"Não há nome que me designe, nem marca, nem sinal. As designações são escolhidas por homens inseguros, que precisam de uma palavra para cristalizar as suas vagas emoções, de uma luz fraca para guiar-lhes os passos incertos.
(...) Roma já não é a Cidade da Fé, uma cidadela do misticismo. É uma organização política, e os seus padres são estadistas e políticos, ansiosos pelas glórias do poderio material e da subjugação de reis e governos, ambiciosos de poder para si mesmos. O Santo Império Romano, através da corrupção, da intriga e da avareza, transformou-se no Negro Império Romano, que procura escravizar todos os homens para ficar cada vez mais rico. Que é feito da fé que antes lhe dava verdade e radiância? Tornou-se uma espada implacável nas suas mãos.
(...) Enquanto a espada da ambição não for quebrada, nenhum homem, em nenhuma parte do mundo, estará a salvo, nenhum governo estará firme, e o sonho dos justos, um sonho de liberdade e esclarecimento, terá que ser sonhado nas celas das prisões e na solidão mais escura.
(...) A Igreja de Deus transformou-se na Igreja de patifes e saltimbancos, de atores e malfeitores, de mentirosos e inimigos, de intriguistas perigosos. A sombra da mitra está ofuscando o sol de Cristo."
(Taylor Caldwell - A LUZ E AS TREVAS)
"Os padres... Como os conheci? Na casa do vovô, creio; tenho a obscura lembrança de olhares fugidios, dentaduras estragadas, hálitos pesados, mãos suadas que tentavam me acariciar a nuca.
Que nojo. Ociosos, pertencem às classes perigosas, como os ladrões e os vagabundos. O sujeito se faz padre ou frade só para viver no ócio, e o ócio é garantido pelo número deles.
Se fossem, digamos, um em mil almas, os padres teriam tanto o que fazer que não poderiam ficar de papo para o ar comendo, capões. E entre os padres mais indignos o governo escolhe os mais estúpidos, e os nomeia bispos.
Você começa a tê-los ao seu redor assim que nasce, quando o batizam; reencontra-os na escola, se seus pais tiverem sido suficientemente carolas para confiá-lo a eles; depois, vêm a primeira comunhão, o catecismo e a crisma; lá está o padre no dia do seu casamento, a lhe dizer o que você deve fazer no quarto e no dia seguinte no confessionário, a lhe perguntar, para poder se excitar atrás da treliça, quantas vezes você fez aquilo.
Falam-lhe do sexo com horror, mas todos os dias você os vê sair de um leito incestuoso sem sequer lavar as mãos, e vão comer e beber o seu Senhor, para depois cagá-lo e mijá-lo.
Repetem que seu reino não é desse mundo, e metem as mãos em tudo o que podem roubar. A civilização não alcançará a perfeição enquanto a última pedra da última igreja não houver caído sobre o último padre, e a Terra estiver livre dessa corja."
(Umberto Eco - O Cemitério de Praga)
Garçons aprendem a ser garçons construindo sua impressão de um garçom. Garçons andam de um certo jeito, assumem uma certa atitude, estabelecem algum ponto na escala entre intimidade e distância etc. Tudo bem com isso, contanto que o garçom tenha consciência de que é apenas um papel. Mas todos nós sabemos que garçons acreditam que realmente são garçons, que isso é o que são essencialmente. Três mauvaise foi!
O título já é redundante, porque não há religião sem Fé e porque o seu conceito é um pouco diferente do conceito de crença comum. Fé seria a crença comum, mas especialmente dirigida a tudo o que se relacione com Deus, com a Igreja, com as coisas tidas como sagradas. A redundância, no entanto, é útil, não só para bem distinguí-la da crença pagã, como também para justificar aquela vinculação.
Religiosos de todos os tempos já afirmaram que a Fé é um fenômeno congênito e distinto da razão humana. Há quem acredite seja ela apenas o resultado de um impacto direto com as coisas sagradas, assim consideradas por intuição e independentemente da capacidade de raciocinar. Seria apenas como um estado de alma. Recentemente, o próprio Papa João Paulo II, em sua encíclica “Fides et Ratio”, afirmou que ambas, a razão e a fé, devem coexistir e conviver. Para êle, a Fé, desprovida de razão, se arrisca a deixar de ser uma proposição universal, descambando para a superstição e o misticismo. Enquanto que a Razão, por sua vez, tem que ter mistério.
As Igrejas tudo fazem para estimular cada vez mais a Fé de seus adeptos, com a orientação circundante de que tudo é sagrado quando se pensa ou se fala em Deus. Daí, qualquer um dos atos religiosos do homem, como beijar uma imagem ou praticar orações de joelhos, deve ser considerado sempre como um modo de agir em conformidade com aquele mandamento. Dizem que o homem precisa acreditar para sentir que cumpre a sua missão de amar a Deus, aos santos e às coisas sagradas.
Levados por essa crença imposta, porém, os homens nem se apercebem que o ato de ter fé é apenas demonstração de sua insignificância diante da imensidão das coisas consideradas divinas. A Fé, na verdade, não passa de um mero produto da nossa mente, a partir dos conhecimentos trazidos pelos sentidos ou desenvolvidos pelo intelecto. Por isso, entender a Fé só pelo ponto de vista da religião é simplesmente desconsiderar a nossa própria capacidade dinâmica de pensar, atributo do sêr humano.
Racionalmente, devemos acreditar, sim, naquilo que sentimos, nas percepções oriundas da razão ou dos sentidos. Por exemplo: estamos vendo ali um avião ou um pássaro, êste é o rosto de uma criança, aquela maçã é deliciosa, tal perfume é de jasmim, êsse é um trecho da ópera Carmen (ou de uma canção com Roberto Carlos). Trata-se de conhecimentos pelos sentidos de realidades incontestáveis. Sei, ainda, com certeza, que aquele menino existe porque decorreu de uma anterior junção de dois gametas, um masculino e outro feminino. Ou que aquela flor é produto de um cruzamento vegetal. Ou que o homem construiu êste edifício. Ou que dois mais dois são quatro. Aqui o conhecimento provém da lógica das coisas, do raciocínio que nos levou a concluir a partir de fatos anteriores como premissas.
A fé religiosa, no entanto, não tem base onde apoiar-se e deriva só da condição de terem sido considerados transcedentais ou sagrados certos dogmas da religião. Se dissermos: Eu acredito que Deus existe porque Êle criou o mundo, ou em Santo Antonio, que me vai arranjar um bom casamento, ou em N. S. Aparecida porque ela me protege, ou em Santo Expedito, de quem recebi aquela graça, dá para se notar fácilmente que a fé de cada religioso não se vincula a qualquer relação de causa e efeito.
Se a fé remove montanhas, nunca vimos montanha alguma removida só pela fôrça da fé. Nem é verdadeiro o fato de ter-se aberto o mar para a passagem de Moisés e sua comitiva, como uma das estórias bíblicas. Já tomamos conhecimento de muitas ocorrências que se explicam como sendo fenômenos sobrenaturais por não terem sido previstas ou aguardadas pelo ser humano. São fenômenos hoje muito estudados pela parapsicologia. O que não podemos é considerá-los como diretamente derivados do poder de Deus ou do Espírito Santo, ou em decorrência de pedidos, orações ou preces. Da mesma forma que nas mágicas, onde tudo tem aparência de realidade, mas nunca passa de bem elaborados truques. E ninguém diz que o mágico é santo.
A Fé é muitas vezes a ostentação do homem, que é muito preguiçoso para pesquisar (Michael C. Knowles – Beneditino inglês).
Por causa da preguiça de raciocinar é que surgem todas as religiões. Elas imaginam a existência de um Deus, criam místicas e teorias (às vezes até com má-fé) para levarem a massa humana a seguir as suas doutrinas e a acreditar nÊle, respeitando-O e adorando-O cegamente como a um “Pai Nosso”, sob pena de advirem, após a morte de cada descrente, severas punições.
Ocorre que a grande maioria dos seres humanos, por não terem êstes nascido líderes, esquiva-se de pensar mais profundamente nas verdadeiras razões de ser de cada coisa. E apenas seguem o pregador. Por outro lado, os poucos que nasceram líderes, e se lançaram neste campo, dedicam-se a reunir o povo subserviente de uma congregação para transmitir-lhe o que ouviram de dirigentes anteriores ou que imaginaram como “sua” interpretação.
E fácil aglomerar o povo menos esperto nessas reuniões. Quanto menor for a cultura ou a escolaridade dos membros de um grupo, maior será a sua frequência às Igrejas, aos cultos ou aos terreiros. Ficam esses adeptos tão entretidos com as palavras bonitas dos pregadores, quase sempre citando as Escrituras Sagradas, que passam sem maior dificuldade até a contribuir com dinheiro (dízimos) em favor dessas Igrejas ou seitas, “certos” de terem de mantê-las, muitas vezes até com sacrifício pessoal.
Só a mente humana poderia imaginar um Deus assim, criador, dotado de vontades, para fazer o mundo a seu exclusivo critério. Como se pode acreditar num Deus que tenha criado os homens, com grandes diferenças entre todos êles? Por que não devemos simplesmente crer nessa premissa? É porque a nossa vida está ligada àquele ciclo gigantesco da Essência Vital, onde é irrelevante que se tenha fé, ou não, em questões sobrenaturais. Ora, se ter fé é um dom, a existir por si, autônoma e independente da razão, por que ela não está no íntimo de todos, indistintamente? Não estando, êsse Deus foi injusto, fazendo-nos diferentes uns dos outros. Ou então é natural que usemos a nossa própria inteligência, até mesmo para comentar essa questão da Fé religiosa.
(Laurindo Toretta - DEUS, AS RELIGIÕES E O UNIVERSO)
O que é fé e o que é má-fé?Fé (lat. fides: confiança, crença)
1. Atitude religiosa do verdadeiro crente que se liga a Deus por um ato voluntário, a partir de uma testemunha de origem sobrenatural. As relações da fé com a razão estiveram no centro das filosofias medieval e clássica. Segundo Tomás de Aquino, “foi necessário, para a salvação do homem, que houvesse, fora das ciências filosóficas que a razão perscruta, uma doutrina diferente, procedendo por revelação divina”. Sinônimo de crença.
2. Atitude mental que consiste em ligar-se, a partir de uma testemunha ou de uma autoridade indiscutível, a algo com o qual nos comprometemos. Assim, a fé aparece nas expressões jurídicas “dou fé”, “respeitar a fé jurada”, “testemunhar sob a fé do juramento” etc. Quando a fidelidade ao engajamento é uma fidelidade à verdade ou à intenção, fala-se de boa-fé. A má-fé é a duplicidade, a hipocrisia por palavra ou ato. A má-fé é um despistamento para o outro de seus verdadeiros sentimentos, um ocultamento do fundo de seu pensamento. Para Sartre, ao contrário, a má-fé consiste em se ocultar a si mesmo seus verdadeiros projetos ou o sentido de uma situação por essa espécie de duplicidade que é o modo de ser necessário do para-si (homem). (HILTON JAPIASSÚ, DANILO MARCONDES - DICIONÁRIO BÁSICO DE FILOSOFIA)
Na ma-fé há um mentir a si mesmo. Na má-fé eu escondo a verdade de mim, não há dualidade enganador-enganado, nela está implícita a unidade de uma consciência. Não se trata de um estado, não nos infectamos com ela; não vem de fora da realidade humana, a própria consciência se afeta da má-fé. Há um projeto de má-fé e uma intenção primordial, isto é, aquele a quem se mente e aquele que mente é uma só e mesma pessoa. Nas palavras de Sartre
“Enquanto enganador, devo saber a verdade que é-me disfarçada enquanto enganado” (SARTRE, J-P. O Ser e o Nada). Ou melhor, essa verdade para que seja ocultada por mim com o maior cuidado, deve ser muito bem conhecida por mim.
Para que haja uma melhor compreensão do fenômeno da má-fé, vamos a um exemplo bastante elucidativo.
Vejamos esse garçom. Tem gestos vivos e marcados, um tanto precisos demais, um pouco rápido demais, e se inclina com presteza algo excessiva. Sua voz e seus olhos exprimem interesse talvez demasiado solícito pelo pedido do freguês. Afinal volta-se, tentando imitar o rigor inflexível de sabe-se lá que autômato. (SARTRE, J-P. O Ser e o Nada)
Toda a sua conduta parece uma brincadeira, ele assume a presteza e a rapidez inexorável das coisas. Ele brinca de ser garçom; brinca com a sua condição para realizá-la, tentando se aprisionar naquilo que é. Mas o problema é que o garçom não pode ser garçom de imediato e por dentro como esse tinteiro é tinteiro, ou esse livro é livro. A sua condição de sujeito remete à transcendência, a possibilidades abstratas; ao sujeito que deve ser, mas não é. Só posso ser esse ser-garçom por representação.
“Por mais que cumpra as funções de garçom só posso ser garçom de forma neutralizada, como um ator interpreta Hamlet...”(SARTRE, J-P. O Ser e o Nada)) Mas o que tento realizar é o ser em-si do garçom, como se não fosse de minha escolha me levantar às cinco horas da manhã ou ficar deitado, correndo o risco de ser demitido do emprego. Eu sou garçom não à maneira do em-si e sim sendo o que não sou, sendo aquele que transcende de ponta a ponta e ser em-si que pretendo ser. Sou uma “divina ausência” que por toda parte escapa ao ser.
Isso se dá pelo modo de ser da consciência que é o para-si; pura transcendência, o oposto do em-si. Sendo este o ser (pura positividade) fechado em si mesmo, o para-si se manifesta como o outro que não o em-si, como o nada que possui uma “ânsia” pelo ser, como uma “manifestação” que é pura relação com este ser-em-si. Por isso a consciência se faz, seu ser é intencional, voltado para fora, é consciência de ser. A má-fé se manifesta quando esta condição humana se desdobra para assumir uma segunda natureza, quando o garçom quer se tornar coisa-garçom. Nas palavras de J. F. Povoas:
“Na má-fé, o homem recusa sua liberdade, deixa de ser razão para ser paixão. Ele é agora, apenas uma mentira.”