“Vous croyez à la vie éternelle dans l’autre monde? – Non, mais à la vie éternelle dans celui-ci. Il y a des moments où le temps s’árrête tout à coup pour faire place à l’éternité.”
Você acredita na vida eterna no outro mundo? − Não, mas na vida eterna neste. Há momentos em que o tempo para de repente para dar lugar à eternidade.
Dostoievski, Les Frères Karamazov
O “DEMÔNICO”
Os impulsos da vida são irreprimíveis, e há momentos em que eles favorecem tudo o que eleva o indivíduo acima dele mesmo. Mas é sempre a longo prazo, e sob nomes diversos, que tais impulsos se realizam. Pode-se, no entanto, ver uma gradação, por assim dizer, idêntica em todas as idades do mundo, nas mutações que esses impulsos propulsam.
É, inicialmente, uma espécie de fermentação. Agitação cultural que se deve compreender lato sensu. Os costumes evoluem, os modos de vida se transformam; e tudo isso empiricamente, com baixo ruído. A desafetação em relação à moral instituída não se faz nem sob forma contestatária, mas, sim, por contaminações sucessivas. De fato, o que era considerado como perversão sexual adquire força de lei. A desenvoltura no modo de vestir-se, sinal visível de outra concepção do corpo, é admitida na vida profissional. A música, a cenografia, a coreografia, a pintura alternativas ocupam subrepticiamente museus, salas de concerto e teatros diversos. A força do contágio fez sua obra!
Uma fermentação assim faz tomar consciência, segunda etapa, da necessidade de uma compensação. Assim, para o que concerne à análise da pós-modernidade, pode-se observar um evidente declínio da confiança em uma razão soberana. Não foi ela celebrada como “Deusa Razão”, ela que era apenas um parâmetro de nossa humana natureza? E eis que sua dominação se satura. As instituições que ela tinha legitimado se fissuram. O “Contrato social”, de que ela era a fonte, não é mais que uma palavra vazia que se celebra de uma maneira lancinante à maneira de uma encantação desencantada. É então que, em compensação, se vê o retorno dos afetos que, até então negligenciados ou marginalizados, invadem um espaço público que lhes era negado. O emocional é a compensação, natural, para um racionalismo abstrato.
E tudo isso culmina nesse terceiro momento da mutação em curso: o retorno a formas e forças arcaicas. Ao que é primeiro e fundamental. Um retorno às fontes de alguma maneira. Um passo para o elemento fundador da cultura. Retorno perceptível por um pivotamento do tempo. Com efeito, o Progresso não faz mais sucesso. O futuro não é mais garantia do bemestar; este tem que ser procurado, antes de tudo, num presente que eu vivo e divido com outros. Eterno retorno do carpe diem, apegar-se a um gozo aqui e agora.
Tais são as condições de possibilidade do que se chama o “festivo”. É útil lembrar que esse termo, algo erudito, está prestes a se tornar um lugar comum, fenômeno que é do mais alto interesse para a compreensão do “Real” social que nos preocupa. Sabe-se: as palavras e as coisas estão em constante relação dialógica; e quando aquelas aparecem é que estas já estão presentes. Parece claro, com efeito, que, a despeito de alguns espíritos melancólicos, inúmeras ocorrências desse Homo festivus ocupam a posição de destaque.
É preciso, entretanto, reconhecer que se trata aí de um “Real” que o “princípio de realidade” (econômico, político, moral) tem dificuldade em aceitar. O espírito de seriedade que domina, tudo o que tenta escapar do “valor trabalho”, teorizado em seu tempo por Karl Marx, vai passar por frívolo e, portanto, de pouco interesse. Assim, por um processo de negação de que se conhecem bem as causas, a ideologia dominante vai se consagrar, por todos os meios, em tornar a lançar nas trevas exteriores o que aí deveria ter ficado.
Mesmo só indicando de uma maneira alusiva, é preciso lembrar que, desde Kant, a estética é submetida, relativizada, até mesmo mascarada pela lógica intelectual. “Há dois troncos do conhecimento humano que partem talvez de uma raiz comum... a saber a sensibilidade e o entendimento; pelo primeiro, os objetos nos são dados, mas pelo segundo, eles são pensados.”1 É por essa frase que Kant termina a introdução da Crítica, e vê, facilmente, a hierarquia que é a sua e que vai, progressivamente, contaminar a intelligentsia moderna, fazendo do entendimento a ultima ratio de toda compreensão digna desse nome.
Seria necessário ver (o que é a evolução normal de todas as representações sociais) em que essa ideologia dominante se tornou um pensamento superficial e insípido, provocando, além disso, uma incompreensão das tendências de fundo da vida societal. Não deixa de ser certo que tal ideologia pode tentar rejeitar o que está aí, mas ela não chega a isso porque, como se disse, os impulsos vitalistas são irreprimíveis e, cedo ou tarde, chegam a impor o “Real” existencial ao “princípio de realidade” abstrato.
No caso, essa necessidade de comunhão, estrutura antropológica de base que, em certas épocas, (re)encontra um vigor insuspeito. Sociólogos como Durkheim mostraram de uma bela maneira a necessidade do anômico na elaboração do sentimento comunitário. Assim, nas Formes élémentaires de la vie religieuse, ele lembra a importância e o papel da efervescência para as tribos australianas, cujas festas descreve (Corrobori).
Ele fala, a esse respeito, de um “estado de congregação” que é, regularmente, necessário para fortalecer o elo que une essas comunidades.2 Pode-se extrapolar seu propósito e lembrar que tal “estado de congregação” é um verdadeiro arquétipo que traduz um inconsciente impulso, o da integralidade ou da completude do ser social. O Nomos de um povo, essa lei interna que garante sua coesão, seu “consensus”, passa primeiramente por algo que é “antinômico”. E das bacanais dionisíacas às festas de inversão medievais, sem esquecer o papel dos múltiplos carnavais que se conhece, o papel da efervescência é suficientemente evidente para que se pare de negligenciá-la ou de tê-la por um elemento marginal.
E isso enquanto esse arquétipo tende a tornar-se um estereótipo. O Homo festivus não é mais uma simpática figura a colocar sob a rubrica de um bom velho tempo passado, mas torna-se (ou volta a ser) um elemento importante, até primordial, da vida quotidiana que, sem isso, é completamente incompreensível. Elemento que lembra um leitmotiv de todo pensamento “realista”, bem formulado por Santo Tomás de Aquino: nihil est in intellectu quod non sit prius in sensu (nada chega à inteligência sem passar primeiramente pelos sentidos).3 Banalidade de base que lembra judiciosamente a união estreita do corpo e do espírito, da natureza e da cultura que termina nesses oximoros fundadores que são o materialismo místico ou o corporeísmo espiritual.
Para traduzir isso, uma imagem me vem à mente, a do templo de Baal e de Baco em Baalbeck, no Líbano. Ruínas majestosas que, segundo os habitantes da terra, lembram a importância da orgia na estruturação social. As sólidas colunas dos templos, que simbolicamente sustentam o mundo, estão aí como testemunho intemporal da “obrigação” antropológica do lúdico. Não como capricho acessório ou como fenômeno facultativo, mas, sim, como peça mestre da arquitetônica social. Múltiplos são os templos de Dionísio, na Grécia ou na Grande Grécia, que lembram a permanência dessa característica essencial de nossa espécie animal.
Há um termo médico retomado, em seguida, na literatura, e que traduz o excesso de atividade de órgãos, em particular do coração: eretismo. Ele chama a atenção aos processos de exaltação, depois à tensão de espírito, a tudo o que tem a ver com os estados de excitabilidade do corpo individual. Mas, evidentemente, pode-se extrapolar para o corpo social em sua totalidade. Numerosas são, historicamente, as manifestações das exaltações violentas, das tensões, das paixões, na verdade, das febres coletivas.
Mas não se pode dizer que, contemporaneamente, numerosas sejam as aglomerações de todos os tipos onde se exprime um tal pânico coletivo? A importância do lúdico, o retorno do festivo que só traduz, dessa forma, uma espécie de eretismo societal. Por meio dos excessos e das tensões, são as paixões, as emoções, as indignações comuns que reencontram o lugar que o racionalismo moderno lhes tinha negado. O desenvolvimento tecnológico, em particular as redes sociais, que servem de acelerador ao retorno desse pequeno deus barulhento que é Dionísio! Para retomar uma expressão de Restif de la Bretonne, assiste-se, de fato, à revivescência de uma “religião da volúpia”.4 Religião que, o tempo todo, é correlativa de um panteísmo em que o material e o imaterial, a razão e o sensível, o entendimento e a fantasia entram em um misto fecundo. Era a intuição do romantismo; é, em nossos dias, a fonte do elã vital inconsciente de todas as tribos pós-modernas.
É pouco se, para pensar tudo isso, nos contentarmos com nossos hábitos e tranquilizantes conceitos. Convém, portanto, com audácia, saber colocar em ação categorias que a antiga sabedoria não tinha medo de utilizar. Assim, Sócrates, pedindo a inspiração ao seu daimon. E isso, é claro, a fim de poder apreender o “Real” em sua integralidade. A sensibilidade e o entendimento enfim unidos, em uma harmonia conflituosa, chegando a formar, graças à misteriosa alquimia suscitada por esse daimon, uma verdadeira razão sensível; chave universal capaz de abrir todas as portas da complexa existência.
Penso, também, em Martin Heidegger, de quem se conhece o pensamento fulgurante, indicando em suas cartas a Hannah Arendt, ou em outras, à sua mulher, o que cada avanço em sua obra devia a uma inspiração dessa ordem: “o demônico me atingiu em cheio”.5 O “demônico” é uma força complexa originária da coincidência dos opostos e, assim, capaz de integrar, em um mesmo movimento, os elementos criadores e aqueles, destrutivos, que se manifestam nas épocas de renovação societal.
Momentos em que, à História que se pensa poder dominar, sucede um Destino com o qual é preciso compor. E numerosos são os fenômenos sociais em que a liberdade se inclina diante da necessidade. O “demônico” lembra que há poderes, inconscientes, contaminadores, que conduzem o homem, enquanto ele se crê mestre de si, mestre em sua casa.
Assim, para nosso prazer comum, amigo leitor, permita-me citar esse extrato das “conversações” de Goethe com Eckermann: “o demônico que faz do homem o que ele quer, e ao qual o homem, sem o saber, se abandona, acreditando seguir suas próprias inclinações”.6 Aqui Goethe, membro eminente da franco-maçonaria alemã, faz eco ao que essa sociedade de pensamento chama “egrégora”, poder imaterial, mas não menos eficaz que une entre si os membros de uma mesma comunidade.
Daimon para os gregos, genius para os latinos, “demônico” ou “egrégora”, eis algumas metáforas que destacam a importância do processo de dessubstancialização constitutivo de inúmeros fenômenos sociais dos quais a festa é o paradigma acabado. Essas noções dão muito bem conta da perda de si no outro; isto é, de um ato destrutivo que termina em um outro construtivo. E isso num movimento sem fim que é o mesmo da vida. É o que vive homo festivus em todos os fenômenos de êxtase cuja atualidade dá muitos exemplos quotidianos.
Nesses momentos em que predomina um desvio coletivo, o que é primordial é um forte sentimento de pertença que atinge sua plenitude em um instante vivido para ele mesmo. Cerimônias ancestrais tendo por função apaziguar os espíritos que atormentam uma pessoa com rituais extáticos, grandes reuniões musicais contemporâneas, o processo é idêntico: favorecer uma comunhão dos espíritos em que, mesmo por um só instante, a intensidade do viver em comum servia para expulsar tudo o que impedia um bem-estar ou um melhor-estar ao mesmo tempo individual e coletivo. O que é próprio do fenômeno catártico: vive-se o excesso para se purgar dele.
É nesse sentido que o “demônico” é uma expressão da inteireza do ser. Cada coisa aí tem seu lugar, em particular a alteridade. A saber, o outro de si mesmo (a multiplicidade de máscaras que é uma pessoa plural), o outro da tribo, no qual se perde sem falso pudor, esse outro, também, que é o desejo do estranho, da estranheza, que em um instante fulgurante são aceitos como tais. O todo, muito evidentemente, terminando nesse “Outro” que é o divino social: a comunidade elevada à posição do pequeno deus ao qual a festa presta um culto.
Para bem apreender essa estranha estranheza demônica, vejamos o que diz disso Michel Foucault: “as leis suspensas, os interditos retirados, o frenesi do tempo que passa, os corpos se misturando sem respeito, os indivíduos que se desmascaram, que abandonam sua identidade estatutária e a figura sob a qual eram reconhecidos, deixando aparecer uma identidade completamente diferente”.7 Isso diz respeito aos carnavais da Idade Média ou às histerias coletivas quando das epidemias que devastavam o país. Mas é um frenesi de que se vão encontrar as características o tempo todo e em todos os domínios.
Trata-se aí de uma estrutura antropológica constante e recorrente que pode tomar formas diversas, mas idêntica em sua essência. Estrutura que destaca que a energia é, certamente, a especificidade de tudo o que é vivo em geral, da vida humana em particular. Mas é, também, importante apreender que tal “energia” pode investir-se de maneiras diferentes. Às vezes, ela se estende para o que está “por vir”: “Cidade de Deus”, sociedade perfeita futura. Às vezes, ao contrário, ela se focaliza no presente. Na intensidade do momento vivido com outros. O deslizamento do político ao festivo é, em muitos sentidos, o que caracteriza a mutação da energia contemporânea.
A prevalência que assume o “demônico”, em nossos dias, traduz, certamente, tal mudança na energia social. Homo festivus substituindo homo laborans! O que não é, contrariamente ao que se diz frequentemente, a expressão de uma passividade sem horizonte ou de uma preguiça existencial, mas, sim, a manifestação de um querer-viver que integra todas as potencialidades vitais. A beleza, o prazer de ser, o hedonismo, o corporeísmo, que encontram seu lugar no mosaico rico e complexo da existência humana. Temática bem conhecida: considerar a vida como uma arte a realizar. E, portanto, realizar-se na prática dessa arte soberana. A propósito da concepção da energia em Heidegger, pôde-se dizer que ela era a expressão de um “fazer kairológico que, sem alcançar um progresso cumulativo, se realiza em cada passo do encaminhamento, ficando o tempo todo submetido ao ritmo imprevisível do tempo”.8 Trata-se aí de uma criação que, sem buscar uma finalidade exterior, se esgota no ato. O instante sendo autossuficiente. Sua intensidade que estrutura, solidamente, um viver-junto em que cada um desabrocha. Não é isso a própria essência da festividade e de sua ligação com a “mundanidade”?
DESLOCAMENTO, DILATAÇÃO, DO EU
Para além das múltiplas frivolidades moralistas que são em quantidade, mas que apenas traduzem, como é frequente em fim de ciclo, o pressentimento de que os valores próprios a esse ciclo estão em curso de saturação, importa medir as fortes consequências que emergem da estreita ligação que existe entre a “festividade” e a “mundanidade”. Porque é o fato de ter tomado consciência de que se é deste “mundo” que provoca, inelutavelmente, o desejo de aproveitá-lo.
E se se quiser atribuir às palavras o sentido que lhes cabe, é preciso reconhecer que, ao lado da moral, sempre atormentada pelo “dever-ser”, a ética, quanto a ela, se dedica a ajustar-se ao “que é” e às oportunidades que essa existência não deixa de oferecer. É assim que Aristóteles apresentava o Kairos: “é preciso que tenham, cada vez, aqueles que agem que encarar o que corresponde à ocasião”.9 Sendo, bem entendido, que essa “correspondência” ao que se apresenta é nada menos que individual. A relação com as oportunidades, com as ocasiões que se apresentam, é sempre correlativa com a relação de pertença que une a tal comunidade ou tribo. Assim, tanto o moralismo é causa e efeito do individualismo quanto a ética (ethos) é a própria expressão de uma energia “tribal” ou coletiva.10
O ponto nodal de estar nesse mundo (mundanidade) e, portanto, de aproveitar (festividade), é, a partir de então, o deslocamento do eu. Com efeito, contra o egocentrismo, alfa e ômega do pensamento e da ação modernos, é um “altercentrismo” que, progressivamente, se coloca no lugar. A alteridade serve de pivô à constituição e às representações do mundo social.
Isso foi muito bem analisado por todos os historiadores da festa, isso é facilmente observável para os fenômenos da mesma ordem em nossos dias: o festivo como momento do vaivém constante existente entre o fato de romper e de recompor. Romper o encerramento individual para recompor a abertura pessoal. Quebrar a armadura de uma identidade muito estreita: identidade sexual, ideológica, profissional, para aceder às identificações múltiplas que por meio de “máscaras” diversas a pessoa vai utilizar conforme as “ocasiões” que se apresentem. Não é assim que é preciso interpretar o “eu curto” da linguagem familiar?

Eu me perco no outro. Ou seja, eu só existo pelo e no Socius. O festivo não sendo, em tal perspectiva, senão uma intensa copulação (mística) com esse Socius. Deve-se entender por isso que o ser pessoal só existe em relação, em correspondência com o outro. Os fenômenos festivos lembram que é a ocultação no grupo que favorece a emergência de si. Eles apenas destacam o diálogo que existe entre a vertigem (no grupo) e o reequilíbrio da integralidade da pessoa.
Vertigem-reequilíbrio [évanouissement/épanouissement], isso pode parecer paradoxal. E, no entanto, é o que, a longo prazo, garante a permanência do ser social. É sobre um vaivém assim que Simmel faz repousar a própria essência de toda socialidade: a experiência interior sendo colocada em relação com a experiência exterior.11 E isso num movimento sem fim que, a partir de então, dá aos afetos um lugar de destaque na elaboração do elo social. Pode-se, em relação a isso, lembrar, brincando com a eufonia dos termos [em francês, évanouissement/épanouissement], que o eu desaparece na agitação [em francês, moi/émoi]. E que, fazendo isso, ele dá origem a um “nós” composto desses “eu” e, no entanto, qualitativamente, diferente de sua soma.
É o poeta René Char que diz: “não se interroga um homem agitado”. Não se pedem suas razões da agitação/emoção, ela não deixa de estar presente em todos os momentos da existência individual e coletiva. E nos damos cada vez mais conta de que raros são os domínios que escapam à sua influência. A vida política, social, até econômica, é contaminada pelo emocional. É, portanto, judicioso identificar esses momentos paroxísticos, o que são os fenômenos festivos, em que as emoções desempenham profundamente o papel que lhes cabe: eles deslocam e ao mesmo tempo dilatam o “eu” individual, fazendo-o aceder assim a um “Real” mais completo em que se diz e se vive, sempre e de novo, a juventude do mundo.
Porque há na “mundanidade-festividade” a expressão de uma energia juvenil. A dilatação impulsionada pela festa não deixa de remeter ao mito do Puer aeternus, essa criança eterna que é a figura emblemática de Dionísio. Ao mesmo tempo, nas alegrias e na brincadeira induzidas por essa energia juvenil, encontra-se sempre uma espécie de serenidade. A mesma que se encontra na mística de Mestre Eckhart, por exemplo, repousando sobre o “gosto das posições extremas”, o que permite “deixar estar”. Serenidade que atribui seu preço às coisas sem preço, isto é, que destaca a importância do “Nada”, “Não ser” que é a condição de possibilidade do ser.12
Serenidade, enfim, que “deixando-ir” a vida como convém que ela vá, destaca a importância da integridade do ser individual e coletivo. O emocional, o passional e o racional se entrecruzam em uma dinâmica sem fim, assim como a complexidade das múltiplas linhas da existência quotidiana garantem a constituição e a manutenção do que se decidiu chamar, metaforicamente, de tecido social. Deixar-ir e deixar-estar, estão aí as características essenciais de uma “festividade” que exprime ao máximo o que, cada vez mais, constitui a linha vermelha da existência quotidiana. É nesse sentido que a efervescência festiva é, stricto sensu, uma espécie de corte histológico do corpo social em seu todo.
Tendo enfatizado muito o sujeito racional, o que terminou em uma concepção muito funcional do mundo, empobreceu-se este último. Na verdade, ele foi devastado. É, talvez, banal, mas é preciso lembrá-lo, é respondendo à injunção cartesiana: ser “mestre e possuidor da natureza”, que o sujeito moderno realizou essas pilhagens ecológicas das quais a atualidade nos dá exemplos em abundância. Esquecendo sua animalidade (o papel dos instintos e dos afetos), a humanidade é assim submersa pela bestialidade.
Daí o interesse em ver ressurgir, empiricamente, o que Heidegger chama de “justa relação com o inútil” porque “a maneira como se mostra o inútil é isso que entendo pelo ser”.13 Se há um momento em que esse inútil assume toda sua amplitude, é no momento festivo! Com efeito, qualquer que seja o nome que se lhe dê, a festa exerce um papel cardeal na estruturação do elo social. É nesse sentido que ela é paradigmática, ela faz tomar consciência de uma mudança de paradigma. Para evitar as numerosas e lancinantes desinterpretações de origem moralista, o que eu chamo de “festividade” (quintessência da festa, do festivo, do prazer de ser) permite compreender que se está mudando de uma direção a outra. Estando do lado da vida, celebrando a vitalidade, reforçando o vitalismo, ela é uma criação crucial: unindo os quatro pontos cardeais e, dessa forma, simbolizando a inteireza do ser. Pode-se aqui trazer à memória que, além da multiplicidade das festas rituais, privadas, semiprivadas, públicas, todas as atividades humanas (Música, Ciência, Empresa), todas as especificidades individuais (Mãe, Pai, Avós, Secretária) têm dias dedicados a eles. Sem esquecer, é claro, as festas nacionais, regionais, cantonais e outras subdivisões administrativas. Mas o que é ainda mais significativo é como a “festividade” vai, também, contaminar os domínios até então preservados do que era considerado como frívolo. Esses domínios reservados ao político, à reivindicação sindical e até ao religioso.
Não há campanha eleitoral sem desfiles, “comícios”, onde a música e outras manifestações não sejam admitidas. É o mesmo no que concerne à ação dos sindicatos a respeito da idade da aposentadoria, a diminuição dos funcionários e outras restrições orçamentárias, que viu colocar na rua fanfarras, orquestras, sem esquecer os sons de trompas, lembrando assim o papel das emoções ruidosas na ação social. E o que dizer dessas grandes reuniões juvenis em Madri, Atenas ou Paris, onde é com grande reforço de concertos de “rock” que se é conclamado a “indignar-se”.
O religioso, em especial o mundo católico, não fica em dívida para organizar, regularmente, “Jornadas Mundiais da Juventude” (JMJ), em que é menos o discurso doutrinal emitido pelo papado que é esperado do que as múltiplas “vibrações” coletivas suscitadas pelos cantos, a música e os rituais diversos. Tudo o que, no caso, está em concordância com a dinâmica sacramental para tornar visível uma força invisível. Muito evidentemente a do estar-junto. Lembremos: estar junto por estar junto; sem finalidade nem utilidade particular!
Tudo isso culminando nessas “Grandes missas” espetaculares que são as inúmeras “Marchas dos Orgulhos”, “Gay pride”, “Tecnoparadas”, e outras “Eleição de Miss Gay”, que de Paris a Berlim, passando por Juiz de Fora, refazem, de uma maneira paroxística, a efervescência das dionísias antigas. Trata-se, stricto sensu, de caricaturas: o traço é forçado, e isso a fim de ressaltar, ao máximo, essa preocupação do excesso que é vivido, no mínimo, na vida corrente.
Pode-se definir uma das características essenciais do espírito do tempo por uma expressão tomada de empréstimo de Durkheim:14 a (re)novação dos “ritos piaculares”. Ou seja, o fato de reforçar o elo social por meio da expressão pública de “choros” coletivos. Choros de alegria, ou de tristeza, isso não muda nada no caso, basta observar que os humores, isto é, as secreções do corpo social, não podem mais ser negligenciados, mas participam de um necessário caos que, regularmente, renova o estar- junto. Trata-se de uma agitação que desperta o que se tinha um pouco adormecido e que restaura, assim, o “con-senso”, a divisão dos sentimentos sem a qual nenhuma sociedade pode perdurar.
A “festividade” é, portanto, somente a reminiscência do primitivo, do que serve de fundamento (“arcaico”) a todo viver-junto. Mas para pensar esse inicial não é possível contentar-se com o amontoado de palavras mais ou menos pertinentes. O verdadeiro pensamento deve-se deter em apreender as raízes das coisas. E a radicalidade, no caso, é aceitar reconhecer que é a própria noção de identidade que não está mais de acordo com o que se manifesta na efervescência festiva.
Identidade! Eis a coluna vertebral da tradição ocidental (judaico-cristã, semítica, moderna). Uma equação a define: “A é A”, símbolo de copertença de si a si mesmo. E é tal equação que é deslocada nas diversas festas de que se acaba de tratar. Nessas, o que se exprime é, antes de mais nada, uma copertença de si ao outro. A noção de gasto da qual Bataille mostrou, a longo prazo, a surpreendente permanência, e de que se pode ver a singular atualidade.15 Contra a prevalência da luz, o solar apolíneo, da filosofia da Aufklärung e outras expressões da atitude racionalista, a “festividade”, em uma teofania do lunar, é uma espécie de apoteose da noite, isto é, do luxo noturno da fantasia.
É tal mudança de paradigma que nos obriga a levar a sério o Homo festivus em suas diversas manifestações. Em especial, no que ele enfatiza sobre essa “necessidade de se perder” como sendo a verdade mais íntima, e a mais distante (Bataille) de todo ser no mundo. Porque, por mais chocante que isso possa parecer, é o deslocamento do eu que é a “mania” essencial do momento festivo. Loucura contagiosa porque, como para as epidemias antigas, e graças à horizontalidade induzida pelas redes sociais e pelos sites comunitários, são todos os momentos da existência que são atingidos pelo “momento festivo”.
É isso que a seu tempo eu tinha chamado de “A Sombra de Dionísio” (1982), que se espalha pelas megalópoles pós-modernas. Essa volta da orgia como “paixão” comum que atinge todos os setores da vida social e que suscita, assim, as efervescências “ex-táticas”, essas saídas de si não sendo mais o apanágio de alguns, mas, sim, o menor denominador comum no qual cada um e a vida coletiva em seu conjunto podiam reconhecer-se.
O “regime noturno” do imaginário sendo a causa e o efeito de um misticismo popular. Por intermédio das danças, da música, dos excessos diversos, a noite é o que permite todos os possíveis. Precisemos, não se trata mais aí da temática da transgressão que se situa contra os valores oficialmente admitidos. É, simplesmente, ao lado que o festivo oficioso impõe seus encantos: luxuosos, luxuriosos, isto é, não funcionais, inúteis, e, no entanto, tão necessários!
Trata-se aí de um misticismo popular que repousa sobre a ultrapassagem do elemento cardeal moderno: o sujeito pensante. Como dizia com uma ponta de humor esse homem do Sul que era Paul Valéry: “às vezes eu penso e às vezes eu sou”. É, com efeito, fora do pensamento que se situa o deslocamento do eu próprio da “festividade”. Para retomar uma expressão de Mestre Eckhart: Entbildung, uma “des-representação” correlativa de uma despossessão.16 O despojamento de nossas habituais concepções do mundo que provoca uma outra maneira de se situar nesse mundo e de organizá-lo.
Trata-se aí de uma temática recorrente da mística, por exemplo, a que prevaleceu no espaço renano ou na cabala judaica. Em todos os casos, o que é correlativo da despossessão é uma unio mystica. É esta que se pode observar nas efervescências contemporâneas: turísticas, musicais, festivas, esportivas, o que não deixa de apresentar o problema da transmutação dos valores.
Transmutação, com efeito, é o desafio que nos é lançado: é pelo fogo da festa que o “eu” se perde e se transforma em um “nós” coletivo. A passagem do “eu” ao “nós” é, com certeza, o que se pode qualificar, metaforicamente, de processo alquímico através do qual se constitui a pósmodernidade.
Transmutação que é, placidamente, aceita pelo pensamento de todos os dias, o da opinião pública, para o qual o “nós” é uma evidência irrefutável. Evidência que constitui para o saber estabelecido moderno um verdadeiro impasse. Tanto é verdade que, para a opinião publicada, o indivíduo “mestre de si como do universo” constitui a espinha dorsal do sistema social. Para este, e isso desde o século das Luzes, a Revolução Francesa até o socialismo de Estado, o sujeito é um antecedens que precede e gera todo o resto (vida natural e social) que é somente consequens. A própria etimologia do termo, subjectum, faz ressaltar em que, e como, ele é a “base” essencial, o alicerce fundamental a partir do que se pode erigir a construção do mundo.17
Alicerce que a efervescência festiva torna o mais destrutível possível. E é assim que se ouve uma intelligentsia extenuada clamar, com uma voz dolente, “ao lobo” para denunciar esse retorno do “nós”, mascarada com o estigma infamante de comunitarismo. Mas o que é, de fato, esse retorno ao ideal comunitário senão um sintoma inegável? Aquele do aniquilamento de um mundo, o mundo da economia e de seu “princípio de realidade”. Mas é esse aniquilamento que permite que cada um se eleve no “sobremundo” em que o virtual e o real se conjugam em uma combinatória diferentemente mais complexa.
É isso mesmo nas intensidades próprias à “festividade” em que, num tempo lânguido, passado e futuro se contraem em um presente eterno. Certamente, com a ajuda de diversos produtos: álcool, drogas diversas, tudo isso não deixa de suscitar uma impressão de alucinação, mas é pensar pouco permanecer num julgamento assim, porque, da mesma forma, como foi o caso em inúmeras sociedades tradicionais, afastando-se da normalidade individual, se pode chegar a esse “senso comum”, a Koiné aisthesis de antiga memória, em que todos os sentidos entram em conjunção com os sentidos de todos. A comunhão dos santos da doutrina católica tinha estabelecido a constatação, a egrégora da sabedoria iniciática lhe devolveu um vigor novo, a noosfera de Teilhard de Chardin e as diversas modalidades do sistema “Wiki” mostram sua pertinência contemporânea: pensar e agir, características do fenômeno humano, são, por essência, coletivos.
Reconhecendo esse deslocamento do eu de Homo festivus, só estamos chegando a um outro estágio, talvez provisório, da evolução de nossa espécie. Evolução, por mais paradoxal que isso possa parecer, que integra o que o mito progressista do século XIX acreditava ter ultrapassado: a saber, os aspectos não racionais, instintuais, animais, que nos constituem. Nesse sentido, o momento festivo é um bom revelador desses arcaísmos renascentes. Talvez se devesse ver aí o que Michel Foucault chama de espaços de uma “exterioridade selvagem”.18 Lugares em que o tempo suspenso lembra a importância, na verdade, a necessidade, do enraizamento. Dessas raízes que permitem à planta humana crescer e se desenvolver.
Mas a aceitação dessas raízes que a “festividade” lembra para a nossa boa lembrança nos inclina à radicalidade na atitude de pensamento. Não se trata mais aí da habitual atitude crítica que, a partir do sujeito pensante, promulgava a necessidade de uma utopia. Ou seja, stricto sensu, de um “não lugar” em que a sociedade perfeita poderia, enfim, desenvolver-se. O pensamento radical se dedica, ao contrário, a identificar, para retomar ainda um termo de Michel Foucault: as manifestações da “heterotopia”.19
O que eu interpretaria, por minha vez, como sendo “lugares” que, rompendo com a quietude das certezas estabelecidas e um pouco murmurantes, lembram a necessidade de destruir a fim de favorecer a (re)novação cultural. As festas podendo ser esses espaços mágicos dos excessos em que, justamente, se enraíza um viver-junto que sempre e de novo se realimenta nessa sede do infinito, vinda do fundo das idades, que lembra que a “lei” é apenas o eco de múltiplas e antigas experiências, as das gerações passadas de que a memória coletiva é a garantia mais segura.
O deslocamento do eu que se observa no momento festivo é, portanto, outra maneira de se enraizar no substrato ancestral. Anamnese dos que foram e que não deixam de ser. O que Auguste Comte chamava de “Grande Ser”, sempre em devir. Estamos no próprio cerne desse “sacral” pós-moderno, complexo de horrores e de ardor. Momento em que o estereótipo quotidiano alcança o arquétipo intemporal e refaz, assim, a inteireza do ser social. Holismo que reúne, em um mesmo movimento, a busca espiritual e a busca sensual. Momento festivo em que a salvação da alma e a do corpo são uma só e mesma coisa.
Em uma fórmula que pode ter sido considerada como algo heterodoxa, mas que estava em perfeita congruência com a essência da religião, Fénelon observava que esta “consiste apenas em sair de si e de seu amor próprio”.20 Essa elegante observação poderia aplicar-se à religiosidade própria das festas de todos os tempos, em que a atmosfera está na disponibilidade, na vacância, na escuta que a música não deixa de proporcionar.
Na efervescência da “festividade”, o que predomina é o fato de ser visitado pelo outro. Talvez fosse melhor dizer: ser visitado pela alteridade em geral. Em todas as grandes reuniões contemporâneas em que predominam as vibrações emocionais, vê-se que é a espera que prevalece. Espera do estranho, da estranheza, do completamente diferente, trata-se aí de um desejo difuso mas não menos insistente, recriando, frrequentemente de uma maneira paroxística, a “pequena morte” suscitada pelo orgasmo e permitindo chegar a um mais-ser, o do amor.
Nas copulações coletivas próprias dos diversos encontros sociais, não é do culto dos mistérios que se trata? É possível. Porque nas fricções de todos os tipos, na efervescência musical ou na exuberância dos clamores, é a espera do Outro que prevalece. Estando deslocado, o eu apela inconscientemente a um mais-ser existencial. E nessa “visitação”, é um inegável prazer que se manifesta: o do irreprimível e selvagem quererviver animal.
O “DOMINGO DA VIDA”
A mecânica, para falar da ciência das fricções, fala de “tribologia” cuja origem se encontra no tribein (esfregar) grego. Em francês antigo existe “triboler”: agitar-se, ou “tribolement”, “tribous”, remetendo às perturbações, às querelas; nossa tribulação atual é uma remanência.21 Por que essa rápida e alusiva olhadela, senão para lembrar que a agitação é um fato constante na mecânica natural como naquela que rege a vida social. E para esta, em especial, para a qual se tem, talvez, algumas competências mais precisas, pode-se dizer que o esquema da “fricção” se encontra na tecnologia do fogo (isqueiro) e na rítmica sexual. G. Durand vê aí até um dos três “gestos” antropológicos específicos de nossa espécie animal.22 Constatações empíricas: a transmutação pelo fogo, para nós, o da efervescência festiva, a procura do outro com quem se “esfregar”, tudo isso nos incita a uma atitude realista, para além e para aquém de nossos habituais idealismos modernos. O ser de cada “ente” que somos está menos no pensamento do que na relação de pertença, natural ou social, que nos constitui como tal.
É isso que constitui a constância antropológica de Homo festivus: fazer ouvir o cântico da carne. E que lembra assim que somos “encarnados” em um dado lugar. “Mundano”, isto é, cidadão deste mundo. Acontece que o retorno dos fenômenos e das ocasiões festivas é o sintoma de uma conversão: convertere, torna e retorna à pertença ao mundo natural. Não há, a partir de então, por que se surpreender que, num mesmo movimento, o “realismo” pós-moderno enfatize uma “ecosfera”, sabedoria da casa comum, e sobre a “festividade” que é uma espécie de celebração dela.
O cogito do “eu penso” se legitimava pela ideia do Deus Único, causa sui, causa dele mesmo e, em consequência, de todas as coisas. É a razão pela qual a festa foi sempre suspeita, ou bem enquadrada, pelas religiões instituídas, em especial as de obediências cristãs, porque ela fragilizava o eu e, portanto, seu fundamento: Deus. Há, com efeito, sempre algo de pagão nas iluminações festivas. O protestantismo em particular, em sua ética racional, levou até seus limites extremos a regulação das efervescências idolátricas que subsistiam no catolicismo, em particular sob suas formas mediterrâneas.23
Mostrou-se pelo processo de deslocamento do eu, pode-se acrescentar a isso o prurido de se esfregar com o outro, outras maneiras de dizer a transmutação pelo fogo da festa: tudo isso traduz o deslizamento do antropocentrismo, próprio da modernidade judaico-cristã, para uma “cosmetização” inscrevendo o humano, talvez fosse melhor dizer o vivo, nesse estojo que é o cosmos.
Não é, aliás, anódino destacar que tal cosmetização pagã anda ao lado de uma real “cosmética” quotidiana. Ornamentar-se, maquilar-se, tatuar-se, cuidar da roupa, eis quantas intimações às quais é difícil escapar para os que querem, legitimamente, participar de uma festa. Isso foi dito de diversas maneiras, eu mesmo me fiz eco disso (Au creux des apparences, pour une éthique de l’esthétique, 1990), em alguns momentos a profundidade se oculta na superfície das coisas. Em resumo, é a exacerbação do corpo próprio que estrutura o corpo social. A celebração da “pele”, do que é superficial, permitindo, assim, que todo conjunto ganhe corpo, isto é, que todas as coisas fiquem juntas, se constituam como uma relação de pertença.
Mesmo se depois isso ficou um pouco esquecido, encontra-se tal “preocupação” pagã da interpenetração, da “fricção” nos filósofos libertinos do século XVIII. Assim, essa obra erótico-filosófica: “Thérèse Philosophe” (1748), ao que tudo leva a crer escrita pelo Marquês de Argens, onde, retomando um naturalismo à Spinoza, se vê misturar em um desenvolvimento contínuo a atitude espiritual e a preocupação sensual. Constituindo assim uma ética relativista em que o bem e o mal são menos estritamente separados que mutuamente fecundados.24
Não é tal relativismo que está em jogo no momento festivo? Relativismo que, stricto sensu, relativiza uns pelos outros todos os aspectos da natureza humana: corpo-espírito, cultura-natureza, bem-mal, pretobranco..., e ao mesmo tempo, ou por meio disso, “coloca em relação”, cria elo. Tem-se aí, aliás, tudo o que diferencia a moral abstrata um pouco desencarnada, da ética concreta e perfeitamente enraizada no que é a inteireza do humano. Porque, assim como observava Groddeck, o “id é luxurioso”. 25 O que se pode interpretar de diversas maneiras, mas para o que concerne nosso propósito: como sendo, justamente, “luxuoso”, isto é, não funcional. Inútil no âmbito do moralismo produtivista, em que tudo deve servir para alguma coisa, mas das mais necessárias, desde o momento em que se toma conhecimento da importância do supérfluo.
É a lição das coisas proposta pelo momento festivo. Ela lembra o enraizamento no “id” que é este mundo. Ou ainda no “estar-aí”, “ser o aí” do Dasein heideggeriano. É, com certeza, um pivotamento do tempo que, assim, se inicia: o gozo não é mais esperado no futuro, mas no presente. E, para além do julgamento pejorativo habitualmente atribuído ao termo “cosmético”, 26 o uso cada vez mais frequente dessa palavra traduz bem, inconscientemente, o fato de que cada um e o conjunto social se inscrevem no horizonte do cosmos. Além disso, cada momento dessa inscrição apresenta um valor em si, tem um valor infinito.
A “festividade” destaca, assim, a prevalência do presente, ela traduz bem o pivotamento do tempo, que é a marca específica da pós-modernidade. Em um instante eterno se operam os encontros de que os surrealistas mostraram o “acaso objetivo”. O presente é correlativo de presença. É a antiga filosofia do Kairos que, segundo Goethe, traduzia essa “saúde do momento própria aos gregos antigos”.
O presenteísmo é uma maneira de valorizar a coexistência, a copresença, portanto, o relationismo de que não se pode mais negar a atualidade e a pertinência. Para dizê-lo de uma maneira familiar, a da sabedoria popular, Catão, retomando um lugar comum desta lembrava que fronte capillata post occasio calva (cabeluda de frente, a ocasião é calva por trás). Em resumo, convém pois captá-la no momento. Eis bem descrita a “boa ocasião” que as festas propõem.
Sejam os “rallyes” da boa burguesia tendo por objetivo favorecer os encontros de seus descendentes, as reuniões de música “tecno” ou as JMJ católicas, sem esquecer o papel que exerce a “saída para a boate” e em diversos “night clubs”, eis quantas ocasiões de encontrar o outro: a alma irmã para a vida ou o “bom encontro” para a noitada! Há nessa suspensão do tempo em um momento oportuno uma maneira de lutar contra a angústia do tempo que passa. O ritual festivo, por intermédio do repatriamento do gozo aqui e agora, lembra que o desejo da intensidade, focalizar sua energia sobre o momento (in-tendere), é, também, uma estrutura arcaica que encontra às vezes uma revivescência inesperada.
Para retomar algumas modalidades do tempo que a filosofia grega utilizou, conhece-se o chronos, esse tempo que passa e se desenrola de uma maneira inelutável. A tradição semítica, depois a modernidade fizeram dele a base da História da salvação, depois da História finalizada simplesmente. Há, também, aion, o tempo dos ciclos e das eras sucessivas. Temporalidade frequentemente suspeita pelas ideologias progressistas, mas que a progressividade da sabedoria popular e de algumas sociedades iniciáticas tinha integrado em sua abordagem humanista. Enfim, esse Kairos de que se acaba de falar, e que é a consequência lógica da “progressividade” cíclica. É a sabedoria do momento favorável que encontra nos fenômenos festivos uma expressão paroxística.
É tal experiência do presente, levada até suas mais últimas consequências, que, segundo Nietzsche, traduz a vontade, mais ou menos inconsciente, de um querer-viver instintual. Ela favorece a adaptação à realidade tal como se apresenta, o ajuntamento ao que é e aos outros, vivendo conosco a riqueza de tal presente e apreciando a beleza do mundo. Concentrando-se na ação presente e nas oportunidades que se manifestam, adquire-se assim uma espécie de serenidade originária da vida como obra de arte.27 Sabedoria do instante, sabedoria do prazer, tais são as características essenciais do hedonismo popular que encontra no momento festivo uma expressão de destaque.
Dilatação, iluminação, alucinação e todas as outras características desse gênero tornadas manifestas para os que, sem preconceito judicativo, sabem ver o que é; que se está acima do profano, e já no mundo divino. Mesmo se este for considerado como o do “devil of the flesh”, assim como celebra a música do “Black metal”. O que é certo é que se entra em cheio no reino do desejo em que se desenvolve (o que é o coração pulsante da transmutação societal em curso) a (re)novação de uma raça terrena e realista, não se deixando mais contar para o que concerne os “amanhãs que cantam”, mas que prefere degustar, com gulodice, das sedutoras oportunidades vividas no dia a dia.
Certamente, essa volúpia pode ser completamente ideal; entendo por isso “virtual”. Ou seja, pode-se, à vontade, fantasmar sobre as possibilidades oferecidas pela “teia”. Mas não deixa de acontecer que, frequentemente, esses fantasmas e outras fantasias “se atualizam”. O sucesso das festas organizadas pelas redes sociais, em especial os sites de encontro, testemunha isso; as arcaicas fantasmagorias do desejo multiforme encontram um adjuvante importante no desenvolvimento tecnológico. Tanto é verdade, e isso esquecemos muito frequentemente, que, a exemplo da eficácia própria ao imaginário, o “virtual” é causa e efeito de uma intensidade existencial não negligenciável.
Falou-se da “saúde do momento” entre os gregos. Por que não a ver, também, na efervescência festiva própria das tribos pós-modernas? O qualitativo, a criação existencial participam de uma forma de liberdade no próprio seio da dependência comunitária. Liberdade intersticial, eu disse. Isto é, a dos “momentos” de intensidade, a originária dessa “bricolagem” permanente que é toda vida humana. A efervescência de si no gozo fora do si se desenvolvendo no Si mais vasto do dado mundano. Eis qual é a forma contemporânea de “colher hoje as rosas da vida”. Injunção que Ronsard completa observando: “como uma flor caminhando por cima das flores”. É uma desenvoltura assim, a mais serena possível, que se pode observar no dionisíaco contemporâneo.
A sabedoria antiga chamava virtude (virtu), que não se conseguiria reduzir à significação atual desse termo, a energia própria do querer-viver, seu dinamismo interno. Está na lógica de tal virtude elevar-se em alegria de viver, de celebrar a beleza do mundo e seu correlato que é o prazer de ser. Talvez seja isso que se entende no que Hegel chamava de “domingo da vida que iguala tudo e que distancia de toda ideia de mal. Homens de tão bom humor, que se entregam com todo coração à alegria, não podem ser realmente maus ou desprezíveis”.28
Não se conseguiria dizer melhor o Zeitgeist contemporâneo: os humores e a alegria ambiente secretados por todas as ocasiões festivas. O que não deixa, notemos, de ter acentos trágicos. É quando há um sentimento de finitude que a festa chega no auge. O “domingo da vida” apenas exprime o cuidado existencial de viver no presente, um poder societal que entende esgotar-se no próprio ato do que é vivido.
Georges Bataille observava a “sutileza do sentido do nonsense”.29 O que se vai encontrar nos estados místicos, o que está em ação no satori do zen. É, igualmente, o que se vai encontrar em uma energia festiva que se basta a si própria. Que não tem objetivo distante, mas que se epifaniza no instante eterno. É isso, para apenas citar alguns exemplos, entre muitas outras manifestações da mesma ordem, que se vai experimentar nas ferias de Nîmes, de Béziers, nas festas de Bayonne, onde todo mundo e a comunidade em seu conjunto se perdem em um sentimento oceânico que não deixa de lembrar a nostalgia do bem-estar matricial.
Há, com efeito, na efervescência festiva, um refluxo do político para o místico. Um elã vital que lembra a importância da “carne” e do pathos que é sua expressão. O fato de que nas mídias, na ação pública, em todos os domínios da vida privada, voltam, de uma maneira lancinante, termos como lúdico, estético, até mesmo imaginário, traduz bem a crise de uma concepção puramente racionalista do elo social.30 A socialidade em jogo não é mais simples sociabilidade. Ela se refere a toda uma série de parâmetros que o “Contrato social” moderno tinha desprezado ou mantido em quantidade negligenciável.
A crise, lembremos, é, em seu sentido etimológico, crisis, um julgamento feito pelo que é sobre o que foi; é, também, uma passagem no “crivo” rejeitando o que é caduco, e conservando o que merece sê-lo. Nesse sentido, a crise é, sempre, aposta de esperança, indício de uma (re)novação existencial e societal. É tudo isso que destaca Homo festivus: retorno do “demônico”, deslocamento do eu, revivescência do “domingo da vida”.
Algumas vozes proféticas tinham anunciado tal mudança de paradigma: o romantismo, alguns sonhadores do século XIX (como Charles Fourier), os surrealistas ou, ainda, os situacionistas, todos celebrando o aspecto-prospectivo de um barroco que exprime “a agitação vitalista, a turbulência dinâmica” e assim anunciam “um novo mundo no seio do qual o mítico, o lúdico, o passional, modulam sua eficacidade e sua presença sobre as ruínas da razão utópica”.31
Diagnóstico completamente pertinente e prospectivo no fato de mostrar como, contemporaneamente, a razão certa enriquecida pelo sentido comum enfatiza uma utopia vivida aqui e agora. Utopia em que o emocional ocupa um lugar de primeiro plano. O que anuncia um viverjunto em que o corpo em particular, o sensível em geral, vão ser elementos dos mais determinantes possíveis. É isso que destaca o momento festivo: uma ordem em que o amor será essencial.
(Michel Maffesoli - Homo eroticus – Comunhões emocionais)
Notas 1 E. Kant, Critique de la Raison pure. In: OEuvres philosophiques. Paris: Gallimard, Pléiade, 1980. p. 780.
2 E. Durkheim, Les formes élémentaires da la vie religieuse (1912). Paris: Reed. CNRS Éditions, 2008.
3 Santo Tomás de Aquino, De Veritate. Questio 2, art. 3, argumentum 19.
4 Cf. A. Viatte, Les sources occultes du Romantisme, p. 252-253.
5 H. Arendt e M. Heidegger, Lettres, p. 18 (carta de 27.02.1925), e M. Heidegger, Ma chère petite âme.
6 Goethe, Conversations avec Eckermann. Trad. fr. Gallimard, Paris, 1988; e também Poésie et Vérité. Paris: Aubier, 1941. p. 490-501.
7 M. Foucault, Vigiar e punir.
8 M. Roemer, Le laboureur de l’être. Georg Olms, 2004. p. 159.
9 Aristóteles, Éthique à Nicomaque, II, 11, 1.104.
10 Remeto aqui ao meu pequeno ensaio: M. Maffesoli, Morale, éthique et déontologie. Paris: Fondapol (Fondation pour l’Innovation Politique), 2011.
11 Cf. G. Simmel. Sociologie, p. 736.
12 Cf. Voici Maître Eckhart. dir. E. Zum Brunn, Jérôme Million, Grenoble, 1994. p. 209, 301 e 347. 13 M. Heidegger, La dévastation et l’attente. Paris: Gallimard, 1995. p. 9.
14 Cf. E. Durkheim, Les formes élémentaires de la vie religieuse.
15 Cf. G. Bataille, La part maudite, e La notion de dépense. Paris: Minuit; cf. também Ph. Joron, La vie improductive. Georges Bataille et l’hétérologie sociologique. Presses Universitaires de la Méditerranée, 2009, sem esquecer a análise de G. Durand concernente aos regimes “noturno” e “diurno” do imaginário. Cf. G. Durand. La sortie du XXe siècle.
16 Cf. W. Wackernagel, L’être des images. In: Voici Maître Eckhart. Dir. E. Zum Brunn, p. 457; cf. também Moshe Idel, Maïmonide et la mystique juive. Paris: Cerf, 1991. p. 8.
17 Cf. M. Heidegger, Schelling, p. 139.
18 M. Foucault, Ordre du discours. Paris: Gallimard, 1971. p. 37. Remeto aqui à minha crítica do mito do Progresso em M. Maffesoli, La violence totalitaire (1979), Cap. “Sociogenèse du progrès et du service public”, p. 445-538.
19 M. Foucault, Les mots et les choses. Paris: Gallimard, 1966. p. 9-10.
20 Fénelon, Sur la prière. In: OEuvres. Paris: Pléiade, Gallimard, t. I, p. 611.
21 Cf. R. Gransaignes d’Houterier, Dictionnaire d’Ancien Français. Paris: Larousse, 1947. p. 572-573.
22 G. Durand, Structures anthropologiques de l’imaginaire, p. 46 e 180.
23 Cf. M. Weber, L’éthique protestante et l’esprit du capitalisme.
24 Cf. J. I. Israël, Les lumières radicales, p. 127-128.
25 Cf. G. Groddeck, Le livre du ça, p. 36.
26 Por exemplo, é frequente dizer “é maquiagem” para designar uma reforma, uma mudança puramente superficial, portanto, de pouca importância!
27 Cf. a análise dessa criação presente segundo Nietzsche proposta por P. Hadot, N’oublie pas de vivre. Paris: Albin Michel, 2008. p. 49 e segs.
28 Hegel, Esthétique. Paris: Le Livre de Poche, 1997. v. 2, p. 317.
29 G. Bataille, Sur Nietzsche. Paris: Gallimard. t. VI, p. 160. Cf. também PH. Joron, La vie improductive. Georges Bataille et l’hétérologie sociologique. Presses Universitaires de la Méditerranée, 2009, e Les Fêtes de Bayonne. CNRS Éditions, 2012. E D. Jeffrey, Jouissance du sacré. Armand Colin, 1998.
30 Cf., por exemplo, G. Simmel. Sociologie et épistémologie, p. 124-125. Cf., também, J. Dubois, La mise en scène du corps social. Éd. Harmattan, 2007, e V. Susca, C. Bardoinne, Récréation. CNRS Éditions, 2009.
31 P. Tacussel, Charles Fourier, le jeu des passions. Paris: D. D. B., 2000. p. 250.