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Só tem medo da morte aquele que não sabe viver intensamente.
Só tem medo da vida aquele que não conhece a si mesmo.
Conhecer, viver, temer morrer.
Quem conseguir ...
Estará cara a cara com o AMOR.
Claudia Castro .
Urano, o céu, não se encontra ainda “no alto”, no firmamento, semelhante a um gigantesco teto. Está, pelo contrário, agarrado a Gaia como uma segunda pele. Ele a toca, acaricia em todos os pontos e sem parar. Ele é, se assim podemos dizer, dos mais colantes ou, para ser ainda mais explícito: Urano não para de fazer amor com Gaia, de se deitar com ela. É a sua única atividade. Ele é “monomaníaco”, obcecado por uma única e exclusiva paixão, a paixão erótica: ele não para de cobrir Gaia, de beijá-la, de se fundir nela e, consequência inevitável, de lhe fazer um monte de filhos! E é com estes que as coisas realmente sérias vão começar.
Pois os filhos de Urano e Gaia vão de fato ser os primeiros “deuses de verdade”, os primeiros deuses que deixam de ser personagens mais ou menos abstratos, entidades, e se tornam verdadeiras “personalidades”. Como acabo de dizer, vamos assistir a uma humanização do divino, à aparição de novos deuses que, finalmente, têm a aparência de autênticas pessoas, bem individualizadas e com características psicológicas. As paixões são menos brutais, mais elaboradas, apesar de, como veremos, se manterem às vezes contraditórias ou até mesmo devastadoras: uma vez mais, os deuses gregos, diferentes, por exemplo, do deus dos cristãos, dos muçulmanos e dos judeus, estão longe, muito longe, de serem sempre perfeitamente sábios e ajuizados. Pois é com essas crianças que poderemos colocar em toda sua amplidão a questão diretriz da narrativa das origens: a questão da formação da ordem a partir da desordem, do nascimento do cosmos a partir do caos inicial. E vai ser preciso ter personalidade, em todas as acepções do termo, coragem e múltiplas qualidades para harmonizar esse primeiro universo que não para de se tornar mais complexo; isso não vai poder ser feito cegamente, pelo simples jogo das forças naturais, como a gravidade de Newton: essa ordem é tão bela e complexa que forçosamente depende de gente inteligente. Daí surge a progressão que irá nascendo do sucessivo nascimento dos deuses, como vou contar.
Quem são exatamente os primeiros descendentes de Urano e de Gaia, do Céu e da Terra? E quais serão as suas aventuras até a plena e inteira emergência da ordem cósmica finalmente equilibrada?
São, de início, aqueles que o próprio pai, Urano, denomina “Titãs”: seis meninos e seis meninas — também chamadas “Titanas” ou “Titânidas”, para distingui-las dos irmãos. Esses Titãs têm três características em comum. Primeiro são, como todos os deuses, perfeitamente imortais; impossível, então, esperar matá-los se porventura entrarmos em guerra contra eles! Em seguida, contam com uma força colossal, inesgotável, totalmente sobre-humana, e da qual sequer podemos ter uma ideia. Por isso, aliás, fala-se ainda hoje, em nosso linguajar corrente, de força “titânica”. Pela mesma razão deu-se o nome “titânio” a um metal particularmente sólido e resistente. Melhor não provocar deuses assim. Por último, todos têm uma beleza perfeita.
Consequentemente são seres ao mesmo tempo assustadores e fascinantes, facilmente violentos, pois conservam traços da sua origem: nasceram das profundezas da terra e vieram dos confins do Tártaro, aquele lugar infernal, ainda bem próximo do caos original, do qual Gaia talvez também tenha vindo — Hesíodo nos diz que ela veio “pós-Caos”, sem confirmar que tenha saído dele, mas é uma hipótese plausível. Em todo caso, fica claro que os Titãs são forças do caos, mais do que do cosmos, seres mais da desordem e da destruição do que da ordem e da harmonia.
(Cito os seus nomes — mas saiba desde já que é principalmente o do caçula, Cronos, que se deve guardar, pois vai ter um dos principais papéis na história que vem a seguir. Temos então por ordem de nascimento: Oceano, o riooceano que a mitologia descreve dando a volta completa na Terra, depois Ceo, Crio, Hipériom, Jápeto e, volto a insistir, Cronos “de curvo pensar”, como sempre diz Hesíodo, logo veremos por quê. Do lado das moças, houve Teia — o que em grego quer dizer “a divina” —, Reia, Têmis (a justiça), Mnemósine (a memória), Febe (a luminosa) e Tétis, que inspira amor) Além desses seis formidáveis Titãs e seis sublimes Titânidas, Urano engendrou com Gaia três seres monstruosos “em tudo semelhantes a deuses”, disse Hesíodo, com a única diferença de terem apenas um olho, plantado no meio da testa! São “Ciclopes”, que também terão um papel decisivo na história da construção do cosmos, do mundo ordenado e harmonioso. Como os irmãos Titãs, eles têm uma força extraordinária e são violentos ao extremo. Seus nomes, em grego, o indicam bastante bem, pois todos evocam o temporal e a tempestade: há primeiramente Brontes, que significa “aquele que trovoa”, como o trovão. Em seguida, Estéropes, o relâmpago, e Arges, o raio. São eles que vão dar ao futuro rei de todos os deuses, Zeus, suas armas mais temíveis: o trovão, o relâmpago e o raio, justamente, que Zeus vai poder usar contra os adversários para cegá-los e abatê-los.
Dos amores do céu e da terra nasceram ainda três outros seres absolutamente aterrorizantes, mais assustadores, se isso for possível, do que os 12 Titãs e os três primeiros Ciclopes: têm, cada um deles, cinquenta cabeças, e dos ombros monstruosos saem cem braços, possuindo um vigor inimaginável. São chamados, por esse motivo, “Hecatonquiros”, o que, em grego, quer dizer simplesmente “cem-braços”. Eram tão impressionantes que Hesíodo observava ser melhor não lhes pronunciar os nomes — mas mesmo assim os fornece — para não se correr o risco de chamar a atenção. O primeiro se chama Coto, o segundo Briareu e o terceiro Giges. Também terão, junto com os Ciclopes, um importante papel na edificação da futura ordem cósmica.
A guerra dos deuses: o conflito entre os primeiros deuses, os Titãs, e seus filhos, os olímpicos
A ordem futura, pois, como disse, ainda estamos longe do cosmos acabado e harmonioso que Gaia certamente desejava, se podemos assim deduzir — a julgar por sua solidez, em contraste com o abismo escancarado de Caos. Na verdade, como já dei a entender, é a guerra, e inclusive uma guerra terrível, que se esboça no horizonte. As forças primitivas, próximas do caos inicial, da desordem, vão de fato se desencadear, e para se construir um mundo viável e ordenado vai ser preciso dominá-las, amordaçálas e civilizá-las tanto quanto possível. Como vai nascer esse gigantesco conflito? Como terminou? É este o tema dessa narrativa fundadora da mitologia grega que é a cosmogonia/teogonia de Hesíodo, pois no decorrer da história vamos finalmente passar da desordem e da violência primitivas para a ordem cósmica bem-regulada em que os homens vão poder viver e buscar, de um jeito ou de outro, sua salvação.
Veja a seguir como tudo começa.
Urano detesta os seus filhos: os 12 Titãs, assim como os Ciclopes e os Cem-Braços. É um verdadeiro ódio. Por quê? Sem dúvida por temer que um deles lhe tome o lugar e roube não somente o poder supremo, mas também aquela que é, ao mesmo tempo, sua mãe e amante, ou seja, Gaia. Por esse motivo Urano cobre de tal forma Gaia, impedindo que os filhos possam sair e virem à luz. Não lhes deixa o menor espaço, o menor interstício pelo qual poderiam sair do ventre materno. Relega-os às profundezas da terra, justamente à região caótica do Tártaro, e é o que os filhos não lhe perdoam. Nem Gaia, que, grávida de toda essa descendência, não aguenta mais ter em si tantos filhos e filhas comprimidos! Ela então os encoraja a se revoltarem contra o terrível pai que impede a emancipação, pois dessa forma podem ganhar a liberdade e crescer. E inclusive, tanto no sentido próprio como no figurado, viriam à luz. Cronos, o caçula, ouve o pedido da mãe, que propõe um terrível estratagema contra Urano, seu próprio pai. Com o metal em fusão que se encontra em suas entranhas, no mais profundo subsolo, Gaia fabrica um podão (outras narrativas dizem que é em sílex, mas me mantenho fiel a Hesíodo, que cita um metal cinza, quer dizer, provavelmente o ferro). O instrumento é bem-afiado e, insiste Hesíodo, “com serra”. Gaia o entrega a Cronos, a quem ela simplesmente incita a cortar fora o sexo do pai!
A narrativa da castração de Urano é precisa. Chega aos detalhes, pois estes últimos têm consequências “cósmicas”, isto é, efeitos decisivos para a construção do mundo. Empunhando a foice de ferro, Cronos espera o pai, se posso assim dizer, na esquina. Este, como de hábito, envolve Gaia e a penetra. Cronos aproveita para pegar, com a mão esquerda (uma lenda mais tardia afirma que foi a partir desse momento que ela se tornou “sinistra” e ficou marcada pelo selo da infâmia!), o sexo do pai e o decepa com um golpe seco. Ainda com a mão esquerda, ele lança por cima do ombro o infeliz órgão ainda todo ensanguentado. O detalhe não é supérfluo, nem o estou repetindo apenas para tornar mais picante a história com essa precisão sádica, porque, a partir desse sangue de Urano que se espalha pela terra e pelos mares, vão nascer ainda algumas terríveis e sublimes divindades.
Aliás, falo logo disso pois é algo que em seguida virá em vários relatos mitológicos. As três primeiras criaturas a nascerem do sexo cortado de Urano são divindades do ódio, da vingança e da discórdia (eris, em grego) — pois trazem em si a marca da violência da sua origem. A última, em contrapartida, não pertence ao domínio de Eris, mas ao de Eros, o amor: trata-se da deusa da beleza e da paixão amorosa, Afrodite. Vejamos tudo isso mais de perto.
Do sexo amputado do infeliz Urano e do sangue que se espalhou pela superfície da terra, Gaia, nasceram inicialmente deusas aterradoras, que os gregos denominaram “Erínias”.
(Hesíodo não nos diz quantas são nem cita nomes. Será preciso esperar seis séculos para saber um pouco mais, graças ao grande poeta latino Virgílio, que viveu no século I a.C. — dou tal precisão para que você tenha uma ideia do tempo que foi necessário para a constituição dessas famosas narrativas mitológicas. Não nasceram de uma só vez, nem vieram de um único autor, mas foram incessantemente completadas por poetas e filósofos, no decorrer dos séculos!) Segundo o poeta Virgílio, elas eram três e se chamavam Aleto, Tisífone e... Megera! Isso mesmo, é daí que vem a famigerada megera de quem às vezes falamos em nossa linguagem corrente, nos referindo a alguma mulher particularmente desagradável. Pois, verdade seja dita, as Erínias podiam ser tudo, exceto amáveis; eram, como disse, divindades da vingança e do ódio que perseguiam os culpados de crimes cometidos no coração das famílias e lhes aplicavam tormentos e torturas abomináveis. Foram, por assim dizer, configuradas com essa finalidade desde o nascimento, pois seu principal destino era o de vingar o pai, Urano, no crime cometido pelo filho mais moço, o Titã Cronos. Mas indo além desse caso pessoal, elas acabaram tendo um papel bem importante em inúmeras narrativas míticas, em que detinham a função de terríveis vingadoras de todos os crimes familiares e até mesmo, mais amplamente, de crimes cometidos contra a hospitalidade, quer dizer, contra pessoas que deviam ser tratadas, mesmo sendo de fora, como membros da família. Foram elas, por exemplo, que fizeram ser devorado pela terra o pobre Édipo, que, sem saber nem querer, havia matado o próprio pai e desposado a própria mãe. Saiba que elas às vezes também são chamadas “Eumênidas”, isto é, “Benevolentes” — não no poema de Hesíodo, mas, por exemplo, nas tragédias de outro grande poeta grego nascido um pouco depois, no século VI a.C., Ésquilo. De fato, esse nome bem afável era para, mais ou menos, tentar agradá-las. Empregava-se para evitar a sua ira. Em latim, elas passaram a ser chamadas “Fúrias”. Hesíodo não nos deu detalhes, mas outros poetas que vieram em seguida as descreveram como mulheres de aspecto atroz: arrastavam-se no chão mostrando garras apavorantes, tinham asas que lhes permitiam agarrar as vítimas a toda velocidade, cabelos cheios de serpentes, chicotes na mão e a boca da qual escorria sangue. Sendo uma encarnação do destino, ou seja, das leis da ordem cósmica às quais todos os seres estão submetidos, os próprios deuses ficavam mais ou menos obrigados a aceitar suas decisões, de forma que todo mundo sempre as detestou e temeu.
Depois disso, ainda do sangue de Urano misturado à terra, Gaia, nasceu toda uma plêiade de ninfas chamadas Melianas ou Melíades, o que em grego quer dizer jovens nascidas em freixos. São também divindades guerreiras e temíveis, pois é justamente com a madeira dessas árvores, nas quais elas mantêm o seu reino, que se fabricam as armas mais eficazes, principalmente os arcos e as lanças usados na guerra.
Além das Erínias e das Melíades, o sangue de Urano caído sobre Gaia deu origem a outros seres assustadores, os Gigantes, que já saíram da terra armados e encouraçados. Dedicam-se inteiramente à violência e à carnificina. Nada os amedronta e nada lhes convém melhor do que as guerras e os massacres. É onde se sentem à vontade, no que sabem fazer. Hesíodo não nos falou mais do que isso sobre eles, mas, outra vez, variantes tardias da mesma narrativa falam de uma revolta dos Gigantes contra os deuses, revolta que inclusive deu vez a uma terrível guerra — chamada “gigantomaquia”, o que, em grego, quer dizer “combate de gigantes”. É claro, os deuses saíram vencedores do combate, mas precisaram da ajuda de Héracles.
(A história foi contada sobretudo por um certo Apolodoro, um escritor — um mitógrafo — do século II d.C.) Logo voltaremos a falar disso.
Como você pode ver, todos os personagens até agora nascidos do sangue de Urano misturado à terra são seres assustadores, ligados à vingança, ao ódio ou à guerra. É nesse sentido que as Erínias, as ninfas Melíades e os Gigantes vão pura e simplesmente se remeter à zona de influência dessa divindade chamada Eris, personificação da discórdia, de tudo que tem a ver com o conflito funesto. Eris, aliás, é uma entidade tenebrosa, obscura, uma das filhas que a Noite, Nyx, engendrou sozinha, do mesmo jeito que Gaia, sem precisar de marido nem de amante.
Mas dos órgãos sexuais do Céu surgiu também uma outra deusa, que não pertence mais a Eris, mas sim, pelo contrário, a Eros, não mais à discórdia e ao conflito, mas ao amor (a proximidade das duas palavras, em grego, parece indicar também uma proximidade nos fatos: muito facilmente se passa do amor ao ódio, de Eros a Eris): trata-se de Afrodite, a deusa da beleza e, justamente, do amor. Você se lembra que o sangue do sexo de Urano caiu na terra, mas o sexo, propriamente, Cronos jogou longe, por cima do ombro, e ele foi se perder no mar. E boiou! Flutuou na água, no meio da espuma branca — espuma que, em grego, se diz afros, a qual, misturando-se à outra espuma que saía do sexo de Urano, gerou uma sublimíssima jovem: Afrodite, a mais bela de todas as divindades. É a deusa da doçura, do carinho, dos sorrisos trocados pelos apaixonados, mas também a da sexualidade brutal e da duplicidade do que se diz quando se quer seduzir o outro, querendo agradar, palavras que no mínimo não são sempre fiéis à verdade, pois, para agradar, muitas vezes nos dispomos a usar mentiras e ardis, tanto para dar uma melhor impressão de nós mesmos como para adular a pessoa que queremos impressionar. Afrodite é tudo isso: a sedução e a mentira, o charme e a vaidade, o amor e o ciúme que dele nasce, a ternura, mas também as crises de raiva e de ódio geradas pelas paixões contrariadas. No que, mais uma vez, Eros nunca está muito longe de Eris, o amor sempre na vizinhança da disputa. Se dermos ouvido a Hesíodo, quando ela sai das águas, em Chipre, está sempre acompanhada por duas outras divindades menores que lhe servem, de certa maneira, de “acompanhantes”, companheiros e confidentes: Eros, justamente, mas dessa vez se trata de Eros número 2, o pequeno personagem de que falei ainda há pouco e que frequentemente será representado, mas bem posteriormente a Hesíodo, como um menino bochechudo, armado com um arco e flechas. E, ao lado de Eros, há Imeros, o desejo, que sempre abre caminho para o amor propriamente dito...
No plano cosmológico, isto é, com respeito à construção do nosso cosmos, do mundo em que vamos viver, a castração de Urano tem uma consequência absolutamente crucial, sobre a qual devo dizer uma palavrinha antes de entrarmos, enfim, no famoso episódio da guerra entre os deuses. Trata-se, simplesmente, do nascimento do espaço e do tempo.
Do espaço, antes de tudo, porque o pobre Urano, sob o efeito da dor atroz causada pela mutilação, vai se esconder “lá em cima”, de forma que, no final desse recolhimento, ele se encontra meio que colado no teto e liberando, com isso, o espaço que separa o céu da terra. E do tempo, por uma razão infinitamente mais profunda, que vem a ser uma das chaves de toda a mitologia: são as crianças — os Titãs, no caso — que graças ao espaço aberto vão poder, enfim, sair de dentro da terra. Isso quer dizer que é o futuro, até então obstruído pela pressão de Urano sobre Gaia, que se abre. As novas gerações começam, a partir daí, a habitar o presente, e as crianças a simbolizar, ao mesmo tempo, a vida e a história. Mas tanto a vida quanto a história, que, pela primeira vez, se encarnam nesses Titãs que conseguem enfim deixar a sombra e a terra, igualmente geram o movimento, o desequilíbrio e, por isso mesmo, a incessante possibilidade que se abre da desordem. Com as novas gerações, o que entra em cena é mais a dinâmica do que a estabilidade, o caótico do que o cósmico. Uma coisa, pelo menos, passa de qualquer forma a estar bastante clara: os pais precisam colocar as barbas de molho com relação aos filhos! E Cronos mais do que qualquer outro: foi quem mutilou o pai, Urano, e, consequentemente, o primeiro a entender o quanto os filhos podem ameaçar a ordem, o poder estabelecido e que se acha estar sob controle. Ou, dito de outra forma, é preciso desconfiar do tempo, fator de vida, é claro, mas também a dimensão por excelência de todas as desordens, de todas as complicações e desequilíbrios que virão. Cronos toma consciência desse fato indiscutível: a história é cheia de perigos, e para quem quiser manter o que adquiriu, garantir seu poder, mais vale aboli-la, para que nada mude.
Não sei se você se dá conta da profundidade do problema existencial que começa a se esboçar, embutido nessa primeira narrativa mitológica. Significa que toda a existência, inclusive a dos deuses imortais, vai se ver num dilema quase insolúvel. De fato, pode-se bloquear tudo, como Urano bloqueia os filhos na barriga de sua mulher/mãe, para evitar que as coisas mudem, correndo o risco de se degradarem. Nesse caso, porém, é a total imobilidade e o tédio que acabam levando a melhor, em vez da vida. Ou, para evitar isso, aceita-se o movimento, a história e o tempo, mas os perigos mais temíveis passam a ameaçar. Como, então, encontrar o perfeito equilíbrio? No fundo, é essa a grande questão da mitologia e, com isso, a grande questão da existência em geral! Como você pode ver, as respostas que nossas histórias vão dar ainda interessam, para dizer o mínimo, às pessoas de hoje.
(Luc Ferry - A Sabedoria dos Mitos Grergos)