representações de censura e de liberdade de imprensa. Os atores da comunicação mudaram. Eles não são mais os pequenos grupos, ou pessoas particulares, que enfrentam os governos autoritários e ditatoriais. A situação, hoje, é totalmente diversa: os meios de comunicação se constituíram em grandes conglomerados, verdadeiros oligopólios, grandes grupos que exercem monopólios, com concentração das propriedades da mídia verticais, horizontais e cruzadas (RAMONET, 2006). No caso brasileiro, como vimos, nove famílias detêm 90% dessa mídia. Como decorrência disso a censura também mudou de local: não é mais a mídia que é censurada, mas é a maioria da população que não pode exercer seu direito de dizer a palavra, expressar sua opinião, comunicar seu pensamento.
A questão que queremos discutir, ao final desse trabalho, é a maneira como se poderia concretizar e estruturar esse quinto poder. Já se vislumbram diversas iniciativas, algumas até bem diretas e próximas. Aprofundamos aqui uma delas, que já pode ser colocada em prática de imediato. Muitas outras estão a nosso alcance, depende apenas de nossa vontade política colocá-las em ação.
A iniciativa mais ampla e eficiente que surgiu, a partir de 2004, como reação às práticas todo-poderosas da mídia, é a CAP (Comissão de Acompanhamento à Programação de Rádio e TV), com sua Campanha Quem financia a baixaria é contra a cidadania. Esse movimento se originou quase que de um clamor da sociedade civil contra o baixo nível de nossa mídia e a falta de ética nela presente. Com o apoio logístico da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, a CAP propõe um controle social (não censura) por parte da população em relação aos programas de televisão e um desestímulo ao financiamento privado e público dos programas que reiteradamente violam os direitos humanos. Por isso, os programas que recebem muitas reclamações passam a ser minuciosamente analisados pelos participantes da Campanha que, ao final, proferem um parecer explicitando as razões pelas quais o mesmo é indigitado como baixaria.
A Campanha consolidou, nesses quatro anos de existência, um espaço público onde os cidadãos podem defender-se da programação de rádio e TV nos termos da Constituição Federal. Por meio de uma central telefônica ocorre o recebimento de denúncias e sugestões sobre a programação desses meios e um site na Internet contribui para divulgar todos os mecanismos de participação existentes (Os endereços disponíveis para fim de reclamação, além do e-mail principal, eticanatv@câmara.gov.br, são: via correio= Câmara dos Deputados, Comissão de Direitos Humanos, Sala 185- A- Brasília/ DF- CEP: 70169-970; por fax= (61) 3216. 2170; por telefone= (61) 3216. 6570; ou pelo site na Internet= www.eticanatv.org.br.).
Os programas que mais recebem reclamações por parte do público passam a constar de uma lista, o ranking, feita quadrimensalmente. A partir dela, os responsáveis pela Campanha ensejam um processo de conscientização junto às empresas que anunciam nos programas listados a fim de que passem a não mais financiar os referidos programas. A Campanha ainda estabeleceu uma carta de princípios (GUARESCHI e BIZ, 2004, p. 94-98), e elegeu um conselho, cuja função é assistir aos programas denunciados e verificar a ocorrência de abusos e violações aos direitos humanos. O conselho é composto por pessoas dos mais diversos setores da sociedade civil como a Ordem dos Advogados, entidades de defesa dos direitos humanos, Conselho Federal de Psicologia, movimentos homossexuais, movimentos feministas, igrejas, profissionais de mídia, entre outros.
O procedimento adotado é similar àquele que se espera que seja um dia estabelecido oficialmente como política pública de Estado: um conselho representativo que possa estabelecer punições administrativas a posteriori aos concessionários de televisão. Sem isso, dificilmente podem ser garantidos os direitos fundamentais do ser humano. Sem censura, moralismo ou limite à liberdade de expressão, mas regras que precisam ser previamente acordadas para que o direito à livre comunicação possa ser exercido plenamente por todos. Essa é uma boa maneira para incentivar as pessoas a lutarem por seus direitos de cidadania e para obterem espaços mais efetivos no planejamento da gestão pública.
Pela primeira vez os cidadãos e cidadãs têm ao seu alcance a oportunidade de criticar a mídia que lhes é oferecida praticamente como única opção. Espera-se que tal prática possa ajudar na formulação de políticas mais democráticas de comunicação social. Uma comunicação democrática é um processo de construção conjunta e participativa que deve permitir a todos, sem exceção, iguais oportunidades de acesso aos meios e tecnologias para manifestação de opiniões, de idéias, como afirma Murilo Ramos (2004).
Além da CAP, existem já dezenas de outros grupos, alguns sediados em universidades, outros ligados a diversas organizações da sociedade civil, tanto nacionais, como estrangeiros, que lutam pela democratização da mídia. Entre outros, podemos citar os seguintes: o Observatório Brasileiro de Mídia, da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP); o Observatório da Imprensa, da Universidade de Campinas; o Observatório da Imprensa, programa televisivo da TVE; o Fórum Nacional pela Democratização na Comunicação (FNDC), fundado em 1991, que reúne quatorze outras entidades da sociedade civil e dos movimentos organizados; a Agência Carta Maior (acessível apenas pela Internet); o Coletivo Intervozes- Coletivo Brasil de Comunicação Social, formado por profissionais e estudantes de comunicação; Midi@etica, surgida em Porto Alegre em 2002; Midiativa; Centro de Mídia Independente (CMI), Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação Social (ENECOS), de estudantes de comunicação, e outros.

Considerações Finais
O sinal dos tempos, hoje, é de que vivemos um tempo de sinais. Constata-se uma espécie de invasão da mídia na vida das pessoas. As TVs de canal aberto no Brasil não se constituem, na verdade, como opções alternativas para a população. Comportam-se como se tivessem donos, e são consideradas como uma propriedade privada. Em conseqüência disso passam a ter como primeira finalidade o lucro, e não a educação das pessoas. Não há liberdade de escolha. Agem como invasoras da vida e da privacidade das famílias e pessoas. Mas há um outro problema que gostaríamos de trazer ao debate ao final dessa discussão. Como conseqüência, em parte de certa naturalização e imprescindibilidade da mídia, construída por ela mesma, cria-se o que alguns estudiosos passaram a chamar de poluição midiática, ou contaminação midiática. Além de a mídia ser utilizada como arma de luta na nova guerra ideológica, ela também, devido a sua explosão e multiplicação, pela sua super-abundância, passa a contaminar, a envenenar, com todo tipo de mentiras, rumores, distorções e manipulações, o ambiente social. Está acontecendo com a informação o que se passou com a alimentação. Durante muito tempo a alimentação foi escassa, causando penúria. Mas com a revolução agrícola a superprodução permitiu, principalmente nos países ricos, produzir uma abundância de alimentos. Mas não nos damos conta que muitos desses alimentos estão contaminados e envenenados por pesticidas, causando doenças e morte, como a peste das vacas loucas. Antes podíamos morrer de fome, mas hoje morremos por comer alimentos contaminados.
O mesmo acontece com a informação. Historicamente, era escassa ou inexistente. Ainda hoje, em algumas ditaduras, não há informação, ou ela é escassa, de má qualidade. Nos países assim ditos democráticos, contudo, a informação se multiplicou, transborda por todas as partes. É como se fosse um quinto elemento além do ar, água, terra e fogo. A partir dessa constatação, começa-se a falar, hoje, na necessidade de uma “ecologia da informação” (RAMONET, 2006, p. 27), com o propósito de limpar essa informação da maré negra das mentiras, para descontaminá-la. Essa mobilização deve fazer parte da agenda de trabalho do que discutimos como quinto poder. É preciso resgatar o respeito elementar pela verdade. A comunicação é um serviço público, não particular; não se pode confundir liberdade de empresa com liberdade de imprensa. Como muito bem expressa Ramonet (2006, p. 27, grifos do autor), “a liberdade dos meios de comunicação não é mais do que a extensão da liberdade coletiva de expressão, fundamento da democracia. Como tal, implica uma responsabilidade social e seu exercício está, portanto, sujeito, em última instância, ao controle responsável da sociedade”.

(Pedrinho A. Guareschi é Doutor em Psicologia Social e Comunicação, Professor e Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUCRS.)

publicado às 07:27

Já em artigo intitulado «Ser aí (Dasein) e pre-sença em Heidegger», publicado em 4 de Fevereiro de 2006, neste blog, frisei a incorrecção na versão brasileira de «Ser e Tempo» que constitui traduzir Dasein por “presença”. Escrevi:

 

«Na versão brasileira da editora «Vozes», a tradutora Márcia de Sá Cavalcante opta por substituir a expressão «ser-aí» por «pre-sença» na tradução da palavra Dasein e justifica-se assim:

 

«Pre-sença não é sinónimo de existência e nem de homem. A palavra Dasein é comunmente traduzida por existência. Em Ser e Tempo , traduz-se em geral, para as línguas neolatinas pela expressão "ser-aí", être-là, esser-ci, etc. Optamos pela tradução de pre-sença pelos seguintes motivos: 1) para que não se fique aprisionado às implicações do binómio metafísico essência-existência;(...)4) pre-sença não é sinónimo nem de homem, nem de ser humano, nem de humanidade, embora conserve uma relação estrutural. Evoca o processo de constituição ontológica de homem, ser humano e humanidade.»( Nota N1 de Márcia de Sá Cavalcante in M. Heidegger, O Ser e o Tempo, parte I, Pág. 309).

 

Designar o ser aí por presença é limitar ao momento presente a caracterização do Dasein e é colocar-se sob o fogo da crítica do próprio Heidegger, que escreveu ao criticar a ontologia tradicional que concebia o ente como “presença”:

 

«Então torna-se patente que a interpretação antiga do ser dos entes se orienta pelo “mundo” ou pela “natureza” no sentido mais amplo, e que, com efeito, extrai do tempo a compreensão do ser. A prova extrínseca disso – mas somente disso – é a determinação do sentido do ser como parousia ou ousia, que significa ontológico-temporalmente “presença”. O ente concebe-se enquanto ao seu ser como “presença”, quer dizer, compreendemo-lo por respeito de um determinado modo do tempo, “o presente”. (Martin Heidegger, O Ser e o Tempo, Fondo de Cultura Económica, Págs 35-36).

 

Heidegger foi muito claro ao definir Dasein como cada homem, ao contrário do que acima escreveu Márcia Cavalcante:

«O ser aí (Dasein), quer dizer, o ser do homem, define-se na definição vulgar, do mesmo modo que na filosófica, como zoón logón ékon, o ser vivo cujo ser está definido sobretudo pela faculdade de falar.»

(Martin Heidegger, O Ser e o Tempo, Fondo de Cultura Económica, Págs 36).

 

Pre-sença não é, pois, termo adequado para exprimir a ek-sistência do homem, isto é, a sua natureza de ente lançado pelo ser na clareira que é mundo. Na carta a Jean Beaufret, de 23 de Novembro de 1945, Martin Heidegger escreveu:

«"Da-sein" é uma palavra chave no meu pensar, por isso ela é causa de graves erros de interpretação. "Da-sein" não significa para mim exactamente "eis-me" mas se é que me posso exprimir num francês impossível: ser-o-aí e o-lá significa exactamente aleteia, desvelamento-abertura.» (Heidegger, in Carta sobre o Humanismo, anexo, Guimarães Editores, pág 129).

 

Quem opera a aleteia ou desvelação do ser? Não é o cão, nem o gato, nem Deus, mas sim o homem, o ser-aí, o-lá. Se o ser para os gregos era designado como presença não faz sentido designar o ser-aí, que é distinto do ser, por presença.

 

A NEBULOSIDADE DE HEIDEGGER SOBRE A CONEXÃO ENTRE SER E TEMPO E SOBRE A NATUREZA DO TEMPO

 

Já afirmei que as acusações de Heidegger à ontologia tradicional de esta «confundir o ser com o tempo», ou de «extrair do tempo a compreensão do ser» isto é, de misturar a água corrente do tempo com a pedra do ser, são infundadas. Se a pedra está dentro da água, como realmente sucede, é deslocada, revirada, desgastada por esta e esse facto não pode ser escamoteado. Não é possível determinar o ser sem o visualizar ou conceber através do vidro ou do rio móvel do tempo. Platão só determinou o ser – que não é Deus, o demiurgo, mas sim o conjunto das formas imóveis e eternas: o Belo, o Bem, o Justo, a Proporção, o Sábio, etc. – porque o comparou com o tempo e o isolou das coisas mutáveis sujeitas ao devir do tempo. O ser imóvel – o ser – concebe-se a partir do ser móvel – o tempo ou o ser revestido de tempo. Há um carácter temporal do ser – a mutabilidade da sua essência – e por isso o tempo não é extrínseco ao ser no seu todo mas apenas a um núcleo central do ser, do mesmo modo que os raios da roda da bicicleta giram e não são extrínsecos à roda mas sim ao centro desta donde partem. Não existe tempo puro mas sim tempo-matéria. Se a matéria e qualquer outra forma de existência desaparecer não há tempo. Este é, por assim dizer, um acidente essencial do ser.

Se considerarmos os diversos estádios de desenvolvimento do ser humano – infância, meninice, adolescência, juventude adulta, meia idade, velhice – como as facetas do «cubo» do ser antropológico é fácil perceber que só o tempo faz girar as faces do cubo, expondo, numa sequência, os diversos estádios do ser.

É paradoxal a definição que Heidegger fornece do tempo:

“O tempo não está “diante dos olhos”, nem no “sujeito”, nem no “objecto”, nem “dentro”, nem “fora” e “é” anterior a toda a subjectividade e objectividade, porque representa a própria condição da possibilidade de este “anterior”. Tem em geral um “ser”? E se não, é um fantasma, ou é mais que todo o possível ente?» (…) Antes de tudo trata-se de compreender que a temporalidade, enquanto horizontal-extática, temporaliza o que chamamos um tempo mundano, que constitui a intratemporacialidade do “ao alcance da mão” e do “diante dos olhos”. (Martin Heidegger, O Ser e o Tempo, Fondo de Cultura Económica, Pág. 452).

 

O tempo original é a eternidade imóvel de Platão. Mas Heidegger hesita em identificar o tempo original com a eternidade do ser arquetípico. Parece não se aperceber disso. A temporalidade original é, pois, uma intemporalidade: se temporaliza o tempo mundano é porque se decompõe neste. Como intemporalidade, a temporalidade original é a forma imutável do ser, confunde-se com este, com os arquétipos. O tempo original é ser. É, não a forma do ser, mas a constância ou imutabilidade da forma. É pois um acidente essencial, intrínseco, na ousía que é o ser. Mas Heidegger é incapaz de precisar isto, de admitir esta fusão, este ponto inicial donde dimanam como feixes divergentes o ser e o tempo. Fulmina os leitores com a expressão «temporalidade horizontal-extática» que significa, confusamente, que o tempo original é um êxtase do ser, vem depois deste. Não é. Se entendido como eternidade, o tempo original é uma propriedade do ser. Nem o ser imóvel é anterior à eternidade nem esta é anterior àquele.

Heidegger escreve, ao criticar Hegel:

«O “espírito” não cai no tempo, mas existe como temporalização original da temporalidade. Esta temporaliza o tempo mundano, em cujo horizonte pode “aparecer” a “história” como um gestar intratemporal. O “espírito” não cai no tempo, mas a existência fáctica “cai”, na queda, a partir da temporalidade original e própria.» ((Martin Heidegger, O Ser e o Tempo, Fondo de Cultura Económica, Pág. 459).

 

Este espírito a que Heidegger se refere nem sequer é identificado como o ser. Mas é a máquina temporalizadora, isto é, fabricante do tempo vulgar que parece ser, aos olhos do vulgo, uma sucessão uniforme e infinita de “agoras” do passado até ao futuro. O espírito será um intermediário entre o ser e o tempo vulgar. É, aparentemente, a componente, o substrato imutável do «ser-aí», o a priori, que escapa à facticidade (o ter este corpo e este psiquismo, esta família, esta localidade, esta profissão, etc).

O tempo original foi interpretado por Heidegger como númeno: nem objectivo, nem subjectivo, nem dentro, nem fora e anterior à divisão entre sujeito e objecto (na gnoseologia de Kant: anterior à divisão fenómeno (a posteriori) / formas a priori da sensibilidade [espaço, tempo]). Esta concepção corresponde exactamente ao mundo do Mesmo em Platão, o mundo anterior ao tempo, aos céus com os movimentos astrais, que formam o Mundo do Semelhante, e à terra.

 

Ao invés de Heidegger, Wittgenstein produziu uma notável interpretação do tempo, fisicalizando-o, tomando-o como uma forma dos objectos:

«Espaço, tempo e cor (coloração) são as formas dos objectos.» (Ludwigg Wittgenstein, Tratado Lógico-Filosófico; Investigações Filosóficas, Fundação Calouste Gulbenkian, Gulbenkian, Lisboa, 1987, pag 33).

Se os objectos, metafisicamente considerados, como arquétipos, constituírem o ser é fácil perceber que o tempo é uma forma desses objectos – na realidade, uma sucessão de formas, o movimento destas como auto-transformação. Há que meditar a definição de Platão, no «Timeu», do tempo como "imagem móvel da eternidade". A imagem é uma forma e, neste caso, uma forma móvel. Assim, o tempo não é o número que segue o movimento como teorizou Aristóteles mas a forma mutante: não é aritmética, mas geometria.

A natureza do tempo é formal-substancial, forma substancial das coisas, formalidade mutável, móvel. Mas para Heidegger o tempo original é informal, anterior à matéria e traduz-se no espírito gerador da temporalização, espírito cuja ligação ao ser permanece nebulosa, enigmática.

 

(Francisco Limpo de Faria Queiroz)  

publicado às 12:21

Heidegger chamou a atenção para o facto de o passado de cada ser humano ser um presente designado por sido– e neste campo, está em posição similar à de Freud ou Max Scheler. Múltiplos factos do nosso passado, da nossa infância, continuam vivos no nosso inconsciente ou no subconsciente. Não passaram, apenas foram armazenados na «cave» do eu, ocultos por força do devir.

 

 

 

«”Enquanto” o ser aí (Dasein) existe facticamente, não é nunca passado, mas sim é sempre já sido, no sentido de eu sou sido. E só pode ser sido enquanto é. Passado, chamamos pelo contrário, ao ente que já não é “diante dos olhos”. Daqui que o “ser aí” existindo não possa nunca capturar-se a si mesmo como um facto “diante dos olhos”que “com o tempo” surge e passa e parcialmente já é passado. O ser aí nunca se encontra a não ser como factum lançado. No “encontrar-se” o ser aí surpreende-se a si mesmo como o ente que, ainda sendo, já era, quer dizer, é constantemente sido. O sentido primário da facticidade reside no sido. (Martin Heidegger, El ser y el tiempo, Fondo de Cultura Económica, Pág. 355).

 

 

 

Assim, por exemplo, o meu avô, que morreu há décadas, é passado: o seu corpo desapareceu nas entranhas da Terra. Mas a imagem que conservo de o meu avô me levar ao café, quando eu tinha oito anos de idade, e me pôr a conversar com os seus amigos, é sido e não passado porque está viva, em minha memória.

 

 

 

A facticidade é, por conseguinte, o passado, hereditário ou não, biológico, social, profissional, emocional, etc, vertido na taça do presente. Estritamente confinado na sua facticidade, o ser aí, ou seja, cada homem, não tem liberdade, recebe como um destino aquilo que foi. Decerto, a liberdade existe a partir da facticidade - porque há mais ser além desta - mas não no interior desta, tal como a liberdade da planta enraizada no solo não está nas raízes mas sim nas folhas e no caule. A liberdade encontra-se ligada à existenciaridade - ou existencialidade ou existentividade, conforme as traduções-, um dos ingredientes da cura ou cuidado, que Heidegger define assim:

 

 

 

«O projectar-se sobre ele (o advir) "por mor de si mesmo", que se funda no advir, é uma nota essencial da existenciaridade. O sentido primário desta é o advir.» (Martin Heidegger, El ser y el tiempo, Fondo de Cultura Económica, Pág. 355).

 

 

 

«A unidade dos ingredientes constitutivos da cura, existenciaridade, facticidade e queda, tornou possível circunscrever ontologicamente pela primeira vez a totalidade do todo estrutural do ser aí. A estrutura da cura ficou resumida na fórmula existenciária “pré-ser-já-em (um mundo) como ser-junto (aos entes que estão diante dentro do mundo).” (Martin Heidegger, El ser y el tiempo, Fondo de Cultura Económica, Pág. 344). 

(Francisco Limpo de Faria Queiroz)  

publicado às 12:20

No animal, a natureza fala o tempo todo e fortemente, tão fortemente que ele não tem a liberdade de fazer nada além de obedecer-lhe.

No homem, ao contrário, domina certa indeterminação: a natureza está presente, de fato, e muito, como nos ensinam todos os biólogos. Nós também temos um corpo, um programa genético, o do nosso DNA, do genoma transmitido por nossos pais. Contudo, o homem pode afastar-se das regras naturais, e até mesmo criar uma cultura que se opõe a elas quase termo a termo — por exemplo, a cultura democrática que vai tentar resistir à lógica da seleção natural para garantir a proteção dos mais fracos.

(Luc Ferry - Aprender a Viver)

 




Sartre move-se, tal como Heidegger, no paradoxo posicional da fenomenologia:  perspectivar, de fora, o mundo físico e a consciência do sujeito (designada de para-si, em Sartre)  como se fosse um terceiro Olho, exterior, num hiper realismo, e, simultaneamente, perspectivar a partir de dentro da consciência do sujeito o mundo físico exterior por saber que é impossivel abandonar, por completo, o «Cogito»  de Descartes, perspectiva traduzida, de diferentes modos, no idealismo e no realismo. O esforço de Sartre para destacar o primado da coisidade material, que integra a facticidade, sobre a consciência subjectiva é visível. No entanto, na linha da fenomenologia heideggeriana, Sartre fala na situação como correlação sujeito (para si) / objecto material (em si). Escreveu:

 

«A situação é o sujeito inteiro (ele não é nada a não ser a sua situação) e é também a coisa inteira (nunca mais nada senão as coisas) . É o sujeito a elucidar as coisas pela sua própria superação, se assim quisermos; ou são as coisas a reenviar ao sujeito a imagem dele. É a total facticidade, a contingência absoluta do mundo, do meu nascimento, do meu lugar, do meu passado, dos meus redores, do facto do meu próximo - e é a minha liberdade sem limites como o que faz com que haja para mim uma facticidade

 

(Sartre, "O Ser e o Nada", Círculo de Leitores, pag 541; o negrito é posto pelo autor).

 

A confusão neste texto de Sartre reside no seguinte: a liberdade não faz com que haja uma facticidade, isto é, um estado de coisas inevitável e incontornável (exemplo: o meu rosto, o meu capital genético, a família e o meio onde nasci e cresci, etc). É o inverso que, originariamente, acontece. A facticidade é anterior, ontologicamente, à liberdade. Não escolhemos o corpo ou a família em que nascemos, ainda que a posteriori possamos agir sobre um ou outra segundo o nosso livre-arbítrio. Decerto, a liberdade pode escolher uma das várias escarpas do promontório rochoso da facticidade, em momentos ulteriores - supondo que o fatalismo não existe, claro. Mas essa escolha não é uma criação a partir do nada, um poder infinito da liberdade, como a frase acima, de Sartre, sugere. Não existe a liberdade infinita.

0000000000000000000000000000000000000000000f.jpgPara Sartre, o homem está condenado a ser livre.

 

 Outro paradoxo implícito no texto consiste nisto: o sujeito, o para-si, é um "nada" mas ao escolher entre as diversas vias da situação - de que ele é uma componente móvel e activa - modifica esta, desenvolve certas facetas desta e enfraquece outras. Por exemplo: se alguém é pouco musculado, pode decidir frequentar um programa de músculação em ginásio e alterar formas no seu corpo. Então a frase «nunca mais nada senão as coisas» não é verdadeira: o livre-arbítrio do «para si» (consciência individual) é causa eficiente de algumas coisas, não é, por conseguinte, um nada. Se escrevo um livro usando a "coisa" que é a minha mão, a minha inteligência (o «para mim») não é um nada, mas sim a autora do livro, das páginas que vão surgindo escritas. A coisidade do sujeito que se opõe à coisidade material não é da mesma natureza desta: é demiúrgica, criadora, opõe-se à inércia da facticidade.  

 

Sartre defende, com brilhantismo, a sua tese do primado da liberdade sobre a facticidade:

 

« Não sou acaso eu que decido do coeficiente de adversidade das coisas e, inclusive, da sua imprevisibilidade ao decidir de mim mesmo? Não há assim acidentes numa vida; um acontecimento social que rebenta subitamente e me arrasta não vem de fora; se sou mobilizado para uma guerra, esta guerra é a minha guerra, ela é à minha imagem e eu mereço-a. Mereço-a, em primeiro lugar, porque dispunha sempre da possibilidade de a ela me subtrair pelo suícidio ou a deserção; estes possíveis últimos são aqueles que devem estar-nos sempre presentes quando se trata de encarar uma situação. Na falta de a ela me ter subtraído, escolhi-a; pode ser por moleza, por cobardia perante a opinião pública, porque prefiro certos valores ao da própria recusa de fazer a guerra (a estima dos meus inimigos, a honra da minha família,etc). De qualquer modo, trata-se de uma escolha. » (Sartre, O Ser e o Nada, pag 546; o negrito é colocado pelo autor).


Mas este voluntarismo sartriano minimiza o peso «morto» do determinismo biológico e social que faz frente ao livre-arbítrio.

(Francisco Limpo de Faria Queiroz)

0000filosofia-fenomenologia-7-638.jpgA existência precede a essência

 

publicado às 12:13


"Deus morreu", e agora?

por Thynus, em 23.02.16
. Volto muitas vezes a esse sublime e abissal texto, pavoroso, um dos grandes da grande literatura alemã, que Jean Paul, pseudónimo de Johann Paul Friedrich Richter, escreveu em 1796: "Rede des toten Christus vom Weltgebäude herab, dass kein Gott sei" ("Discurso do Cristo morto, a partir do cume do mundo, sobre a não existência de Deus").
Nele, o célebre escritor descreve um sonho. Pela meia-noite e em pleno cemitério, numa visão apavorante, o olhar estende-se até aos confins da noite cósmica esvaziada, os túmulos estão abertos, e, num universo que se abala, as sombras voláteis dos mortos estremecem, aguardando, aparentemente, a ressurreição. É então que, a partir do alto, surge Cristo, uma figura eminentemente nobre e arrasada por uma dor sem nome. E, com um terrível pressentimento, "os mortos todos gritam-lhe: "Cristo, não há Deus?" Ele respondeu: "Não, não há Deus." Então, a sombra de cada morto estremeceu, e umas a seguir às outras desconjuntaram-se. E Cristo continuou, anunciando o que aconteceu no instante da sua própria morte: "Atravessei os mundos, subi até aos sóis, voei com as galáxias através dos desertos do céu; e não há Deus. Desci até onde o ser estende as suas sombras, e olhei para o abismo, gritando: "Pai, onde estás?" Mas apenas ouvi a tormenta eterna, que ninguém governa." Quando, no espaço incomensurável, procurou o olhar divino, não o encontrou; apenas o cosmos infindo o fixou petrificado com uma órbita ocular vazia e sem fundo, "e a eternidade jazia sobre o caos e roía-o e ruminava-se". O coração rebentou de dor, quando as crianças sepultadas no cemitério se lançaram para Cristo, perguntando: "Jesus, não temos Pai?" E ele, debulhado em lágrimas, respondeu: "Somos todos órfãos, eu e vós, não temos Pai." "Nada imóvel, petrificado e mudo! Necessidade fria e eterna! Acaso louco e absurdo! Como estamos todos tão sós na tumba ilimitada do universo! Eu estou apenas junto de mim. Ó Pai, ó Pai! Onde está o teu peito infinito, para descansar nele? Ah! Se cada eu é o seu próprio criador e pai, porque é que não há-de poder ser também o seu próprio exterminador?"
Para Jean Paul, a morte de Deus não era ainda um destino espiritual inevitável. Apenas a tentação de uma possibilidade ameaçadora. E ele queria estar prevenido: que, quando a tentação o visitasse, soubesse de antemão o abismo sem fim, pavoroso, a que a morte de Deus conduz. Quando acordou do pesadelo ateu, a sua alma "chorava de alegria, por poder de novo adorar a Deus - e a alegria e o choro e a fé nele era a oração".
2. Um século depois (1882), o louco de Nietzsche proclamou a morte de Deus: "Quem o matou fomos todos nós, vós mesmos e eu!" "Nunca existiu acto mais grandioso." Ao mesmo tempo, Nietzsche tem consciência aguda do que se segue: "Para onde vamos nós, agora? Não estaremos a precipitar-nos para todo o sempre? E a precipitar-nos para trás, para os lados, para a frente, para todos os lados? Será que ainda existe um em cima de um em baixo? Não andaremos errantes através de um nada infinito? Não estará a ser noite para todo o sempre, e cada vez mais noite?"
3. O filósofo Gilles Lipovetsky escreveu, em A Era do Vazio: "Deus morreu, as grandes finalidades extinguem-se, mas toda a gente se está a lixar para isso. O vazio do sentido, a derrocada dos ideais não levaram, como se poderia esperar, a mais angústia, a mais absurdo, a mais pessimismo." Mas Leszek Kolakowski, o filósofo agnóstico, disse que o nosso "é um mundo privado de todo o sentido, de qualquer orientação, sinal de direcção, estrutura", de tal modo que, desde a proclamação da morte de Deus por Nietzsche, "praticamente nunca mais vimos ateus serenos": "A ausência de Deus tornou-se a ferida sempre aberta do espírito europeu, por maior que tenha sido o esforço para esquecê-lo, recorrendo a toda a espécie de narcótico." De qualquer forma, agora, no seu livro A Sociedade da Decepção, Lipovetsky, reconhecendo "a reafirmação do religioso", vem dizer que, "privados de sistemas de sentido englobante, numerosos indivíduos encontram uma tábua de salvação no reinvestimento de antigas e novas espiritualidades capaz de oferecer a unidade, um sentido, referências, uma integração comunitária: é o que o homem necessita para combater a angústia do caos, a incerteza e o vazio".
4. Há quem acuse a fé de mera ilusão. Mas eu creio que ela é sobretudo um combate, como reza esta espécie de testamento de um judeu que morreu em 1943 no gueto de Varsóvia: "Creio no Deus de Israel, embora ele tenha feito todo o possível para que não acredite... Deus ocultou o seu rosto ao mundo. As folhas em que escrevo estas linhas vou encerrá-las nesta garrafa vazia e escondê-la aqui entre os tijolos da parede, debaixo da janela. Se alguém as encontrar um dia e as ler, talvez entenda o sentimento de um judeu - um entre milhões - que morreu como abandonado de Deus, esse Deus no qual acredita tão firmemente."

publicado às 13:27


Jesus e o Vaticano

por Thynus, em 23.02.16

1- Como se pode andar distraído! Como é que, tendo estado várias vezes na Praça de São Pedro, não fui ler o que está escrito no famoso obelisco, no centro da praça?! Foi preciso lê-lo agora em Jesús Bastante, que lembra que o obelisco veio do Egipto no ano 37 da nossa era, tendo sido trasladado, 15 séculos depois, do circo de Nero para o lugar que agora ocupa, fazendo o Papa Sisto V, em 26 de Setembro de 1586, gravar na sua base de mármore uma antiga fórmula de exorcismo: "Ecce crux Domini" (eis a cruz do Senhor), "Fugite, partes adversas" (Fugi, forças do caos) - um autêntico exorcismo, "Vicit Leo de tribu Juda" (o Leão da tribo de Judá venceu). Desse modo, a Praça de São Pedro delimitaria simbolicamente o enfrentamento entre o Bem e o Mal, "e o exorcismo impediria que o Demónio chegasse à sede de Pedro".

2- Desgraçadamente, não foi nem é assim. Constantemente lemos sobre os escândalos no Vaticano. E, infelizmente, não se trata de meras efabulações romanescas. Por isso, muitos se foram e vão perguntando como é que foi possível chegar até aqui. Gandhi também andou pelo Vaticano, olhou para aquilo tudo e conta-se que terá dito: se nem estes conseguiram acabar com o cristianismo, então o Evangelho de Jesus é verdadeiro. Ele distinguia muito bem entre o Vaticano e Jesus.

3- É urgente evangelizar o Vaticano. Mas há quem pergunte: Será a Cúria Romana reformável? O que é facto é que, após a publicação de documentos secretos, que denunciavam a existência de lutas pelo poder e pelo dinheiro entre membros da Cúria - o célebre VatiLeaks -, Bento XVI, num gesto histórico de imensa coragem, renunciou, pois, disse, já não tinha "forças físicas nem espirituais" para continuar. Na altura, L"Osservatore Romano referiu-se-lhe como "um pastor rodeado de lobos".

Seguiu-se o Papa Francisco, hoje talvez o homem mais popular do mundo e um dos mais influentes. Estimado, amado, querido, acarinhado por causa da sua bondade, da sua humildade, porque ele próprio estima e ama as pessoas, interessa-se por elas, quer a sua felicidade, bate-se por elas, não se poupa a sacrifícios por elas, a começar pelos mais débeis, pobres e abandonados. As pessoas vêem nele a manifestação do que Jesus foi e é, do que Jesus fez e faz, do que Jesus manda.

A Igreja tinha caído demasiado abaixo do que o Evangelho quer. Foi preciso impor tolerância zero para a pedofilia do clero - soube-se agora que a Igreja americana já pagou quatro mil milhões de dólares em indemnizações às vítimas - e caminha-se para reformas estruturais, a começar pela Cúria, que é um cancro na Igreja por causa dos escândalos do poder e do dinheiro. Já em 1965, durante uma entrevista privada, quando Paulo VI lhe propôs uma "oferta de trabalho", dizendo: "Deve confiar em mim", o famoso teólogo Hans Küng respondeu: "Eu tenho confiança em Vossa Santidade, mas não nos que estão à sua volta." O Papa Francisco sabe que há excepções, pessoas excelentes na Cúria, mas também sabe que vive num vespeiro. A quem se escandalizar peço que releia o discurso arrasador de Francisco sobre as doenças da Cúria, que aqui sintetizei. E aí está o VatiLeaks II, com a publicação, na semana passada, de dois livros com documentos secretos, incluindo conversas privadas de Francisco: Via Crucis, de G. Nuzzi, e Avarizia, de E. Fittipaldi.

Por um lado, é uma traição ao Papa, mas, por outro, ficam informações de que os lobos continuam actuantes, lutando pelas suas prerrogativas ameaçadas. Por lá moram ganância, corrupção, gestão danosa, contas milionárias sob suspeita, carreiristas, gente com uma vida dupla. Enquanto o Papa vive num apartamento de 50 metros quadrados, há cardeais e membros da Cúria em apartamentos de luxo até 400 metros quadrados. Os valores do arrendamento de imóveis a amigos podem ficar entre dois e cem euros. O custo das canonizações pode ultrapassar o meio milhão de euros. O pior: destinos obscuros de milhões de euros, que deviam ser para obras de beneficência.

4- No domingo passado, Francisco veio garantir aos fiéis que não cederá: "Sei que muitos estais perturbados com as notícias que circularam sobre os documentos confidenciais da Santa Sé roubados e publicados." Trata-se de "um delito, um acto deplorável que não ajuda. Eu mesmo tinha pedido que se fizesse esse estudo, e os meus colaboradores e eu conhecíamos muito bem esses papéis. De facto, foram tomadas medidas que começaram a dar frutos, alguns visíveis. Por isso, quero assegurar-vos que este triste acontecimento não me desviará do trabalho de reforma que estamos levando a cabo com os meus colaboradores e com o apoio de todos vós".

Esta reforma não apela apenas à conversão pessoal. Ela tem de ser estrutural: exige instâncias de controlo do poder, divisão de poderes. É preciso avançar sinodalmente, isto é, caminhar juntos: o povo todo de Deus, que a hierarquia deve servir.

 


publicado às 13:26


A sabedoria em três palavras

por Thynus, em 23.02.16

1. Passada a alegria, talvez até a euforia, da passagem do ano velho para o novo ano, o que é facto é que estamos no ano novo de 2016. E, aqui chegados, nesta abertura do novo, do que nunca houve, pois é mesmo novo, inédito, pela primeira vez, talvez não seja mau reflectir um pouco

2. Fazer o quê no novo ano? Fazermo-nos, que é a única tarefa que temos na existência.

Ao contrário dos outros animais, os humanos vêm ao mundo por fazer. Nascemos prematuros. Daí, dizermos a nós próprios: ou a natureza foi madrasta para nós, pois nascemos sem garras para nos defendermos, sem pêlos para nos protegermos, por fazer, ou esta é a condição de possibilidade de sermos o que somos, fazendo-nos: seres humanos, tendo de receber e de fazer por cultura o que a natura nos não deu. Nascemos com uma abertura ilimitada de possibilidades, permitindo inovar, criar e inventar, e crescer, de tal modo que, se Platão, por exemplo, cá voltasse, encontraria os outros animais como os deixou, mas teria dificuldade em adaptar-se à nova sociedade que entretanto os humanos criaram. Cá está: tendo nascido por fazer, a nossa missão é, fazendo o que fazemos nas mais variadas funções e actividades, fazermo-nos a nós próprios, uns com os outros, evidentemente. E, no fim, o resultado será ou uma obra de arte ou uma porcaria (perdoe-se a dureza da palavra), a vergonha de nós.

3. Uma vez que somos livres - possuímo-nos a nós próprios, somos donos de nós e das nossas acções -, é bom, decisivo, que nos façamos bem, como obra de arte.

Realizamo-nos, fazemo-nos, assumindo, produzindo valores. A palavra valor vem do latim: valere (ter força, valer). Significativamente, "Vale!" era a saudação romana: "Passa bem!" Como nós saudamos alguém, sempre em conexão com saúde: como estás?, passas bem?

Ora, a saúde implica um conceito holístico: os órgãos corporais funcionando harmonicamente, dar-se bem consigo, estar de bem com os outros, com a natureza, com a transcendência. Assim, também a realização de sermos verdadeiramente nós implica a vivência, a assunção e a produção, em harmonia, de valores nos diferentes domínios. Por isso, há valores materiais: a comida, a bebida, roupa, casas...; valores vitais, que têm que ver concretamente com a saúde e o bem-estar; valores espirituais, que se referem à dimensão espiritual do ser humano e que são os valores intelectuais - o valor do saber, da procura da verdade, da filosofia, das ciências -, os valores morais, referidos ao bem e ao mal, à virtude -, os valores estéticos, os da beleza nas várias vertentes: beleza natural, beleza artística da pintura, da literatura, da dança, da música -, os valores políticos, que se referem à polis, à sua edificação e condução -, os valores religiosos, em conexão com a Transcendência.

Os valores todos estão, evidentemente, em ligação com o valor supremo da pessoa, da sua dignidade e dignificação.

4. Concretamente numa sociedade como a nossa, quando predomina o barulho infernal - assembleias, televisões, comentários de comentários, todos a falar e ninguém a ouvir -, a vertigem da corrida, do stress e do atropelo, na confusão de imagens e do consumo niilista, na pura exterioridade e no esquecimento de si, é urgente fazer o elogio do silêncio, para ouvir a voz da consciência e a grande música, que é o Divino no mundo, e fazer apelo à cultura da pausa, para dar conta do milagre que é viver e não se afundar na dispersão de si e na insensatez sem fim. Deve-se viver e não ser pura e simplesmente vivido.

5. Dar-se conta do essencial. No seu mais recente livro, Vivir. Espiritualidad en Oequeñas Dosis, Juan Masiá retoma uma velha estória, que poderia ser histórica. O jovem rei, com desejo de aprender, convocou os sábios do reino, encarregando-os de lhe trazerem um resumo da sabedoria humana. Passados 30 anos, compareceram com 12 camelos, carregando quinhentos volumes. O rei, já cinquentenário, lamentou já não ter tempo para lê-los: "Fazei uma edição abreviada." Dez anos depois, bastaram três camelos, mas o rei, já sexagenário, sentia-se sem forças para tanta leitura e pediu uma versão mais curta. Outros dez anos de trabalho e um camelo apenas para transportar os volumes. O rei, porém, tinha a vista debilitada. Assim, mais cinco anos de trabalho, para reduzir a obra a um único volume. O rei, já no leito à espera da morte, entristeceu-se profundamente: "Chegarei ao fim dos meus dias sem ter tido o gozo de aprender a história da caminhada humana?" Então, o mais velho dos sábios aproximou-se e sussurrou ao ouvido do rei: "Majestade, pode-se reduzir tudo a três palavras: nascemos, sofremos e morremos." O rei assentiu com um gesto e expirou.

Jesus também disse: "De que vale ao homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder a sua vida?" Bom e feliz ano novo de 2016!

 


publicado às 13:24


O futuro da Igreja (2)

por Thynus, em 23.02.16
Na obra que acaba de publicar, L'avenir de Dieu, que é o seu "testamento" intelectual, espiritual e religioso, Jean Delumeau, 92 anos, depois de mostrar que a grande falha da Igreja foi ter-se convertido em poder, como vimos no sábado passado, apresenta "pistas e proposições" para o futuro.
1. O governo da Igreja. Não tem o governo da Igreja Católica de "ser profundamente repensado e reconstruído", devendo estar "mais atento do que no passado aos desejos e aspirações dos fiéis"? Não deveriam estes "poder escolher os seus representantes que constituiriam uma espécie de parlamento da catolicidade?"
Antes, isso era irrealizável. Mas actualmente o mundo tornou-se uma pequena aldeia na qual todos podem comunicar instantaneamente entre si no planeta. Então, porque é que não poderei "manifestar o desejo de que os futuros responsáveis da Igreja Católica ao mais alto nível sejam um dia eleitos por um parlamento mundial dos fiéis para um mandato por tempo determinado? Em que é que esta prática atraiçoaria a mensagem de Cristo?"
2. A "Humanae vitae". Com este tipo de governo, as decisões quanto à vida sexual dos fiéis não seriam contrárias ao bom senso, pois não seriam tomadas por "poderes eclesiásticos compostos unicamente por celibatários". "Hoje, parece inconcebível e inadmissível para os nossos contemporâneos que Paulo VI tenha publicado a encíclica "Humanae vitae" depois de ter autoritariamente retirado o dossiê da contracepção das deliberações do concílio Vaticano II. Nestas condições, para quê reunir um concílio ecuménico? Aliás, muitos canonistas pensam que esta encíclica, que esvaziou as igrejas, não é válida, pois não foi "recebida" pelo povo cristão."
3. A lei do celibato. Há uma série de reformas urgentes, que "a civilização em que estamos mergulhados impõe". Por exemplo, "não impor mais o celibato aos padres (o que não impediria em nada a existência de fiéis que livremente escolham o celibato, para se consagrar inteiramente à Igreja e à oração)".
4. A mulher na Igreja. Impõe-se "valorizar o lugar da mulher na Igreja", indo aliás ao encontro de várias práticas das primeiras comunidades cristãs. "Esquece-se demasiado que o cristianismo, historicamente, contribuiu em grande medida para a libertação da mulher." Deseja, pois, "com uma forte convicção, a reabilitação plena e completa da mulher no catolicismo". Estamos ainda muito longe, mas é por isso que os dignitários da Igreja Romana, que actualmente são só homens, devem finalmente tomar consciência de que estamos na civilização da "inovação absoluta, a que devemos fazer face, desembaraçando-nos dos reflexos, desconfianças e interditos herdados de um passado superado. Ora, não encontraremos nos Evangelhos nem razões teológicas nem maldições eternas a sancionar o "sexo fraco". Atendendo à evolução recente e inédita da nossa civilização, o catolicismo deve, portanto, imperativamente, dar finalmente à mulher todo o seu lugar, em igualdade com o do homem, no governo de uma religião que se quer universal e comum aos dois sexos. O êxito de uma nova evangelização passa, na minha opinião, pela reabilitação completa da mulher nas Igrejas cristãs. Por imperativo da minha alma e consciência, e antes do silêncio que em breve a morte me imporá, quero lançar um grito de alarme: na minha opinião, a salvação e o futuro do cristianismo, e nomeadamente do catolicismo, passam por esta completa reabilitação da mulher. E não hesito em colocar a questão, que não é, na minha opinião, de modo nenhum sacrílega: porque é que uma mulher não poderia um dia ser eleita para a sede de Pedro?"
5. O pecado original. Também aqui se impõe reflectir. Para se não cair na aberração daquelas boas mães que não ousavam beijar o bebé enquanto não fosse baptizado.
Hoje, já se percebeu que o Livro do Génesis não é um documento histórico e, por causa da evolução, já não é possível pensar que Adão e Eva foram criados "adultos, belos e perfeitos, num maravilhoso paraíso terrestre": é claro que a humanidade se desprendeu lenta e progressivamente da animalidade e já não podemos "fundar uma culpabilização hereditária do homem e da mulher sobre a narrativa do Génesis". No judaísmo, não há lugar para um pecado original. Jesus nunca falou do pecado original e até recomendou aos discípulos que, para entrarem no reino dos céus, fossem como crianças... que brincavam numa rua vizinha e que "não tinham recebido o baptismo".
6. Mudar a linguagem. Por exemplo, ninguém entenderá hoje o significado de expressões do credo, como "desceu aos infernos", "subiu aos céus", "ressurreição da carne".
7. Impõe-se a unidade das Igrejas cristãs e o diálogo inter-religioso, e não se pode ignorar a ciência. Os cristãos precisam de acolher inovações que, no princípio, parecerão incómodas, mas, depois, "portadoras de um futuro religioso durável e fecundo".

publicado às 13:23


O futuro da Igreja. 1

por Thynus, em 23.02.16
Estive com ele uma vez, em Paris, e impressionou-me muito a sua imensa cultura e simplicidade. Intelectual de enorme prestígio, ocupou a cátedra de História das Mentalidades Religiosas no Ocidente Moderno, no Collège de France. Autor de numerosas obras mundialmente conhecidas, Jean Delumeau acaba de publicar L"Avenir de Dieu (O Futuro de Deus), com o seu percurso de vida intelectual e espiritual ao longo de 60 anos. Católico de fé assumida, diz-se "humanista cristão" e interroga-se sobre as inquietações do presente e o futuro do cristianismo. Do alto da sabedoria e da autoridade dos seus 92 anos, propõe, já na conclusão, uma série de reformas urgentes para a Igreja, que, dada a sua importância, apresento hoje e no próximo Sábado.
Antes dessa conclusão, Jean Delumeau atravessa, em síntese, os grandes temas das suas investigações científicas, no quadro da história das mentalidades, como: o medo, o pecado e a culpabilização, a confissão, o perdão, o sentimento de segurança, o paraíso e as suas imagens, a Europa de hoje. E deixa pensamentos sábios, que obrigam a reflectir. Assim, no contexto da imagem terrífica de Deus, que tem de ser revista, escreve: "Hoje, os cristãos podem mais seguramente afirmar: ou os homens perdoam uns aos outros ou criaram e, ai!, criam já muitas vezes o inferno na terra." Hoje, quando já vivemos numa aldeia planetária, "descobrimos que somos forçosamente solidários uns com os outros e, para não perecermos, estamos condenados a unir-nos e a erguer uma governança mundial que deveria ter os meios de ser obedecida". "Constatou-se que o sentimento de insegurança - o "complexo de Dâmocles" - é causa de agressividade." No espaço dedicado ao paraíso terrestre reencontrado, refere que sobre Portugal se pôde escrever que "a persistência do messianismo animando a mentalidade de um povo durante tanto tempo e conservando a mesma expressão é um fenómeno que, exceptuando a raça judaica, não tem equivalente na história".
Apenas dei exemplos. Agora, algumas propostas de reforma da Igreja.
1. Um apontamento prévio quanto a "inventar o futuro": a partir do seu caminho pessoal, à luz da história e seguindo e exprimindo as inquietações do nosso tempo, Delumeau foi levado a colocar a pergunta: "Qual é o futuro de Deus?" Ora, quando se ergue o debate à volta da crise actual do cristianismo e da Igreja, na difícil dialéctica cristianização-descristianização, há o perigo de esquecer que, contra o que frequentemente se pensa, antes do século XIV, a Europa, segundo, G. Duby, não apresentava senão "as aparências de uma cristandade. O cristianismo não era plenamente vivido senão por raras elites." Lutero também escreveu: "Temo que haja mais idolatria agora do que em qualquer outra época." Daí que Delumeau acentue a importância da actualização, também para se não cair em idealizações e dogmatismos. Por vezes, é preciso "desaprender", não idealizar o passado.
2. Qual é o grande mal do cristianismo? A sua ligação ao poder. "Pelas suas consequências, uma das mais trágicas falsas vias para as Igrejas cristãs foi, depois do fim das perseguições, a ligação entre o poder imperial romano e a hierarquia eclesiástica, simbolizada e fortificada pela coroação de Carlos Magno pelo Papa."
Não se deve esquecer que desde sempre tinha havido, no Império Romano e fora dele, ligação e amálgama entre os poderes religioso e político. Foram, por isso, necessários muitos séculos e conflitos incessantes para que "o religioso e o político aceitem por fim distanciar-se um do outro, num equilíbrio aliás instável e que é necessário reajustar continuamente". De qualquer modo, "desde o início do século IV, a Igreja tornou-se um poder". Ora, "esta deriva perigosa", que durante muito tempo só a poucos causou choque, ainda não terminou.
A Igreja Católica "tem atrás de si um grande e belo passado de escritos religiosos sublimes, inumeráveis iniciativas caritativas e múltiplas obras de arte. Realizou uma obra civilizadora grandiosa e mundial. Deu à humanidade legiões de santos e santas, canonizados ou não, incansavelmente dedicados ao serviço do próximo. Mas a sua grande fraqueza foi ter-se constituído em poder... Ora, é preciso que de ora em diante abandone o poder, pratique a humildade para poder de novo convencer e dar-se a si mesma estruturas mais flexíveis do que no passado e, portanto, capazes de evoluir. Porque é necessário hoje aceitar e dominar evoluções inevitáveis".
Dever-se-á perguntar: como foi possível o movimento iniciado por Jesus ter hoje um Vaticano?! Seja como for, digo eu, a história é o que é e o que se impõe é uma revolução, para modos democráticos de governo eclesial, para a simplicidade, a transparência, o serviço. Cardeais e bispos não são "príncipes" nem podem viver como "faraós", diz Francisco. E as nunciaturas só poderão justificar-se enquanto serviços humildes de pontes para o diálogo e a paz mundiais.

publicado às 13:22


O pesadelo do teólogo

por Thynus, em 23.02.16

1. Bertrand Russell, para lá de ser um dos grandes matemáticos do século XX e filósofo, foi um escritor brilhante e irónico, Prémio Nobel da Literatura. No seu livro de Contos, há um, célebre, com "o pesadelo do teólogo". Vou resumir.

"O teólogo eminente Dr. Thaddeus sonhou que tinha morrido e seguido rumo ao Céu. Os estudos haviam-no preparado e não teve dificuldade em encontrar o caminho. Bateu à porta do Céu e foi recebido com um escrutínio maior do que esperava. Disse: - Peço admissão porque fui um homem bom e dediquei a vida à glória de Deus. - Homem? - exclamou o porteiro. - O que é isso? E como podia uma tão estranha criatura como o senhor fazer alguma coisa para promover a glória de Deus?

O Dr. Thaddeus ficou espantado. - O senhor decerto que não ignora o homem. Deve saber que o homem é a obra suprema do Criador. - Quanto a isso - tornou o porteiro - lamento magoá-lo, mas o que está a dizer é novo para mim. Duvido que alguém cá em cima já tivesse ouvido falar dessa coisa chamada "homem". No entanto, uma vez que parece tão desapontado, pode consultar o nosso bibliotecário.

O bibliotecário, um ser esférico com mil olhos e uma boca, pousou alguns dos seus olhos sobre o Dr. Thaddeus. - O que é isto? - perguntou ao porteiro. - Isto diz que é um exemplar de uma espécie chamada "homem" que vive num lugar chamado "Terra". Julga que o Criador tem um interesse especial por esse lugar e por essa espécie. Pensei que talvez pudesse esclarecer".

Depois de o teólogo ter explicado que a Terra é parte do Sistema Solar, que por sua vez é parte da Via Láctea, uma galáxia entre milhares de milhões, foi mandado chamar um dos sub-bibliotecários, especializado em galáxias e que tinha a forma de um dodecaedro. Assim, umas três semanas depois, com o trabalho exaustivo de cinco mil empregados, "o sub-bibliotecário voltou e explicou que o ficheiro extraordinariamente eficiente da secção galáctica da biblioteca lhe havia permitido localizar a galáxia como número XQ 321,762". O Dr. Thaddeus explicou então ao empregado especialmente interessado na galáxia em questão, um octaedro com um olho em cada face e uma boca numa delas, que o que ele desejava saber se referia ao Sistema Solar, uma colecção de corpos celestes que gira à volta de uma das estrelas da galáxia, chamando-se essa estrela "Sol".

"- Safa!" - disse o bibliotecário da Via Láctea. - "É difícil descobrir a galáxia, mas descobrir a estrela dentro da galáxia é ainda muito mais difícil. Sei que há cerca de trezentos mil milhões de estrelas na galáxia, mas não sei distingui-las umas das outras. Creio, todavia, que, uma vez, foi pedida pela Administração uma lista de todos os trezentos mil milhões e isso deve estar ainda guardado na cave. Se achar que vale a pena, arranjarei pessoal especial do Outro Lugar para procurar essa estrela."

Alguns anos mais tarde, foi um tetraedro arrasado de cansaço que compareceu diante do sub-bibliotecário galáctico, dizendo: "Descobri, finalmente, essa estrela especial sobre a qual foram feitas investigações, mas estou absolutamente desorientado quanto ao interesse que ela levantou. Faz lembrar muitas outras estrelas da mesma galáxia. É de tamanho médio, de temperatura média, e está cercada por corpos muito pequenos chamados "planetas". Após minuciosa investigação, descobri que alguns desses planetas, pelo menos, têm parasitas, e creio que essa coisa que tem estado a fazer perguntas deve ser um desses parasitas."

Nessa altura, "o Dr. Thaddeus desatou num indignado e apaixonado lamento: - Porque é que o Criador escondeu de nós, pobres habitantes da Terra, que não fomos nós que o levámos a criar os céus? Servi-O toda a minha vida, servi-O diligentemente, acreditando que Ele havia de reparar no meu serviço e recompensar-me com a Felicidade Eterna. E agora até parece que nem sequer sabe da minha existência. O senhor diz-me que sou um animálculo infinitesimal num minúsculo corpo que gira em volta de um insignificante membro de uma colecção de trezentos mil milhões de estrelas, colecção esta que é apenas uma entre muitos milhares de milhões. Não posso aguentar isto. Não posso mais adorar o meu Criador. - Muito bem - retorquiu o porteiro. Então pode ir para o Outro Lugar.

Aqui, o teólogo acordou. E murmurou: - O poder de Satanás sobre a nossa imaginação adormecida é terrível".

2. Afinal, ocupamos um lugar periférico no Universo. Pascal perguntava: "O que é um homem no infinito? Apavora-me o silêncio dos espaços infinitos." Mas, por outro lado, é no homem que este processo gigantesco toma consciência de si. Somos reflexivos e temos autoconsciência: desdobramo-nos e reconhecemo-nos. Sabemos do bem e do mal. E levamos connosco a pergunta inevitável e triturante do sentido, do sentido último: qual o sentido de tudo?, porque há algo e não nada?, o que vale a minha vida?, existimos porquê e para quê? Transportamos connosco a questão da morte e de Deus, a dupla face do Absoluto.

 


publicado às 13:21

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