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A casa da guerra

por Thynus, em 13.04.15
 O paraíso está na sombra das espadas
 
«Aqueles de entre os crentes que ficarem em casa, para além dos incapacitados, não são iguais àqueles que lutam na senda de Deus com os seus bens e as suas pessoas. Deus colocou aqueles que lutam com os seus bens e as suas pessoas num nível mais elevado do que aqueles que ficam em casa. Deus prometeu recompensa a todos os que crêem, mas Ele distingue aqueles que combatem, acima daqueles que ficam em casa, com uma recompensa grandiosa».
(Corão, IV, 95)
 
 
 
Ao longo da história da humanidade, muitas civilizações surgiram e desapareceram - China, índia, Grécia, Roma, e, antes delas, as antigas civilizações do Médio Oriente. Durante os séculos que na história europeia são designados por Idade Média, a civilização mais avançada do mundo era sem dúvida a do Islão. Pode ter sido igualada - ou mesmo ultrapassada em alguns aspectos - pela índia e pela China, mas estas ficaram limitadas essencialmente a uma região e a um grupo étnico, e o seu impacte no resto do mundo foi proporcionalmente reduzido. A civilização do Islão, pelo contrário, tinha uma visão ecuménica do mundo e era-o explicitamente nas suas aspirações.
Uma das tarefas básicas deixadas em testamento aos muçulmanos pelo Profeta foi âjihad. Esta palavra vem da raiz árabe j-h-d, que basicamente significa «empenho» ou «esforço». Em textos clássicos é frequentemente usada com um significado muito próximo de «luta», e a partir daí também de «combate». E citada com frequência na frase do Corão: «lutando na senda de Deus» (p. ex.: IX, 24; LX, 1; etc.), e tem sido variamente interpretada como significando luta moral ou luta armada. Normalmente é muito fácil compreender pelo contexto qual destes cambiantes de significado se pretendeu dar-lhe. No Corão a palavra ocorre muitas vezes, com estes dois sentidos distintos mas relacionados. Nos primeiros capítulos, que datam do período de Meca, quando o Profeta ainda era o líder de um grupo minoritário que lutava contra a oligarquia pagã dominante, a palavra tem frequentemente
o significado, apoiado pelos exegetas modernistas, de luta moral. Nos últimos capítulos, publicados em Medina, onde o Profeta era chefe de Estado e comandava o exército, habitualmente tem uma conotação explicitamente mais prática. Em muitos, o sentido militar é inequívoco. Encontra-se um bom exemplo em IV, 95: «Aqueles de entre os crentes que ficarem em casa, para além dos incapacitados, não são iguais àqueles que lutam na senda de Deus com os seus bens e as suas pessoas. Deus colocou aqueles que lutam com os seus bens e as suas pessoas num nível mais elevado do que aqueles que ficam em casa. Deus prometeu recompensa a todos os que crêem, mas Ele distingue aqueles que combatem, acima daqueles que ficam em casa, com uma recompensa grandiosa». Conceitos semelhantes encontram-se em: VIII, 72; IX, 41, 81, 88; LXVI, 9; etc.
Alguns muçulmanos modernos, sobretudo quando se dirigem ao mundo exterior, explicam o dever da jihad em sentido espiritual e moral. A esmagadora maioria das autoridades do passado, citando as passagens relevantes do Corão, os comentários e as tradições do Profeta, discutem a jihad em termos militares. De acordo com a lei islâmica, é legítimo fazer guerra contra quatro tipos de inimigos: infiéis, apóstatas, rebeldes e bandidos. Embora esses quatro tipos de guerra sejam legítimos, só os dois primeiros contam como jihad. A jihad é, pois, uma obrigação religiosa. Discutindo acerca da obrigação da guerra santa, os juristas muçulmanos clássicos fazem distinção entre guerra ofensiva e defensiva. Na ofensiva, a jihad é uma obrigação da comunidade muçulmana como um todo, e portanto pode ser executada por voluntários e profissionais. Numa guerra defensiva, ela torna-se uma obrigação de todo o indivíduo fisicamente apto. Foi este princípio que Osama bin Laden invocou na sua declaração de guerra contra os Estados Unidos.
Durante a maior parte dos catorze séculos de história muçulmana registada, a jihad foi geralmente interpretada como luta armada para a defesa ou o avanço do poder muçulmano. Na tradição muçulmana, o mundo está dividido em duas casas: a Casa do Islão {Dar al-Islâm), onde os governantes muçulmanos governam e a lei muçulmana impera, e a Casa da Guerra (Dâr al-Harb), que é o resto do mundo ainda habitado e, mais importante ainda, governado pelos infiéis. O que se presume é que o dever da jihad continuará a ser exercido, interrompido apenas por tréguas temporárias, até que todo o mundo adopte a religião muçulmana ou se submeta ao domínio muçulmano. Aqueles que lutam na jihad habilitam-se a recompensas nos dois mundos - o saque neste, e o paraíso no outro. Nesta questão, como em tantas outras, a orientação do Corão é ampliada e elaborada nas hadiths, ou seja, nas tradições relativas às acções e elocuções do Profeta. Muitas delas têm a ver com a guerra santa. Seguem-se alguns exemplos.
A jihad é o vosso dever sob qualquer governante, seja ele piedoso ou iníquo.
Um dia e uma noite de combate na fronteira é melhor do que um mês de jejum e oração.
A ferroada de uma formiga magoa mais um mártir do que a estocada de uma arma, pois estas são mais agradáveis para ele do que a água doce e fresca num dia quente de Verão.
Aquele que morre sem ter tomado parte numa campanha morre como se fosse um descrente.
Deus admira-se com as pessoas [aqueles a quem o Islão, é imposto pela conquista] que são arrastadas para o paraíso acorrentadas.
Aprendam a disparar, pois o espaço entre o alvo e o archeiro é um dos jardins do paraíso.
O paraíso está na sombra das espadas.
As tradições também estabelecem algumas regras de guerra para o desempenho da jihad:
Tenham o cuidado de tratar bem os prisioneiros. O saque não é mais legítimo que o cadáver. Deus proibiu que se matem mulheres e crianças. Os muçulmanos estão vinculados aos seus acordos, desde que estes sejam legítimos.
Os tratados jurídicos clássicos sobre a shari’a contêm normalmente um capítulo acerca da jihad, entendida no sentido militar, como uma guerra regular contra infiéis e apóstatas. Mas esses tratados preceituam o comportamento correcto e o respeito pelas regras de guerra, em questões como a abertura e o encerramento das hostilidades e a forma de tratar os não combatentes e os prisioneiros, para não falar nos representantes diplomáticos.
Na maior parte da história escrita do Islão, desde o tempo de vida do profeta Maomé em diante, a palavra jihâd foi usada num sentido basicamente militar. Maomé iniciou a sua missão profética em Meca, lugar onde nasceu, mas devido à perseguição que ele e os seus seguidores sofreram às mãos da oligarquia pagã que governava aquela cidade, mudaram-se para a cidade de Medina, onde foram bem-recebidos pelas tribos locais, que deram ao Profeta o cargo de arbitrador e depois de governador. Em árabe, esta mudança é conhecida por Hijra, por vezes escrita na forma ortograficamente errada «Hegira», e erradamente traduzida por «fuga». A era muçulmana começa no início do ano árabe em que teve lugar a
Hijra. A primeira jihad foi empreendida pelo Profeta contra os governantes da sua cidade natal e terminou com a conquista de Meca no mês do Ramadão do ano 8 da Hijra, que corresponde a Janeiro de 630 da era cristã. Os líderes de Meca renderam-se quase sem luta, e aos habitantes da cidade, excluindo aqueles que eram acusados de ofensas específicas contra o Profeta ou contra algum muçulmano, foi concedida imunidade para as suas vidas e bens, desde que se comportassem de harmonia com o acordo. A tarefa seguinte foi o alargamento do domínio muçulmano ao resto da Arábia e, sob a autoridade dos califas, sucessores do Profeta, ao resto do mundo.
Nos primeiros séculos da era islâmica isso pareceu ser um resultado possível ou mesmo provável. Dentro de um espaço de tempo bastante curto os exércitos muçulmanos triunfantes tinham derrubado o antigo império da Pérsia e anexado todos os seus territórios aos domínios do califado, abrindo caminho à invasão da Ásia Central e da índia. Para ocidente, o Império Bizantino ainda não tinha sido derrubado, mas já fora despojado de grande parte dos seus territórios. As então províncias cristãs da Síria, Palestina, Egipto e Norte de África foram absorvidas e em devido tempo islamizadas e arabizadas, e serviram de bases para a sequente invasão da Europa e conquista da Espanha e de Portugal, e de grande parte do sul de Itália. Em inícios do século VIII, os exércitos árabes vitoriosos atravessavam os Pirenéus, penetrando em França.
Após vários séculos de vitórias quase ininterruptas, a jihad foi finalmente detida e repelida pela Europa cristã. No Oriente, os Bizantinos resistiram na grande cidade cristã de Constantinopla, repelindo uma série de ataques árabes. No Ocidente teve início o longo e moroso processo conhecido na história de Espanha como «a Reconquista», que por fim levou à expulsão dos muçulmanos dos territórios que tinham conquistado em Itália e na Península Ibérica. Foi igualmente empreendida uma tentativa de levar a Reconquista até ao Médio Oriente, a fim de recuperar a terra onde Cristo nasceu, conquistada pelos muçulmanos no século VII. Essa tentativa, conhecida por Cruzadas, falhou completamente, e os cruzados foram repelidos em fuga desordenada.
Mas a jihad não tinha terminado. Uma nova fase foi iniciada, desta vez não por Árabes mas por mais recentes convertidos ao Islão, os Turcos e os Tártaros. Estes conseguiram conquistar a Anatólia, até ali terra cristã, e em Maio de 1453 tomaram Constantinopla, que a partir de então passou a ser a capital dos sultães otomanos, sucessores do antigo califado na liderança da jihad islâmica. Os Otomanos nos Balcãs e os Tártaros islamizados na Rússia renovaram a tentativa de conquistar a Europa, desta vez a partir do Leste, e durante um certo tempo pareceu que o sucesso estava à vista.
Mas uma vez mais a Europa cristã conseguiu expulsar os invasores, e de novo, desta vez com mais sucesso, contra-atacou os domínios do Islão. Por esta altura a jihad tinha-se tornado quase unicamente defensiva - resistindo à Reconquista em Espanha e na Rússia e aos movimentos de libertação nacional dos súbditos cristãos do Império Otomano, e por fim, segundo o ponto de vista dos muçulmanos, defendendo o coração das terras do Islão do ataque dos infiéis. Esta fase veio a ser conhecida por imperialismo.
Mesmo neste período de retirada, a jihad ofensiva não foi de modo nenhum abandonada. Já em 1896, os Afegãos invadiram a região montanhosa do Hindukush, que fica actualmente no Nordeste do Afeganistão. Até essa altura os seus habitantes não eram muçulmanos e por isso a região era conhecida pelos muçulmanos como «Kafiristão» - «Terra dos Infiéis».
Depois da conquista afegã passou a ser chamada «Nuristão» - «Terra da Luz». Durante o mesmo período, diversos géneros de jihads foram levados a cabo em África, contra populações não-muçulmanas. Mas na sua maioria, o conceito, a prática e a experiência da jihad no mundo islâmico moderno têm sido esmagadoramente defensivos.
O uso predominantemente militar do vocábulo manteve-se até tempos relativamente recentes. No Império Otomano a cidade de Belgrado, base avançada da guerra contra os Austríacos, recebeu o título condizente de Dar al-Jihâd (Casa da Jihad). No início do século XIX, quando o líder modernizador do Egipto, Muhammad ’Ali Pasha, reformou as forças armadas e a respectiva administração segundo os modelos francês e inglês, criou um «departamento da guerra» para as administrar. Em árabe era conhecido por Conselho de Estado dos Assuntos da Jihad (Diwân al-Jihâdiyya), e o seu chefe por supervisor dos assuntos da jihad (Nâzir al-Jihâdiyya). Poderíamos citar outros exemplos em que a palavra jihad perdeu o sentido sagrado e conservou apenas a conotação militar. Nos tempos actuais tanto o uso militar do vocábulo como o uso moral foram recuperados, e são entendidos e aplicados de modos diferentes por grupos diferentes de pessoas. Organizações que nos nossos dias reclamam o nome de jihad na Caxemira, na Tchetchénia, na Palestina e por toda a parte, é evidente que não usam a palavra para designar luta moral.
A jihad é por vezes apresentada pelos muçulmanos como o equivalente à Cruzada, e as duas são vistas como sendo mais ou menos equivalentes. Num certo sentido isto é verdade: ambas foram proclamadas e empreendidas como guerras santas, em nome da fé verdadeira contra um inimigo infiel. Mas há uma diferença. A Cruzada é um desenvolvimento tardio na história cristã e, de certo modo, marca um afastamento radical dos valores cristãos básicos conforme expressos nos Evangelhos. A cristandade estivera sujeita a ataques desde o século VII e tinha perdido vastos territórios para o domínio muçulmano; o conceito de guerra santa ou, mais comummente, guerra justa, era familiar desde a Antiguidade. Mas na longa guerra entre o Islão e a cristandade, a Cruzada foi tardia, limitada, e de duração relativamente curta. A jihad está presente desde o início da história islâmica - nas escrituras, na vida do Profeta, e nas acções dos seus companheiros e sucessores imediatos. Continuou ao longo da história do Islão e conserva o seu fascínio até aos nossos dias. A palavra «cruzada» deriva como é evidente da cruz e, originalmente, designava uma guerra santa para o cristianismo. Mas no mundo cristão há muito tempo que ela perdeu esse significado, e é usada com o sentido genérico de uma campanha moralmente impulsionada por uma boa causa. Pode-se empreender uma cruzada pelo ambiente, pela água pura, por melhores serviços sociais, pelos direitos da mulher, e por uma série interminável de outras causas. O único contexto em que a palavra «cruzada» hoje em dia não é usada é precisamente o contexto religioso original. A palavra «jihad» também é usada numa diversidade de sentidos, mas ao contrário de «cruzada» conservou o seu significado original e primário.
Aqueles que perdem a vida na. jihad chamam-se mártires, shahid em árabe e noutras línguas muçulmanas. A palavra portuguesa «mártir» vem do grego mártyr, «testemunha», pelo latim eclesiástico mãrtyre, e no uso judaico-cristão designa aquele que está pronto a sofrer a tortura e a morte para não renegar a sua fé. O seu martírio é pois um testemunho ou prova dessa fé, e da sua prontidão para sofrer e morrer por ela. O vocábulo árabe shahid também significa «testemunha» e é normalmente traduzido por «mártir», mas tem uma conotação bastante diferente. No uso islâmico o vocábulo «martírio» é normalmente interpretado como significando a morte numa jihad, e a sua recompensa é a felicidade eterna, descrita com algum pormenor em textos religiosos antigos. O suicídio, pelo contrário, é um pecado mortal e merece a condenação eterna, mesmo para aqueles que sem ele teriam um lugar assegurado no paraíso. Os juristas clássicos distinguem claramente entre enfrentar a morte certa às mãos do inimigo e pôr fim à vida com as próprias mãos. A primeira conduz ao céu, a segunda ao inferno. Alguns juristas fundamentalistas recentes, e alguns outros, esbateram ou descartaram mesmo essa distinção, mas o seu critério está longe de ser unanimemente aceite. O bombista suicida corre, pois, um risco considerável devido a uma subtileza teológica.
Como a guerra santa é uma obrigação religiosa, encontra-se cuidadosamente regulamentada na shari’a. Os combatentes de uma. jihad estão proibidos de matar mulheres, crianças e idosos, excepto se eles atacarem primeiro, de torturar ou mutilar prisioneiros, e são obrigados a dar aviso claro do recomeço das hostilidades a seguir a uma trégua e a honrar os acordos. Os juristas e teólogos medievais discutem até certo ponto as regras da guerra, incluindo questões como quais as armas que são permitidas e quais as que o não são. Há mesmo um certo debate nos textos medievais acerca da legalidade dos mísseis e da guerra química, no primeiro caso referindo-se a manganelas e catapultas, e no segundo a flechas com as pontas envenenadas e ao envenenamento das reservas de água do inimigo.
Sobre estas questões há uma considerável variação. Alguns juristas permitem, outros colocam restrições e outros desaprovam o uso dessas armas. A razão apontada para a sua preocupação é o número indiscriminado de vítimas que elas provocam. Em nenhum ponto os textos básicos do Islão prescrevem o terrorismo e o assassínio. Em nenhum ponto - que eu saiba - ponderam sequer a matança indiscriminada de espectadores não implicados.
Os juristas insistem em que os despojos de guerra devem ser um benefício acidental e não um objectivo principal. Alguns vão ao ponto de dizer que se eles se tornarem o objectivo principal, isso invalida a jihad e anula os seus benefícios, se não neste mundo, no outro. Ajihad, para ter alguma validade, deve ser empreendida «na senda de Deus», e não pelo interesse no ganho material. Contudo, há queixas frequentes acerca do mau uso que é feito do nome honroso da jihad para fins desonrosos. Principalmente os juristas africanos lamentam o uso que é feito do termo jihad por captores de escravos para justificar as suas pilhagens e afirmar a posse legal das suas vítimas. A Lei Santa ordena que seja dado bom tratamento aos não-combatentes, mas confere aos vencedores amplos direitos sobre os bens e também sobre as pessoas e os familiares dos vencidos. De acordo com o costume universal da Antiguidade, os inimigos capturados na guerra eram escravizados juntamente com as suas famílias, e podiam ser vendidos ou conservados pelos seus captores para uso pessoal. O Islão trouxe uma alteração a esta regra, limitando o direito de escravizar àqueles que eram capturados numa Jihad, mas não em qualquer outra forma de guerra.
As regras para a guerra contra os apóstatas são um tanto diferentes e bastante mais rigorosas do que as da guerra contra os não-crentes. O apóstata ou renegado, aos olhos dos muçulmanos, é de longe pior do que o não-crente. O não-crente ainda não viu a luz, e há sempre a esperança de que eventualmente venha a vê-la. Entretanto, desde que preencha as condições necessárias poderá beneficiar da tolerância do estado muçulmano e ser autorizado a continuar a praticar a sua religião, e até a cumprir as leis da sua própria religião. O renegado é alguém que conheceu a verdadeira fé, ainda que por breve tempo, e a abandonou. Para esta ofensa não existe perdão humano e, de acordo com a esmagadora maioria dos juristas, o renegado deve ser condenado à morte - isto é, se for homem. Para as mulheres, uma pena mais leve de açoitamento e prisão pode bastar. Deus, na sua misericórdia, pode perdoar ao renegado no outro mundo, se assim decidir. Mas nenhum humano tem autoridade para o fazer. Esta distinção é de certa importância hoje em dia, em que os líderes militantes proclamaram uma jihad dupla: contra os infiéis estrangeiros e contra os apóstatas domésticos. A maioria, se não a totalidade, dos líderes muçulmanos que nós, no Ocidente, consideramos com prazer nossos amigos e aliados, são vistos como traidores ou, pior ainda, como apóstatas pela maioria ou a quase totalidade do seu próprio povo.
Desde tempos remotos, foi feita uma distinção legal entre os territórios adquiridos pela força (’anwatan em árabe, equivalente à expressão jurídica romana vi et armis) e os adquiridos por sulhan, isto é, por qualquer tipo de tréguas ou de rendição pacífica. As regras relativas ao saque e, de modo mais geral, ao tratamento a dar à população dos territórios acabados de obter, diferiam em alguns aspectos importantes. Segundo a tradição, a diferença era simbolizada na mesquita todas as sextas-feiras. Nos territórios tomados por ’anwatan, o pregador levava uma espada; nos que tinham sido tomados por sulhan, um cajado de madeira. A simbologia da espada continua a ser importante. Até aos dias de hoje, a bandeira saudita tem duas divisas sobre um campo verde. Uma delas é o texto árabe do credo muçulmano: «Não há nenhum Deus a não ser Deus, Maomé é o profeta de Deus». A outra é a representação inequívoca de uma espada.
Em certas alturas, os juristas reconheceram uma categoria intermédia - a Casa das Tréguas {Dâr al-Sulh) ou Casa da Aliança {Dâr ai- ’Ahd) - entre as Casas da Guerra e do Islão. Era constituída por países não-muçulmanos, habitualmente cristãos, cujos líderes estabeleciam qualquer espécie de acordo com os líderes do Islão, mediante o qual pagavam um género de imposto ou tributo, visto como o equivalente ao jizya, ou imposto por cabeça, e conservavam uma grande capacidade de autonomia nos seus assuntos internos. Um dos primeiros exemplos foi o acordo feito pelos califas omíadas no século VII com os príncipes cristãos da Arménia. O exemplo clássico da Dâr al-Sulh, ou Casa das Tréguas, foi o pacto acordado em 652 d.C. com os líderes cristãos da Núbia, segundo o qual estes não pagavam o imposto por cabeça mas prestavam um tributo anual constituído por um número específico de escravos. Ao decidirem ver as ofertas como tributo, os líderes muçulmanos e os seus conselheiros legais podiam adaptar a lei de modo a cobrir uma grande variedade de relações políticas, militares e comerciais com governos não-muçulmanos. Esta abordagem não desapareceu por completo.
Os muçulmanos souberam, desde muito cedo, que havia certas diferenças entre os povos da Casa da Guerra. Na sua maioria eram simplesmente politeístas e idólatras que não representavam uma ameaça séria para o Islão e eram prováveis candidatos à conversão. Encontravam-se essencialmente na Ásia e em África. A principal excepção eram os cristãos, que os muçulmanos reconheciam que tinham uma religião do mesmo género da sua, e eram portanto os seus maiores rivais na luta pelo domínio do mundo - ou, como eles o diriam, pela iluminação do mundo. O cristianismo e o Islão são duas civilizações definidas pela religião, que entraram em conflito não devido às suas diferenças mas sim às suas semelhanças.
O mais antigo edifício religioso muçulmano existente fora da Arábia, a Cúpula da Rocha, em Jerusalém, foi terminado em 691 ou 692 d.C. A construção deste monumento no lugar do antigo templo judaico, e no mesmo estilo e na proximidade de monumentos cristãos como o Santo Sepulcro e a Igreja da Ascensão, enviou uma mensagem clara aos judeus, e, mais importante ainda, aos cristãos. As suas revelações, apesar de autênticas em tempos passados, tinham sido corrompidas pelos seus indignos guardiães e eram por isso substituídas pela revelação final e perfeita contida no Islão. Tal como os judeus tinham sido derrotados e substituídos pelos cristãos, também a ordem do mundo cristão passava agora a ser substituída pela fé muçulmana e pelo califado islâmico. Para realçar esse ponto de vista, as inscrições corânicas feitas na Cúpula da Rocha denunciam aquilo que os muçulmanos consideram os erros principais dos cristãos: «Louvado seja Deus, que não gerou nenhum filho e não tem qualquer parceiro» e «Ele é Deus, uno e eterno. Não gera, não foi gerado, e não tem par» (Corão, CXII). Isto era claramente um desafio aos seguidores de Cristo no seu lugar de nascimento.
Um milénio depois, o estacionamento de tropas americanas na Arábia foi visto por muitos muçulmanos e em especial por Osama bin Laden como um desafio semelhante, desta vez feito pelos cristãos ao Islão.
Para realçar este primeiro desafio à cristandade, o califa, pela primeira vez, cunhou moedas de ouro, prerrogativa sua e da Roma imperial. É significativo que o nome da primeira moeda de ouro islâmica, o dinâr, seja copiado do denarius romano. Algumas dessas moedas ostentam o nome do califa, o seu título de «Comandante dos Fiéis», e os mesmos versículos polémicos. A mensagem era clara. No entendimento dos muçulmanos, os judeus e mais tarde os cristãos tinham-se extraviado e seguido falsas doutrinas. Por conseguinte, ambas as religiões foram invalidadas e substituídas pelo Islão, a revelação final e perfeita na sequência estabelecida por Deus. Os versículos corânicos citados na Cúpula e nas moedas de ouro condenam aquilo que para os muçulmanos é a pior das corrupções da verdadeira fé. É evidente que há ainda uma mensagem adicional do califa para o imperador: «A tua fé é corrupta, o teu tempo acabou. Eu agora sou o líder do império de Deus na terra».
A mensagem foi bem entendida, e a cunhagem das moedas de ouro foi vista pelo imperador como um casus belli. Durante mais de mil anos os califas do Islão empreenderam a sua luta desde as sucessivas capitais, Medina, Damasco, Bagdad, Cairo e Istambul, contra os imperadores cristãos em Constantinopla, Viena, e mais tarde, usando outros títulos, em países mais distantes e mais para ocidente. Cada um deles, a seu tempo, foi o alvo principal da jihad.
É claro que na prática a aplicação da doutrina da jihad nem sempre foi rigorosa ou violenta.
O estado de guerra canonicamente obrigatório podia ser interrompido por aquilo que era legalmente designado por tréguas, mas que pouco diferia dos chamados tratados de paz que as potências europeias em guerra assinavam umas com as outras. Tais tréguas eram feitas pelo Profeta com os seus inimigos pagãos, e tornaram-se a base daquilo a que poderíamos chamar lei internacional islâmica. De acordo com a shari’a, a tolerância em relação às religiões com base em revelações divinas prévias não era um mérito mas sim um dever (Corão, II, 245: «Em religião não há coacção»). Nas terras sob domínio muçulmano, a lei islâmica exigia que judeus e cristãos fossem autorizados a praticar as suas religiões
e a administrar os seus negócios, ficando sujeitos a alguns inconvenientes, o mais importante dos quais era um imposto por cabeça a que eram obrigados todos os adultos do sexo masculino. Esse imposto, chamado jizya, está especificado no Corão em IX, 29: «Lutai contra aqueles que não acreditam em Deus ou no dia final, que não proíbem aquilo que Deus e o Seu apóstolo declararam ser proibido, que não praticam a religião da verdade, mesmo que sejam os povos do Livro [isto é, judeus e cristãos], enquanto eles não pagarem a jizya, directa e humildemente». As últimas palavras têm sido interpretadas de várias maneiras, tanto em literatura como na prática.
Outros inconvenientes incluíam o uso de trajes ou distintivos que os diferenciassem, e a proibição de usar armas, montar a cavalo, possuir escravos muçulmanos ou exceder a altura dos edifícios muçulmanos. Com excepção dos dois últimos e da jizya, nunca foram rigorosamente cumpridos. Em compensação, os súbditos não-muçulmanos tolerados no estado muçulmano gozavam de uma larga margem de autonomia na administração dos assuntos internos da comunidade, incluindo educação, impostos, e o cumprimento das suas próprias leis de direitos individuais, nomeadamente o casamento, o divórcio e a herança. O pacto ou contrato entre o estado muçulmano e uma comunidade de súbditos não-muçulmanos chamava-se dhimma, e aos membros dessas comunidades toleradas chamava-se dhimmis. Em linguagem moderna, os judeus e os cristãos no estado islâmico clássico eram aquilo a que poderíamos chamar cidadãos de segunda classe, mas a cidadania de segunda classe, estabelecida de acordo com a lei e a revelação, e reconhecida pela opinião pública, era de longe melhor do que a ausência total de cidadania que era o destino dos não-cristãos e até de alguns cristãos com comportamentos anómalos no Ocidente.
A jihad também não impediu os governos muçulmanos de procurarem ocasionalmente aliados cristãos contra os seus adversários muçulmanos, mesmo durante as Cruzadas.
 
(Bernard Lewis - A crise do islão - Guerra Santa e Terror ímpio)

 

O Estado Islâmico veio para ficar

publicado às 16:08


Suicídio

por Thynus, em 12.04.15

“Gostaria de suicidar-me, mas é muito perigoso.” (Sofocleto – 1926)

 

O suicídio é consequente a uma situação bastante séria, desagradável, frustrante. O indivíduo apresenta-se deprimido, desesperado, sem amparo. Não procura apoio e deseja encontrar um meio para acabar com a sua vida. Os meios usados por esses indivíduos extremamente perturbados são variados: fazem uso de arma de fogo carregada com balas, cortam os pulsos, abrem o gás do fogão fechando portas e janelas, ou então atiram-se de um edifício, ingerem uma substância venenosa, barbitúricos em altas doses, enforcam-se valendo-se de uma corda ou de alguma roupa que tenha comprimento suficiente para estrangulá-los. Bebem álcool com etanol até chegarem ao coma alcoólico e não serem socorridos a tempo. Ateiam fogo às vestes, tornando-se uma tocha humana. Usam armas brancas – facão, espada etc., atiram-se ao mar além da arrebentação das ondas para não dar pé e serem levados pelas caudalosas águas.

Há também uma forma mais sutil que é a de se isolar e deixar de se alimentar por completo. Greve de fome. Nem água tomam. Rejeitam remédios.

Os adultos e os idosos, por motivos os mais variados, fazem parte das estatísticas de suicídio. A taxa de suicídio entre os idosos supera os jovens.

Há pessoas que constantemente manifestam o desejo de se suicidar. Mas, em geral, não cumprem, na realidade, o que tanto costumam manifestar. Mas, cuidado, há inúmeros casos que de repente, os que falam em se matar, inesperadamente, cumprem o prometido, matando-se. Portando, é bom vigiar a pessoa que manifesta esse tresloucado gesto, lembrando-se sempre do famoso e antigo aforismo: “Não tem perigo, cuidado”!

Entre os casos de tentativa de suicídio, fomos chamados para ir com a máxima urgência a uma residência, nas imediações do consultório. Uma senhora estava passando mal.

Rapidamente nos deslocamos para o endereço fornecido. Ao entrar no quarto da paciente, ao lado da cama, no chão, vimos dois frascos vazios de Secobarbital Sódico, conhecido como Seconal. Cada frasco costuma ter 20 cápsulas. A paciente estava desnuda, aparentando uns 60 anos.

Parecia dormir. Gemia baixinho. Após auscultá-la, percebemos que as cápsulas ainda estava no estômago. Com a ajuda de uma pessoa para ampará-la sentada, introduzi os dedos indicador e médio em sua garganta.

A paciente, no mesmo momento, vomitou 39 cápsulas do remédio ingerido. Vomitou também a água que havia lhe dado. Assim nem foi preciso fazer a lavagem estomacal. Informaram-nos que a ambulância do Pronto Socorro estava a caminho.

Já acordada e medicada, conversava e se dizia arrependida do tresloucado ato que cometera. Sentia-se feliz por estar salva. Chegou a ambulância e nada mais tinha a fazer.

A paciente pediu-me para ouvi-la. Chorando de início, passou depois a contar sua história. Fora abandonada pelo namorado de muitos anos, o qual preferiu se ligar à melhor amiga dela.

No dia anterior, preparando o suicídio, percorrera diversas farmácias no bairro e nas imediações para comprar o remédio. Antigamente, as farmácias só forneciam duas cápsulas, sem a receita médica, para cada comprador.

Quando completou 40 cápsulas de Seconal, achou que poderia pôr em prática seu objetivo. No dia seguinte, tentou um contato com o namorado, implorando, pela última vez, que voltasse para ela. Diante da firmeza da negativa dele, resolveu suicidar-se. Refeita fisicamente, foi encaminhada à psicoterapia. Arrependida do mau passo que por pouco a mataria, sentia-se mais segura e esqueceria o namorado que a traíra. Já se achava mais importante que ele. Faria tudo para reorganizar a sua vida. Voltou a ser a costureira criativa e competente, retornando a atender a sua numerosa freguesia. Fez absoluta questão de ensinar a alta costura para a coautora deste livro. Tornou-se também a costureira dos seus lindos vestidos por muitos anos, enquanto moramos no Rio de Janeiro.

Em certos suicídios, em que a causa se baseia no máximo sacrifício de autorrenúncia por uma mente perturbadora, há uma oferta da vida do suicida para, no seu entender, garantir a felicidade da outra pessoa por ela amada.

Poderia estar se vingando e ao mesmo tempo dando liberdade, libertando a criatura amada dos males e entraves que lhe estaria produzindo. Sob as suas percepções confusas, abdica totalmente da sua felicidade.

Nem os filhos que ela tanto ama, servem de freio para o seu ato desvairado, louco. É importante tratar o emocional e procurar diminuir a tensão, a angústia, relaxar o psiquismo da vítima.

Uma pessoa confiável e competente deve procurar saber com profundidade a causa que poderá a qualquer momento desencadear o terrível e desvairado ato. Trabalho também para um profissional, um psicoterapeuta que cuidará de neutralizar a ideia desesperada.

A depressão, a desesperança, o sentir-se traída, muitas vezes, até pela melhor amiga, e o desejo de ir à forra, costumam passar na cabeça da candidata ao suicídio. Esta quer desafrontar-se, vingar-se de quem a traiu. O suicida tem o propósito de criar em seus algozes um sentimento de culpa. O desespero a invade. O instinto de morte vence o instinto de vida.

Acaba achando que seu ato, já que perdeu a fé em si mesma, vá destruir de roldão os outros e fazê-los sofrer. A coação no interior do candidato ao suicídio é asfixiante. Então tudo é possível!

Algumas vezes somos tomados de surpresa diante do segredo que o sofredor guarda só para si, calado, ruminando o insolúvel problema que o corrói.

Há mais suicídios na sociedade do que supomos. Mas são suicídios parciais, ou melhor, muita gente destruindo as mais belas parcelas de si mesmo. Uma autodestruição pessoal.

O maior crime contra Deus é o suicídio.

 

(Abrahão Grinberg & Bertha Grinberg - A arte de envelhecer com sabedoria)

publicado às 12:50

É uma resposta aos que chamam ao suicídio um fim de cobardes e de fracos, quando são unicamente os fortes que se matam! Sabem lá esses pseudo-fortes o que é preciso de coragem para friamente, simplesmente, dizer um adeus à vida, à vida que é um instinto de todos nós, à vida tão amada e desejada a despeito de tudo, embora esta vida seja apenas um pântano infecto e imundo!

(Florbela Espanca - Correspondência, 1916)

 

O suicídio demonstra que na vida existem males maiores do que a morte.

(Francesco Orestano

 

"anomia" - No pensamento de Émile Durkheim, é a situação

de afastamento de normas sociais compartilhadas,

que pode resultar de uma divisão alienante do

trabalho no regime capitalista, e o principal motivo

sociológico (em oposição ao individual, psicológico)
para o suicídio
(Trombley, Stephen)

 

Estado chamo eu ao lugar onde todos bebem veneno, bons e ruins: Estado, onde todos perdem a si mesmos, bons e ruins: Estado, onde o lento suicídio de todos se chama — “vida”.
(Friedrich Nietzsche  "assim falou Zaratustra")

 

 

Pensador francês que estabeleceu a sociologia como uma disciplina acadêmica.

 

000000000.jpgO suicídio é um facto social

 

Durkheim é o pai da sociologia moderna e um dos primeiros arquitetos das ciências sociais em geral, junto com Auguste Comte, Karl Marx e Max Weber. Tendo adotado a filosofia positivista de Comte, Durkheim estabeleceu a sociologia como uma disciplina acadêmica plenamente madura que, embora devesse muito à filosofia, passaria a estar separada dela. Em 1895, ele desenvolveu uma metodologia original para “fazer” sociologia, que está rigorosamente destrinchada no seu livro As regras do método sociológico; e nesse mesmo ano ele também criou em Bordeaux o primeiro departamento universitário de sociologia. Durkheim definia os fatos sociais como “fatos com características muito distintivas: eles consistem em modos de agir, pensar e sentir, externos ao indivíduo e dotados de um poder de coerção, motivo pelo qual o controlam”.
Em contraste com a tradição do idealismo alemão, que via o sujeito individual como o criador do seu mundo, Durkheim identificava os fenômenos sociais exteriores ao homem como forças formando a maior parte da sua experiência. O aspecto positivista do método de Durkheim era identificar fatos sociais, descrever as prescrições morais inerentes a eles e então estudar o efeito de transgressões contra eles. Isso significava que, para Durkheim, as raízes da sociologia estavam na ética; de fato, ele descrevia a sociologia como “uma ciência da ética”. Seu trabalho mais conhecido no século XXI, O suicídio (1897), é uma exploração do fato social que condena o suicídio, e da transgressão generalizada contra ele.
Durkheim usava uma metáfora retirada da química para elaborar sua visão da sociologia como uma ciência da ética, assim como o método positivista que ele empregava. Ele enxergava o indivíduo como alguém que pertencia a um grupo social; e grupos sociais, como compostos químicos, são mais do que apenas a soma de seus elementos constituintes. Ele usava também uma metáfora retirada da medicina.
Tendo descrito – diagnosticado, se se quiser – um fato social e a relação que o indivíduo estabelece com ele (aceitar ou transgredir as regras implícitas ou explícitas do fato social), Durkheim “prescrevia” um remédio para a doença social identificada. O comentador de Durkheim, Robert Alun Jones, observou que “Durkheim sempre concebeu as sociedades como sujeitas a condições de ‘saúde’ ou ‘doença’ moral e o sociólogo como uma espécie de ‘médico’ que determina cientificamente a condição particular de uma sociedade particular em um tempo particular e que depois prescreve o ‘remédio’ social necessário à manutenção ou recuperação do bem-estar”. (Emile Durkheim, 1986).

 

Durkheim como rabino frustrado
Nascido em Épinal, na Lorena, Durkheim estava destinado a se tornar um rabino, como seu pai, seu avô e seu bisavô. Ele foi matriculado em uma escola rabínica, mas logo se declarou agnóstico e deixou o colégio. (Apesar de rejeitar a religião, Durkheim a identificaria como um fato social importante. Dedicou grande parte do final de sua vida ao estudo da religião e de seu papel na sociedade.) Durkheim era um aluno problemático, que precisou de três tentativas para conseguir entrar na École Normale Supérieure. Quando finalmente conseguiu, em 1879, ele passou a fazer parte de uma turma que incluía o filósofo Henri Bergson e Jean Jaurès (1859-1914), que se tornaria o principal socialista da França. Mas Durkheim terminou as aulas como penúltimo colocado de sua turma e, sem perspectivas de conseguir um posto de professor universitário, deu aulas em colégio por diversos anos até voltar aos estudos na Alemanha. Lá, ele desenvolveu um gosto pelos rigores do empirismo. Seu primeiro grande trabalho, baseado em sua tese de doutorado, foi Da divisão do trabalho social (1893).
A descrição de Durkheim da divisão do trabalho trata de uma sociedade agrária para uma sociedade industrializada. Neste movimento, ele enxerga não somente um novo conceito de divisão do trabalho, mas também uma nova definição de status social baseada no mérito (em oposição a essa ideia, Marx argumentava que a divisão do trabalho em sociedades capitalistas levava à alienação, uma vez que o homem era reduzido ao status de uma máquina). Durkheim descreveu os mecanismos pelos quais as sociedades desenvolviam regulamentos morais e econômicos. Novos fatos sociais, segundo ele, surgem na forma de solidariedade social, consciência coletiva e sistemas legais projetados para lidar com a nova ordem social.

 

Anomia: suicídio e o colapso das regras sociais
Em O suicídio (1897), Durkheim levou adiante a demonstração do seu método sociológico e se baseou em sua análise da divisão do trabalho para descrever o que acontece quando há uma ruptura da ordem social (o colapso da solidariedade social, por exemplo). Ele tomou emprestado do poeta e filósofo francês Jean-Marie Guyau (1854-88) o termo anomia para descrever o sentido resultante de ausência de normas ou desenraizamento de um indivíduo, um sentido de afastamento da sociedade, de não pertencimento. O conceito de anomia é útil para descrever o que Durkheim via como as causas sociais do suicídio. A experiência de alienação que uma pessoa sente como resultado da ausência de normas pode levar ao desespero capaz de levar uma pessoa a tirar a própria vida. Os pensamentos de Durkheim sobre o suicídio são particularmente relevantes da crise econômica atual, quando grande número de pessoas do mundo desenvolvido começa a perceber que os objetivos do crescimento econômico continuado e do progresso social – para indivíduos e sociedades – não são mais realistas, o que deixa muitos deles com uma sensação de alienação, à medida que confrontam o fato de que seu futuro não será o que eles esperavam. É este sentido de deslocamento que Durkheim enfatiza ao argumentar que o suicídio é um fenômeno social (sociológico) mais do que um fenômeno pessoal (psicológico).
O que Durkheim trouxe para o estudo do suicídio – e, consequentemente, para qualquer outra investigação sociológica – foi uma análise descritiva que evitava o traço prescritivo das doutrinas religiosas e filosóficas. Embora sua abordagem descritiva não possa ser chamada de fenomenológica no sentido rigoroso estabelecido por Edmund Husserl, ela influenciou as pesquisas existencialistas e fenomenológicas de psiquiatras como Aaron Esterson (1923-99) e R. D. Laing (1927-89), que identificavam a “loucura” na ruptura entre a experiência do sujeito e as expectativas da sociedade.
Como qualquer fenômeno social na visão de mundo de Durkheim, a anomia contém um elemento moral. No último dos seus três principais trabalhos, As formas elementares da vida religiosa (1912), Durkheim estabeleceu a religião como um fato social. Ele mostrou como a crença e a prática religiosas preenchiam necessidades sociais. À medida que sociedades se tornaram mais sofisticadas, suas religiões acompanharam o movimento. Mas a industrialização trouxe consigo o tipo de fratura social que conduziu à anomia, e Durkheim observou que essa ruptura social – quebras de normas, o fenômeno da ausência de
normas – foi em parte devida ao declínio da religião como uma atividade comum que unia os grupos sociais por meio de um conjunto comum de crenças e práticas. A visão de Durkheim é oposta à de Marx, que condenava a religião como uma distração para o homem da sua realidade política e econômica. Com o tempo, no entanto, o próprio marxismo viria a se tornar uma espécie de religião secular, oferecendo aos seus adeptos um conjunto alternativo de valores, uma crença na história, um relato de como o mundo funciona e uma explicação do lugar do homem nesse mundo.
A grande realização de Durkheim foi demonstrar uma agenda e um método de pesquisa positivista que iam além da análise redutiva para tratar do que pode ser denominado o propósito do homem: por que estamos aqui, o que deveríamos fazer, aonde estamos indo? Sua contribuição foi fixar o homem em um contexto social. Mas Durkheim não apenas mediu e descreveu as forças sociais externas quantificáveis que nos moldam; ele dirigiu atenção também para os valores morais que nos orientam. É por este motivo que seu trabalho sobre o papel da religião na sociedade faz referência aos trabalhos precedentes sobre o suicídio e a divisão do trabalho. Sem a experiência compartilhada da religião, indivíduos enfrentam o perigo da anomia; e sociedades encaram a possibilidade de amplo colapso social.

 

Por conta de sua própria natureza, fatos sociais tendem a se formar fora da consciência dos indivíduos, uma vez que eles os dominam. Para percebê-los em sua qualidade de coisas, portanto, não é necessário executar uma distorção engenhosa. Deste ponto de vista, a sociologia tem vantagens significativas sobre a psicologia, que até então não foram percebidas, e isso é algo que aceleraria seu desenvolvimento. Seus fatos talvez sejam mais difíceis de serem interpretados, porque são mais complexos, mas eles são mais prontamente acessíveis. A psicologia, por outro lado, tem dificuldade não apenas em especificar seus fatos como também em compreendê-los.
(Émile Durkheim, As regras do método sociológico (1895)

 

No que diz respeito a questões sociais, nós ainda temos a mentalidade de primatas. E ainda assim, no tocante à sociologia, são muitos os nossos contemporâneos relutantes em abandonar suas ideias antiquadas, mas não porque a vida das sociedades lhes pareça obscura e misteriosa. Em vez disso, eles sentem-se tão facilmente satisfeitos com as explicações atuais que se apegam a essas ilusões repetidamente desmentidas pela experiência, simplesmente porque as questões sociais lhes parecem as coisas mais óbvias do mundo; eles não compreendem sua verdadeira obscuridade e ainda não reconheceram a necessidade de reproduzir os procedimentos meticulosos das ciências naturais de modo a dissipar essa escuridão. O mesmo estado mental é encontrado na raiz de diversas crenças religiosas que nos surpreendem por sua natureza simplista. Ciência, e não religião, ensinou aos homens que as coisas são complexas e difíceis de serem entendidas.
(Émile Durkheim, As formas elementares da vidareligiosa, 1912)

 

  (Trombley, Stephen - 50 pensadores que formaram o mundo moderno)

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publicado às 12:43

 

 

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Pouca gente em sã consciência diria que a situação atual do Brasil é perfeita. Alunos das escolas públicas estudam com professores semi-analfabetos, tirando as piores notas de Matemática do mundo.
Hospitais apodrecem sem dinheiro nem médicos, enquanto filas de doentes esperam do lado de fora, alguns morrendo e outros voltando para casa sem atendimento. Aposentados da iniciativa privada recebem uma pensão que não compra nem um cafezinho por refeição, enquanto alguns juízes aposentados recebem fortunas maiores que a renda de um presidente de multinacional. Nas ruas, a população sobrevive apavorada vinte e quatro horas por dia porque os bandidos contam com a impunidade que reina no País e com o despreparo da polícia. As estradas em frangalhos, aeroportos em estado caótico, a justiça que leva uma década para julgar uma disputa comercial, enfim, serviços públicos que não fazem jus a esse nome.
Na outra ponta dessa equação está o leão tributário mais voraz do planeta. Um governo que devora uma das proporções mais altas da riqueza do País que já se viu. Esses recursos todos são cobrados por meio de dezenas de tipos de impostos, taxas e contribuições. As regras mudam tão rápido e a cobrança é tão complicada que ninguém sabe realmente se está agindo de acordo com a lei ou não. O que quer que a pessoa faça, ela sempre estará infringindo alguma minúcia da extensa e contraditória legislação, abrindo espaço para os vendedores de facilidades. É uma montanha de dinheiro saqueada das empresas e dos trabalhadores e que, após trafegar pelas esquinas da corrupção, transforma-se em... absolutamente nada. Os desvios são tão grandes que, apesar de o Estado saquear tanta riqueza e não entregar quase nada em troca, a dívida continua crescendo, ou seja, o problema só tende a acentuar-se. Assoladas por impostos pesados, juros estratosféricos e regras que mudam do dia para a noite, as empresas brasileiras acabam ficando com altos custos, tornando os produtos e serviços muito mais caros e o desemprego muito maior.
Ou seja, uma pessoa comum que trabalha com carteira assinada entrega um terço do seu salário diretamente ao governo, sob a forma de impostos diretos. Outro terço vai embora em forma de impostos sobre os produtos que ele compra, como arroz ou TV. O restante ele gasta com serviços privados, os mesmos que o governo deveria entregar gratuitamente a ele em troca dos dois terços do seu dinheiro que foram previamente saqueados.
É esse o Brasil dos seus sonhos?

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Saindo da esteira
Assim como numa esteira de corrida, na qual se gasta tempo e energia sem sair do lugar, escapar desse círculo vicioso não é fácil, mas tampouco é impossível. Caso o Brasil queira realmente sair da armadilha em que se meteu, precisa mudar profundamente. Mas se conseguirmos fazer o que é preciso, as vantagens serão enormes.

Imagine o potencial de um país com um clima igual ao nosso, onde os produtos agrícolas crescem duas vezes mais rapidamente do que no hemisfério norte. Um lugar com belezas naturais incontestáveis e infindável potencial turístico. Um país em que o povo é alegre e criativo, com uma cultura aberta e calorosa. Um lugar cuja última guerra ocorreu há um século e meio atrás e onde as grandes catásfrofes naturais são conhecidas apenas pelas fotos de jornais. Uma mudança profunda na direção certa, mental e estrutural, pode levar o Brasil a um verdadeiro círculo virtuoso. Estamos falando de um país de crescimento econômico rápido, de melhoria de indicadores sociais, de uma educação que nos impulsione à frente de qualquer outro lugar. De um Brasil onde as regras do jogo estão claras e as oportunidades são imensas para qualquer um atingir o máximo que a sua própria capacidade permitir. Esse país pode ser daqui a vinte anos o melhor lugar do planeta para se viver. É querer demais?
Nós, autores deste texto, achamos que não. Esse é o Brasil dos nossos sonhos.

 

(ALEXANDRE OSTROWIECKI,RENATO FEDER - CARREGANDO O ELEFANTE)

00000000000000.jpgVamos tomar vergonha na cara

 

publicado às 13:40


Criador alemão da hermenêutica  moderna, que ele mostrou ter 

relevância para além da estética e  da filosofia, chegando à política e ao  direito.

 

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 Um dos filósofos mais prolíficos do século XX, Gadamer tomou a ideia alemã de hermenêutica (o estudo do significado de textos, normalmente bíblicos) e a transformou em uma ferramenta sofisticada para a interpretação de “textos”, entendidos mais amplamente, capaz de incluir – na esteira do estruturalismo e pósestruturalismo – qualquer coisa ou fenômeno que o pesquisador deseje investigar. Para além do texto, Gadamer via a postura hermenêutica como decisivamente filosófica; para ele, hermenêutica é filosofia. Seu principal trabalho é Verdade e método (1960), que continua atraindo estudantes atualmente, sobretudo porque enxerga a filosofia não apenas como uma disciplina acadêmica, mas como um estudo que aborda o todo da experiência.

Para apreciar a obra de Gadamer, precisamos conhecer Wilhelm Dilthey (1833-1911), filósofo que estabelece uma ligação vital entre Kant e a hermenêutica atual, assim como o trabalho de Friedrich Schleiermacher (1768-1834). Dilthey teve atuação importante na transformação da hermenêutica, ajudando a levá-la de suas raízes históricas na exegese bíblica a um método para leitura de textos no contexto social e histórico em que são criados. Ele é mais famoso pelo conceito do círculo hermenêutico, um processo interpretativo que dá conta da relação entre as partes e o todo de um texto, com um sempre se referindo ao outro em um movimento circular. A contribuição de Schleiermacher para a hermenêutica moderna foi considerar obras de arte e literatura como sujeitos legítimos do estudo filosófico. A exegese bíblica constituía somente um uso da hermenêutica. Schleiermacher enxergava a hermenêutica como uma ferramenta interpretativa que podia ser aplicada a todos os textos. Com isto, ele estabeleceu um precedente que abriu caminho não apenas para Dilthey, mas também para Heidegger e pós-estruturalistas como Foucault e Derrida.

 

O “Eu” autoral

Diferentemente dos pós-estruturalistas que surgiram um século depois, Dilthey “acreditava” no autor (os pós-estruturalistas diminuiriam a importância do papel do autor, enxergando os textos como o resultado de convenções sociais, históricas, linguísticas e políticas). Dilthey incluía no círculo hermenêutico a biografia do autor, as circunstâncias de sua vida – nascimento, educação, profissão, experiências de vida em geral – assim como o texto em si, considerado a partir de uma variedade de pontos de vista. Todas essas partes se combinavam para formar um todo que revelaria novas camadas de significado, à medida que o tempo passasse e as circunstâncias do texto – incluindo o leitor – fossem alteradas. Dilthey via a vida como um continuum e, o círculo hermenêutico, como uma vívida e pulsante força da história, reinterpretando a si mesmo na medida em que se move adiante no tempo.

A visão de Dilthey das mudanças e do fluxo históricos influenciou Heidegger e sua ontologia do Dasein, ou ser humano. O principal trabalho histórico de Dilthey é A construção do mundo histórico nas ciências humanas (1910), que traz para a história a análise estrutural, desenvolvida em sua psicologia, sobre como os seres humanos se organizam. Dilthey vai além da preocupação com o indivíduo e os grupos para abordar a compreensão histórica universal, levando em conta partes tão pequenas quanto a “biografia” individual e tão grandes quanto uma nação. Essas partes, pequenas e grandes, servem informações umas às outras em um entendimento do todo sempre mais completo. O comportamento de indivíduos e dos grupos formados por eles era importante para Dilthey porque ele tinha por objetivo encontrar nele uma definição de objetividade para as ciências sociais. Em O surgimento da hermenêutica, Dilthey escreveu: “Ação pressupõe sempre a compreensão de outras pessoas; grande parte da nossa felicidade como seres humanos vem de sermos capazes de sentir os estados de mente dos outros; toda a ciência da filologia e da história é baseada na pressuposição de que tal nova compreensão do que é singular pode ser levada à objetividade”. Dilthey levou a um uso mais comum o conceito de “visão de mundo” – ou seja, a tentativa da ciência ou da filosofia de propor uma visão unificada da vida. Ele considerava que as filosofias tinham especial relevância para suas épocas.

 

Gadamer e os anos de guerra.

A carreira de Gadamer começou sob circunstâncias probatórias. Ele foi um dos alunos mais ilustres de Martin Heidegger, e, diferentemente dos também alunos Herbert Marcuse e Hannah Arendt, ele não era judeu e, portanto, não foi forçado a deixar a Alemanha nazista; mas não se filiou ao partido nazista, como seu mentor. No entanto, sua assinatura apareceu junto às de outros acadêmicos em um documento de 1933 em apoio a Hitler e à sua liderança. Mais tarde, Gadamer declarou que era um “inocente político” e que não sabia o que estava assinando. Dado, entretanto, que sua obra está baseada em análises detalhadas de linguagem e significado, essa desculpa parece muito pouco convincente.

Para Gadamer, existir é usar a linguagem, é estar na linguagem. Ele foi nomeado professor em Leipzig em 1938 e, após a Segunda Guerra Mundial, assumiu a reitoria da universidade. Sob as ordens do governo comunista, Gadamer organizou a reconstrução da universidade. Em 1947, ele retornou para a Alemanha Ocidental, indo trabalhar na Universidade de Frankfurt. E em 1949, sucedeu a Karl Jaspers como professor em Heidelberg.

 

Finitude

Apesar de influenciado pelo método fenomenológico de Husserl de proceder sem preconceitos e de considerar a hermenêutica um empreendimento descritivo, e não prescritivo, Gadamer sabia que não podemos suspender totalmente nossos preconceitos, que trazemos sempre, por conta de nossa história, alguns pré-julgamentos. Aqui, o teórico hermenêutico francês, Paul Ricoeur, que compartilha com Gadamer a linhagem intelectual descendente de Husserl, que passa por Heidegger e Jaspers, marca o ponto inicial da pesquisa com “a humildade de reconhecer as condições históricas às quais todo o entendimento humano está compreendido na região da finitude” (Hermenêutica e as ciências humanas, 1981). Não é apenas o pesquisador que está “compreendido na região da finitude”; o texto também traz consigo uma história: feito por tal pessoa em tal lugar e em tal momento.

 

Hermenêutica, história e significado

Hermenêutica clássica, do modo como é praticada por Schleiermacher e (com modificações) Dilthey era executada com base na suposição de que pode haver uma interpretação de textos “correta” ou “objetiva”. Os limites que Gadamer e Ricoeur traçam para a ontologia – o reconhecimento do preconceito e a compreensão de que não pode haver conhecimento final – são, na verdade, libertadores. Mostram que toda a compreensão humana ocorre em um contexto histórico e que o contexto temporal afeta a ontologia daquele que interpreta e também do texto. Este aspecto temporal do entendimento hermenêutico vem, obviamente, do Heidegger de Ser e tempo (1927) e, em menor grau, de Heráclito (535-475 a.C.):

De todas as coisas, um, e de um, todas as coisas...Nada vejo senão Tornar-se. Não vos deixeis iludir! É culpa da vossa visão limitada, e não da essência das coisas, se acreditais ver terra firme no mar do Tornar-se e do Perecer. Precisais de nomes para as coisas como se elas tivessem duração rígida, mas o próprio rio em que vos banhais pela segunda vez já não é o mesmo em que entrastes antes. (Fragmento 41)

 

O entendimento de Gadamer da história e do significado é expresso no conceito da “fusão de horizontes”, segundo o qual “novo e velho estão sempre se combinando em algo de valor vívido”. A fusão de horizontes dá à hermenêutica de Gadamer sua qualidade de perpétuo frescor, uma vez que os significados são revisados a cada pesquisa. Sua visão da história se opõe ao historicismo, que pretende fixar o texto como fato imutável; Gadamer, em vez disso, usa a história para criar uma consciência “historicamente efetuada”. “Nossa necessidade de nos tornarmos conscientes da história efetiva é urgente”, escreve ele em Verdade e método, “porque isso é necessário para a consciência científica”. A consciência historicamente efetuada é fundamental para a hermenêutica, uma vez que “ela é um elemento no ato de entender a si mesma”; na prática, ela é utilizada para ajudar a “encontrar as perguntas certas a serem feitas” (grifo de Gadamer).

 

O valor da intersubjetividade

Gadamer, como o psicanalista francês Jacques Lacan, caracteriza o sujeito como “descentrado”. Nós nos encontramos “fora” de nós mesmos em um mundo de significado gerado pela linguagem; mas, uma vez que todos os sujeitos se encontram nessa posição, nossa experiência e nosso conhecimento são intersubjetivos. O autor dá vida a um texto por meio da linguagem, mas, uma vez publicado, o texto já não é definido por intenção autoral. Agora ele pertence ao tempo, à história – à interpretação. Isso não significa, no entanto, que o texto e seu significado estejam perdidos em uma bruma de relativismo. Ao mesmo tempo em que Gadamer afirma que não existe uma única leitura “correta”, ele deixa claro que não existe um número ilimitado de leituras corretas.

Mesmo que se aceitasse, no estudo de uma disciplina “não prática”, como a poesia, a espécie de relativismo estético que Gadamer rejeitava, tal postura nunca poderia ser aceita no direito ou na jurisprudência, onde a lei precisa ser reconhecida pelo que é e acolhida criteriosamente. Ou seja, para Gadamer, interpretações de textos tornam-se significativas quando são racionais e coerentes, e quando têm valor intersubjetivo. Não se pode imaginar o código legal da Alemanha estando sujeito a interpretações arbitrárias e subjetivas; assim como qualquer outro código legal ou conjunto de regras, ele depende da concordância de membros de uma comunidade.

O método de Gadamer para encontrar verdades às quais todos poderíamos aderir é o diálogo. Seguindo Platão (428/7-348/7 a.C.), ele promove uma versão do diálogo socrático que estimula a livre troca e o desenvolvimento de visões de modo a se encontrar interpretações de textos adequadas por meio de um processo hermenêutico que resulta em autoconhecimento e autotransformação, e na descoberta das verdades intersubjetivas de um mundo compartilhado.


A compreensão e a interpretação de textos não é meramente uma preocupação da ciência, mas pertence, obviamente, à experiência humana do mundo em geral. (Hans-Georg Gadamer, Verdade e método (1960))


[Gadamer] tem exemplificado, tanto em sua pessoa quanto em seus textos, as dimensões morais do projeto hermenêutico. Ele foi, durante a maior parte da nossa época, o phronemos [sabedoria prática] da hermenêutica, o praticante exemplar das virtudes da hermenêutica, tanto intelectuais quanto morais. Pode ser que no futuro outros sejam capazes de levar adiante a empreitada hermenêutica, mas, se assim for, isto acontecerá somente porque eles puderam primeiro aprender o que ensinou Gadamer. (Alasdair MacIntyre, On Not Having the Last Word: Thoughts On Our Debts to Gadamer [Sobre não ter a última palavra: pensamentos sobre nossas dívidas com Gadamer] (2002))


A hermenêutica é a teoria das operações do entendimento em sua relação com a interpretação de textos. (Paul Ricoeur, Hermenêutica e as ciências humanas (1981))

 

  (Trombley, Stephen - 50 pensadores que formaram o mundo moderno)

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publicado às 20:13


Tapando o Sol com a peneira

por Thynus, em 06.04.15

UM POVO CULTURALMENTE DOMINADO, COM AUTO-ESTIMA BAIXA,
ACREDITA QUE “SER BOM É SER COMO O DOMINADOR”. NÃO
PERCEBE QUE OS MALES QUE O AFLIGEM SÃO CONSEQUÊNCIA DESSA
DOMINAÇÃO E NÃO DE SUA PSEUDO-INFERIORIDADE. RESISTIR AO
COLONIALISMO E CONSTRUIR UMA IDENTIDADE CULTURAL PRÓPRIA
E POSITIVA É CONDIÇÃO INDISPENSÁVEL PARA O SEU
DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL.

 

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Como qualquer outro povo, o brasileiro também tem sua maneira característica de ser e viver, seu modo original de resolver problemas, estabelecer regras de convivência, transmitir valores, exprimir desejos etc. Tem, enfim, sua própria cultura: a cultura brasileira.
É ela que faz com que reconheçamos um outro brasileiro em qualquer lugar e brasileiros nos sintamos, mesmo entre pessoas ou em locais que não o são. Da mesma forma, por causa dessa cultura, constatamos facilmente quem é estrangeiro em nosso meio. Em outras palavras, temos uma identidade cultural.
A cultura não é, porém, uma coisa imóvel, acabada. Como ela se faz na prática coletiva, está eternamente se transformando e criando novas possibilidades de ser.
Quando falamos em cultura brasileira, não estamos nos limitando a pensar em coisas como samba, carnaval, feijoada, caipirinha e “jeitinho” para resolver problemas, pois são aspectos usados muito mais para compor sua caricatura, ou seja, a cultura brasileira “tipo exportação”, para consumo dos turistas.

Não estamos nos referindo também a algum modelo cristalizado, produzido pela síntese do encontro do português, africano e índio em nosso passado, mesmo porque esse encontro se produziu em momentos, espaços e situações diferentes durante o processo em que se formou nossa nação.
Além disso, nos séculos XIX e XX, recebemos influências dos franceses e ingleses, dos imigrantes europeus, árabes e japoneses e, a partir da Segunda Guerra Mundial, dos “enlatados” norte-americanos. É natural que desses encontros e das convivências, resistências e dominações deles decorrentes tenham surgido formas de expressão cultural que interferiram no significado e no sentimento de brasilidade.
Por ser o Brasil também uma “terra de contrastes” não temos, igualmente, uma cultura homogênea em todo o território nacional.
Por isso, como diz Renato Silveira em seu artigo “Uma arte genuína nacional e popular”, não devemos, com o objetivo de nos defender da cultura enlatada estrangeira, levar a nossa própria cultura a um enlatamento geral, partindo de uma visão conservadora e de um modelo-padrão de nossa nacionalidade.
Somos um povo colonizado e neocolonizado e evidentemente expressamos isso, embora o façamos de maneiras diferentes, segundo nossa própria postura diante do fato.
O processo de dominação pode despertar um sentimento de inferioridade e autodesprezo e, consequentemente, o desejo de ser diferente do que somos, porque acreditamos que “ser bom é parecer com o invasor”.
Um povo que resiste ao domínio, ao contrário, reflete sobre ele, problematiza e questiona o processo de invasão, a ele contrapondo uma identidade cultural positiva que lhe propicia o reconhecimento dos seus verdadeiros interesses, potencialidades e valores nacionais. Esse povo se reconhece então como “o outro”, ele mesmo, diferente, mas não inferior ao dominador.

A resistência ao colonialismo implica a não aceitação da imposição de valores estrangeiros em detrimento dos nacionais, mas não deve jamais estimular atitudes de recusa diante de outras influências culturais. Tanto mais rica é uma cultura quanto mais contatos teve e mais influências recebeu. Se cada povo fosse inventar e descobrir por si mesmo todos os elementos de que se utiliza, necessitaria para isso de um tempo muito maior do que o representado pela história da humanidade. É por isso que as denúncias feitas neste livro se dirigiram não à influência mas à hegemonia e, em algumas situações, ao exclusivismo do modelo cultural norte-americano e aos seus objetivos.
Ultimamente tem-se falado muito no surgimento de uma civilização mundial como consequência da internacionalização da economia e do desenvolvimento tecnológico nos campos da comunicação e da informática. Estaríamos, pois, assistindo à emergência de uma cultura planetária e de um novo personagem histórico: o cidadão do mundo.
Da maneira como se fala, esse fato por si só já invalidaria qualquer tentativa de preservação de identidades nacionais. Essa civilização entretanto não seria mais do que a americanização da cultura em âmbito internacional e a globalização, mais uma etapa da invasão dos padrões e valores do american way of life em todos os cantos do planeta, ainda que efetivada por produtos made in outros lugares que não os USA, como, por exemplo, Taiwan, Hong Kong, Coreia e Japão, só para citar alguns.
Essa identificação da “nova cultura ou civilização mundial” com a cultura norte-americana não esconde certa tendenciosidade ao considerar essa última como a mais “cumulativa e rica”, legitimando-se assim sua hegemonia sobre as demais. Está ligada também a uma concepção linear e evolucionista da história,
segundo a qual todos os povos deveriam caminhar em direção a um grau mais elevado de desenvolvimento, seguindo as pegadas dos países capitalistas centrais.
Na realidade, porém, as sociedades caminham em sentidos, ritmos e com objetivos próprios e diferentes, nem superiores nem inferiores umas às outras. Segundo Claude Lévi-Strauss em Raça e história, vistas sob outros aspectos que não o do avanço tecnológico, por exemplo, algumas culturas, por nós consideradas estagnadas, se revelariam mais bem equipadas até do que as do chamado mundo ocidental. Por exemplo, a dos esquimós e a dos beduínos, na aptidão para vencer meios geográficos hostis; as orientais, como a da Índia e do Tibete, com relação aos sistemas filosófico e religioso, e no conhecimento das relações entre corpo e mente.
Impressionados com o domínio da cultura norte-americana sobre diversos países, os adeptos da “civilização mundial” parecem se esquecer da existência de um grande número de outros povos que não sofreram, ou estão resisitindo até hoje ou, ainda, que já se libertaram dessa dominação.
Além disso, a realidade dos fatos está constantemente a desmentir a necessidade de se passar sempre por determinados estágios culturais e a possibilidade de se chegar por imitação ao estágio alcançado por uma determinada nação. No caso brasileiro, em particular, a história tem mostrado que a adoção do modelo norte-americano nos tem distanciado cada vez mais do modelo de desenvolvimento econômico acompanhado de desenvolvimento social e os fatos indicam, ao contrário, que o que é bom para os USA muitas vezes não tem sido utilizado a nosso favor e, sim, contra nós.
Por fim, vejamos como nós, brasileiros, com todo esse passado de “colônia cultural”, chegamos ao século XXI.

Enquanto uma parcela insignificante da população tem acesso aos bens importados ou aqui produzidos pelo capitalismo internacional, milhões de brasileiros têm vivido em absoluta ou quase absoluta miséria, recebendo, no entanto, os mesmos estímulos desencadeadores de desejos da propaganda característica da sociedade de consumo.
O que se encontra à venda no mercado interno é abocanhado em sua maior parte pela chamada classe A; a pequena parcela da população composta dos brasileiros mais ricos (5%) concentra em suas mãos uma renda quase equivalente à da imensa parcela formada pelos brasileiros mais pobres. O salário mínimo é sempre menor do que o mínimo necessário para uma vida digna, e o desemprego é a maior ameaça à segurança e paz dos trabalhadores.
Milhões de crianças e adolescentes carentes vivem em pleno abandono nas nossas principais cidades e, quando cometem alguma infração, são confinados em instituições que deveriam protegê-los mas, ao contrário, só lhes provocam mais amargura, frustração e explosões de violência. Ainda temos entre nós milhões de analfabetos, alguns na faixa etária em que deveriam estar frequentando o ensino básico.
Nossos dados estatísticos referentes à subnutrição, mortalidade infantil, falta de acompanhamento das gestantes durante a gravidez e o parto e às condições sanitárias dos bairros onde vivem as populações mais pobres nos colocam entre os países com menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).
Chegamos ao final do século XX ocupando o 79.º lugar, numa lista de 174. Vínhamos atrás do Chile, Uruguai, Argentina, Cuba, Equador, Venezuela, Cazaquistão, Suriname e Arábia Saudita.
Como o escritor Eduardo Galeano afirmou em As veias abertas da América Latina, nosso subdesenvolvimento não seria uma etapa que precede o desenvolvimento, mas consequência
da ação exercida pelas potências imperialistas e condição mesma da manutenção de suas riquezas. Segundo ele informa, em 1968, antes, portanto, do “milagre econômico” que acabaria por entregar o Brasil às multinacionais, a desnacionalização de nossa economia chegava a tal ponto que os estrangeiros, dos quais metade eram norte-americanos, detinham 82% dos nossos transportes marítimos, 67% dos aéreos externos, 100% da produção de veículos motorizados e de pneumáticos, 80% da indústria farmacêutica, 50% da indústria química, 59% da produção de máquinas, 90% da produção de cimento etc.
A transfusão de capitais externos para nossa economia era, contudo, cinco vezes menor do que a “hemorragia” causada pela remessa de lucros, juros, pagamento de licenças, assistência técnica etc. às matrizes das multinacionais.
A partir desse processo sempre crescente de descapitalização, o Brasil se veria obrigado a apelar constantemente para organismos financeiros internacionais, controlados em grande parte pelos USA, tais como FMI, BID, AIO, Eximbank etc., que imporiam ao Brasil, como condição para o empréstimo, a política de arrocho salarial e de desvalorização da moeda, a não destinação dos créditos à produção de artigos que concorram com os norte-americanos ou que sejam vendidos a países cuja economia os USA desejam boicotar, além de orientarem esses recursos segundo interesses diretos desse país.
Assim, grande parte desses empréstimos tem sido aplicada nas subsidiárias das multinacionais, em obras de infra-estrutura que favoreçam a sua instalação e a circulação de suas mercadorias, ou no financiamento de compras de produtos norteamericanos.
No que se refere à “transferência de tecnologia”, quando importamos know-how (conhecimento especial) estamos simplesmente obtendo uma licença ou autorização de uso da parte daquele que, na verdade, continua sendo o único detentor do saber tecnológico ou científico. Tanto é que no caso de introduzirmos alguns aperfeiçoamentos a esse saber, eles passam a ser propriedade do licenciador (exportador).
Os contratos de “transferência” em geral estabelecem não só um preço fixo pela licença concedida como também uma porcentagem sobre a venda dos produtos decorrentes da sua utilização e ainda a participação acionária do exportador no empreendimento. Não é raro que sejam impostas restrições de vendas a determinadas regiões e estabelecidos compromissos de compra de matéria-prima e componentes do licenciador.
É bom relembrar que muito da tecnologia exportada comumente já está superada no país de origem, embora seus preços de venda sejam sempre muito atuais.
Países desenvolvidos também importam know-how, mas gastam muito menos nisso do que investem em desenvolvimento de tecnologia nacional. Na América Latina, porém, esses investimentos são muitas vezes menores do que nos USA, por exemplo.
Condições bastante desiguais caracterizam também as relações comerciais do Brasil com os norte-americanos. O que importamos custa sempre mais e o que exportamos sempre menos do que os preços do mercado internacional, e, enquanto damos aos produtos dos USA tratamento preferencial em nossas alfândegas, os nossos encontram barreira naquele país.
Não é nada difícil perceber a ligação entre nossa miséria e a associação de interesses da nossa classe dominante com o imperialismo norte-americano. É a seu serviço que estão os enlatados culturais consumidos por nós e os meios de comunicação de massa que os veiculam e que ocultam informações que possam colocar em questão a validade do sistema capitalista e revelar os esquemas de dominação do imperialismo.
Por isso, não é raro que no Brasil se atribua a pobreza à corrupção política, à má escolha dos governantes, ao conformismo da população e a uma suposta incompetência do brasileiro para gerir o destino da nação. Na verdade, o que é mera consequência ou agravante passa a ser visto como causa dos problemas e desigualdades sociais.
Conforme dados apresentados pelo historiador Chico Alencar, em 1999, no Brasil havia apenas 4 milhões de internautas, ao mesmo tempo que, em média, 90 milhões de brasileiros assistiam à TV diariamente, menos de 20 milhões tinham o costume de pelo menos folhear jornais e menos de 10 milhões o hábito de ler livros sem ser por obrigação. Enquanto nos USA eram produzidos anualmente 11 livros per capita, a média em nosso país era de 2,4, incluindo nesse total os livros didáticos.
Nessas condições, evidentemente fica muito difícil desenvolver a consciência de que temos de defender o que é nosso. Contudo, e felizmente, difícil não significa impossível.

 

(Júlia Falivene Alves - A Invasão Cultural Norte-Americana)

00000001.jpg BRASIL, HAITI E AS DESGRAÇAS QUE SEMPRE AJUDAM ALGUÉM

 

publicado às 12:44

Os piores crimes dizem respeito à
corrupção, ao colarinho branco, a uma destruição do tecido social promovida
discreta e eficazmente. Os crimes dos pobres têm maior visibilidade
e são bem explorados pela mídia. Mas a corrupção, o conúbio
entre a administração pública e a riqueza privada, causa maior dano à
sociedade. Gera mortes, ainda que os criminosos não apertem diretamente o gatilho
(Renato Janine Ribeiro - A Democracia)
 

"Quando você perceber que, para produzir, precisa obter a autorização de quem não produz nada; quando comprovar que o dinheiro flui para quem negocia não com bens, mas com favores; quando perceber que muitos ficam ricos pelo suborno e por influência, mais que pelo trabalho, e que as leis não nos protegem deles, mas, pelo contrário, são eles que estão protegidos de você; quando perceber que a corrupção é recompensada, e a honestidade se converte em auto-sacrifício; então poderá afirmar, sem temor de errar, que sua sociedade está condenada".
Ayn Rand  
 
Como sabemos, a corrupção é um dos fenômenos mais perigosos para uma nação. Os efeitos econômicos são devastadores, à medida que o custo das empresas sobe, investimentos despencam, as pessoas começam a perder a confiança nas instituições do País e a democracia começa a ser ameaçada. Não é à toa que os países no topo do ranking da transparência internacional, como Finlândia e Singapura, estão entre os mais ricos, enquanto as nações mais corruptas do planeta, como Togo e Gana estão entre as mais pobres. A correlação entre corrupção e subdesenvolvimento é fortíssima. 
ALEXANDRE OSTROWIECKI, RENATO FEDER
 
 
Qual a sua ideia de corrupção? É quase certo que você fale em desvio, por um administrador desonesto, do dinheiro público. É a ideia que se firmou hoje em dia. Mas, antes disso, a corrupção era termo mais abrangente, designando a degradação dos costumes em geral.
 
Como a corrupção veio a se confinar no furto do bem comum? Talvez seja porque, numa sociedade capitalista, o bem e o mal, a legalidade e o crime acabam referidos à propriedade. Por analogia com a propriedade privada, o bem comum é entendido como propriedade coletiva — e até como bem condominial, aquele do qual cada um tem uma parcela, uma cota, uma ação.
 
Mas o bem comum é diferente, por natureza, do bem privado. No estatuto de uma sociedade comercial, é obrigatório incluir o destino a dar aos bens, caso ela se dissolva. Se constituo uma firma com um sócio, caso a fechemos repartiremos os bens que pertencem a ela. Mas isso é impossível quando se trata da coisa pública. Há certos “bens” que só ela produz e que não podem ser divididos: virtudes, direitos e uma socialização que não só respeita o outro como enriquece, humanamente, a nós mesmos.
 
Pensar o mau político como corrupto e, portanto, como ladrão simplifica demais as coisas. E sinal de que não se entende o que é a vida em sociedade. O corrupto não furta apenas: ao desviar dinheiro, ele mata gente. Mais que isso, ele elimina a confiança de um no outro, que talvez seja o maior bem público. A indignação hoje tão difundida com a corrupção, no Brasil, tem esse vício enorme: reduzindo tudo a roubo (do “nosso dinheiro”), a mídia ignora — e faz ignorar — o que é a confiança, o que é o elo social, o que é a vida republicana.
 
 

Marchas contra corrupção

 
UM TEMA REPUBLICANO
 
Pode haver corrupção em outros regimes, mas sem esse nome ou sem os perigos que traz para a república. Lembremos a tipologia de Montesquieu: há três regimes, monarquia, república e despotismo. O despotismo é um fantasma; reside no Oriente; é a grande ameaça à política, porque nele tudo é comandado pelo desejo. Os súditos do déspota desejam muito, porque, com os nervos excitados, são sensíveis a toda impressão externa. Daí que sejam lúbricos, luxuriosos, imediatistas.
 
O império da lei é impossível sob o calor. Não havendo autodisciplina, só pela irrestrita repressão externa se dá o controle social. Para conter o desejo sexual das mulheres, é preciso trancá-las num harém e castrar os homens que as vigiam. No calor, governar é reprimir.
 
O curioso é que nesse regime — mais uma caricatura que um retrato fiel dos sultanatos orientais — não há o tema da corrupção. Como se corromperia um regime cuja essência já é a degradação (a corrupção) do ser humano? Mesmo que os ministros saqueiem os cofres, não existe, no despotismo, uma regra da honestidade, uma medida do equilíbrio, um padrão da decência. Sem regra, medida ou grau, não há como falar em desregramento, em desmedida, em degradação. A corrupção só cabe quando o regime social e político valoriza o homem. Não é o caso do despotismo.
 
Será o da monarquia? Nela, o princípio é a honra, e portanto uma valorização está presente. O nobre preza mais a honra que a própria vida. E isso o que limita o arbítrio do soberano. Mas há dois pontos a assinalar. Primeiro, poucos têm honra — só os grandes. Segundo, a monarquia é uma hábil construção para que de um princípio filosoficamente falso — a desigualdade natural entre os homens - decorram resultados socialmente positivos. A engenharia política aqui faz que o mal produza o bem.
 
O preconceito é valorizado na monarquia. Dele resulta uma sociedade que, se respeita a lei, não é pela repressão externa, nem pela autodisciplina ou pela convicção de que é justo acatá-la. Em suma, na monarquia há um uso sábio daquilo que, em linguagem republicana, seria corrupção: ela dá bons frutos. Há privilégios, há desigualdade, há apropriação privada do que seria o bem público. Mas isso é da essência do regime, e é usado por ele para evitar males piores, que estariam no arbítrio do rei, tornado déspota. E por isso não é correto falar, aqui, em corrupção.
 
Corrupção só pode haver, como nome, num regime que a vê como negativa, como má - num regime cuja existência é diretamente ameaçada por ela. E a república. Seus padrões são altos. Nela, o bem pessoal é requisito para produzir o bem social. Individualmente, tenho de agir bem. Só quem atinge esse nível de conduta é cidadão, na república. Ou, inversamente, apenas dos cidadãos se pede esse patamar de comportamento. Não se exige isso das mulheres, escravos, estrangeiros e de todos os que terão uma cidadania reduzida ou negada. Em outras palavras, a república é o regime da ética na política.
 
 
 
A CORRUPÇÃO ANTIGA
 
Há dois tipos de corrupção, na república, conforme ela seja antiga ou moderna. Na república romana, falava-se em corrupção dos costumes. O cidadão romano é o pater famílias. O nome pai de família não quer dizer que ele tenha filhos: seu significado é político e não biológico. Ele é o chefe da família, o varão que nela manda. Se um menino perder o pai e o avô, pode ser pater ainda bebê. Será “pai” de sua mãe, avó, tios e irmãos.
 
O pater manda na casa. Costuma-se dizer que a lei romana lhe conferia direito a punir e até matar as mulheres a ele subordinadas, mesmo a mãe, a esposa, as irmãs. Não é bem isso. E pior. Nenhuma lei lhe dá esse direito, simplesmente porque o membro da cidade é ele, e não as pessoas suas subordinadas. Elas não são cidadãs, mal têm identidade pública. Punir quem pertence a sua família é direito privado do pater, e não público.
 
O eixo do controle que o pater exerce sobre os seus passa pela moral. Um homem que não controle as mulheres que dele dependem é infame e será punido pelos magistrados que cuidam da moral. Essa moral não é apenas sexual (a vitoriana será exagerada e centralmente sexual), mas em parte o é. Discrição, autocontrole, contenção são alguns de seus termos principais.
 
É talvez em Roma que se elabora, ou se aprimora, um traço fundamental das sociedades mediterrânicas, que ainda perdura em alguma medida: a ideia de que a mulher não tem honra própria, mas porta a honra — ou desonra - do homem seu senhor. Violar ou desrespeitar uma mulher se torna assim a melhor via para infamar seu marido, irmão ou pai. Quem perde a honra não é ela, são eles.{Sobre esse tema, ver R. Janine Ribeiro, A Etiqueta no Antigo Regime (São Paulo: Moderna, 1999).} Daí que, ao se vingarem, eles às vezes matam também a mulher que — mesmo se foi violentada — serviu de veículo para eles serem desonrados.
 
Portanto, na república antiga, o centro da corrupção são os costumes. É preciso as pessoas serem decentes, para que haja república. Nisso se inclui a contenção sexual, mas sobretudo a capacidade de fazer passar o bem comum à frente do pessoal. Evoquemos Múcio Cévola, que - estando Roma cercada - vai ao acampamento dos inimigos matar o general deles. Erra e é preso. Vão executá-lo. Mas ele queima o próprio braço numa chama, sem um gemido sequer de dor, dizendo que assim o castiga pelo fracasso de seu intento. Horrorizados, apavorados diante de gente tão resoluta, os inimigos debandam.
 
Não há prova dessa história, que talvez não passe de lenda, mas o importante é que ela educou gerações de romanos na convicção de que o fim público passa à frente de qualquer elemento particular. Como escravos, mulheres e estrangeiros não sentem assim, é óbvio que não terão a dignidade de cidadão.
 
Contrastemos a coragem de Múcio Cévola com a dos exércitos orientais, descritos por Montesquieu nas Cartas Persas (lembrando sempre que ele exagera em suas referências ao mundo islâmico).{Montesquieu, Cartas Persas (São Paulo: Paulicéia, 1991, trad. Renato Janine Ribeiro).} Os soldados do sultão se batem até a morte, mas — diz ele, na carta 89 — sua valentia não é a de quem preza a si próprio, e sim a de quem se despreza. E medo (ao sultão) tornado coragem (diante do inimigo). Não é o caso do romano. A cidade é o que o realiza. E o que dá sentido à sua vida.
 
Daí, finalmente, que na república antiga a educação seja fundamental. Ninguém age — naturalmente — como Múcio. Pela natureza estamos mais perto da conduta feminina. As mulheres são os seres mais naturais. Querem satisfazer seus desejos. Desejam enfeitarse, ter prazer. Precisam ser contidas — a fim de contermos nossa tendência natural a ser como elas. A educação do cidadão será permanente, pois em última análise pode fracassar. Não é uma educação como a moderna, que desde o Emílio de Rousseau (Emile, ou De l’éducation, 1762) acredita em transformar o ser humano em algo melhor e estável. A educação do cidadão antigo é interminável, porque não há como estabilizar seu produto. O homem pode — sempre — decair e corromper-se.
 
 
 
A LIBERDADE PESSOAL
 
A corrupção moderna é outra. É verdade que, quando a França institui sua Primeira República, durante a Revolução, muitos sonham com Roma, mais talvez que com Atenas. Mas isso não dura. E já os Estados Unidos, ou antes deles a Inglaterra monárquica, mas constitucional, haviam-se aberto para uma república de exigências aliviadas — como veremos com Mandeville (no capítulo 6).
 
Benjamin Constant (1767-1830), político liberal franco-suíço de tanto impacto no século 19 que um re-publicano brasileiro foi batizado com seu nome, criticou aqueles, como Rousseau, que davam tal importância à Antiguidade que não conseguiam ver as reais características dos novos tempos. Esse foi, disse, o erro dos revolucionários que quiseram restaurar a sociedade antiga, na qual a coletividade era tudo e o indivíduo, nada.
 
Para os antigos — explica Constant — a liberdade importante era a da pólis grega, da civitas romana. O cidadão aceitava sacrificar-lhe tudo. Mas nos tempos modernos a liberdade que conta é a do indivíduo, que não admite ser oprimido pelo coletivo.{Benjamin Constant, A Liberdade dos Antigos Comparada à dos Modernos (1819). Em: Filosofia Política , n. 2, 1985.} A coletividade para nós é um peso, um fardo. O convívio político e mesmo social se tornou custoso. Ampliou-se enormemente a vida privada, como área de produção econômica, como tempo de lazer e como espaço em que escolho os valores e fins mais preciosos de minha vida.
 
Disso resultam duas coisas. Primeiro, aumenta incrivelmente nossa liberdade — insistindo: como indivíduos, como pessoas. Escolho minha profissão, minha religião, meu amor. Cada vez preciso dar menos satisfação disso. Mas, se isso passa a constituir minha liberdade, é porque se esvazia o alcance social das escolhas. Se antes do século 17 tantas sociedades puniam severamente quem adotava uma religião distinta da dominante, era porque passava pela religião o elo social. Quando um budista se abstém de carne, um muçulmano de vinho, um judeu de porco, ele dá à sua religião um alcance bem maior do que no mundo leigo que a modernidade cristã construiu.
 
O que significa o casamento se tornar escolha pessoal? A justificação romântica é que assim escolho um cônjuge com o coração. Mas quer isso dizer que eu seja mais feliz? Não é óbvio. O casamento como contrato entre famílias tinha menor sentido sexual e sentimental, mas seu alcance social fazia dele um espaço de maior satisfação pública. Modernamente, estamos condenados a buscar a realização, a felicidade, no plano privado, quase íntimo. Perdemos a dimensão pública e sofisticamos a particular, a pessoal. Não é uma crítica; é uma constatação. Houve ganhos, mas também custos, uns e outros enormes.
 
A segunda consequência da modernidade é, assim, a redução do espaço público. Tornou-se exíguo. Os costumes passaram, de sociais ou grupais, a individuais. Surgiu a vida psíquica como campo cada vez maior de indagação, de perplexidade, de escolha. Ora, isso torna praticamente absurdo pensar em costumes como fiadores da república. Quando o valor básico é o da realização pessoal, como queimar a mão ou sacrificar a sexualidade a um ideal social? Ao contrário: se alguém nos propuser um ideal que passe por tais custos pessoais, provaremos que só pode ser um falso ideal, gerador de males sem fim e até de doenças. E provaremos isso tão bem quanto um antigo provaria o contrário.
 
 
 
A CORRUPÇÃO DESPOLITIZADA
 
Mas a ideia de corrupção dos costumes não desapareceu de um momento para o outro: provavelmente passou por duas fases. Para os antigos, ela ameaçava a república. Quando a França retoma uma república mais próxima da romana, em 1792-3, a corrupção e seu antônimo, a virtude, voltam à cena. Mas isso dura pouco. Daí a dois anos, Robespierre, o Incorruptível, é deposto e guilhotinado. Na vitória dos moderados — ou corruptos, como outros os veem —, é interessante que as roupas femininas se tornem vaporosas e que em fins da década de 1790 mulheres da sociedade até exibam em público os seios nus.
 
Poucas sociedades se dispõem a pagar, pela república, o preço da contenção dos costumes; talvez o último movimento a fazê-lo tenha sido o Khmer Rouge, que tomou o poder no Camboja em 1975 e chacinou um terço da população, querendo purificá-la. Alguns temas republicanos, reativados em nossos dias, correm o risco de resultar em crime contra a humanidade.
 
Essa foi a primeira fase, tentando-se reciclar Roma em Paris. Mas não sumiu o tema da corrupção dos costumes. Não deu certo articulálo com a república, mas ele ressurgiu, fortíssimo, com os vitorianos. E curioso: Constant mostrou que não pagaríamos, pela república moderna, o sacrifício de nossa vida íntima. Mas se pagou esse preço, pela monarquia moral da rainha Vitória. A contenção dos costumes veio não com a república, com o regime da autonomia ou do autogoverno, mas com o da heteronomia, do moralismo, das reverências à realeza.
 
Nessa segunda fase, a corrupção tornou-se tema exclusivamente moral. Sustentou, e claro, uma política — mas sustentou-a de maneira não clara e explícita, como na república romana, e sim implícita e indireta. Até porque a contenção dos costumes era apresentada não como a condição para uma política (se quiserem ser livres politicamente, abram mão da liberdade íntima), e sim como a única conduta decente. No século 19, quando alguns religiosos cristãos, chocados com o deboche sexual dos polinésios, procuraram ensinar-lhes um modo tido como decente de ter relações sexuais (o papai-mamãe, como chamamos, ou a missionary position, como ficou conhecido em inglês), o que faziam era transmitir essa moral única para toda a humanidade. A política — no caso, a destruição de uma cultura em proveito da ocidental — vinha a reboque, discreta, escondida.
 
Enfim: a contenção e a corrupção dos costumes deixaram de ser tema explicitamente político e essencialmente republicano. Ocultaram a dimensão política e favoreceram a opressão. Nossos políticos da República Velha podiam ler Cícero e reprimir as mulheres de sua família: com isso nada efetuavam de republicano. Temas romanos podiam ser repetidos, mas tinham-se tornado vitorianos.
 
 
 
NOSSO PROBLEMA
 
A corrupção continua, porém, sendo um tema republicano - só que com outro sentido, outro conteúdo. Ela ainda é o grande perigo para a república. Como esta valoriza o bem comum, todo desvio dele para o particular a ameaça. Mas nossa ideia de corrupção é mais fraca que a antiga.
 
Chamamos de corrupção o furto do patrimônio público. Ora, isso faz esquecer que o bem público tem natureza distinta do bem particular ou da propriedade privada. Muitos se referem ao Estado como se fosse equivalente a um indivíduo ou empresa. Com isso, ficam na perspectiva patrimonialista, cujos problemas vimos no capítulo anterior.
 
Uma saída para a pouca importância, hoje, do tema da corrupção seria apostar na educação. Diríamos: a corrupção ameaça a república, mas não se resume no furto do dinheiro público. O corrupto impede que esse dinheiro vá para a saúde, a educação, o transporte, e assim produz morte, ignorância, crimes em cascata. Mais que tudo: perturba o elo social básico que é a confiança no outro. Quem anda por nossas ruas, com medo até de crianças pequenas, e depois se espanta com a descontração das pessoas em outros países pode sentir o preço que pagamos por não vivermos numa república — por termos um regime que é republicano só de nome.
 
A saída educativa é indispensável. Mas ela exige dar à educação dos costumes um sentido distinto do que teve no antigo pensamento republicano. Não se trata mais de conter a sexualidade, de promover a castidade e a discrição. Os costumes viáveis, a educação desejável em nosso tempo têm a ver com a realização pessoal. Será preciso combinar essa promoção de si com o respeito devido ao outro. E será necessário, mais que tudo, recuperar — ou reinventar — a ideia de que haja algo, no espaço comum a todos, que seja mais do que um simples arremedo social da propriedade privada.
 
(Renato Janine Ribeiro - Folha Explica, A REPÚBLICA)
 
O JOVEM ANTE A CORRUPÇÃO: UM INIMIGO A COMBATER OU UM DADO A ACEITAR?
 
 

 

 

publicado às 16:12


AINDA PODE HAVER DEMOCRACIA?

por Thynus, em 04.04.15
A palavra democracia vem do grego (demos, povo; kratos, poder)
e significa poder do povo. Não quer dizer governo pelo povo. Pode estar
no governo uma só pessoa, ou um grupo, e ainda tratar-se de uma
democracia — desde que o poder, em última análise, seja do povo. O
fundamental é que o povo escolha o indivíduo ou grupo que governa,
e que controle como ele governa.
 
A democracia é o regime do poder do povo. Mas, desde os gregos, a
palavra povo muitas vezes significa o mesmo que os pobres. Não podemos
pensar a democracia sem levar em conta os pobres e seu desejo
de ter e ser mais do que têm e são. Por isso, a democracia não pode ser
apenas uma forma constitucional e jurídica: ela sempre tem forte componente
social.
 
A subversão da democracia europeia
 

Dos problemas da democracia hoje, um é crucial: ainda há demos? Ainda há kratos? A primeira pergunta é se ainda existe o povo, como uma totalidade. Para que na democracia o povo exerça o poder, é preciso que haja um povo. Aliás, nem sempre os revolucionários dizem que existe o povo: às vezes afirmam que ele ainda não existe, mas que precisa surgir (ou ser restaurado). Há várias estratégias para criá-lo. O romantismo se especializou nelas. Investiu no folclore, na retomada de antigas tradições culturais; fez línguas desprezadas, de camponeses atrasados, ganharem uma escrita e assim terem a dignidade de línguas nacionais e literárias.
Isso, que sucedeu em larga medida no século XIX, sobretudo na Europa oriental, mas também na Ásia e África, já fora precedido pelos primeiros protestantes, que, ao traduzirem, por ocasião da Reforma, a Bíblia em várias línguas, deram a estas um estatuto mais elevado. E no século XX a jovem União Soviética pôs por escrito muitas línguas faladas em seu território. Constituir um povo, investindo em tradições, é um recurso do “nacional-popular”, que — em resumo — faz a identidade de uma nação residir em seu povo.
Já para o marxismo, o povo é sobretudo trabalhador e define-se por seu lugar no aparato de produção, não pelo folclore ou pelo passado. A foice e o martelo soviéticos simbolizavam a aliança do camponês com o operário, sob a liderança desse último. O capital não é povo, só o trabalho o é.

AINDA HÁ POVO?
Mas nas últimas décadas entrou em xeque a possibilidade mesma de existir o povo. A produção se tornou tão complexa que a oposição central — marxista — entre trabalho e capital, ou explorados e exploradores, mal dá conta dos vários modos de inserção na economia.
Posições intermediárias, como a da classe média ou dos prestadores de serviços, longe de tenderem à extinção, se desenvolveram muito. E, se passamos à ideia romântica de uma cultura nacional e popular, em oposição a uma cultura cosmopolita que torceria o nariz para as classes pobres e puras, tal modelo nacionalista não dá conta da importância que hoje tem, para o crescimento do ser humano e de sua liberdade (isto é, para o avanço dos ideais e práticas democráticos), o contato com outras culturas. E isso sem contar que a pureza é uma ficção.
O povo assim se pulveriza em vários povos, vários demoi, para usar o plural grego de demos. Estes cada vez menos forjam suas identidades com base na nacionalidade ou em seu lugar na produção. E, mesmo quando esses subpovos se mostram altamente mobilizados, não definem suas identidades por um único e mesmo critério. Estão entre esses subpovos as mulheres, os negros, os gays, os sem-terra, os trabalhadores de um setor ou de uma fábrica, a “comunidade universitária” e assim por diante. A definição marxista postulava um critério de base, a produção; a romântica, a nacionalidade. Mas como remontar a um só critério, quando se pensa em grupos tão díspares como os mencionados?
Vamos a um exemplo, muito delicado: o da universidade. Boa parte do movimento estudantil, docente e funcional das universidades públicas pede que os reitores sejam eleitos diretamente pela comunidade universitária. Como ela seria o demos, ou o que chamei de subpovo, essa seria a solução mais democrática. Mas cabe a pergunta: é mesmo esse o demos? Os alunos da USP são o povo, são um povo? E difícil sustentar essa tese, porque ela implicaria que a responsabilidade da universidade pública se dirige apenas, ou mesmo sobretudo, para seus membros. E óbvio que ela deve ir mais longe - para o povo que a cria, que a sustenta, para cujo benefício ela existe. E esse o verdadeiro sentido de ser ela pública - não o mero fato de ser estatal ou gratuita. Mas também não é nada simples dizer que o povo, no caso de uma universidade estadual, é o do Estado em questão ou, no de uma federal, o do Brasil. Fronteiras não delimitam — mais — povos. Em rigor, povo mesmo seria um só, o mundial. Isso, porém, não responde à questão de quem escolherá o reitor; apenas ilustra um problema de base — o fato de que não se encontra, não se identifica mais o povo com a certeza grega, romântica ou marxista.

AINDA HÁ PODER?
A segunda pergunta diz respeito a kratos ou cracia, poder. Há ainda poder como a democracia o concebeu, nos duzentos anos em que foi sócia da ideia de revolução ou, pelo menos, de progresso?{A cumplicidade dos conceitos de história, como ciência, dc revolução, como mudança, e de soberania, na política, explodindo os três no século XVIII, é o tema do penúltimo capítulo de meu livro A última razão dos reis, op. cit.} A democracia era emancipadora. Raras vezes foi o sossego de um regime satisfeito com o estado de coisas no mundo. Mesmo na Guerra Fria, quando os Estados Unidos apoiaram os governos mais reacionários, um ideário democrático cintilava no seu horizonte — como se lê no cético romance de Graham Greene, The Quiet American (O americano tranquilo){Greene, Graham. O americano tranquilo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1957/ São Paulo: Abril Cultural, 1981.}
Ora, se não há mais o povo (potencialmente) unido como sujeito de transformações decisivas na história, tampouco resta um centro de poder a conquistar. Não dá mais para tomar, como diriam os bolchevistas, um “Palácio de Inverno” (do nome da antiga residência czarista, que os comunistas atacaram em novembro de 1917). E, porém, um exagero usar esse palácio como imagem da tomada do poder pelos sovietes. O líder da Revolução Russa, Lênin, dizia que a Comuna de Paris errara em não ter tomado os bancos; ele estava mais atento à realidade do poder do capital do que à simbologia vazia dos palácios. Mas hoje não só essa simbologia se esvaziou mais ainda, como o sistema financeiro se irradiou tanto que é inútil tomar o prédio de sua matriz.
Nas primeiras democracias, o poder herdava o sentido que tivera no Antigo Regime. A soberania do rei era substituída pela do povo, mas era tão centralizada quanto a dele. Tomar a Bastilha queria dizer isto: conquistar o centro do poder régio (e, como na Bastilha eram presas pessoas sem processo, fazer dela o centro do poder monárquico significava reduzir a realeza a uma cadeia, a uma penitenciária). A própria palavra soberania, que designou a teoria do poder dominante em quase todo o mundo (exceto entre os anglo-saxões) nos últimos duzentos anos, vem dos reis.
A verdadeira mudança na ideia de poder é bem mais recente: data de nosso tempo. Foi quando ele perdeu seu lugar central, localizável, conquistável — ou, se quiserem, o caráter de substância, que se toma ou defende —, e se tornou mais anônimo, ficando difícil identificar quem manda, se é que alguém o faz. Quando falamos de política, poder é um substantivo. Mas, no dia a dia, usamos mais poder como verbo, caso em que lhe retiramos o sentido político. Ora, o que está acontecendo é que poder deixa de ser substantivo, ou substância, ou uma coisa identificável que se conquista, e se torna cada vez mais verbo, isto é, potencialidade, possibilidade que não sabemos se vai realizar-se ou não.
Assim se entende melhor que o poder hoje se converta numa rede na qual — em vez de um único e grande povo — se articulam subpovos. Numa rede, ou num verbo, o mais importante são não lugares, mas ligações, aquilo que com muita oportunidade os internautas chamam de links.

(Renato Janine Ribeiro - A DEMOCRACIA)

O Marco Civil da Internet, nós, você e eu

publicado às 14:31


Análise psicológica do coração

por Thynus, em 03.04.15
Se algo em nossa vida causou-nos sensações fortes de tristeza, medo, ódio, desgosto, etc., o corpo servirá como portavoz da nossa mente, para nos mostrar que estamos saturando nosso coração, guardando tantos "lixinhos" do passado ou medos do futuro.

Cristina Cairo

É o órgão que representa sentimentos de perdas.
Quando uma pessoa permite que os problemas a afetem emocionalmente, as suas preocupações com relação ao futuro aumentam e seu coração padece fisicamente. A insuficiência da válvula mitral, por exemplo, significa que a pessoa, que acha que está sendo lesada, nutre sentimentos de vingança contra alguém próximo.
O medo de ver seus bens materiais diminuírem ou serem roubados; arrastar por muito tempo problemas emocionais; a falta de alegria de viver e o sentimento de ter o coração "!apertado" de tanto sofrimento também conduzem a vários problemas cardíacos.
Normalmente as pessoas cardíacas são autoritárias, não admitem erros e têm um comportamento inflexível, sofrem do miocárdio, que enrijece. Mesmo que, julgando as aparências, você afirme que não é inflexível, faça uma reflexão sincera e responda a si mesmo: quantas vezes você teima, incansavelmente, por uma causa? Quantas vezes você não dorme direito só em pensar que podem estar passando-o para trás em alguma questão?
Se estas são as suas atitudes mais comuns e você ainda não é cardíaco, pare imediatamente de temer "perdas"! Deixe de ser "turrão" com os outros e consigo mesmo e exija menos da vida. Deixe que ela aconteça sem pressioná-la. Acalme-se! Equilibre suas emoções e descubra o prazer de viver sem tensões.
Envolva-se com a sensação de bem-estar que a calma oferece. Como? Arrependa-se humildemente de ter alimentado sentimentos de vingança contra alguém e perdoe do fundo do seu coração! Só, então, você estará livre de qualquer problema cardíaco. Enquanto você desconfiar das pessoas que o rodeiam, pensando que vai ser traído a qualquer momento, suas forças se esgotarão e poderão até levá-lo à morte. Economize as suas energias deixando de premeditar fatos. Por mais clara que seja a situação, quando estamos calmos e receptivos, percebemos as soluções que a vida nos oferece por si mesma. Perceba e elimine aquele medo de ser abandonado pelas pessoas que você ama. Há pais, e mães, que passam a ter sérios problemas cardíacos — até fatais — quando um de seus filhos casa-se e afasta-se para outro local. Inclue-se nesta hipótese até a simples intenção, por parte dos filhos, de ir morar sozinho.
Na verdade você está precisando freqüentar algum lugar que o ensine a respeitar a si mesmo e descobrir mais sobre o mundo espiritual, o que lhe dará forças extras no momento que elas forem mais necessárias. Relaxe e desapegue-se de coisas e pessoas.
Chame a felicidade e deixe-a entrar em sua vida para sempre.


(Cristina Cairo - Linguagem do Corpo: aprenda a ouvi-lo para uma vida saudável)

 
 

 

publicado às 15:52

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O que é a moral?

Por que ser moral? Esta pergunta vem desde a época de A república de Platão (428-348 a.C.), obra na qual os personagens Sócrates e Glauco discutem a natureza da justiça.(Platão, A república (Fundação Calouste Gulbenkian, 9ª edição).) Fazendo o papel de advogado do diabo, Glauco argumenta que agimos de modo justo (ou moral) apenas porque tememos ser descobertos e punidos. Sócrates (falando por Platão) discorda e sugere que o homem justo está sempre em situação melhor que o injusto. Como contraexemplo à alegação de Sócrates de que o homem justo está sempre em situação melhor, Glauco reconta o mito do anel de Giges.(Id.)
Na história de Glauco, Giges é um simples pastor que descobre um anel mágico capaz de deixar invisível quem o usa. Após se dar conta das propriedades mágicas do objeto, Giges percebe que pode realizar suas ambições mais loucas e usa o anel para saciar sua sede de poder: seduz a rainha, mata o rei e toma o trono para si. Giges tem a capacidade de satisfazer todos os desejos que tem e assim o faz.
Glauco, então, pede a Sócrates para imaginar um cenário em que existam dois anéis mágicos, um dado a um homem justo e o outro, a um homem injusto. Glauco defende que os dois homens agirão mal e nem mesmo o justo conseguirá resistir à tentação de realizar seus desejos. Afinal, por que deveria? Com o anel de Giges, o justo não tem motivo para temer represálias. Seus atos imorais não serão vistos. Com esse tipo de poder, não seria racional que ele simplesmente pensasse nos próprios interesses e fizesse o que lhe desse na telha? Ele não seria um tanto tolo se não aproveitasse essa oportunidade a seu favor? Glauco sustenta que não só a maioria das pessoas usaria o anel, como seria irracional não usá-lo.
Se Glauco estiver certo ao dizer que apenas um tolo agiria moralmente na ausência de sanções, talvez Joffrey esteja no caminho certo. O cenário do anel de Giges é bem semelhante à forma como Joffrey vê o privilégio de estar no Trono de Ferro. Como rei, Joffrey acredita que estará imune a sanções. Afinal, a justiça em Westeros é a “justiça do rei”. O que o rei diz e faz tem valor. Se alguém não gosta ou, pior ainda, questiona o comportamento dele, então Joffrey, como rei, pode simplesmente lançar mão de alguma de suas várias punições engenhosas, como fez quando mandou cortar a língua de um menestrel após cantar uma canção que debocha da morte de Robert Baratheon e acusa, de modo pouco sutil, os Lannister de terem matado o rei. Da perspectiva de Joffrey, o privilégio de estar no Trono de Ferro é tão bom quanto ter um anel mágico.
Ser rei pode significar ter poderes quase ilimitados, mas — infelizmente para Joffrey — nem mesmo um rei pode esconder seus atos dos súditos. O anel de Giges desperta tanta atração justamente porque permite a quem o usa a possibilidade de agir de modo imoral sem ter a mesma reputação questionável de Joffrey e outras pessoas desprezíveis. E, por mais que ele goste de acreditar que pode fazer o que quiser, as pessoas se lembram com ódio de tiranos. Uma geração antes de Joffrey, o povo de Westeros se revoltou contra o Rei Louco Aerys Targaryen. Essa rebelião acabou levando ao assassinato de Aerys pelas mãos de Jaime Lannister. No final da primeira temporada de Game of Thrones, Joffrey está indo rapidamente pelo mesmo caminho de Aerys.(Martin, A fúria dos reis.)
A cada ato de crueldade, a cada mal infligido para fins egoístas, Joffrey transforma um possível aliado leal num inimigo eterno. Enquanto Giges consegue ter os benefícios de parecer ser uma boa pessoa, Joffrey não tem a mesma sorte. Antes de subir ao poder, o comportamento de Joffrey era ofensivo o bastante a ponto de merecer uma boa surra do tio. Você vibrou quando Tyrion Lannister bateu no sobrinho pela primeira vez? Eu vibrei. E ser coroado rei não fez absolutamente nada para melhorar o comportamento do jovem. Poucos dias após ter subido ao trono, Sansa, a futura noiva de Joffrey, cogita empurrá-lo de uma ponte. Os delitos do rei apenas garantem que seu período no Trono de Ferro tenha um fim rápido e sangrento.
Joffrey claramente não entendeu o que significa estar no Trono de Ferro. Mas o erro dele é agir de modo imoral? Ou é outra coisa? Talvez se achar invencível?
Por ser rei, Joffrey acredita que pode fazer o que quiser e não haverá consequências negativas. Isso é uma grande ingenuidade. O erro fatal dele nem é agir de modo imoral, e sim acreditar erroneamente que é invencível. Afinal, esse comportamento imoral lhe rendeu má fama e muitos inimigos. Seria inteligente começar a se comportar melhor.
Integrantes da corte de Joffrey, como lorde Petyr “Mindinho” Baelish, disfarçam seus delitos de modo mais competente. E assim como Giges, Cersei e Jaime Lannister conseguem manter suas transgressões morais em segredo, ainda que isso signifique empurrar uma criança da janela. Talvez a verdadeira lição a ser aprendida é que Joffrey apenas precisa ter mais cuidado com quem o vê agindo de modo imoral.

A verdade será o que você definir
Cersei e Jaime Lannister são espertos o bastante para manter seus lapsos morais em segredo. Eles agem como se fossem moralmente respeitáveis quando estão com outras pessoas e mantêm seu caso de amor e suas manobras políticas nas sombras.
Numa cena crucial da série, Cersei aconselha Joffrey, dizendo que “a bondade ocasional lhe poupará de todo tipo de problema mais adiante.” (Episódio 3 da primeira temporada, Lord Snow [Lorde Snow].) Cersei tenta ensinar ao filho a importância de manter a aparência de ser uma boa pessoa, agindo como se fosse um governante justo e cultivando a reputação de um indivíduo moral. Segundo este conselho, não há problema em fazer tudo o que quiser em segredo, mas agir abertamente como um vilão significa fazer inimigos rapidamente e criar o cenário para uma imensa queda.
Cersei obviamente não tem um anel mágico como Giges. Ela precisa recorrer à linguagem ambígua, ao amante que empurra crianças de janelas e outras estratégias maquiavélicas para esconder seus verdadeiros motivos. Mas, supondo que ela tenha sucesso em manter as aparências de ser uma rainha nobre e justa, Cersei tem algum motivo para ser moral na vida particular? Visto que ela fez sua parte para garantir que jamais precisará enfrentar punições, ela tem algum motivo para ser moral? O medo de vingança é o único motivo para ser isso?

Você tem uma longa viagem pela frente, e em má companhia
Talvez Cersei e Joffrey tenham que ser morais devido ao contrato social do qual todos nós fazemos parte como integrantes de comunidades. Obviamente, é do interesse de ambos viver numa sociedade em que as pessoas ajam de forma moral, respeitando os direitos e interesses alheios. Afinal, se Cersei tivesse a garantia de que todos em Porto Real agissem moralmente, desde que ela também se comportasse bem, a rainha teria muito menos motivos para armar esquemas. Na mesma linha, se a única maneira de Joffrey garantir que seus súditos não tentassem usurpar-lhe o trono fosse que ele se transformasse num governante justo e nobre, ele também teria um bom motivo para agir moralmente.
O teórico do contrato social Thomas Hobbes (1588-1679) concordaria. Hobbes se preocupava com o perigo dos humanos competirem uns com os outros a fim de satisfazer os próprios desejos. Ele reconhecia que, num mundo sem controles legais, morais e sociais sobre o que se pode ou não fazer, nada impediria o envolvimento num conflito mortal. É uma dura realidade, mas humanos em busca dos próprios objetivos e interesses inevitavelmente entrarão em conflito direto uns com os outros. Também é uma verdade óbvia que mesmo o mais fraco de nós pode representar uma ameaça ao mais forte. Hobbes estava bastante ciente que um duende sempre pode contratar um mercenário, uma rainha sempre pode recorrer à traição ou ao veneno e até um guerreiro forte como Drogo pode ser abatido por uma simples ferida. Quando todos nós buscamos os próprios objetivos e desejos sem o controle da moralidade e da sociedade, nós competimos. E, quando competimos, acabamos matando uns aos outros.
Esse medo da destruição mútua dá uma motivação poderosa para encontrar um jeito de garantir que todos se comportem da melhor maneira possível. Racionalmente, devemos estar dispostos a fazer qualquer coisa para garantir um ambiente sem a constante ameaça de competição mortal. E um jeito de fazer isso é aceitar viver de acordo com um conjunto de regras. Se eu concordo em ser uma pessoa moral e justa desde que você concorde em ser uma pessoa moral e justa, e você concorde em fazer o mesmo, ambos temos a garantia de que somos capazes de cooperar e viver em paz. Assim, o motivo pelo qual Joffrey e Cersei precisam agir moralmente seria para garantir a preservação do contrato social e que todo mundo também aja moralmente.
À primeira vista, isso parece ser uma resposta poderosa à pergunta “Por que ser moral?”. Dá até à pessoa mais desvirtuada e psicopata um motivo convincente para se comportar bem. Se você sair da linha e ceder ao desejo de cometer atos imorais, estará quebrando o contrato com seus companheiros cidadãos. E, se você não cumprir as regras, eles também não terão motivos para fazê-lo. Quando não é mais possível ter certeza de que os vizinhos agirão de modo moral, fica-se com medo de qualquer sombra, temendo uma punhalada pelas costas.
Os homens da Patrulha da Noite adotam uma filosofia que segue bastante o espírito desse motivo de Hobbes para ser moral. A Patrulha da Noite é uma espécie de colônia penal composta por assassinos, estupradores, ladrões e os que não têm para onde ir. A maioria acaba se juntando à Patrulha da Noite contra a própria vontade. Eles recebem uma escolha entre “vestir-se de negro”, isto é, jurar defender Westeros com a vida dos horrores inenarráveis para lá da Muralha, ou a morte. Obviamente, quando se está vivendo entre ladrões e assassinos, é de vital importância ter alguma garantia de que seu vizinho não vai cortar sua garganta enquanto você dorme. A Patrulha da Noite consegue isso ao deixar claro para seus integrantes que, se eles saírem da linha, serão mortos.
Mas Porto Real é um lugar bem diferente da Muralha, e a corte de Joffrey é bem menos honrada que o bando de vagabundos que compõe a Patrulha. Mesmo se Joffrey e Cersei concordassem com Hobbes que o desejo de uma sociedade moral e estável dá motivos para as pessoas se comportarem bem, essa obrigação só dura enquanto os outros cumprirem sua parte no contrato. E não é preciso ser Eddard Stark para saber que não existe contrato na corte de Joffrey. Agir moralmente não é uma boa estratégia de sobrevivência em Porto Real.
Porto Real se assemelha mais à civilização dothraki do que ao tipo de comunidade honrada da qual fazem parte os homens da Patrulha da Noite. Agir “moralmente” nos dois ambientes é visto como um tipo de fraqueza. Entre os dothraki, só os fortes sobrevivem. Drogo é khal, o líder do povo, mas não por ser um pilar de virtude, e sim porque ele é um assassino sanguinário e implacável, disposto a cortar gargantas dos súditos se eles desafiarem sua autoridade ou ficarem em seu caminho. Da mesma forma, Mindinho e Varys, dois atores fundamentais na política de Porto Real, sobreviveram tanto tempo porque ambos são assassinos implacáveis dispostos a esmagar os oponentes. É verdade que eles usam métodos mais sutis e indiretos do que derramar ouro derretido na cabeça dos inimigos, mas o resultado final é o mesmo. Em Porto Real e nas terras selvagens dos dothraki, o jogo é para valer. Então, Porto Real não é exatamente o tipo de ambiente propício a respeitar um contrato social.
Mesmo se a cidade fosse uma comunidade mais admirável em termos morais, Joffrey não necessariamente teria um motivo para agir de forma moral. Parando para pensar, Joffrey não está interessado em agir moralmente. O que realmente lhe interessa é que todos os outros respeitem os direitos e interesses alheios e pensem que ele está se comportando bem.
Se todos acreditassem na teoria do contrato social, o rei estaria em franca vantagem. Os cidadãos de seu reino seriam presas fáceis. Ned e Sansa foram enganados por Cersei justamente por acharem que ela jogaria de acordo com as regras. Se Joffrey tivesse ouvido o conselho da mãe e fosse um pouco mais discreto, ele poderia pegar carona no bom comportamento de seus cidadãos e ceder aos desejos mais loucos e imorais em segredo.
A solução do contrato social para a pergunta “Por que ser moral?” não dá a Joffrey um motivo convincente para agir moralmente. Pode dar um motivo pelo qual grupos de pessoas em geral deveriam agir moralmente, mas este não é o tipo de razão que motivaria um imoralista como Joffrey. Ele certamente tem interesse que todos os outros se comportem bem, mas precisamos mesmo é de um motivo para que ele também se comporte bem.

Nosso costume é antigo
Segundo Platão, imoralistas como Joffrey são incapazes de ter a verdadeira felicidade, porque a felicidade é mais do que apenas satisfazer seus desejos e obter tudo que se quer. Ela está relacionada à vida interior, ao estado da alma. Dessa forma Joffrey deve ser um rei moral e justo, porque está perdendo a felicidade ao se recusar a agir moralmente.
Você pode pensar que há algum ilusionismo acontecendo aqui. Claro que Joffrey parece estar perdendo algumas coisas boas na vida, mas isso acontece porque ele é um cretino imoral? Os pais de Joffrey, Cersei e Jaime, também têm motivos bem questionáveis (pelo menos durante a primeira temporada de Game of Thrones), mas ambos parecem ter encontrado um pouco de felicidade um no outro. Eles podem empurrar uma criança da janela de vez em quando ou se envolver num arroubo incestuoso ocasional, mas a vida e a alma deles são realmente caóticas e desorganizadas devido a seus atos?
Joffrey e sua família parecem ter muitas coisas boas na vida, e várias delas certamente foram obtidas por meio de atos imorais. Os Lannister são uma família extremamente rica, e essa riqueza e poder acumulados lhes permitem comprar todo tipo de prazeres. Sejam lautos banquetes, fácil acesso a prostitutas ou celebrações extravagantes, eles parecem ter uma vida bem confortável quando comparada a vários habitantes dos Sete Reinos. Então, seria mesmo verdade que as pessoas imorais nunca são verdadeiramente felizes?
Talvez Cersei e Joffrey tenham vidas agradáveis, mas isso é diferente da verdadeira felicidade. Platão tem em mente um tipo mais profundo desse sentimento. Uma pessoa imoral como Joffrey é infeliz, mesmo obtendo o que deseja e satisfazendo seus desejos. Ele tem uma alma doente e sua vida interior é um caos, além de ter uma existência pequena e egoísta. Joffrey se preocupa apenas consigo mesmo e não tem a capacidade de se conectar de modo significativo a outro ser humano. Afinal, em sua visão, os outros servem apenas como meios para satisfazer seus desejos. Sem quaisquer preocupações com a moralidade, Joffrey não tem, ou pelo menos não demonstra ter, as emoções humanas básicas, como compaixão, amor e consideração, que permitem amizades e relacionamentos verdadeiros. Joffrey está sozinho. Se Platão estiver certo, a vida imoral de Joffrey o impede de vivenciar o que é realmente valioso na vida. Assim, a verdadeira felicidade é algo que pode estar fora do alcance da pessoa imoral.
Alguns filósofos são céticos quanto a essa visão de felicidade definida por Platão, mas existe pelo menos uma pessoa em Westeros que concordaria com ele. Eddard Stark parece pensar que há algo na vida moral que torna o ato de viver de forma honrosa e justa muito mais importante do que qualquer Trono de Ferro. Talvez valha até a pena morrer por isso.

Devo ser um dos poucos homens desta cidade que não quer ser rei
Numa cena reveladora, Ned confronta Cersei e conta ter descoberto que Joffrey não é filho do rei. Ele avisa a Cersei:
— Quando o rei voltar da caçada, direi a ele a verdade. Você já deve ter ido embora, você e seus filhos. Não quero ter o sangue dele em minhas mãos. Vá para o mais longe que puder, com o máximo de homens que puder, porque não importa aonde você vá, a ira de Robert a seguirá.
— E a minha ira, Lorde Stark? Você deveria ter tomado a coroa para si. Jaime me contou sobre o dia em que Porto Real caiu. Ele estava sentado no Trono de Ferro e você o fez abrir mão dele. Bastava apenas você subir os degraus. Um erro tão triste.
— Já cometi muitos erros na vida, mas este não foi um deles. — Ah, mas foi. Quando se joga o jogo dos tronos, ganha-se ou morre.
(Episódio 7 da primeira temporada, You Win or You Die [Você ganha ou morre].)
Essa conversa ilustra um contraste fundamental entre Ned Stark e Cersei Lannister. Cersei vê a vida em Porto Real como uma competição. Ela ama o irmão Jaime e os filhos e está disposta a fazer de tudo para obter poder para si e sua família. Ela não tem tempo para honra ou moralidade. Apenas o Trono de Ferro e o poder que vem com ele importam para Cersei. O poder, especialmente o quase ilimitado que vem com o trono, traz também segurança. Para ela, o erro mais idiota que alguém pode cometer seria perder uma oportunidade de tomar o poder, garantir esse privilégio e essa segurança para si e para a família.
Ned pensa de modo diferente. Ele pode concordar com Cersei que o jogo dos tronos é jogado para valer, mas não está disposto a participar de um jogo em que a única forma de vencer é sacrificando a própria moralidade. Para ele, existem coisas mais importantes que o poder, e a honra e a moralidade têm mais valor até mesmo do que uma vida longa e segura.
Essa relutância em abrir mão dos ideais é um dos principais motivos pelos quais Ned acredita ter sido inteligente ao recusar o trono. Na juventude, ele já sabia que subir ao trono e garantir a permanência lá significaria abrir mão de sua honra repetidamente. Seria viver em constante medo de ser destronado, ter uma vida de competição e concessões morais eternos. E para Ned não há felicidade nem glória nesse tipo de vida.
A decisão de Ned de rejeitar o trono está de acordo com a resposta de Platão à pergunta “Por que ser moral?”. Afinal, Ned rejeitou o trono para voltar ao norte e viver com a esposa. Ele continuou firme em seu compromisso com a honra e a virtude e conseguiu uma vida surpreendentemente feliz e realizada para alguém em Westeros. O patriarca dos Stark passou décadas num lar amoroso e feliz, criando os filhos e governando sua parte do reino de modo justo e sábio. Ele cultivou relacionamentos profundos e verdadeiros com as pessoas de quem mais gostava e transmitiu sua sabedoria aos filhos. Se não fosse pela insistência de Robert para se juntar a ele em Porto Real, Ned teria levado uma vida honrosa até o fim. Essa felicidade é algo que Cersei, sua família e todos os que lutam pelo poder em Porto Real jamais terão. Foi o compromisso de Ned com a moralidade que lhe permitiu encontrar a verdadeira felicidade, independentemente de sua total consciência de que o inverno está chegando.
Como reconhecia a futilidade da vida imoral, Ned relutou em aceitar a oferta de Robert para ser Mão do Rei. Ele sabia que seu compromisso com a honra fazia dele uma pessoa particularmente inadequada para competir com o ninho de cobras de Porto Real. Forçado a entrar no jogo dos tronos, Ned o joga como viveu, com honra e justiça. Mas um homem honrado posto contra gente como Cersei, Mindinho e Varys é um homem morto. Ned estava fadado ao fracasso assim que aceitou a oferta de Robert. Depois de poucas semanas em Porto Real, ele se vê preso por traição, vítima das manobras políticas daqueles que não se veem impedidos por restrições morais.
Após Cersei mandar prender Ned, Varys lhe faz uma visita a fim de oferecer uma forma de evitar a execução. Se Ned estiver disposto a manter em segredo que Joffrey não é filho legítimo do falecido rei, Varys garante que Ned será capaz de convencer Cersei a deixá-lo se vestir de negro e entrar para a Patrulha da Noite. Tudo que Ned precisa fazer é contar uma pequena mentira e guardar o segredo da rainha.
Ned responde: “Você pensa que minha vida é algo precioso para mim, que eu trocaria minha honra por mais alguns anos... de que mesmo? Você foi criado com atores, aprendeu o ofício deles e aprendeu bem. Mas eu fui criado com soldados. Aprendi a morrer há muito tempo.” (Episódio 9 da primeira temporada, Baelor.)
Varys tenta mais uma tática a fim de persuadir Ned a ceder em seus valores. Ele pergunta: “E a vida de sua filha, meu senhor? É algo precioso para você?” Essa ameaça velada na forma de pergunta enfim motiva Ned a ceder. Ele troca a honra pela vida das filhas e o adiamento da própria execução. Mas isso acaba sendo inútil. Ned sacrifica a honra, alega falsamente que conspirou a fim de roubar o Trono de Ferro para si e proclama Joffrey como herdeiro legítimo e de direito de Robert. É a deixa para o jovem monarca mostrar sua noção distorcida de justiça: Ned perde a cabeça e Sansa passa a ser prisioneira, com a vida ainda em perigo. A morte de Ned é trágica porque ele sacrificou sua moralidade e honra por nada.
Apesar desse fim trágico e do momento de fraqueza, Ned pode na verdade estar certo quanto ao valor da moralidade. Talvez Cersei e Joffrey estejam perdendo algo que a honra de Ned lhe permite vivenciar. A resposta dele à pergunta “Por que ser moral?” é semelhante à de Platão. O motivo para ser moral não consiste em evitar punição, escárnio, desaprovação ou ser chamado a responder por mau comportamento. O inverno inevitavelmente chegará, e não devemos ser motivados a renunciar à moralidade por medo de que algo de mau nos aconteça. Devemos nos ater à moralidade porque ser moral é o único jeito de ter o melhor que a vida pode oferecer. Diante de Cersei e Joffrey, Ned e Platão teriam, sim, uma resposta. Vocês perdem a vida boa ao serem imorais. Há mais na vida do que o mero prazer.(Dedicado a Karen Haas, minha mãe, por ter me criado como um Stark e ensinado que ter uma vida boa significa mais do que sempre obter o que deseja.)

(A guerra dos tronos e a filosofia / editado por Henry Jacoby) 

publicado às 08:34



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