O paraíso está na sombra das espadas
«Aqueles de entre os crentes que ficarem em casa, para além dos incapacitados, não são iguais àqueles que lutam na senda de Deus com os seus bens e as suas pessoas. Deus colocou aqueles que lutam com os seus bens e as suas pessoas num nível mais elevado do que aqueles que ficam em casa. Deus prometeu recompensa a todos os que crêem, mas Ele distingue aqueles que combatem, acima daqueles que ficam em casa, com uma recompensa grandiosa».
(Corão, IV, 95)
Ao longo da história da humanidade, muitas civilizações surgiram e desapareceram - China, índia, Grécia, Roma, e, antes delas, as antigas civilizações do Médio Oriente. Durante os séculos que na história europeia são designados por Idade Média, a civilização mais avançada do mundo era sem dúvida a do Islão. Pode ter sido igualada - ou mesmo ultrapassada em alguns aspectos - pela índia e pela China, mas estas ficaram limitadas essencialmente a uma região e a um grupo étnico, e o seu impacte no resto do mundo foi proporcionalmente reduzido. A civilização do Islão, pelo contrário, tinha uma visão ecuménica do mundo e era-o explicitamente nas suas aspirações.
Uma das tarefas básicas deixadas em testamento aos muçulmanos pelo Profeta foi âjihad. Esta palavra vem da raiz árabe j-h-d, que basicamente significa «empenho» ou «esforço». Em textos clássicos é frequentemente usada com um significado muito próximo de «luta», e a partir daí também de «combate». E citada com frequência na frase do Corão: «lutando na senda de Deus» (p. ex.: IX, 24; LX, 1; etc.), e tem sido variamente interpretada como significando luta moral ou luta armada. Normalmente é muito fácil compreender pelo contexto qual destes cambiantes de significado se pretendeu dar-lhe. No Corão a palavra ocorre muitas vezes, com estes dois sentidos distintos mas relacionados. Nos primeiros capítulos, que datam do período de Meca, quando o Profeta ainda era o líder de um grupo minoritário que lutava contra a oligarquia pagã dominante, a palavra tem frequentemente
o significado, apoiado pelos exegetas modernistas, de luta moral. Nos últimos capítulos, publicados em Medina, onde o Profeta era chefe de Estado e comandava o exército, habitualmente tem uma conotação explicitamente mais prática. Em muitos, o sentido militar é inequívoco. Encontra-se um bom exemplo em IV, 95: «Aqueles de entre os crentes que ficarem em casa, para além dos incapacitados, não são iguais àqueles que lutam na senda de Deus com os seus bens e as suas pessoas. Deus colocou aqueles que lutam com os seus bens e as suas pessoas num nível mais elevado do que aqueles que ficam em casa. Deus prometeu recompensa a todos os que crêem, mas Ele distingue aqueles que combatem, acima daqueles que ficam em casa, com uma recompensa grandiosa». Conceitos semelhantes encontram-se em: VIII, 72; IX, 41, 81, 88; LXVI, 9; etc.
Alguns muçulmanos modernos, sobretudo quando se dirigem ao mundo exterior, explicam o dever da jihad em sentido espiritual e moral. A esmagadora maioria das autoridades do passado, citando as passagens relevantes do Corão, os comentários e as tradições do Profeta, discutem a jihad em termos militares. De acordo com a lei islâmica, é legítimo fazer guerra contra quatro tipos de inimigos: infiéis, apóstatas, rebeldes e bandidos. Embora esses quatro tipos de guerra sejam legítimos, só os dois primeiros contam como jihad. A jihad é, pois, uma obrigação religiosa. Discutindo acerca da obrigação da guerra santa, os juristas muçulmanos clássicos fazem distinção entre guerra ofensiva e defensiva. Na ofensiva, a jihad é uma obrigação da comunidade muçulmana como um todo, e portanto pode ser executada por voluntários e profissionais. Numa guerra defensiva, ela torna-se uma obrigação de todo o indivíduo fisicamente apto. Foi este princípio que Osama bin Laden invocou na sua declaração de guerra contra os Estados Unidos.
Durante a maior parte dos catorze séculos de história muçulmana registada, a jihad foi geralmente interpretada como luta armada para a defesa ou o avanço do poder muçulmano. Na tradição muçulmana, o mundo está dividido em duas casas: a Casa do Islão {Dar al-Islâm), onde os governantes muçulmanos governam e a lei muçulmana impera, e a Casa da Guerra (Dâr al-Harb), que é o resto do mundo ainda habitado e, mais importante ainda, governado pelos infiéis. O que se presume é que o dever da jihad continuará a ser exercido, interrompido apenas por tréguas temporárias, até que todo o mundo adopte a religião muçulmana ou se submeta ao domínio muçulmano. Aqueles que lutam na jihad habilitam-se a recompensas nos dois mundos - o saque neste, e o paraíso no outro. Nesta questão, como em tantas outras, a orientação do Corão é ampliada e elaborada nas hadiths, ou seja, nas tradições relativas às acções e elocuções do Profeta. Muitas delas têm a ver com a guerra santa. Seguem-se alguns exemplos.
A jihad é o vosso dever sob qualquer governante, seja ele piedoso ou iníquo.
Um dia e uma noite de combate na fronteira é melhor do que um mês de jejum e oração.
A ferroada de uma formiga magoa mais um mártir do que a estocada de uma arma, pois estas são mais agradáveis para ele do que a água doce e fresca num dia quente de Verão.
Aquele que morre sem ter tomado parte numa campanha morre como se fosse um descrente.
Deus admira-se com as pessoas [aqueles a quem o Islão, é imposto pela conquista] que são arrastadas para o paraíso acorrentadas.
Aprendam a disparar, pois o espaço entre o alvo e o archeiro é um dos jardins do paraíso.
O paraíso está na sombra das espadas.
As tradições também estabelecem algumas regras de guerra para o desempenho da jihad:
Tenham o cuidado de tratar bem os prisioneiros. O saque não é mais legítimo que o cadáver. Deus proibiu que se matem mulheres e crianças. Os muçulmanos estão vinculados aos seus acordos, desde que estes sejam legítimos.
Os tratados jurídicos clássicos sobre a shari’a contêm normalmente um capítulo acerca da jihad, entendida no sentido militar, como uma guerra regular contra infiéis e apóstatas. Mas esses tratados preceituam o comportamento correcto e o respeito pelas regras de guerra, em questões como a abertura e o encerramento das hostilidades e a forma de tratar os não combatentes e os prisioneiros, para não falar nos representantes diplomáticos.
Na maior parte da história escrita do Islão, desde o tempo de vida do profeta Maomé em diante, a palavra jihâd foi usada num sentido basicamente militar. Maomé iniciou a sua missão profética em Meca, lugar onde nasceu, mas devido à perseguição que ele e os seus seguidores sofreram às mãos da oligarquia pagã que governava aquela cidade, mudaram-se para a cidade de Medina, onde foram bem-recebidos pelas tribos locais, que deram ao Profeta o cargo de arbitrador e depois de governador. Em árabe, esta mudança é conhecida por Hijra, por vezes escrita na forma ortograficamente errada «Hegira», e erradamente traduzida por «fuga». A era muçulmana começa no início do ano árabe em que teve lugar a
Hijra. A primeira jihad foi empreendida pelo Profeta contra os governantes da sua cidade natal e terminou com a conquista de Meca no mês do Ramadão do ano 8 da Hijra, que corresponde a Janeiro de 630 da era cristã. Os líderes de Meca renderam-se quase sem luta, e aos habitantes da cidade, excluindo aqueles que eram acusados de ofensas específicas contra o Profeta ou contra algum muçulmano, foi concedida imunidade para as suas vidas e bens, desde que se comportassem de harmonia com o acordo. A tarefa seguinte foi o alargamento do domínio muçulmano ao resto da Arábia e, sob a autoridade dos califas, sucessores do Profeta, ao resto do mundo.
Nos primeiros séculos da era islâmica isso pareceu ser um resultado possível ou mesmo provável. Dentro de um espaço de tempo bastante curto os exércitos muçulmanos triunfantes tinham derrubado o antigo império da Pérsia e anexado todos os seus territórios aos domínios do califado, abrindo caminho à invasão da Ásia Central e da índia. Para ocidente, o Império Bizantino ainda não tinha sido derrubado, mas já fora despojado de grande parte dos seus territórios. As então províncias cristãs da Síria, Palestina, Egipto e Norte de África foram absorvidas e em devido tempo islamizadas e arabizadas, e serviram de bases para a sequente invasão da Europa e conquista da Espanha e de Portugal, e de grande parte do sul de Itália. Em inícios do século VIII, os exércitos árabes vitoriosos atravessavam os Pirenéus, penetrando em França.
Após vários séculos de vitórias quase ininterruptas, a jihad foi finalmente detida e repelida pela Europa cristã. No Oriente, os Bizantinos resistiram na grande cidade cristã de Constantinopla, repelindo uma série de ataques árabes. No Ocidente teve início o longo e moroso processo conhecido na história de Espanha como «a Reconquista», que por fim levou à expulsão dos muçulmanos dos territórios que tinham conquistado em Itália e na Península Ibérica. Foi igualmente empreendida uma tentativa de levar a Reconquista até ao Médio Oriente, a fim de recuperar a terra onde Cristo nasceu, conquistada pelos muçulmanos no século VII. Essa tentativa, conhecida por Cruzadas, falhou completamente, e os cruzados foram repelidos em fuga desordenada.
Mas a jihad não tinha terminado. Uma nova fase foi iniciada, desta vez não por Árabes mas por mais recentes convertidos ao Islão, os Turcos e os Tártaros. Estes conseguiram conquistar a Anatólia, até ali terra cristã, e em Maio de 1453 tomaram Constantinopla, que a partir de então passou a ser a capital dos sultães otomanos, sucessores do antigo califado na liderança da jihad islâmica. Os Otomanos nos Balcãs e os Tártaros islamizados na Rússia renovaram a tentativa de conquistar a Europa, desta vez a partir do Leste, e durante um certo tempo pareceu que o sucesso estava à vista.
Mas uma vez mais a Europa cristã conseguiu expulsar os invasores, e de novo, desta vez com mais sucesso, contra-atacou os domínios do Islão. Por esta altura a jihad tinha-se tornado quase unicamente defensiva - resistindo à Reconquista em Espanha e na Rússia e aos movimentos de libertação nacional dos súbditos cristãos do Império Otomano, e por fim, segundo o ponto de vista dos muçulmanos, defendendo o coração das terras do Islão do ataque dos infiéis. Esta fase veio a ser conhecida por imperialismo.
Mesmo neste período de retirada, a jihad ofensiva não foi de modo nenhum abandonada. Já em 1896, os Afegãos invadiram a região montanhosa do Hindukush, que fica actualmente no Nordeste do Afeganistão. Até essa altura os seus habitantes não eram muçulmanos e por isso a região era conhecida pelos muçulmanos como «Kafiristão» - «Terra dos Infiéis».
Depois da conquista afegã passou a ser chamada «Nuristão» - «Terra da Luz». Durante o mesmo período, diversos géneros de jihads foram levados a cabo em África, contra populações não-muçulmanas. Mas na sua maioria, o conceito, a prática e a experiência da jihad no mundo islâmico moderno têm sido esmagadoramente defensivos.
O uso predominantemente militar do vocábulo manteve-se até tempos relativamente recentes. No Império Otomano a cidade de Belgrado, base avançada da guerra contra os Austríacos, recebeu o título condizente de Dar al-Jihâd (Casa da Jihad). No início do século XIX, quando o líder modernizador do Egipto, Muhammad ’Ali Pasha, reformou as forças armadas e a respectiva administração segundo os modelos francês e inglês, criou um «departamento da guerra» para as administrar. Em árabe era conhecido por Conselho de Estado dos Assuntos da Jihad (Diwân al-Jihâdiyya), e o seu chefe por supervisor dos assuntos da jihad (Nâzir al-Jihâdiyya). Poderíamos citar outros exemplos em que a palavra jihad perdeu o sentido sagrado e conservou apenas a conotação militar. Nos tempos actuais tanto o uso militar do vocábulo como o uso moral foram recuperados, e são entendidos e aplicados de modos diferentes por grupos diferentes de pessoas. Organizações que nos nossos dias reclamam o nome de jihad na Caxemira, na Tchetchénia, na Palestina e por toda a parte, é evidente que não usam a palavra para designar luta moral.
A jihad é por vezes apresentada pelos muçulmanos como o equivalente à Cruzada, e as duas são vistas como sendo mais ou menos equivalentes. Num certo sentido isto é verdade: ambas foram proclamadas e empreendidas como guerras santas, em nome da fé verdadeira contra um inimigo infiel. Mas há uma diferença. A Cruzada é um desenvolvimento tardio na história cristã e, de certo modo, marca um afastamento radical dos valores cristãos básicos conforme expressos nos Evangelhos. A cristandade estivera sujeita a ataques desde o século VII e tinha perdido vastos territórios para o domínio muçulmano; o conceito de guerra santa ou, mais comummente, guerra justa, era familiar desde a Antiguidade. Mas na longa guerra entre o Islão e a cristandade, a Cruzada foi tardia, limitada, e de duração relativamente curta. A jihad está presente desde o início da história islâmica - nas escrituras, na vida do Profeta, e nas acções dos seus companheiros e sucessores imediatos. Continuou ao longo da história do Islão e conserva o seu fascínio até aos nossos dias. A palavra «cruzada» deriva como é evidente da cruz e, originalmente, designava uma guerra santa para o cristianismo. Mas no mundo cristão há muito tempo que ela perdeu esse significado, e é usada com o sentido genérico de uma campanha moralmente impulsionada por uma boa causa. Pode-se empreender uma cruzada pelo ambiente, pela água pura, por melhores serviços sociais, pelos direitos da mulher, e por uma série interminável de outras causas. O único contexto em que a palavra «cruzada» hoje em dia não é usada é precisamente o contexto religioso original. A palavra «jihad» também é usada numa diversidade de sentidos, mas ao contrário de «cruzada» conservou o seu significado original e primário.
Aqueles que perdem a vida na. jihad chamam-se mártires, shahid em árabe e noutras línguas muçulmanas. A palavra portuguesa «mártir» vem do grego mártyr, «testemunha», pelo latim eclesiástico mãrtyre, e no uso judaico-cristão designa aquele que está pronto a sofrer a tortura e a morte para não renegar a sua fé. O seu martírio é pois um testemunho ou prova dessa fé, e da sua prontidão para sofrer e morrer por ela. O vocábulo árabe shahid também significa «testemunha» e é normalmente traduzido por «mártir», mas tem uma conotação bastante diferente. No uso islâmico o vocábulo «martírio» é normalmente interpretado como significando a morte numa jihad, e a sua recompensa é a felicidade eterna, descrita com algum pormenor em textos religiosos antigos. O suicídio, pelo contrário, é um pecado mortal e merece a condenação eterna, mesmo para aqueles que sem ele teriam um lugar assegurado no paraíso. Os juristas clássicos distinguem claramente entre enfrentar a morte certa às mãos do inimigo e pôr fim à vida com as próprias mãos. A primeira conduz ao céu, a segunda ao inferno. Alguns juristas fundamentalistas recentes, e alguns outros, esbateram ou descartaram mesmo essa distinção, mas o seu critério está longe de ser unanimemente aceite. O bombista suicida corre, pois, um risco considerável devido a uma subtileza teológica.
Como a guerra santa é uma obrigação religiosa, encontra-se cuidadosamente regulamentada na shari’a. Os combatentes de uma. jihad estão proibidos de matar mulheres, crianças e idosos, excepto se eles atacarem primeiro, de torturar ou mutilar prisioneiros, e são obrigados a dar aviso claro do recomeço das hostilidades a seguir a uma trégua e a honrar os acordos. Os juristas e teólogos medievais discutem até certo ponto as regras da guerra, incluindo questões como quais as armas que são permitidas e quais as que o não são. Há mesmo um certo debate nos textos medievais acerca da legalidade dos mísseis e da guerra química, no primeiro caso referindo-se a manganelas e catapultas, e no segundo a flechas com as pontas envenenadas e ao envenenamento das reservas de água do inimigo.
Sobre estas questões há uma considerável variação. Alguns juristas permitem, outros colocam restrições e outros desaprovam o uso dessas armas. A razão apontada para a sua preocupação é o número indiscriminado de vítimas que elas provocam. Em nenhum ponto os textos básicos do Islão prescrevem o terrorismo e o assassínio. Em nenhum ponto - que eu saiba - ponderam sequer a matança indiscriminada de espectadores não implicados.
Os juristas insistem em que os despojos de guerra devem ser um benefício acidental e não um objectivo principal. Alguns vão ao ponto de dizer que se eles se tornarem o objectivo principal, isso invalida a jihad e anula os seus benefícios, se não neste mundo, no outro. Ajihad, para ter alguma validade, deve ser empreendida «na senda de Deus», e não pelo interesse no ganho material. Contudo, há queixas frequentes acerca do mau uso que é feito do nome honroso da jihad para fins desonrosos. Principalmente os juristas africanos lamentam o uso que é feito do termo jihad por captores de escravos para justificar as suas pilhagens e afirmar a posse legal das suas vítimas. A Lei Santa ordena que seja dado bom tratamento aos não-combatentes, mas confere aos vencedores amplos direitos sobre os bens e também sobre as pessoas e os familiares dos vencidos. De acordo com o costume universal da Antiguidade, os inimigos capturados na guerra eram escravizados juntamente com as suas famílias, e podiam ser vendidos ou conservados pelos seus captores para uso pessoal. O Islão trouxe uma alteração a esta regra, limitando o direito de escravizar àqueles que eram capturados numa Jihad, mas não em qualquer outra forma de guerra.
As regras para a guerra contra os apóstatas são um tanto diferentes e bastante mais rigorosas do que as da guerra contra os não-crentes. O apóstata ou renegado, aos olhos dos muçulmanos, é de longe pior do que o não-crente. O não-crente ainda não viu a luz, e há sempre a esperança de que eventualmente venha a vê-la. Entretanto, desde que preencha as condições necessárias poderá beneficiar da tolerância do estado muçulmano e ser autorizado a continuar a praticar a sua religião, e até a cumprir as leis da sua própria religião. O renegado é alguém que conheceu a verdadeira fé, ainda que por breve tempo, e a abandonou. Para esta ofensa não existe perdão humano e, de acordo com a esmagadora maioria dos juristas, o renegado deve ser condenado à morte - isto é, se for homem. Para as mulheres, uma pena mais leve de açoitamento e prisão pode bastar. Deus, na sua misericórdia, pode perdoar ao renegado no outro mundo, se assim decidir. Mas nenhum humano tem autoridade para o fazer. Esta distinção é de certa importância hoje em dia, em que os líderes militantes proclamaram uma jihad dupla: contra os infiéis estrangeiros e contra os apóstatas domésticos. A maioria, se não a totalidade, dos líderes muçulmanos que nós, no Ocidente, consideramos com prazer nossos amigos e aliados, são vistos como traidores ou, pior ainda, como apóstatas pela maioria ou a quase totalidade do seu próprio povo.
Desde tempos remotos, foi feita uma distinção legal entre os territórios adquiridos pela força (’anwatan em árabe, equivalente à expressão jurídica romana vi et armis) e os adquiridos por sulhan, isto é, por qualquer tipo de tréguas ou de rendição pacífica. As regras relativas ao saque e, de modo mais geral, ao tratamento a dar à população dos territórios acabados de obter, diferiam em alguns aspectos importantes. Segundo a tradição, a diferença era simbolizada na mesquita todas as sextas-feiras. Nos territórios tomados por ’anwatan, o pregador levava uma espada; nos que tinham sido tomados por sulhan, um cajado de madeira. A simbologia da espada continua a ser importante. Até aos dias de hoje, a bandeira saudita tem duas divisas sobre um campo verde. Uma delas é o texto árabe do credo muçulmano: «Não há nenhum Deus a não ser Deus, Maomé é o profeta de Deus». A outra é a representação inequívoca de uma espada.
Em certas alturas, os juristas reconheceram uma categoria intermédia - a Casa das Tréguas {Dâr al-Sulh) ou Casa da Aliança {Dâr ai- ’Ahd) - entre as Casas da Guerra e do Islão. Era constituída por países não-muçulmanos, habitualmente cristãos, cujos líderes estabeleciam qualquer espécie de acordo com os líderes do Islão, mediante o qual pagavam um género de imposto ou tributo, visto como o equivalente ao jizya, ou imposto por cabeça, e conservavam uma grande capacidade de autonomia nos seus assuntos internos. Um dos primeiros exemplos foi o acordo feito pelos califas omíadas no século VII com os príncipes cristãos da Arménia. O exemplo clássico da Dâr al-Sulh, ou Casa das Tréguas, foi o pacto acordado em 652 d.C. com os líderes cristãos da Núbia, segundo o qual estes não pagavam o imposto por cabeça mas prestavam um tributo anual constituído por um número específico de escravos. Ao decidirem ver as ofertas como tributo, os líderes muçulmanos e os seus conselheiros legais podiam adaptar a lei de modo a cobrir uma grande variedade de relações políticas, militares e comerciais com governos não-muçulmanos. Esta abordagem não desapareceu por completo.
Os muçulmanos souberam, desde muito cedo, que havia certas diferenças entre os povos da Casa da Guerra. Na sua maioria eram simplesmente politeístas e idólatras que não representavam uma ameaça séria para o Islão e eram prováveis candidatos à conversão. Encontravam-se essencialmente na Ásia e em África. A principal excepção eram os cristãos, que os muçulmanos reconheciam que tinham uma religião do mesmo género da sua, e eram portanto os seus maiores rivais na luta pelo domínio do mundo - ou, como eles o diriam, pela iluminação do mundo. O cristianismo e o Islão são duas civilizações definidas pela religião, que entraram em conflito não devido às suas diferenças mas sim às suas semelhanças.
O mais antigo edifício religioso muçulmano existente fora da Arábia, a Cúpula da Rocha, em Jerusalém, foi terminado em 691 ou 692 d.C. A construção deste monumento no lugar do antigo templo judaico, e no mesmo estilo e na proximidade de monumentos cristãos como o Santo Sepulcro e a Igreja da Ascensão, enviou uma mensagem clara aos judeus, e, mais importante ainda, aos cristãos. As suas revelações, apesar de autênticas em tempos passados, tinham sido corrompidas pelos seus indignos guardiães e eram por isso substituídas pela revelação final e perfeita contida no Islão. Tal como os judeus tinham sido derrotados e substituídos pelos cristãos, também a ordem do mundo cristão passava agora a ser substituída pela fé muçulmana e pelo califado islâmico. Para realçar esse ponto de vista, as inscrições corânicas feitas na Cúpula da Rocha denunciam aquilo que os muçulmanos consideram os erros principais dos cristãos: «Louvado seja Deus, que não gerou nenhum filho e não tem qualquer parceiro» e «Ele é Deus, uno e eterno. Não gera, não foi gerado, e não tem par» (Corão, CXII). Isto era claramente um desafio aos seguidores de Cristo no seu lugar de nascimento.
Um milénio depois, o estacionamento de tropas americanas na Arábia foi visto por muitos muçulmanos e em especial por Osama bin Laden como um desafio semelhante, desta vez feito pelos cristãos ao Islão.
Para realçar este primeiro desafio à cristandade, o califa, pela primeira vez, cunhou moedas de ouro, prerrogativa sua e da Roma imperial. É significativo que o nome da primeira moeda de ouro islâmica, o dinâr, seja copiado do denarius romano. Algumas dessas moedas ostentam o nome do califa, o seu título de «Comandante dos Fiéis», e os mesmos versículos polémicos. A mensagem era clara. No entendimento dos muçulmanos, os judeus e mais tarde os cristãos tinham-se extraviado e seguido falsas doutrinas. Por conseguinte, ambas as religiões foram invalidadas e substituídas pelo Islão, a revelação final e perfeita na sequência estabelecida por Deus. Os versículos corânicos citados na Cúpula e nas moedas de ouro condenam aquilo que para os muçulmanos é a pior das corrupções da verdadeira fé. É evidente que há ainda uma mensagem adicional do califa para o imperador: «A tua fé é corrupta, o teu tempo acabou. Eu agora sou o líder do império de Deus na terra».
A mensagem foi bem entendida, e a cunhagem das moedas de ouro foi vista pelo imperador como um casus belli. Durante mais de mil anos os califas do Islão empreenderam a sua luta desde as sucessivas capitais, Medina, Damasco, Bagdad, Cairo e Istambul, contra os imperadores cristãos em Constantinopla, Viena, e mais tarde, usando outros títulos, em países mais distantes e mais para ocidente. Cada um deles, a seu tempo, foi o alvo principal da jihad.
É claro que na prática a aplicação da doutrina da jihad nem sempre foi rigorosa ou violenta.
O estado de guerra canonicamente obrigatório podia ser interrompido por aquilo que era legalmente designado por tréguas, mas que pouco diferia dos chamados tratados de paz que as potências europeias em guerra assinavam umas com as outras. Tais tréguas eram feitas pelo Profeta com os seus inimigos pagãos, e tornaram-se a base daquilo a que poderíamos chamar lei internacional islâmica. De acordo com a shari’a, a tolerância em relação às religiões com base em revelações divinas prévias não era um mérito mas sim um dever (Corão, II, 245: «Em religião não há coacção»). Nas terras sob domínio muçulmano, a lei islâmica exigia que judeus e cristãos fossem autorizados a praticar as suas religiões
e a administrar os seus negócios, ficando sujeitos a alguns inconvenientes, o mais importante dos quais era um imposto por cabeça a que eram obrigados todos os adultos do sexo masculino. Esse imposto, chamado jizya, está especificado no Corão em IX, 29: «Lutai contra aqueles que não acreditam em Deus ou no dia final, que não proíbem aquilo que Deus e o Seu apóstolo declararam ser proibido, que não praticam a religião da verdade, mesmo que sejam os povos do Livro [isto é, judeus e cristãos], enquanto eles não pagarem a jizya, directa e humildemente». As últimas palavras têm sido interpretadas de várias maneiras, tanto em literatura como na prática.
Outros inconvenientes incluíam o uso de trajes ou distintivos que os diferenciassem, e a proibição de usar armas, montar a cavalo, possuir escravos muçulmanos ou exceder a altura dos edifícios muçulmanos. Com excepção dos dois últimos e da jizya, nunca foram rigorosamente cumpridos. Em compensação, os súbditos não-muçulmanos tolerados no estado muçulmano gozavam de uma larga margem de autonomia na administração dos assuntos internos da comunidade, incluindo educação, impostos, e o cumprimento das suas próprias leis de direitos individuais, nomeadamente o casamento, o divórcio e a herança. O pacto ou contrato entre o estado muçulmano e uma comunidade de súbditos não-muçulmanos chamava-se dhimma, e aos membros dessas comunidades toleradas chamava-se dhimmis. Em linguagem moderna, os judeus e os cristãos no estado islâmico clássico eram aquilo a que poderíamos chamar cidadãos de segunda classe, mas a cidadania de segunda classe, estabelecida de acordo com a lei e a revelação, e reconhecida pela opinião pública, era de longe melhor do que a ausência total de cidadania que era o destino dos não-cristãos e até de alguns cristãos com comportamentos anómalos no Ocidente.
A jihad também não impediu os governos muçulmanos de procurarem ocasionalmente aliados cristãos contra os seus adversários muçulmanos, mesmo durante as Cruzadas.
(Bernard Lewis - A crise do islão - Guerra Santa e Terror ímpio)