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Margarida

por Thynus, em 18.02.15
Fausto não seria Fausto, síntese dos apetites da juventude e do desejo insaciável pelo saber, sem que fosse complementado por Margarida, essa mártir do furor diabólico encarnado por Mefistófeles, que é destruída para satisfazer uma ambição que se acaba tornando igualmente purificadora.
(Martha Robles)  
 
Antes que Georg Zabel mudasse seu nome para Johannes Faust, que vende sua alma ao diabo em troca dos prazeres desta vida, já escandalizava os aldeões nas tabernas com seus oráculos e afirmações. Alguns crêem que viveu de 1480 a 1540, e que a lenda foi construída sobre um fundo de verdade. Ninguém então, em seu juízo perfeito, cobiçava a sapiência divina ou manifestava inveja pela criatividade praticada unicamente por Deus. Considerando os desconcertos habituais, as coisas se moviam com uma certa ordem: o Todo-Poderoso desvendava as verdades da fé e seus prelados estabeleciam o que era permissível aos sentidos e às fantasias. Assim se organizava a vida em comum e todos se curvavam com resignação aos ciclos naturais da existência. As disposições celestes eram acatadas com maior ou menor docilidade, e os assuntos terrenos vagavam entre o tédio, a resignação e o comedimento.
A ruptura de tal ordem, porém, ocorreu no momento em que um homem quis extravasar suas próprias capacidades. O renomado doutor Fausto não ignorava que Mefistófeles costuma despertar nas altas inteligências um grande apetite pela atividade fecunda, justamente aquela pela qual sentia uma inquietação crescente. Acreditava que o mundo seria insípido, enganosamente pacífico e adormecido se Deus não tivesse deixado esse demônio em liberdade para acionar uma parte das forças que anseiam sempre pelo mal, mas que, sem cessar, provavelmente sem pretendê-lo, acabam por conduzir ao bem. Foi assim que ele se aventurou em seus signos obscuros e decidiu entregar sua alma ao príncipe dos infernos em troca de fundar o que seria mais tarde chamado mito fáustico, arrastando em sua esteira a jovem Margarida, que perduraria para sempre como vítima ou contraparte do símbolo da curiosidade temerária.
Aventureiro malandro, apaixonado pelo saber, esse peculiar homem de ciência e professor particular costumava viajar de Gelnhausen a Erfurt de Ingolstadt a Nuremberg e mesmo pelas regiões mais afastadas da antiga Germânia para impressionar clérigos, estudantes e taberneiros com predições extravagantes e notícias do universo ou do tempo. Seus interesses eram totalmente distintos daqueles que se costumava atentar naquelas aldeias medievais infiltradas de preconceitos, de superstições e de feitiçarias tão diversas e penetrantes que, em vez de se acostumarem à extravagância, imputavam aos seres um pouco diferentes a fama de irreais, possessos ou endemoninhados. "Magister Georg Sabellicus, Fausto o Jovem. Fonte dos necromantes, astrólogo, mago de segunda ordem, quiromântico...". Era assim que redigira sua própria apresentação manuscrita em cartões de elaborado cursivo. Não havia quem lesse tais linhas e resistisse à tentação de escutá-lo. Até brotavam aqui e ali certas pessoas que juravam tê-lo visto partir na metade da noite, como foi afirmado em Leipzig, cavalgando nas ancas de seu cavalo Pégaso, cercado por sombras fantasmagóricas.
Escreveu o horóscopo do bispo de Bamberg e, em 1540, pouco antes de sua morte, sempre perseguido pela justiça em razão de seus numerosos delitos, vislumbrou acontecimentos tão pormenorizados e insólitos como a expedição dos Welser à Venezuela, a qual, segundo informou o cavaleiro Philipp von Hutten, "resultou tal e qual havia predito o filósofo".
Em poucas décadas sua legendária celebridade captou a atenção de biógrafos e poetas. De simples relato popular, sua memória se foi convertendo em caráter dramático, figura trágica, alegoria moral, fábula renascentista, símbolo do racionalismo e personagem mítico até se irmanar com as criaturas melancólicas dos Oitocentos, derivadas do romantismo, conhecido como "o mal do século". Fausto não seria Fausto, síntese dos apetites da juventude e do desejo insaciável pelo saber, sem que fosse complementado por Margarida, essa mártir do furor diabólico encarnado por Mefistófeles, que é destruída para satisfazer uma ambição que se acaba tornando igualmente purificadora.
Antes que Goethe revisitasse, no decorrer do século XIX, os fundamentos bíblicos do universo e explorasse variações de Lúcifer e de Margarida em sua conhecida obra, era comum na Europa interpretar-se das maneiras mais distintas essa lenda de cunho claramente moralizador. A versão de Christopher Marlowe, contemporâneo de William Shakespeare e de Ben Jonson, foi encenada em vários países, e chegou a ser comum adaptá-la em verso ou em prosa para o teatro de marionetes até que, recriada segundo as concepções de nosso tempo, a novelística e o cinema se apropriassem dessa trama, uma das mais sugestivas da literatura por conter uma grande variedade de elementos entre a vida e a morte, sempre complicados pela paixão, pela ânsia de poder e pelos desejos concorrentes de possuir e de saber.
Dramaturgo e aventureiro, o próprio Marlowe foi apunhalado em virtude de uma contenda amorosa aos 29 anos de idade. Peculiar como seu diabólico inspirador, sua força cênica não pode ser separada de seu próprio espírito fáustico, o mesmo que acometeria Thomas Mann e os criadores contemporâneos que descobrem em Fausto um veio inesgotável que costuma deixar de lado a enigmática Margarida, figura sombria que avança através dos séculos com uma feminilidade degradada às costas, triste e desamparada, uma personagem que nem os psicanalistas se atreveram a analisar.
Diferentemente de outros mitos que também envolvem enredos entre homens e deuses, este tem a inteligência e a sensibilidade como diretrizes centrais. Reduzida, a antiga divindade se humaniza por meio dos questionamentos de Fausto. Decresce o significado do absoluto e se reavaliam as dúvidas acerca dos atributos do homem. Dessa maneira, o signo fáustico é o da dignidade indivisa do humanismo, e se transforma no símbolo mais elevado da curiosidade que suscita o descobrimento de si mesmo e do universo diante do desafio intimidante das regiões mais tenebrosas da alma.
Este é o drama da insatisfação que se aventura no desconhecido. Em Fausto oculta-se o tríplice desejo de sentir, conhecer e criar para se reconhecer no mundo, com a intenção de transformá-lo transformando a nossa natureza interior, ou seja, ao se firmar um desafio ao destino, o personagem masculino investe no sonho de triunfar sobre o tempo e no empenho perdurável de transcender às limitações da natureza; todavia, para atingir esse objetivo compromete a vontade de uma mulher que, em sua paixão, não encontra como recompensa nada mais que a dor e a morte.
O fáustico é, portanto, o grande mito de nossa civilização. Nele convergem a estreiteza da religiosidade remota e a amplidão do espírito renascentista. Filósofo, alquimista e mestre, no caráter do herói sobressaem a triste consciência de não poder ser mais do que se é, e o empenho de vencer a ordem que o coíbe. O trágico do Fausto mítico se encontra principalmente no tédio do qual padece: não importa quão profundamente se explore o desconhecido nem até onde ou como o diabo incite à transgressão porque, cedo ou tarde, o homem acaba por se deparar com o enfado. Para Goethe, o único antídoto para essa imagem de silenciosa obscuridade está nos afazeres da cultura, no movimento inexorável do espírito e no cultivo da arte de viver que, não obstante, não atendeu às possibilidades da mulher.
Foi por isso que Goethe criou um Fausto tão contrastante nas duas partes de seu drama, tão ávido de conhecer a ciência universal como seu próprio lugar no mundo. Seu espírito é aquele que exaure todos os gozos e curiosidades possíveis antes de sossegar seu ímpeto. Mostrou as aspirações de um filósofo que entende que o valor da vida consiste na busca e no alcance do objetivo perseguido; conseqüentemente examinou as aspirações de um mestre que procura esclarecer a complexidade mediante o enriquecimento da linguagem. Demonstrou que procura compreender integralmente tanto o inculto como o científico fascinado pelo poder transformador da vontade sobre as coisas. Em Fausto encontramos ainda o artista que tem consciência de como suas aspirações são ilimitadas. É um sábio que aprende a viver por viver, satisfeito com sua insatisfação e sem padecer a dúvida sobre se sua própria história valia a pena ou não. O mito desentranha o herói que enfrenta as forças obscuras com as armas da razão e que não negligencia sua parte íntegra, arrogante, lasciva e contraditória. Fausto é obstinado, impulsivo, egoísta e tão extremamente humano que até mesmo seu descontentamento serve para engrandecê-lo. Mito, pois, do ser total, o doutor Fausto é capaz de harmonizar suas atitudes espirituais para triunfar sobre o destino. O Fausto de Goethe reúne as peculiaridades daqueles que, tanto na história próxima como na remota, pensaram sua insatisfação vital como o desafio digno, por exemplo, de um Hamlet, de um Kepler, de artistas como Wagner ou do próprio Goethe, tantas vezes os objetos das ponderações de Thomas Mann. Daí o interesse por Margarida e a curiosidade não resolvida por entender em que consiste a intervenção feminina na mais inflamada luta contra os verdadeiros e mais perduráveis poderes do Bem e do Mal.
Tal como na história de Eva, Margarida é o instrumento de Lúcifer para dobrar a virtude e o talento masculinos. Depois de Satã, Mefistófeles é o dignitário mais temível do inferno. Desde a queda de Adão, o demônio acreditou como certa a condenação da criatura mais apreciada por Deus; mas em sua perversidade, impele o agente do progresso que oscila entre a suposta candidez e a debilidade; entre o afã da aventura e a claridade que, cedo ou tarde, outorga a graça da razão; e entre o enganador mais astuto que acaba por ser enganado no momento em que sua presa descobre um caminho de salvação - neste caso, o das preces mais contritas.
Para Mefistófeles, a inteligência é perversa porque a mente tende a se inclinar à desordem. Especialista em tentações que vão do sutil ao grosseiro, segundo as qualidades do alvo eleito, sabe como é fácil infiltrar-se pela via sentimental e, se pode escolher, prefere o desafio racional, pois diferentemente dos sentidos, nele a argúcia se eleva ao nível de jogo pelo poder, sempre atraente para sua avidez de divindade. Enquanto Fausto expressa ao longo do drama os estados de seu próprio espírito e submete à prova as idéias e os ideais de seu tempo, Margarida protagoniza a vertente lírica do amor sentimental que descobre na religiosidade o único canal para a redenção, depois de haver transitado por todos os escaninhos da mais perfeita arbitrariedade. Ela aparece no centro de uma tragédia que não é erótica nem cavalheiresca, tampouco de aventuras como o Dom Quixote, muito menos de veleidades sensuais como as donjuanescas; mas de peripécias contra o próprio destino, as quais estabelecem a natureza do equilibrista e colocam em relevo as situações-limite. A Fausto pertencem a ânsia pelo conhecimento e a decisão de atuar com frenesi ao proclamar a ação como princípio do mundo; mas a seu apesar e incitada pelas beberagens de Mefistófeles, Margarida assume o papel anterior ao de Eva, porque deve ser enganada não somente pela palavra, mas com o auxílio de um elixir diabólico que submete sua consciência em favor do desejo.
Embora nunca se tenha dito, a tragédia encerra um duplo drama de violência e de imoralidade se considerarmos que, ao elegê-la como objeto de seu delírio senil, Fausto vê em Margarida uma jovem cheia de frescor que vivia em companhia de sua mãe e de seu irmão. O fato crucial do mito é o do filósofo rejuvenescido por Mefistófeles que enfrenta o apetite erótico com poderes diabólicos, típicos de quem a todo custo recusa sua realidade, e que seduz a jovem ao custo de um crime e de uma série de erros encadeados. Consciente do risco que ameaça sua filha, a mãe de Margarida é entorpecida por uma beberagem que lhe provoca a morte; seu irmão sucumbe igualmente ao enfrentar o amante implacável. Ao escapar da justiça, Fausto deixa Margarida no mais completo abandono; ela, por sua vez, novamente sem saber o que ocorre, cai em tal estado de desespero que, em plena gravidez, a conduz à demência e também ao crime.
O verdadeiro destino trágico recai, portanto, em Margarida, e não sobre aquele que voluntariamente pactuou com os poderes malignos. Sua indefensabilidade é absoluta, uma vez que ela ignora a causa que desencadeou sua própria desgraça e o fim sangrento de sua família. Ela, como costuma ocorrer, é usada e subjugada pelas paixões próprias de um homem decrépito. Simplesmente não dispõe de recursos para se opor aos caprichos masculinos. Na segunda parte do poema de Goethe, vemos como avança a cobiça de Fausto até convertê-lo em um ser desumano, carente de escrúpulos, insensível até mesmo durante aqueles primeiros impulsos amorosos que o aproximaram de Margarida. Depois do célebre incêndio da casinha de Filemon e Baucis um dos episódios que selam seu processo autodestrutivo, ao doutor Fausto não restam quaisquer resquícios de racionalidade ou de nobreza. Está mais próximo da índole de Mefistófeles do que da condição de humanidade que pudesse fazê-lo retornar a um estado mínimo de ordem e de moralidade Em seu afã de domínio, já não mais conduzirá o veneno diabólico com suas mãos, nem seu corpo lhe será suficiente para seduzir e causar calamidades; nessa etapa de sua vida, em franco declínio rumo à senilidade, apenas enreda os demais a fim de estender um dano sem fim, que nem sequer o satisfaz porque, em seu turbilhão, descobre que existem limites para a natureza humana, inclusive no que se refere à maldade.
Essa oposição entre a cobiça desmesurada e a fadiga que acaba pervertendo a imaginação através do tédio contradiz o propósito inicial do filósofo, o qual, ao oferecer a alma a Mefistófeles com o objetivo de ascender à plenitude da vida e do conhecimento, somente encontra seu lado execrável, não sua contraparte de bondade nem de aprazível sossego. Nesse sentido, o príncipe do inferno fracassa porque, cedo ou tarde, impõe-se o fastio sobre os apetites saciados. Talvez seja essa a causa de que, cansado de si mesmo e de sua própria dinâmica, se perverta para prolongar os efeitos do mal, como uma maneira de afastar o tédio.
O segundo Fausto renunciou à busca das sensações refinadas, características de sua condição intelectual. Não se interessa pelo sutil nem repara nas múltiplas possibilidades que o saber encerra. Agora corrompe os outros porque sua capacidade persuasiva é a única que alcançou seu ponto mais elevado de desenvolvimento. Aqueles que o acompanham obedecem-lhe as ordens com uma docilidade aterradora. Arrasa os inocentes, extermina de igual forma tanto anciãs como um jovem caminhante ocasional; cada episódio não faz senão conduzi-lo de volta a uma espécie de adolescência rebelde e pré-consciente, que demonstra absolutamente não haver valido a pena o preço que pagou por sua alma, porque o vazio é a única coisa que lhe resta. Um vazio estarrecedor que, novamente, implica Margarida, ainda que agora em seu papel de redentora, até fazê-lo despertar.
O Fausto enamorado da primeira parte apresenta, no máximo, um certo interesse por sua curiosidade e pelo desejo de oferecer tudo em troca de um instante de intensidade. Atrás dele, entretanto, cresce a vertente trágica de uma Margarida que, na ocasião devida, demonstra que o símbolo da feminilidade indefesa engloba todas as tentativas possíveis para assinalar os limites de uma existência que carece de voz e até de atrativos para o demônio. Na parte mais substancial de seu drama, não há diferença entre sua realidade e o destino de uma Heloísa histórica, confinada no claustro por Abelardo, seu amante filósofo e mutilado que foge dela para sublimar sua dor por meio do estudo e da celebrização. Cada uma a seu modo, ambas são vítimas dos poderes supremos, e as duas, por causa do amor, perdem família, rosto, liberdade e identidade por haverem amado homens maduros e sedutores, apaixonados pelo conhecimento.
Fausto e Abelardo, por sua parte, têm em comum o ímpeto lírico de seu pensamento criador, ainda que os diferencie a forma como se manifestou o agente externo de sua respectiva maldade: Fausto, até o momento em que, frente à morte, vislumbra os efeitos do mal que causou e se arrepende, graças à ajuda benéfica de Margarida, obedece ao desenrolar da ação concreta; Abelardo, por sua vez, se recolhe oportunamente para criar à luz de Deus, para pensar as condições de sua redenção a partir de uma cela monacal, na qual não faltam ocasiões para lutar contra a irracionalidade de teólogos e mestres invejosos de seu talento, abominando as ações concretas em seu processo retificador. Sua redenção é justamente a contrária ao fim fáustico, porque renuncia de antemão a Heloísa para purificar seu espírito por meio da lucidez verbal. Morre na solidão típica do pensador progressista e, se o amor selou a sua derrota, o conhecimento outorgou-lhe uma liberação voluntária que ele mesmo negou à mesma Heloísa. Ela, por seu lado, censura a Deus com a certeza de que não dispõe de meios para modificar sua própria condenação. Rechaça seu destino e lamenta a ausência do amado inclusive aos pés do altar. Já Margarida é a vítima passiva, sempre insignificante, cujas orações contritas a fazem triunfar sobre o mal e lhe permitem salvar também a seu sedutor, não sem antes gerar dentro dele o sentimento de culpa que o levará a se arrepender. Alto modelo de feminilidade histórica, ela protagoniza a beleza e a virtude até ser prostituída pelo amante, e oportunamente descobre o perdão purificador.
Eva rediviva, Margarida é filha dos preconceitos. Representa a um só tempo a tentação e a esperança do outro. É também a depositária temporal da beleza provocativa da Helena homérica. Na realidade, a parte mais obscura do mito fáustico recai justamente sobre ela, na sua falta de ímpeto, na sua incapacidade de demarcar a justiça e na sua inépcia para se rebelar, o que torna o mito também um exemplo da negação intelectual feminina ao arrastar em seu destino a todas as outras Margaridas atemporais que, em sua fatalidade, perpetuam como improvável a concepção cultural de uma inteligência feminina lúcida, poderosa e atuante.

(Martha Robles - Mulheres, Mitos e Deusas, o feminino através dos tempos)
Fausto é um personagem de ficção, protagonista de várias obras literárias e musicais, inspirado num mago que se supõe que viveu entre o século XV e o século XVI. Proclamava que tinha vendido a sua alma ao diabo para obter sabedoría.

publicado às 23:42


ABELARDO E HELOÍSA

por Thynus, em 18.02.15
Abelardo é a primeira figura do intelectual moderno. Chamaram-lhe de
cavaleiro da dialética.
Abelardo e Heloísa. Ela tem 17 anos, é bela e culta. O amor que os
une realça o significado da mulher no mundo, reforçando a teoria do amor
natural tal como ele aparece no Romance da Rosa, um século depois. A
aparição de Heloísa ao lado de Abelardo é a glorificação da carne, do amor
carnal que mais tarde os humanistas iriam considerar o principal requisito da
plenitude do ser humano. Estamos longe do lirismo abstrato dos trovadores e
da aura do Tristão e Isolda, em que pese o erotismo intenso da lenda. Ao
falar dos homens da Idade Média, um historiador moderno não se conteve, e
exclamou: “Mas esses homens somos nós mesmos!” Nossa modernidade vem
de lá, queiramos ou não
.
(FRANKLIN DE OLIVEIRA in HENRY R. LOYN - DICIONÁRIO DA IDADE MÉDIA)

Na História Calamitatum
[História das Minhas Desgraças], Abelardo responsabiliza a inveja de seus
rivais e o seu próprio orgulho por seus fracassos. Mas conquistou o interesse
e a devoção de mais de uma geração de estudantes por ter tornado a lógica
de Aristóteles clara e por ter explorado com brilhantismo as funções e
limitações da linguagem.

Como filósofo, Abelardo foi corretamente descrito como um não-realista.
No início de sua carreira, afastou-se da concepção predominante que via os
universais (por exemplo, gênero, espécie) como coisas existentes (res).
Distinguiu-se mais por suas penetrantes glosas a textos de Aristóteles do que
pela criação de uma síntese filosófica. Em teologia, Abelardo examinou
criticamente as tradições recebidas do pensamento cristão; sua obra Sic et
Non é uma tentativa de resolver as aparentes contradições existentes no
âmbito do ensino cristão através da aplicação da dialética. Seus métodos não
eram incomuns para a época, mas suas conclusões foram julgadas
imprudentes por muitos. Seus ensinamentos teológicos refletiram seu nãorealismo
dialético; apresentou a Trindade em termos de atributos divinos
(poder, sabedoria e amor) e não de pessoas divinas. Considerou o trabalho
de redenção do Cristo menos como um fato objetivo (a libertação do homem
do pecado ou do demônio) do que como um exemplo de ensino e sacrifício
que provoca uma resposta subjetiva ao amor divino. Na ética, Abelardo
afastou-se da preocupação com ações para dedicar-se ao estudo da intenção
e do consentimento. Sua tendência para a interiorização também ficou
evidente nas substanciais contribuições literárias, legislativas e litúrgicas que
fez para o estabelecimento do convento do Paracleto, tendo Heloísa como
abadessa: as monjas eram exortadas a estudar e orar, e a não se sentirem
tolhidas, mais do que o necessário, por observâncias externas. Abelardo
admirava as figuras contemplativas que tinham sido modelos de sabedoria e
virtude, fossem eles pagãos, como Sócrates ou Platão, Cícero ou Sêneca,
profetas, como Elias ou João Batista, ou monges cristãos primitivos, como
Antônio e Jerônimo. Todos eles amaram a sabedoria e todos, portanto, como
Cristo, mereceram o nome de filósofos.

(HENRY R. LOYN - DICIONÁRIO DA IDADE MÉDIA)
 
Abelardo seduziu Heloísa, ou talvez tenha sido ela a seduzi-lo.
Tiveram um filho e, mais tarde, casaram-se em segredo. O cônego Fulbert
ficou furioso, acima de tudo devido ao segredo. Tanto Abelardo como
Heloísa receavam que o conhecimento da sua união significasse o fim da
vida acadêmica de Abelardo. Fulbert contratou bandidos, que armaram
uma emboscada e castraram Abelardo. Este passou o resto da vida amargurado
devido às esperanças perdidas, pois um castrato nunca viria a ter
uma carreira eclesiástica.

(CHARLES VAN DOREN - BREVE HISTÓRIA DO CONHECIMENTO)

Certa noite, depois de subornar um dos meus criados, enquanto eu
dormia, castigou-me com a mais cruel e infamante das vinganças:
mandou cortar aquela parte do meu corpo que havia cometido o crime.
Na manhã seguinte a aldeia inteira se juntara diante da minha casa.
Narrar agora o horror, o pasmo, os lamentos e os gritos dos amigos
seria muito difícil e talvez impossível.

(Abelardo, Storia delle mie disgrazie, Garzanti, Milão, 1974)

Sob ogivas litúrgicas
arrepiou-me o chiar de carnes entre tenazes de brasa,
a surda revolta do castrado inconformismo de Abelardo
a eloquência erética das chamas de Savonarola.

(Menotti del Picchia - MELHORES POEMAS)

Como todo mundo sabe, Abelardo era castrado, e
isso não impediu que ele e Heloísa fossem amantes fiéis e que o amor
deles fosse imortal.

(Milan Kundera - RISÍVEIS AMORES)

Também contribuiu para a Renascença do século 12 uma série de descobertas tecnológicas.
A partir desse século surgiram, na Europa, os moinhos de vento, os óculos,
o sistema numérico hindu-arábico, a fabricação de papel.
Outra novidade fez tanto sucesso que o casal Abelardo e Heloísa
se inspirou nela ao dar o nome do filho: Astrolábio.
(Leandro Narloch - Guia Politicamente Incorreto da História do Mundo)
 
O primeiro a morrer foi Abelardo em1142.
Ela o seguiu vinte e dois anos mais tarde e, antes de exalar o último
suspiro, pediu a Pedro, o Venerável, para ser enterrada junto
com o seu grande amor. Disse que aquele havia sido o último desejo
de Abelardo. O Venerável contentou-a, mas nos séculos seguintes os
despojos foram transferidos para sepulturas separadas até que, no fim
do século XVIII, colocaram-nos novamente juntos nos subterrâneos da
capela de Saint-Léger: mas botaram uma chapa de chumbo entre os
dois amantes para que os esqueletos não se aproveitassem da situação.
(Luciano De Crescenzo - HISTÓRIA DA FILOSOFIA MEDIEVAL)

 
Pedro Abelardo tinha apenas 30 anos aquando da morte de Anselmo. Nascido numa família de cavaleiros da Bretanha francesa, em 1079, formou-se em Tours e partiu para Paris por volta de 1100 para se juntar à escola anexa à catedral de Notre-Dame, dirigida por Guilherme de Champeaux . Incompatibilizando-se com o seu professor, partiu para Melun para fundar a sua própria escola, e mais tarde fundaria uma outra escola rival no Mont-Ste-Geneviève, em Paris. A partir de 1113 Abelardo substituiu Guilherme na direcção da escola de Notre-Dame. Nesse período hospedou-se em casa de Fulbert, cónego da Catedral, e tornou-se tutor da sobrinha deste, Heloísa. Tornaram-se amantes provavelmente em 1116 e, perante a gravidez de Heloísa, Abelardo desposou-a secretamente. Heloísa, que encarara o casamento com relutância, retirou-se pouco depois para um convento. Fulbert, ultrajado pelo modo como Abelardo tratara a sua sobrinha, enviou dois homens ao seu quarto para o castrarem. Abelardo tornou-se monge da abadia de S. Dinis, perto de Paris, e Heloísa entrou como freira para um convento em Argenteuil. O nosso conhecimento da vida de Abelardo até este ponto sustenta-se em grande medida numa longa carta autobiográfica que escreveu a Heloísa alguns anos depois, História das Minhas Calamidades. Trata-se do mais brilhante exercício autobiográfico desde as Confissões de S.to Agostinho.
Em S. Dinis, Abelardo continuou a leccionar (em parte para sustentar Heloísa). Começou a escrever sobre teologia, mas a sua primeira obra, a Teologia do Mais Alto Bem, foi condenada por um sínodo em Soissins, em 1121, que a considerou heterodoxa a propósito da Trindade. Após um breve período na prisão, Abelardo foi enviado de regresso a S. Dinis, mas tornou-se impopular e viu-se obrigado a abandonar Paris. Entre 1125 e 1132 foi abade de S. Gildas, uma abadia corrupta e violenta de uma zona remota da Bretanha francesa. Foi um período muito infeliz da sua vida; as suas tentativas reformadoras tornaram-no alvo de ameaças de morte. Entretanto, Heloísa tornara-se prioresa de Argenteuil, mas ela e as suas freiras foram expulsas do convento em 1129. Abelardo conseguiu descobrir e sustentar um novo convento para as acolher, o Paracleto, na região da Champagne. Em 1136 regressou a Paris para leccionar novamente em Mont-Ste-Geneviève. Os seus ensinamentos atraíram a atenção crítica de S. Bernardo, abade de Claraval e segundo fundador da Ordem de Cister, o pregador da Segunda Cruzada. S. Bernardo denunciou ao Papa a doutrina de Abelardo, conseguindo a sua condenação num Concílio em Sens, em 1140.
Abelardo apelou em vão a Roma contra a sua condenação; foi impedido de continuar a leccionar e viu-se obrigado a retirar-se para a abadia de Cluny. Foi aí que terminou os seus dias, pacificamente, dois anos mais tarde; a sua edificante morte foi descrita pelo abade de Cluny, Pedro o Venerável, numa carta a Heloísa.
A figura de Abelardo é invulgar na história da filosofia por se tratar de um dos amantes mais famosos do mundo, ainda que tenha sido tragicamente forçado ao celibato, uma condição mais característica dos grandes filósofos, tanto medievais como modernos. Mais do que como filósofo, foi como amante — um malogrado Lancelote ou Romeu — que Abelardo ficou célebre nas letras clássicas. Na Epístola de Heloísa a Abelardo, de Pope, Heloísa, do seu claustro gelado, recorda a Abelardo esse dia terrível em que ficou nu e ensanguentado aos seus pés; ela suplica-lhe que não abandone o amor que os une:
Vem! Com teu semblante, tuas palavras, alivia o meu pesar; Tais coisas pelo menos podes ainda conceder. Deixa-me ainda repousar sobre esse peito enamorado, Beber ainda o delicioso veneno dos teus olhos Respirar nos teus lábios e juntar-me ao teu coração; Dá-me o que puderes — e deixa-me sonhar o resto. Ah não! Ensina-me a estimar outras alegrias Encanta com outras belezas os meus olhos apaixonados, Enche-me a visão de luz E faz a minha alma abandonar Abelardo em favor de Deus.
 
A LÓGICA DE ABELARDO
A importância de Abelardo como filósofo deve-se acima de tudo ao seu contributo para a lógica e para a filosofia da linguagem. Quando iniciou a sua carreira de professor, a lógica era estudada no Ocidente principalmente com base nas Categorias e na obra Da Interpretação de Aristóteles, na introdução de Porfírio e em algumas obras de Cícero e Boécio. As principais obras de lógica de Aristóteles não eram conhecidas, e o mesmo acontecia com os seus tratados de física e metafísica. Por conseguinte, as investigações lógicas de Abelardo eram menos bem informadas do que as de, digamos, Avicena; mas Abelardo era dotado de uma espantosa perspicácia e originalidade. Escreveu três tratados independentes de lógica ao longo do período entre 1118 e 1140.
Um dos principais interesses dos lógicos do século XII era o problema dos universais: o estatuto de uma palavra como «homem» em frases como «Sócrates é um homem» e «Adão é um homem». Sendo um escritor combativo, Abelardo afirma que a sua posição sobre a matéria parte da insatisfação das respostas apresentadas por sucessivos mestres à pergunta: de acordo com tais frases, que têm em comum Sócrates e Adão? Roscelin, o seu primeiro mestre, afirmou que tudo o que tinham em comum era o nome — o mero som emitido quando se profere «homem». Roscelin era, como afirmariam os filósofos posteriores, um nominalista, sendo nomen a palavra latina para «nome».
Guilherme de Champeaux , o segundo mestre de Abelardo, afirmava que havia uma coisa muito importante comum a ambos, nomeadamente a espécie humana. Era, segundo a terminologia posterior, um realista, sendo res a palavra latina para «coisa».
Abelardo rejeitou as explicações de ambos os professores e propôs uma solução intermédia. Por um lado, era absurdo afirmar que Adão e Sócrates possuíam apenas o nome em comum; o nome aplicado a cada um deles em virtude da semelhança objectiva que os une. Por outro lado, uma semelhança não é uma coisa substancial como um cavalo ou uma couve; só as coisas individuais existem e seria ridículo sustentar que toda a espécie humana está presente em cada indivíduo. Devemos rejeitar tanto o nominalismo como o realismo.
Quando sustentamos que a semelhança entre coisas não é uma coisa, devemos evitar dar a impressão de estarmos a tratá-las como se nada tivessem em comum; já que aquilo que estamos realmente a dizer é que um e outro se assemelham pelo facto de serem humanos, ou seja, pelo facto de serem ambos seres humanos. Não queremos dizer mais nada senão que são seres humanos e que em nada diferem a esse respeito.
O facto de serem humanos, que não é uma coisa, é a causa comum para a aplicação do nome aos indivíduos.
A dicotomia apresentada por nominalistas e realistas é, como Abelardo mostrou, inadequada. Além das palavras e das coisas, devemos levar em linha de conta o nosso próprio entendimento, os nossos conceitos: são estes que nos permitem falar sobre as coisas e transformar sons vocais em palavras com significado. Não existe um homem universal distinto do nome universal «homem»; mas o nosso entendimento transforma o som «homem» num nome universal. Do mesmo modo, sugere Abelardo, um escultor transforma um bloco de pedra numa estátua; podemos assim dizer, se quisermos, que os universais são criados pela mente tal como uma estátua é criada pelo seu escultor. São os nossos conceitos que dão significado às palavras — mas o significado não é, para Abelardo, uma noção simples. Ele faz uma distinção entre aquilo que a palavra significa e aquilo que a palavra representa. Consideremos a palavra «rapaz». Sempre que ocorre numa frase, significa a mesma coisa: «ser humano jovem do sexo masculino». Na frase «um rapaz corre sobre a relva», onde surge como sujeito, a palavra representa também um rapaz; ao passo que na frase «este velho foi um rapaz», onde surge como predicado, a palavra não representa coisa alguma. Ou seja, «rapaz» só representa algo num determinado contexto se, nesse contexto, fizer sentido perguntar «qual rapaz?»
O tratamento dos predicados oferecido por Abelardo apresenta muitas reflexões lógicas originais. Aristóteles, e muitos filósofos depois dele, preocuparam-se com o sentido de «é» em «Sócrates é sábio» ou «Sócrates é branco». Abelardo julga tratar-se de um problema desnecessário: devemos entender «ser sábio» e «ser branco» como uma única unidade verbal, em que o verbo ser faz simplesmente parte do predicado. E quando «é» equivale a «existe»? Abelardo afirma que na frase «Existe um pai» não devemos tomar «um pai» como representando coisa alguma; em vez disso, a frase é equivalente a «Algo é um pai». Esta proposta de Abelardo continha grandes potencialidades para o desenvolvimento da lógica, mas não foi devidamente aproveitada e desenvolvida na Idade Média — na verdade, o dispositivo teve de esperar pelo século XIX para ser reinventado.

A ÉTICA DE ABELARDO
Abelardo não foi menos inovador na ética do que na lógica. Foi o primeiro autor medieval a dar o título Ética a um tratado e, ao contrário dos seus sucessores medievais, não conhecia a Ética de Aristóteles para lhe servir como ponto de partida. Neste campo, contudo, as suas inovações foram menos felizes. Abelardo objectou contra a doutrina comum de que matar pessoas e cometer adultério era um mal. Aquilo que é um mal, afirma ele, não é a acção em si, mas o estado de espírito com que se comete a acção. Contudo, é incorrecto dizer que aquilo que importa é a vontade da pessoa, se por «vontade» entendermos um desejo por algo em função de si mesmo. Pode existir pecado sem vontade (como quando um fugitivo mata em autodefesa) e pode haver má vontade sem pecado (como desejos de luxúria que não se conseguem evitar). É verdade que todos os pecados são voluntários, no sentido em que não são inevitáveis, sendo o resultado de um desejo qualquer (o desejo que um fugitivo tem de escapar, por exemplo). Mas aquilo que verdadeiramente importa, afirma Abelardo, é a intenção ou consentimento do pecador, o que significa primariamente a consciência que o pecador tem daquilo que está a fazer. Afirma Abelardo que se é possível cometer inocentemente um acto proibido — casar com a nossa irmã na ignorância de que é nossa irmã, por exemplo —, o mal não pode estar no acto, mas sim na intenção. «Não é aquilo que fazemos, mas o estado de espírito com que o fazemos, que Deus avalia; o mérito e o louvor do agente repousa não na sua acção, mas na sua intenção.» Assim, afirma Abelardo, uma má intenção pode estragar uma boa acção. Dois homens podem enforcar um criminoso, um em cumprimento da justiça e o outro por ódio inveterado; o acto é justo, mas um pratica o bem, e o outro o mal. Uma boa intenção pode justificar uma acção proibida. Aqueles que foram curados por Jesus fizeram bem em desobedecer à sua ordem de manter em segredo a cura, pois o seu motivo para a publicitar era bom. O próprio Deus, quando ordenou a Abraão que matasse Isaac, praticou um má acção com boa intenção.
Uma boa intenção que não é posta em prática pode ser tão louvável como uma boa acção: é o que acontece se, por exemplo, resolvermos construir um hospício, mas o dinheiro nos for roubado. Analogamente, as más intenções são tão reprováveis como as más acções. Porquê então castigar acções em vez de intenções? O castigo humano, responde Abelardo, pode justificar-se mesmo quando não há culpa; uma mulher que sufocou o seu bebé no sono deve ser castigada para que as outras mulheres passem a ser mais cuidadosas. A razão pela qual punimos acções em vez de intenções é a de que o fraco juízo humano considera mais grave a maldade manifesta. Mas o julgamento de Deus não seguirá os mesmos moldes.
A doutrina de Abelardo não chegou exactamente ao ponto de afirmar «Não importa aquilo que fazes desde que sejas sincero», mas esteve muito perto de admitir que os fins justificam os meios. Porém, aquilo que mais chocou os seus contemporâneos foi a sua afirmação de que aqueles que, de boa-fé, perseguiram os cristãos — e mesmo aqueles que mataram o próprio Cristo, sem saber o que faziam — estavam livres de pecado. Esta foi uma das teses sujeitas a condenação pelo Concílio de Sens.
Abelardo explorou a teologia não menos ousadamente que a ética. Um exemplo é suficiente: o seu tratamento singular da omnipotência de Deus. Levantou as questões de saber se Deus pode fazer mais coisas, ou coisas melhores, do que aquelas que fez, e se Deus pode abster-se de agir do modo como age. Seja como for que respondamos a estas questões, afirma Abelardo, encontraremos dificuldades.
Por um lado, se Deus pode fazer mais e melhores coisas do que aquelas que fez, não seria de esperar que as tivesse feito? Ao fim e ao cabo, nada lhe custaria fazê-lo! O que quer que faça ou não faça é um bem e é justo; assim, seria injusto que tivesse agido de modo diferente. Por conseguinte, Deus só pode ter agido da maneira como agiu.
Por outro lado, se considerarmos um qualquer pecador a caminho da perdição, torna-se evidente que ele poderia ser melhor do que é; de outro modo, não poderia ser culpado pelos seus pecados. Mas ele só seria melhor do que é se Deus o tivesse feito melhor; por isso há pelo menos algumas coisas que Deus podia ter feito melhor do que na realidade fez. Abelardo opta pela primeira alternativa do dilema. Suponhamos que neste momento não está a chover. Uma vez que tal acontece de acordo com a vontade de um Deus sábio, este momento não é apropriado para que chova. Assim, se dissermos que Deus pode fazer chover neste momento, estamos a atribuir-lhe o poder para fazer qualquer coisa de disparatado. Deus pode fazer tudo aquilo que quer fazer; mas não pode fazer aquilo que não quer fazer.
Os críticos objectaram a esta tese, considerando-a um insulto ao poder de Deus: até mesmo nós, pobres criaturas, podemos agir diferentemente do modo como agimos de facto. Abelardo respondeu que o poder de agir diferentemente não deve ser motivo de orgulho, deve antes ser considerado um sinal de debilidade, como a capacidade para andar, comer e pecar. Seria muito melhor para todos nós se fizéssemos apenas aquilo que deveríamos fazer.
Que dizer então do argumento «o pecador só será salvo se Deus o salvar; logo, se o pecador puder ser salvo, Deus pode salvá-lo»? Abelardo rejeita o princípio lógico que subjaz ao argumento, nomeadamente, se p implica q, então possivelmente p implica possivelmente q. E apresenta um contra-exemplo. Se um som for ouvido, alguém o ouve; mas um som pode ser audível sem que ninguém o ouça. (No caso, por exemplo, de não estar ninguém por perto.)
A discussão de Abelardo sobre a omnipotência de Deus é um esplêndido exercício de dialéctica, mas não podemos dizer que se trata realmente de uma explicação credível do conceito — e é evidente que não convenceu os seus contemporâneos, especialmente S. Bernardo. Uma das proposições de Abelardo condenadas pelo Concílio de Sens foi a seguinte: Deus pode agir e abster-se de agir única e exclusivamente da maneira e na altura em que de facto age e se abstém de agir.

 (Anthony Kenny - História Concisa da Filosofia Ocidental)
 

publicado às 18:33


Heloísa

por Thynus, em 18.02.15
Até aquele momento eu nunca tinha frequentado imundas prostitutas,
tendo tomado a decisão de dedicar-me exclusivamente aos
estudos dos textos sagrados. Mas Heloísa era outra história: não tanto
quanto à beleza, superava todas as suas colegas quanto à cultura, qualidade
esta muito rara entre as mulheres. Era a sobrinha de um certo
Fulberto, um velho cônego que gostava muito dela.

(Abelardo, Storia delle mie disgrazie, Garzanti, Milão, 1974)

Deu-me até a permissão de bater nela se a jovem não se esforçasse. 
Eu fiquei pasmo: era como confiar uma jovem ovelha a um lobo
faminto. Abríamos os livros mas só conversávamos de amor, nunca de
filosofia.
Havia mais beijos do que explicações. E as minhas mãos apalpavam
mais o seu seio do que os livros. Não demorou muito tempo
para Heloísa perceber que estava grávida. Contou-me isso na maior felicidade
e perguntou-me o que deveria fazer. De forma que certa noite,
quando o tio estava ausente, raptei-a e levei-a para a minha aldeia,
onde ficamos até o nascimento do menino ao qual demos o nome de Astrolábio.

(Abelardo, Storia delle mie disgrazie, Garzanti, Milão, 1974) 
 

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Há vidas que transcendem a vida por sua paixão, e sua intensidade merece ficar gravada na memória do fogo. O sofrimento dos legendários amantes do medievo francês, Abelardo e Heloísa, ultrapassou a imaginação que mitificou outros casais pelo poder da magia, do sonho e da morte. Este é um dos casos em que a realidade excede o vigor persuasivo da literatura; sobretudo no caso dela, porque elevou sua rebeldia ao nível da obediência sem jamais incorrer em resignação, porque amou com religiosidade e sem desperdiçar um instante para esperar seus infortúnios ao pé do altar.
Insuperável até hoje, Heloísa é o símbolo de uma força espiritual que transforma seu desamparo em perspicácia, e suas orações a Deus em refúgio da palavra a fim de se purificar do desamor. Conquanto o suplício infligido ao prestigioso filósofo, coube a ela pagar com piedade o preço de uma entrega que começou entre leituras e logo depois explodiu na fogueira do ódio; uma entrega que transgrediu preconceitos, que despertou seu desejo de poder e de consumar o proibido com a certeza de que é no estar juntos que se preenche o sentido de ser, enquanto na separação dos amantes se sofre o verdadeiro inferno. Foi, então, a sua uma entrega tão profunda e tão disposta a abarcar a vida e a morte, que acabou levando-a a aceitar o hábito apesar de suas vacilações na fé; e a transformar seu próprio coração porque ele, dono de sua alma, assim lhe pediu em meio à tormenta, para sobreviver à perseguição provocada por sua desventurada união.
Jovem sobrinha de um clérigo de Paris, a aristocrática e excepcionalmente bem dotada Heloísa foi posta sob sua tutela depois de passar a infância em um convento de monjas. Seu drama se desencadeou por volta dos 18 anos de idade, quando, a pretexto de estudarem sob o mesmo teto, professor e aluna entregaram-se inteiramente ao amor durante meses de tanta volúpia que, doze anos depois, ao evocá-lo em sua célebre carta a um amigo depois de sua controvertida vida monástica, Abelardo reconheceu que seu ardor experimentou todas as fases do frenesi e que jamais evitaram nenhum dos requintes mais insólitos de que a paixão é capaz.
Quando Fulberto descobriu a situação dos amantes, somaramse infâmias ao desconsolo do casal. A princípio o tumulto familiar deixou-os insensíveis, pois até então o gozo da posse para eles havia se tornado mais doce. Também de origem nobre, ao ser convidado a orientar o aprendizado de Heloísa, Abelardo já era respeitado por sua cátedra e admirado por seu talento em Corbeil, Melun e na própria Universidade de Paris. Daí a gravidade do escândalo. Ao descobrir que estava grávida, Heloísa recusou o matrimônio com uma firmeza incomum a fim de não prejudicar a carreira ascendente do afamado filósofo que, mesmo então, já era alvo de muitos invejosos. Protegida por ele, fugiu para a Bretanha para dar à luz seu filho Astrolábio como mãe solteira, e apesar de sua obstinada decisão em assumir as conseqüências daquilo que representava seu pecado, o casal foi obrigado pelo cônego a contrair matrimônio sob condições humilhantes para ambos, ainda que, em princípio, a família tenha aceitado manter a união em segredo.
A tragédia irrompeu quando Fulberto, tio de Heloísa, cego de ira porque considerou que a mácula sobre a honra familiar e sua reparação imperfeita os humilharia durante gerações, persuade os demais parentes para que, com a ajuda do servo infiel que até então gozara da maior confiança de Abelardo, o mutilassem da maneira mais selvagem. Foi essa a represália ao afeto frustrado da sobrinha por um clérigo, para quem o matrimônio não era apenas algo malvisto na época, mas que dele se esperava o celibato e a conivência de suas obras com a hipocrisia que reinava no século mais corrupto da Igreja Católica.
Abelardo, ferido no mais profundo de seu ser, atormentado pela paixão do saber e a paixão amorosa, conhece seu natural tormentório e não encontra outra solução afora o confinamento de ambos na vida religiosa. É este o motivo por que o filósofo obriga sua esposa Heloísa a ingressar no convento de Argenteuil e a "retirar-se do século". Ele, por seu lado, realiza sua vocação teológica tornando-se abade e protagoniza, até o último dia de sua vida, uma sucessão de importunações por parte do clero, que o faria vítima de uma das mais persistentes intolerâncias de que foram capazes os homens pensantes. Em sua Historia calamitatum, ele mesmo narrou os pormenores da tragédia. Nunca diminuíram as perseguições; ao contrário, somaram-se as vexações a novos escândalos originados pela inveja de seu talento. Apesar de nunca ter deixado de padecer uma vida errante e miserável, retomou seus trabalhos teológicos e perseverou em sua rebeldia filosófica. Durante doze anos vive a seu modo a infelicidade do mártir, até que, oculto por detrás da linguagem teológica, Abelardo empreende sua famosa aventura epistolar com Heloísa. Margens opostas do mesmo drama, cada um evoca seu celibato forçado com linguagens distintas. Ele se refere ao pecado e a incita a segui-lo em sua liberdade espiritual de castrado. Prior de Saint-Marcel, na Borgonha, apela por todos meios à força da razão, ao amor verdadeiro, à renúncia aos bens terrenos, ao amor divino; ela não crê na virtude, está dividida, sua fé vacila. O escândalo é um nó que a dilacera entre o espírito e o sexo, entre as exigências do claustro e o furor amoroso. Jamais se resigna; bem ao contrário, glorifica sua desventura, e assim como se volta para seu templo protestando contra Deus com lamentações de viúva, escreve ao amado de forma beligerante, desafia-o e recorda-lhe os lugares de sua paixão, as horas de fogo e sua ausência...
Para onde quer que me volva aparecem diante de meus olhos aqueles deleites e despertam outra vez meu desejo... Até durante as solenidades da missa, quando a prece deveria ser mais pura do que nunca, imagens obscenas assaltam minha pobre alma e a ocupam mais do que o ofício divino... Longe de gemer arrependida pelas faltas que cometi, penso suspirando naquelas que não posso mais cometer... 
É assim que ela escreve a Abelardo, sempre amante, esposa insatisfeita e decidida a dessacralizar a vida religiosa na qual ele mesmo a confinou. Longe de conquistar a paz, ela invoca seu sacrifício a fim de consagrar sua verdadeira paixão. Se Abelardo procura voltar os olhos para Deus, Heloísa reafirma o passado, traspassa-o com erotismo incomum, como se nas palavras buscasse a satisfação proscrita e com a verdade apaziguasse a maldição de um destino ao qual se submeteu por necessidade, mas nunca porque o coração lho ditasse. Clama por justiça a seus direitos de esposa e, desde a clausura de sua abadia, cede à fatalidade de sua absurda separação.
Quanto mais Abelardo persegue o rigor, quanto mais se inclina para o raciocínio lógico em busca de respostas teóricas, tanto mais Heloísa se confirma no poder de suas emoções. Assim transita da ternura à cólera, da compaixão à impotência, até cair na irracionalidade. Ele se integra com a ajuda da filosofia; ela se fragmenta, se desespera e finalmente se cala; retira-se em um silêncio dolente, depois de cumprir sua promessa de guardar para o futuro o testemunho de seu lamento:
Prometo publicar nossa desgraça em vários idiomas a fim de envergonhar este século injusto, que não te compreendeu... Meu cruel tio acreditou que eu não te amava por ti mesmo (como as demais mulheres), mas somente teu sexo: enganou-se totalmente ao privar-te dele; pois a minha vingança é amar-te cada vez mais... 
Abelardo e Heloísa, paradigma da condenação cruel que podia atingir uma paixão, quando proibida e revelada.
A Theologia de Abelardo foi queimada como herética por decisão do Concilio de Soissons, no ano de 1121, além de suportar uma prisão preventiva na Abadia de Saint-Médard. Enquanto ele resistia às pressões eclesiásticas e às perseguições que o obrigavam a se refugiar em diferentes lugares, Heloísa funda e dirige, sempre atendendo aos pedidos de seu amado, uma nova ordem de monjas denominada O Paráclito, da qual Abelardo se tornaria abade e mentor das regras, inclinadas para o estudo do pensamento e das letras. Proveu as monjas de livros e hinos compostos por ele mesmo e, a partir de 1130, ambos empreenderam a célebre obra epistolar em que entremearam temas de amor e de religião.
Confirmada sua condenação pelo Concilio de Sens e ratificada depois pelo papa Inocêncio II, Abelardo partiu para o Mosteiro de Cluny, na Borgonha, onde, graças à mediação de seu abade, Pedro o Venerável, fez as pazes com Bernardo de Clairvaux e pôde doravante se dedicar ao ensino. Já velho, viveu seus últimos anos como monge cluniacense. Seus restos mortais foram levados primeiro ao convento do Paráclito, a pedido de sua amada, e posteriormente, já no século XIX, ao cemitério de Père-Lachaise, em Paris, a fim de serem reunidos aos despojos de Heloísa.
Se Abelardo esteve disposto a assumir sua escolha, Heloísa aparece como a figura desvalida, desprovida de vontade - ainda que nunca de entendimento -, em que pese o fato de nos momentos mais decisivos todos decidirem por ela: sua juventude entre monjas, sua paixão por Abelardo, a renúncia ã sua maternidade, seu confinamento conventual e a condenação de padecer uma constante ausência, a ponto de afirmar que o vazio de Abelardo, mais que qualquer outro acontecimento, preenchera absolutamente sua vida.
Heloísa, mais que o seu amante, é a figura a ser observada. Heloísa e sua paixão mutilada; Heloísa enamorada e, não obstante, atacada pelo sentimento de culpa; enquanto Abelardo, em seu perfeito papel de amado, deixa-se querer e lhe recomenda canalizar seu fogo para o caminho da salvação.
O século lamentou-se pela fatalidade de Abelardo e ele retribuiu à sua desgraça transformando em lenda a condenação de Heloísa, a amada que, confinada por sua paixão no convento de Argenteuil, encontrou na redação de cartas o único meio de recuperar o objeto de sua dor.
Uma natureza rebelde, uma mulher excepcional, Heloísa nasceu em 1098 e morreu a 15 de maio de 1164, sem quebrantar seu voto de obediência e jamais ter se resignado.

(Martha Robles - Mulheres, Mitos e Deusas, o feminino através dos tempos)

publicado às 09:03


O CRESCIMENTO DA IGREJA

por Thynus, em 18.02.15
Se algum dia eu acabar no Purgatório e precisar de um advogado, não
terei dúvidas: escolherei Pedro Abelardo e ficarei com certeza de ir
direto ao Paraíso. Nunca houve, e nunca haverá no mundo, alguém
mais habilidoso com as palavras do que Abelardo
.
(Luciano De Crescenzo - HISTÓRIA DA FILOSOFIA MEDIEVAL)
 

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Por algum tempo, as autoridades judaicas toleraram a seita por ser pequena e inofensiva, mas quando os “nazarenos” em poucos anos se multiplicaram de 120 para 8 mil, os sacerdotes se alarmaram.
Pedro e outros foram presos e interrogados pelo Sinédrio; alguns foram açoitados, mas, depois, todos acabaram liberados. Um ano depois (30 d.C.?), Estêvão, um dos discípulos, foi convocado perante o Sinédrio e acusado de usar “linguagem abusiva a respeito de Moisés e de Deus”. Ele se defendeu com tanta veemência que os sacerdotes, enraivecidos, mandaram apedrejá-lo até a morte. No ano 41, Pedro foi preso novamente, mas escapou.
Em 65 d.C., os judeus se revoltaram contra Roma; os judeus cristãos, indiferentes à política, retiraram-se para Pela, na margem oriental do Jordão. Os judeus acusaram os cristãos de covardia e traição, e os cristãos saudaram a destruição do Templo, em 70 d.C., como o cumprimento de uma das profecias de Jesus. O ódio mútuo inflamou as duas fés e propiciou a escrita de parte da literatura mais piedosa desses dois grupos.
Pedro partiu para pregar a nova religião na Síria e em locais do Oeste até chegar a Roma, onde fundou a Sé (sede) de Pedro, tornou-se o primeiro papa e foi crucificado em 64 d.C., durante as perseguições realizadas no reinado de Nero. A tradição católica afirma que a famosa Basílica de São Pedro foi construída no local em que Pedro morreu e que o altar-mor lhe cobre os ossos.
Assim como Pedro fundou a Igreja, Paulo fundou o credo. Paulo nasceu na cidade helenizada de Tarso, na colônia romana da Cilícia, na Ásia Menor. Seu pai chamou-o de Saulo e transmitiu-lhe duas orgulhosas honrarias: a de ser um destacado fariseu e cidadão romano. Enviado a Jerusalém para receber uma instrução judaica mais completa, Paulo, como os romanos o denominaram, apoiou o Sinédrio na condenação a Estêvão e realizou uma viagem a Damasco para erradicar a comunidade cristã ali estabelecida. A história é conhecida: no caminho, ele sofreu um ataque, aparentemente provocado pelo calor e pelo brilho do sol do deserto. Ficou cego, caiu ao chão e pensou ouvir uma voz dizendo: “Saulo, por que me persegues?”. Foi levado à cidade e ali ficou três dias sem enxergar; “não comia nem bebia”. Então, um recém-convertido aproximou-se
e impôs as mãos sobre ele, dizendo: “Irmão Saulo, foi o Senhor quem me enviou a ti, esse Jesus que apareceu na estrada que tu seguias, para que recuperes a visão e recebas a plenitude do Espírito Santo”. E imediatamente caiu-lhe dos olhos algo parecido com escamas e ele recuperou a visão, levantou-se e recebeu o batismo. Então, Saulo ficou sete dias com os discípulos que estavam em Damasco e imediatamente pregou Cristo na sinagoga (Atos 9:17-20).
 Assim começou a missão histórica do mais célebre dos discípulos. Junto com Barnabé, outro recém-convertido, Paulo partiu para pregar a nova fé nas cidades do norte. Em Antióquia, o Evangelho foi bem recebido pela comunidade judaica e por alguns não judeus. Contudo, estes últimos levantaram uma questão vital para a difusão do cristianismo: todos os convertidos deveriam aceitar o Código de Moisés, com as suas 613 leis? E a circuncisão? Paulo e Barnabé não insistiram nisso e logo foram interpelados por violarem o exemplo de Cristo. Voltaram a Jerusalém e discutiram o assunto com os Apóstolos. Pedro concordou com eles, pois também aceitara convertidos não circuncidados. A maioria dos Apóstolos fez objeção, achando que a circuncisão fazia parte do acordo de Abraão com Deus. Paulo respondeu que, a menos que os convertidos não judeus fossem poupados desse acordo, o cristianismo seria simplesmente um ramo do judaísmo (“uma heresia judaica”, como diria Heine) e desapareceria dentro de um século. Os Apóstolos cederam. Paulo reassumiu a sua missão de “Apóstolo dos gentios” e levou o Evangelho desde Éfeso até Atenas e Roma. Por um momento, o destino de uma grande religião dependera de um fragmento de carne.
Paulo foi crucificado em Roma, provavelmente no mesmo ano 64 da morte de Pedro. Através das atividades de ambos e daqueles milhares de outros portadores da “Boa Nova”, a Igreja Cristã assumiu o seu formato e iniciou a tarefa histórica de dar a um império moribundo e a seus invasores bárbaros uma fé viva, uma esperança firme e um código moral baseado num deus onipresente e onipotente.
 
A IGREJA CATÓLICA
O enfraquecimento do respeito pela religião estabelecida fez surgir, assim como no nosso tempo, uma centena de formas de convicções e rituais sobrenaturais. Entre elas havia diversas seitas cristãs; e entre estas o credo dos apóstolos Pedro e Paulo revelou-se o mais capaz de sobreviver e se difundir. Por volta do ano 300, os cristãos do Oriente Próximo atingiam um quarto da população; em Roma, os cristãos eram 100 mil. A sua teologia firme sustentava certa moral de grupo, que chamou a atenção e conseguiu o elogio de filósofos pagãos: assim, Plínio, o Jovem, relata ao imperador Trajano que os cristãos levavam vidas pacíficas e exemplares (Plínio, Cartas, 10.997); o famoso médico Galeno descreveu-os como “bastante avançados em autodisciplina e com um desejo intenso de obter a excelência moral”. Em 311, depois de três séculos de perseguições brutais, o imperador Galério, notando que eram inofensivos, promulgou um edito de tolerância, reconheceu o cristianismo como uma religião lícita e pediu orações dos cristãos em troca da “nossa mais bondosa clemência”.
Em 312, Constantino, conduzindo um exército da Gália para Turim, onde enfrentaria rivais que reclamavam o trono de Roma, viu no céu (diz a lenda) uma cruz em chamas adornada com as palavras gregas EN TOUTOI NIKA (“Com este símbolo vencerás”). No dia seguinte, ele anunciou que aceitava o cristianismo e venceu uma batalha decisiva. Marchou para leste, derrotou o rival e fez de Bizâncio – mais tarde renomeada Constantinopla – a capital do Império Romano do Oriente, que logo substituiu Roma como centro do poder político.
Aos poucos, à medida que as invasões bárbaras desafiavam a autoridade secular, a proteção e a administração da ordem social passaram das mãos dos funcionários pagãos das cidades da Europa Ocidental para os bispos, abades e sacerdotes cristãos, sob a liderança do papa em Roma; a Igreja, em vez do Estado, tornou-se a fonte e a guardiã da civilização. Muitos dos chamados “bárbaros” já haviam aceitado o cristianismo e eram mais receptivos aos papas do que aos imperadores.
O povo da Europa Ocidental se acalmou com vários reis guerreiros, como Alfredo, o Grande, na Inglaterra, Carlos Magno na França e os imperadores Otos e Henriques na Alemanha; mas esses governantes buscavam a consagração papal como um amparo necessário e como confirmação do próprio poder – a qualquer momento eles podiam perder esse poder, se o papa os excomungasse. Ano após ano, o papado cresceu em influência, até que os reis o reconheceram como a suprema autoridade em todas as questões de moral – o que podia significar quase todos os assuntos importantes. Assim, o imperador Henrique IV foi até Canossa (em 1077) fazer penitência, pedir o perdão e a reintegração ao cargo ao Papa Gregório VII, Hildebrando.
Essa “República Cristã”, ou esse superestado papal, atingiu o apogeu com o Papa Inocêncio III. No período de dezoito anos (1198-1216), ele forçou todos os monarcas da Europa Latina, exceto Sverrir da Noruega, a reconhecerem-lhe a soberania em matéria de fé, moral e justiça, inclusive o poder de liberar povos inteiros do juramento de obediência para com os respectivos reis. Alguns Estados – Portugal, Hungria, Sérvia, Bulgária, Armênia e até a Inglaterra do rei João – reconheceram-se feudos do papado. Em 1204, a conquista de Constantinopla pelos cruzados fez com que a Igreja Grega se submetesse ao papado romano, e Inocêncio pôde declarar, orgulhoso, que então “a túnica de Cristo não tinha emendas”. Um visitante bizantino que fora a Roma descreveu Inocêncio não apenas como o herdeiro de Pedro, mas como o sucessor de Constantino.
 
O LADO SOMBRIO
A vitória da palavra sobre a espada e do centro sobre partes da cristandade foi manchada pelo fracasso das Cruzadas e pelos horrores da Inquisição.
As Cruzadas convocadas pelo Papa Urbano II em 1098 significaram o esforço romântico das Europas Ocidental e Oriental em resgatar o Oriente Próximo do islamismo para o cristianismo, tanto no comércio quanto na fé. Fracassaram em ambos os objetivos, pois o Oriente Próximo permaneceu em mãos muçulmanas, e a riqueza, a ciência, a arte e a sabedoria dos mouros despertaram nos cruzados derrotados um ceticismo que logo afligiu a ortodoxia cristã com inúmeras heresias. Inocêncio III, como qualquer governante, considerava a heresia uma traição, a secessão de uma parte em relação à ordem e à paz do todo. Ficou alarmado principalmente com uma nova fé que vinha dos Balcãs para a França e que formava minorias poderosas em Montpellier, Narbonne, Marselha, Toulouse, Orléans – até bem ao norte, em Soissons e Reims. Esses albigenses dividiam o universo entre Deus – representando o espírito e o bem – e Satã – representando a matéria e o mal. Afirmavam que toda carne era satânica e todas as relações sexuais impuras. Aceitavam o Sermão da Montanha como a sua ética e denunciavam a guerra e qualquer uso da força, até mesmo contra os infiéis. Rejeitavam o inferno e o purgatório e anunciavam que todos os homens seriam salvos.
Negavam que a Igreja fosse a Igreja de Cristo; diziam que São Pedro jamais fora a Roma, jamais fundara o papado; que os papas eram sucessores de imperadores, não dos Apóstolos. Cristo não tivera um lugar para apoiar a cabeça, mas o papa vivia num palácio. Esses arcebispos e bispos soberbos, esses sacerdotes mundanos e esses monges gordos eram os antigos fariseus que voltavam à vida. A Igreja Romana era a prostituta da Babilônia e o papa, o Anticristo.
Durante algum tempo, os albigenses foram amplamente tolerados como extremistas que refutavam a si mesmos pelo exagero. Em 1167, eles realizaram um concílio do seu clero, ao qual compareceram representantes de vários países; discutiram e regulamentaram a doutrina, a disciplina e a administração e não foram perturbados. Em Languedoc, parte da nobreza achava desejável enfraquecer a Igreja; esta era rica, os nobres relativamente pobres; uns poucos começaram a tomar os bens da Igreja.
Inocêncio III, ascendendo ao papado em 1198, viu nesses avanços uma ameaça tanto à Igreja quanto ao Estado. Reconheceu alguns motivos para a crítica à Igreja, mas percebeu que não poderia ficar parado enquanto a grande organização que chefiava – e que lhe parecia o principal baluarte contra a violência, o caos social e a real iniquidade – era atacada em suas próprias bases, espoliada de seus bens e ridicularizada com blasfêmias disfarçadas. Como construir uma ordem social duradoura baseada em princípios que proibiam a procriação e defendiam o suicídio? Seria possível salvar da desordem destruidora as relações entre os sexos e a educação dos filhos através de outra instituição que não fosse o casamento? Qual o sentido de uma cruzada contra infiéis na Palestina, quando os infiéis albigenses se multiplicavam no centro do cristianismo?
Dois meses depois da sua ascensão, Inocêncio escreveu ao arcebispo de Auch, na Gascônia:
O pequeno barco de São Pedro está sendo atingido por muitas tempestades e balança no mar. Mas o que me atinge mais do que tudo é... que... agora surgem, mais desenfreados e prejudiciais do que nunca, ministros que cometem erros diabólicos e que estão seduzindo as almas dos simples. Com suas superstições e mentiras, pervertem o significado da Sagrada Escritura Católica e tentam destruir a unidade da Igreja Católica. Como... esse erro pernicioso está crescendo na Gascônia e nos territórios vizinhos, nós desejaríamos que vós e os bispos que vos seguem resistísseis a ele com toda a vossa energia [...] Nós vos damos ordens estritas para destruirdes todas essas heresias e repelirdes da vossa diocese todos os que estiverem contaminados por elas, empregando para isso todos os meios [...] Se necessário, podereis induzir os príncipes e o povo a eliminá-los com a espada.
Esse edito foi bem recebido pelos governantes ortodoxos e pelos prósperos eclesiásticos. Raimundo VI, de Toulouse, concordou em usar a persuasão contra os hereges, mas se recusou a aderir a uma guerra contra eles. Inocêncio excomungouo; Raimundo prometeu obedecer, foi absolvido e mostrou-se mais uma vez negligente. “Como posso fazer isso?”, perguntou a um cavaleiro emissário do papa para expulsar os albigenses das suas próprias terras. “Crescemos com esse povo, somos aparentados, e os vemos viver com honradez.”
Depois de esperar seis anos, Inocêncio deu a Arnaud de Citeaux, chefe dos monges cistercienses, plenos poderes para estabelecer uma inquisição na França e oferecer indulgência plenária a reis e nobres que se unissem a ele nessa nova cruzada. Quando isso também lhe pareceu inadequado, o papa colocou sob decreto todas as terras pertencentes ao conde Raimundo e ofereceu-as a qualquer cristão que quisesse aceitá-las. Incitou os fiéis de toda a Europa a uma cruzada contra os albigenses e seus protetores; a todos os participantes ofereceu indulgência plenária, livrando-os das penas pelos pecados passados. Milhares de pessoas afluíram a essa guerra santa. Quando os cruzados se aproximaram de Béziers, propuseram poupar a cidade dos horrores da guerra se ela entregasse todos os hereges listados pelo bispado. Os líderes da cidade recusaram, dizendo que preferiam ficar sitiados mesmo que fossem obrigados a comer os próprios filhos. Os cruzados escalaram as muralhas, capturaram a cidade e mataram 20 mil homens, mulheres e crianças, num massacre indiscriminado.
O mais cruel dos cruzados foi Simon de Montfort. Como muitos homens desse período de fanfarronadas, ele era famoso pela castidade e servira com honras na Palestina. Com um pequeno exército de 4.500 homens e instado por um emissário papal, ele atacou cidade após cidade, derrubou qualquer resistência e fez a população escolher entre jurar fidelidade à fé romana ou morrer como herege. Milhares juraram, centenas preferiram morrer. Durante quatro anos, Simon continuou suas campanhas, devastando praticamente todo o território de Raimundo VI, exceto Toulouse. Em 1215, Toulouse se rendeu; um concílio de prelados em Montpellier depôs Raimundo; Simon assumiu a maioria das terras deste e o seu título. Em 1227, Raimundo VII, alegando eliminar uma heresia, assinou um tratado com o Papa Gregório IX, e as guerras albigenses chegaram ao fim. A ortodoxia triunfou, a tolerância desapareceu e a Inquisição espalhou o seu poder por toda a Europa. A Inquisição não teve dificuldade em encontrar textos bíblicos que autorizassem a morte por heresia: Deuteronômio 13:1-9; Êxodo 22:18 e Evangelho de São João 15:6. Praticamente todos os cristãos professavam a crença de que a Igreja fora fundada pelo Filho de Deus. Nessa suposição, qualquer ataque à fé católica era uma ofensa contra o próprio Deus; o herege contumaz só poderia ser visto como agente de Satã, enviado para desfazer a obra de Cristo; qualquer homem ou governo que tolerasse a heresia estava servindo a Lúcifer. Percebendo-se como parte inseparável do governo moral e político da Europa, a Igreja considerava a heresia exatamente como o Estado considerava a traição: um ataque aos alicerces da ordem social. O mais rigoroso código de repressão foi estabelecido por Frederico II em 1220-1239. Os hereges condenados pela Igreja seriam entregues ao “braço secular” – autoridades locais – e queimados até morrer. Se abjurassem, seriam condenados à prisão perpétua. Todas as suas propriedades seriam confiscadas, os herdeiros, deserdados, os filhos, impedidos de ocupar qualquer cargo remunerado ou de receber honrarias, a menos que expiassem o pecado dos pais denunciando outros hereges. As casas dos hereges seriam destruídas e jamais reconstruídas. O santo rei Luís IX estabeleceu leis semelhantes nos estatutos da França. Em 1231, Gregório IX incorporou nas leis da Igreja a legislação de Frederico II, de 1224; daí em diante, Igreja e Estado concordavam que heresia sem arrependimento era traição e deveria ser punida com a morte.
Estado e Igreja uniram-se num ataque pavoroso contra heresias que, nas suas opiniões, corroeriam a complexa estrutura das leis e da moral, evitando que os homens voltassem à anarquia moral e política. Praticamente todos os governos desafiados aderiram à Inquisição e puniram as opiniões e condutas consideradas perigosas para o Estado.
A liberdade é um luxo da segurança.
 
A CANÇÃO MEDIEVAL
A Idade Média adornou o milênio com uma literatura frequentemente prazerosa e, às vezes, suprema. Os excelentes trovadores que floresceram na França no século XI e depois em terras germânicas e na Espanha vestiam-se como lordes, brandiam as espadas tão bem quanto as penas e sonhavam com delicados adultérios com nobres damas que – no máximo – permitiam que lhes beijassem a mão.
 É provável que essa inacessibilidade tenha estimulado os versos; é difícil romantizar com o desejo satisfeito, ademais, onde não há impedimentos não há poesia. Os trovadores destacaram-se nas alvoradas, ou canções do amanhecer, e nas serenatas, ou canções noturnas; cortejaram a noite e deploraram o dia. Na Alemanha, os trovadores eram os Minnesingers – “cantores do amor”; assim, Walther von der Vogelweide compôs a famosa balada Unter den Linden, sobre a função das árvores como abrigo para o romance. O final do século XII e o início do século XIII testemunharam a composição de romances cavalheirescos sobre a busca ao Santo Graal – o cálice sagrado em que Jesus bebera na Última Ceia e no qual José de Arimateia colhera gotas de sangue que pingavam do Cristo crucificado. Em torno dessa lenda nasceu a história de Parsifal, cuja versão mais famosa é a de Wolfram von Eschenbach. Gottfried von Strassburg forneceu outro libreto para Richard Wagner, ao compor a história de Tristão e Isolda em fluidos versos alemães. Enquanto isso, a Islândia e a Escandinávia desenrolavam intermináveis sagas da mitologia nórdica.
Mais interessantes para um sábio errante são os “Sábios Errantes”, que viajavam de universidade em universidade cantando canções de revolta ou de folguedo. A seguir, a explicação levemente escandalosa dada por um amante sobre o motivo pelo qual ele está no céu:
Quando ela imprudentemente Entregou-se toda ao Amor e a mim, A beleza no céu distante Riu da sua alegre estrela. Um desejo grande demais me dominara; O meu coração não é suficientemente grande Para essa enorme alegria que me subjugara, Quantas vezes o meu amor Nos braços dela fez de mim outro homem, E todo o mel colhido dos seus lábios Consumiu-se num único beijo consentido. Muitas e muitas vezes, sonho com a liberdade permitida Por aquele peito macio; E assim, sou outro deus chegando ao céu Entre os demais; Sim, e sereno eu dominaria deuses e homens Se pudesse ver mais uma vez A minha mão sobre o seu peito.
Por todo lugar aonde iam, os sábios errantes podiam ter certeza de que o mesmo idioma era ensinado: o latim. Contudo, um dos acontecimentos essenciais da Idade Média – que quase lhe assinalou o fim – foi o fato de Dante ter escolhido o italiano em vez do latim como veículo para sua viagem pelo inferno e pelo purgatório até o céu. Podemos acreditar que o italiano é a mais bela das línguas. Assim parece quando Dante narra a história de Francesca da Rimini, ou quando, no início do canto final, dirige-se a Maria:
Vergine Madre, figlia del tuo Figlio, Umile ed alta più che creatura (Dante, Inferno, 5.121f) Virgem Mãe, filha do teu Filho, Mais humilde e exaltada do que qualquer outra criatura
Mas onde encontrar verso mais forte do que aquele que o poeta pensou ter visto inscrito nas portas do inferno: “Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate!” – “Abandonai toda a esperança, vós que aqui entrais!”. A Divina Comédia de Dante é o mais estranho, o mais terrível e às vezes o mais belo poema de toda a literatura da cristandade.

Abelardo e Heloísa: quando a paixão carnal dá espaço ao amor de Deus

ABELARDO E HELOÍSA
Heloísa era órfã. Não se sabe ao certo quem seriam seus pais; era sobrinha de Fulbert, um cônego ou clérigo da equipe da Catedral de Paris (ainda não era a Notre Dame, construída um século depois). O tio mandou-a para um internato, célebre pela escola e pela biblioteca. Quando soube que Heloísa sabia conversar em latim com a mesma facilidade que em francês e que estava estudando hebraico, Fulbert orgulhou-se da sobrinha e levou-a para morar em sua casa, perto da catedral. Para servir-lhe de tutor em filosofia e outros estudos avançados, Fulbert procurou o ídolo e modelo de todos os estudiosos de Paris.
Abelardo nascera na Bretanha por volta de 1079, primeiro filho de um próspero agricultor. Brilhante na escola, ficou entusiasmado quando ouviu falar de homens chamados filósofos, que propunham provar exclusivamente pela razão os artigos da fé religiosa. Abandonou o direito de herança e partiu para estudar filosofia onde pudesse encontrá-la.
Sua busca logo o levou para Paris e para a escola-catedral, onde Guilherme de Champeaux (segundo o relato do próprio Abelardo) ensinava o realismo – à época significava que palavras universais ou de classe (como “homem”, “multidão”, “pedra”, “mulher”, “livro”) tinham uma existência objetiva e uma realidade além da realidade de qualquer membro individual da classe; assim, “homem” era tão real quanto “Sócrates”; a multidão era tão real quanto qualquer indivíduo que a compunha, e tinha a sua própria lógica e o seu próprio caráter. Não, disse Abelardo: fora das nossas mentes nada existe, exceto indivíduos específicos, coisas específicas; todas as ideias gerais são concepções formadas como ferramentas de classificação e de ideias.
Abelardo organizou sua própria escola, primeiro em Melun, depois em Mont Geneviève, nos arredores de Paris. Ali, sua eloquência, seu brilho e sua alegria intelectual atraíram mais alunos do que ele poderia abrigar. Intitulavam-se moderni e fundaram a schola moderna. A fama de Abelardo espalhara-se pela França quando Fulbert o convidou para ser tutor de Heloísa.
Era 1117, Abelardo estava com 38 anos e Heloísa com 17. Abelardo admite que o primeiro sentimento que teve por Heloísa foi atração física, mas isso logo se transformou, graças à delicadeza da jovem, naquilo que ele descreveu como “uma ternura que superava em suavidade o bálsamo mais perfumado”. Ela parece ter-se entregue a ele com uma confiança quase infantil; logo engravidou.
Abelardo enviou-a para a casa da sua irmã, na Bretanha, e acalmou Fulbert oferecendo-se para se casar com Heloísa, desde que o cônego mantivesse a união em segredo. Durante muito tempo, Heloísa se recusou a casar-se com Abelardo, pois isso o impediria de ser sacerdote, a menos que ela desistisse do marido e do filho e entrasse para um convento. Se acreditarmos na autobiografia de Abelardo, Historia Calamitatum, Heloísa disse-lhe que “para ela seria muito mais doce ser chamada de ‘minha amante’ do que ser conhecida como ‘minha esposa’; aliás, isso me honraria muito mais”.
Finalmente, Heloísa consentiu e, junto com Abelardo e Fulbert, concordou em manter o casamento em segredo. Logo depois, Fulbert revelou a união legal, para abafar o escândalo. Heloísa negou; Fulbert bateu na sobrinha; Abelardo mandou-a para um convento e pediu-lhe que aceitasse as vestes, mas não os votos de freira. Fulbert contratou rufiões para castrar Abelardo. A emasculação não o desgraçou imediatamente, embora o desqualificasse para o sacerdócio; toda a Paris, inclusive o clero, se solidarizou com ele; os estudantes acorreram para confortá-lo – mas Abelardo percebeu que estava arruinado. Pediu a Heloísa que tomasse o hábito e os votos. Ele próprio recebeu os votos de monge. Com permissão para ensinar novamente, ele e seus discípulos construíram perto de Troyes uma ermida para abrigo e um oratório para oração que denominou Paracleto – “Deus como Protetor” –, como se dissesse que o afeto leal dos discípulos surgira como uma espécie de conforto divino na sua vida em meio à solidão e ao desespero.
Aos poucos, recuperando a saúde e a coragem, Abelardo dedicou-se a escrever alguns dos mais importantes livros da filosofia medieval. Na sua imponente obra Dialectica, ele reformulou as regras do raciocínio, preparando-as para o renascimento da mente da Europa Ocidental. Em Diálogo entre um filósofo, um judeu e um cristão, permitiu que cada um desses três homens expusesse a fragilidade das doutrinas dos outros dois. Em Sic et Non (Sim e Não), Abelardo formulou 157 perguntas às quais apresentou um argumento para resposta afirmativa e outro para resposta negativa. No prólogo, argumentou que “a primeira chave para a sabedoria é o questionamento assíduo e frequente [...] Pois através da dúvida chega-se à verdade”. Em Theologia christiana, rejeitou como irracional a alegação de que só um cristão poderia se salvar; argumentou que Deus dá amor a todas as pessoas. Os hereges deveriam ser reprimidos pela razão, não pela força.
Em 1140, São Bernardo, cioso da fé católica, persuadiu um concílio da Igreja em Sens a condenar várias opiniões de Abelardo. O filósofo, embora nessa época doente pela idade e pelas aflições, partiu para Roma para expor o seu caso ao papa. Chegou ao mosteiro de Cluny, na Borgonha, e foi bem recebido pelo abade, o piedoso Pedro, o Venerável. Ali ficou sabendo que Inocêncio II já confirmara o veredicto do Concílio de Sens e lhe impusera silêncio perpétuo e confinamento monástico.
Cansado até a exaustão física e espiritual, Abelardo escondeu-se na obscuridade das celas e dos rituais de Cluny. Edificou os companheiros monges com a sua piedade, o seu silêncio e as suas orações. Escreveu a Heloísa – a quem não voltou a ver – e reafirmou sua fé nos ensinamentos da Igreja. Compôs, talvez para os olhos de Heloísa, alguns dos mais belos hinos da literatura medieval.
Pouco depois adoeceu, e o bondoso abade enviou-o para o priorado de São Marcelo, perto de Châlons. Ali, em 21 de abril de 1142, Abelardo morreu aos 63 anos. Foi enterrado na capela do priorado, mas Heloísa, então abadessa do Paracleto, lembrou a Pedro, o Venerável, que Abelardo pedira para ser enterrado ali. O bom abade levou ele próprio o corpo até Heloísa, tentou consolá-la dizendo que ele era o Sócrates, o Platão e o Aristóteles da época, e deixou-lhe uma carta cheia de ternura cristã:
Assim, cara e venerável irmã em Deus, aquele a quem, depois do vínculo da carne, vos unistes por um liame ainda melhor e mais forte, qual seja, o do amor divino... o Senhor agora o recebe em vosso lugar, ou como a vossa própria pessoa, e o aquece em Seu seio; e o conservará para devolvê-lo a vós, pela Sua graça, no dia da Sua vinda.
Heloísa uniu-se ao amado falecido em 1164, tendo vivido o mesmo número de anos e tido quase a mesma fama. Foi enterrada ao lado de Abelardo nos jardins do Paracleto. Esse oratório foi destruído na revolução, os túmulos violados e talvez confundidos. Em 1817, o que se julgava serem os restos mortais de Abelardo e Heloísa foi transferido para o Cemitério Père Lachaise, em Paris. Ali, ainda hoje, em domingos de verão, podem-se ver homens e mulheres adornando o túmulo com flores.
 
AS REALIZAÇÕES MEDIEVAIS
Em primeiro lugar, a Europa medieval – norte do Ródano, Reno e Danúbio – transformou-se, de uma floresta selvagem e de pântanos, em civilizações novas e duradouras, com bases mais terrestres. Homens e mulheres limparam estradas, abriram canais, cavaram poços e minas, construíram habitações, domesticaram a si mesmos e a animais úteis, organizaram aldeias e cidades, desenvolveram leis, tribunais, parlamentos e disciplinaram a juventude através da autoridade paterna, das escolas e da religião.
O homem medieval arriscava tudo na religião. Vira ou soubera a respeito de uma civilização romana que morrera com a morte dos seus deuses, ou com a decadência do temor humano daí decorrente; conhecia, desde jovem, o poder e a persistência de hábitos e desejos antissociais; na maturidade recebeu de bom grado as convicções teológicas, os mandamentos morais, as exortações sacerdotais e os terrores teológicos que, até certo ponto, poderiam refrear o orgulho e a insolência dos jovens, os crimes dos adultos e as guerras e os pecados dos Estados.
Recebeu de bom grado uma Igreja que ensinou os bárbaros a serem cidadãos, que encorajou a castidade e o cavalheirismo e que persuadiu alguns guerreiros a serem cavalheiros. Ressentia-se da preguiça dos monges, era grato à devoção das freiras e apreciava a organização eclesiástica da caridade. Envaidecia-se das catedrais: sorria para aquelas janelas brilhantes, divertia-se com as gárgulas e via nos botaréus pendentes jatos de fontes petrificados no fluxo. Orgulhava-se de pertencer a uma Igreja cujos papas podiam regular Estados e castigar reis.
O tempo fortaleceu a Igreja, aumentando-lhe a riqueza e a expansão; enfraqueceu-a ao promover a afluência secular, o individualismo demolidor, a chicana política e o ceticismo intelectual. A Igreja contribuíra vitalmente no desenvolvimento de universidades, que rivalizavam com as catedrais em esplendor e influência; forneceu e treinou a maioria dos professores e dignificou-os com roupagem religiosa; porém, cada vez mais esses homens perseguiam o conhecimento e os avanços seculares em vez da fé e das carreiras eclesiásticas. O clero e o laicato, que se uniram na pesquisa, na preservação e na edição de manuscritos clássicos, descobriram o encanto e a profundidade da literatura e da filosofia antigas e começaram a falar de Platão com maior entusiasmo do que de Cristo.
A alma medieval, como uma célula inchada, explodiu em dois organismos históricos: o Renascimento, pagão, clássico e epicurista, no sul; e a Reforma, patrística, estoica e puritana, no norte. Transformou-se em duas culturas poderosas e, através delas, cumpriu a sua tarefa histórica de salvar e transmitir a civilização.
Sua morte foi a sua realização.

(Will Durant - Heróis da História, uma breve História da civilização da Antiguidade ao alvorecer da Era Moderna)

publicado às 04:29


O CRISTO HUMANO

por Thynus, em 17.02.15
AS FONTES
Jesus existiu? Será que os três primeiros Evangelhos do Novo Testamento são simplesmente a adorável transmissão de um mito? No início do século XVIII, o visconde Bolingbroke surpreendeu Voltaire ao sugerir a possibilidade de Jesus jamais ter existido. Volney reviu a questão no seu famoso Ruínas do Império, de 1791. Quando Napoleão conheceu o sábio Wieland, em 1808, nada lhe perguntou sobre política ou guerra, mas se ele acreditava na historicidade de Cristo. Em 1840, o historiador alemão Ferdinand Christian Baur começou a publicar uma série de volumes apaixonados e controversos, visando a caracterizar Cristo como um mito da mesma classe de Osíris, Dioniso e Mitra.
Não conheço estudioso algum de renome que ainda sustente esse ponto de vista, embora em geral se concorde em que muitas histórias contadas sobre os deuses pagãos – como a dos Três Reis Magos – tenham sido popularmente acrescentadas, sem a sanção eclesiástica, aos relatos transmitidos por Mateus, Marcos e Lucas. O Evangelho de São Marcos, hoje atribuído ao período entre 65 d.C. e 70 d.C., aparentemente circulou enquanto alguns apóstolos ainda estavam vivos e podiam contradizê-lo. Não é provável que São Paulo pregasse a religião de Cristo se duvidasse da existência do pregador crucificado a quem os apóstolos dedicavam suas vidas. Seria um milagre que uns poucos homens simples conseguissem, em poucos anos, inventar uma personalidade tão poderosa e tão atraente como a de Jesus, bem mais incrível do que qualquer outra registrada nos Evangelhos. Depois de dois séculos de crítica extremada, os esboços da vida, do caráter e do ensinamento de Cristo permanecem razoavelmente claros e constituem o traço mais fascinante do panorama do homem ocidental.
 
 

 

O FILHO DO HOMEM
Devemos tentar perceber o lugar e o tempo do nascimento de Jesus, a relação da sua terra e do seu povo com o Império Romano que os engolira, a amargura de uma nação conquistada, a sua orgulhosa herança de religião, leis, literatura e filosofia, a esperança apaixonada de libertação, o sonho de se tornar um reino de liberdade, justiça e glória. Essa nação depositou todas as suas esperanças num espírito sensível e compreensivo – o filho de um carpinteiro e o conduziu à cruz. Conforme os humores da história, ele nasceu três ou quatro anos “antes de Cristo”, ou seja, segundo o Evangelho de São Mateus (Mat. 2:15), antes da morte do rei Herodes, o Grande, que morreu em 4 a.C. Jesus era natural de Belém, na Judeia ou, segundo alguns, de Nazaré, na Galileia. O mesmo evangelho localiza a ancestralidade de Jesus desde o rei Davi até “José, esposo de Maria” – o que parecia combinar bem com a convicção judaica de que o Messias capaz de redimir Israel e que também lhe devolveria a glória seria um descendente de Davi; porém Mateus acrescenta que “quando Maria desposou José, antes de levarem vida em comum, ela ficou grávida por obra do Espírito Santo” (Mat. 1:18). O Evangelho de Lucas amplia o milagre em bela literatura: “O anjo Gabriel chegou até ela e disse: ‘Ave Maria, cheia de graça; o Senhor esteja contigo; bendita sejas entre as mulheres’, ao que Isabel, prima de Maria, ao ouvir isso, acrescentou: ‘E bendito seja o fruto do teu ventre’”. Essa se tornou a mais bela oração católica. Maria respondeu com o magnífico Magnificat, que inspirou tantas músicas grandiosas: “Minha alma engrandece o Senhor e o meu espírito alegra-se intensamente em Deus, meu Salvador. Pois ele olhou para a humildade da sua serva; de agora em diante, todas as gerações me chamarão bem-aventurada” (Lucas, 1:46-48).
Penso em todos os belos hinos que a Idade Média compôs para Maria, e nas alegres canções que cantei para ela na minha juventude; foi o meu primeiro amor. Um dos aspectos que redimem a raça humana é tê-la imaginado e adorado e erguido milhares de templos em sua homenagem. Afinal, não há muito a dizer em favor do atletismo absurdo com que geramos uma alma nos dias de hoje.
Aparentemente, Jesus pertencia a uma grande família, pois os seus vizinhos mencionavam “os seus irmãos Tiago, José, Simão e Judas” (Mat. 13:55). Presumese que ele tenha praticado o agradável ofício do pai, a carpintaria, mas deve ter apreciado as belezas naturais do campo, pois, mais tarde, observou com sensibilidade a graça e a cor das flores e a silenciosa fecundidade das árvores.
A história de que ele questionou os sábios do Templo não é inacreditável: ele tinha mente alerta e curiosa. No Oriente Próximo, um rapaz de doze anos já se aproxima da maturidade. Frequentou a sinagoga e ouviu as Escrituras com evidente satisfação; os Profetas e os Salmos ajudaram a moldá-lo e se inculcaram profundamente na sua memória. Talvez ele também tenha lido os livros de Daniel e Enoque, cujas visões do Messias, do Juízo Final e da chegada do Reino dos Céus estão presentes nos seus ensinamentos posteriores.
O ar que ele respirava era tenso de excitação religiosa. Milhares de judeus esperavam ansiosos pelo Redentor de Israel. Por toda parte, eram aceitas mágica e feitiçaria, demônios e anjos, “possessões” e exorcismo, milagres e profecias, adivinhações e astrologia. Taumaturgos – fazedores de milagres – percorriam as cidades. Nas peregrinações anuais que todos os judeus da Palestina faziam a Jerusalém por ocasião do festival da Páscoa Judaica, Jesus pode ter ouvido falar dos essênios e de suas vidas meio monásticas; talvez os missionários budistas do rei indiano Ashoka tenham chegado à Palestina. Porém, a experiência que despertou em Jesus o fervor religioso foi a pregação de João, filho de Isabel, prima de Maria. Mateus e Marcos descrevem João vestido de peles, alimentando-se de gafanhotos mortos e mel, às margens do rio Jordão, convocando as pessoas ao arrependimento, batizando penitentes para um renascimento espiritual. Advertia os pecadores a se prepararem para o Juízo Final e proclamava a próxima chegada do Reino dos Céus. Se toda a Judeia se arrependesse e se purificasse do pecado, dizia João, o Messias e o Reino dos Céus chegariam.
Quando João Batista foi preso, Jesus assumiu o seu trabalho e começou a pregar a chegada do Reino dos Céus. “Voltou à Galileia e ensinou nas sinagogas”, diz Lucas. “O espírito do Senhor está comigo, porque Ele me ungiu para pregar aos pobres a Boa Nova; Ele me enviou para curar os corações partidos, para pregar a liberdade dos cativos e a recuperação da visão dos cegos, e para libertar os oprimidos.” (Isaías 56:1-2). “Os olhos de todos na sinagoga se fixavam nele [...] E todos falavam bem dele e se admiravam das palavras animadoras que lhe saíam dos lábios”, acrescenta Lucas (Isaías 4:19).
As palavras nem sempre eram agradáveis. Jesus aceitava e proclamava algumas doutrinas severas que se desenvolviam entre o seu povo. Falava dos pecadores, condenava-os ao “inferno, o fogo que jamais se extingue; onde o verme não morre e o fogo não se extingue” (Marcos 9:43-44); e, no capítulo 13, Mateus falou do Juízo Final, quando então “o Filho do Homem” (ou seja, Cristo) “enviará os seus anjos e eles tirarão do Seu reino todas as coisas que ofendem e que promovem a iniquidade; e as lançarão numa fornalha acesa; haverá choro e ranger de dentes. Então os justos brilharão como o Sol no reino do Pai” (Mateus 13:41-43).
Cristo contou, sem que se registrasse qualquer protesto, que o pobre que estivesse no céu não teria permissão para deixar que uma só gota de água caísse na língua do rico que estava no inferno (Lucas 16:25). Talvez, assim como os seus seguidores, Jesus achasse que certa severidade e rigor eram indispensáveis para pregar a um mundo acostumado à violência, ao adultério e à cobiça. O seu aspecto mais característico apareceu quando alguns fariseus – anciãos conservadores – pediram-lhe que condenasse uma mulher apanhada em adultério. Ele lhes disse: “Quem dentre vós estiver sem pecado, atire a primeira pedra” (João 8:7).
Em geral, dizem que ele era o mais adorável de todos os homens. Muitas mulheres percebiam nele uma ternura solidária que inspirava uma devoção inabalável. Assim, lemos sobre a prostituta que, emocionada porque Jesus aceitava prontamente os pecadores arrependidos, ajoelhou-se diante dele, ungiu-lhe os pés, derramou lágrimas sobre eles e enxugou-os com os cabelos. Quando alguns espectadores protestaram, Jesus respondeu: “Seus numerosos pecados lhe foram perdoados, já que mostrou muito amor” (Lucas 7:37-38, 47).
Acredito que a maioria dos milagres atribuídos a Jesus fosse resultado natural da sugestão – da influência de um espírito forte e confiante sobre almas impressionáveis; fenômenos semelhantes podem ser observados todas as semanas em Lourdes. A presença de Jesus e a sua fé foram, em si, um tônico; ao seu toque otimista, os fracos se tornavam fortes e os doentes sentiam-se bem. É impossível estabelecer limites para os poderes que existem no pensamento e na vontade de pessoas dotadas de força e convicção.

A BOA NOVA
Que evangelho – que em inglês foi traduzido como “boa nova” – Jesus levou ao seu povo? O ponto de partida foi o Evangelho de João Batista, que, por sua vez, remontava a Daniel e a Enoque: historia non facit saltum. O Reino dos Céus estava próximo, dizia Jesus; em breve, Deus poria fim ao domínio da iniquidade na terra; o Filho do Homem (como ele próprio se denominava) viria “sobre as nuvens do céu” para julgar toda a humanidade, vivos e mortos. O tempo para o arrependimento estava se esgotando; aqueles que se arrependessem, vivessem com justiça, amassem a Deus e confiassem no seu mensageiro herdariam o Reino dos Céus e seriam levados ao poder e à glória num mundo finalmente livre de males, sofrimento e morte.
Jesus não definiu claramente essas ideias, e muitas dificuldades ainda obscurecem esses conceitos. O que ele queria dizer com “o Reino dos Céus”? Um céu sobrenatural? Aparentemente não, pois os apóstolos e os primeiros cristãos esperavam unânimes por um reino aqui na terra. Era essa a tradição judaica que Cristo herdara, e ele ensinou os seus seguidores a rezarem para o Pai: “Venha a nós o vosso Reino, seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu”. Só depois dessa esperança ter fracassado é que o Evangelho de João faz Jesus dizer: “O meu reino não é deste mundo” (João 18:36). Jesus se referia a uma condição espiritual ou a uma utopia material? Às vezes, ele falava de um Reino dos Céus como sendo um estado de alma, alcançado pelos puros e sem pecado – “o reino de Deus já está no meio de vós” (Lucas 17:20); em outras ocasiões, descrevia esse reino como uma sociedade futura e feliz, na qual os apóstolos seriam os governantes e aqueles que tivessem se entregado ou sofrido por Cristo receberiam uma recompensa cem vezes maior (Mateus 19:29).
Muitos interpretaram o Reino dos Céus como uma utopia comunista e viram em Cristo um revolucionário social. Os evangelhos fornecem certas provas para esse ponto de vista. Cristo prometeu aos ricos e abastados fome e infortúnio e consolou os pobres com bem-aventuranças que lhes garantiriam o Reino dos Céus. Ao jovem rico que lhe perguntou o que deveria fazer além de observar os Mandamentos, Jesus respondeu: “Vende os teus bens, dá o teu dinheiro aos pobres e... segueme” (Mateus 19:15). Aparentemente, os apóstolos interpretavam o Reino dos Céus como sendo uma inversão revolucionária do relacionamento existente entre ricos e pobres; nós os veremos, assim como os primeiros cristãos, formando um grupo comunista que “tinha tudo em comum” (Atos 2:44-45).
Mas um conservador também pode citar o Novo Testamento a seu favor. Cristo ficou amigo de Mateus, que continuava sendo um agente do poder romano; não pronunciou crítica alguma ao governo civil, não tomou parte no movimento judaico de libertação nacional e aconselhou uma dócil submissão, praticamente sem tom de revolução política. Aconselhou os fariseus a “darem a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Aprovou o escravo que investira as dez minas (US$ 600) que o seu dono lhe confiara e ganhara outras dez; reprovou o escravo a quem foi confiada uma mina e que a manteve a salvo e improdutiva, esperando o retorno do dono; reservou ao dono as seguintes palavras duras: “àquele que tem, mais será dado; e daquele que nada tem, até mesmo o que tem será tirado” (Lucas 19:26) – um excelente resumo das operações de mercado e, até mesmo, da história mundial.
Jesus não atacou as instituições econômicas existentes; ao contrário, condenou as almas ardentes que “tomam de assalto o Reino dos Céus” (Mateus 11:12). A revolução que ele buscava era bem mais profunda, sem a qual as reformas seriam apenas superficiais e transitórias. Se conseguisse purificar o coração humano do desejo egoísta, da crueldade e da luxúria, a utopia se realizaria. Como se tratava da mais profunda de todas as revoluções, ao lado da qual todas as outras seriam meros golpes de estado de uma classe espoliando outra e por sua vez explorando-a, Cristo, nesse sentido espiritual, seria o maior revolucionário da história. A sua conquista não foi a de promulgar um novo Estado, mas a de delinear uma nova moral. O seu código ético vaticinava a chegada do Reino dos Céus e destinava-se a tornar os homens dignos de entrar ali. Dele resultam as bem-aventuranças com a exaltação da humildade, da delicadeza e da paz sem precedentes; o conselho de dar a outra face; a indiferença para com os bens econômicos, a propriedade, o governo; a preferência pelo celibato em vez do casamento; a ordem para abandonar todos os vínculos de família. Essas regras de Cristo não eram para uma vida familiar, nem para uma ordem social, e sim constituíam um regime semimonástico para homens e mulheres escolhidos por Deus que entrariam num Reino de Deus, onde não haveria leis, casamentos, relações sexuais, propriedades nem guerras.
Seriam novas essas ideias morais? Nada é novo, exceto a organização. O tema central da pregação de Cristo – o advento do Juízo Final e do Reino dos Céus – já existia havia mais de um século entre os judeus, entre os quais o Código de Moisés inculcara a fraternidade humana. “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”, diz o livro do Levítico; “tratarás como um dos teus o estrangeiro que mora na tua casa e o amarás como a ti mesmo” (Lev. 19:17-18, 34). Os Profetas punham a vida perfeita acima de qualquer ritual; Isaías e Oséas haviam começado a transformar Javé de um Senhor das Hostes – ou seja, dos Exércitos – em um Deus de amor. Hillel, assim como Confúcio, formulou a Regra de Ouro. Não devemos acusar Jesus por ter herdado e usado a rica doutrina moral do seu povo.
Por muito tempo, ele se considerou um puro judeu, compartilhando das ideias dos Profetas, continuando-lhes o trabalho e pregando, como eles, exclusivamente para os judeus. Quando enviou os discípulos para difundirem o Evangelho, enviou-os apenas para cidades judaicas. “Não tomeis o caminho que conduz aos gentios” (Mateus 10:5), pois isso causaria um problema na Lei Mosaica. “Eu não vim para destruir a Lei de Moisés, mas sim para fazer com que seja cumprida” (Mateus 5:17). Disse ao leproso a quem curara: “Vai, mostra-te ao sacerdote e... dá a oferenda que Moisés prescreveu” (Mateus 8:4). Contudo, Jesus fez algumas modificações na lei. Endureceu-a em assuntos de sexo e divórcio, mas suavizou-a ao apontar para um perdão mais imediato; lembrou aos fariseus que o sábado era feito para os homens, e não os homens para o sábado. Relaxou o código de alimentação e purificação e aboliu certos jejuns. Condenou orações solenes, exibições de caridade e funerais pomposos.
Judeus de todas as seitas, menos os essênios, se opuseram a essas inovações e em especial ressentiram-se da suposta autoridade de Jesus para perdoar os pecados e falar em nome de Deus. Ficaram chocados ao vê-lo manter relações amigáveis com mulheres de moral duvidosa. Os sacerdotes do Templo e os membros do Sinédrio administrativo viam no número crescente de seguidores de Jesus uma revolta disfarçada contra Roma e temiam que o procurador dos romanos os acusasse de negligenciarem a responsabilidade pela manutenção da ordem social. Sem se preocupar, Jesus censurou-os:
Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas! [...] Ai de vós, guias cegos, [...] insensatos! [...] Sois semelhantes a sepulcros caiados: por fora com bela aparência, mas, por dentro, cheios de hipocrisia e maldade [...] Descendeis dos assassinos dos Profetas [...] Serpentes! Raça de víboras! Como escapareis da condenação ao inferno? [...] Os publicanos e as prostitutas vos precedem no Reino de Deus (Mat. 23:1-34; 21:31).
A crise final aconteceu quando os Apóstolos proclamaram abertamente que Jesus era o Messias prometido, que livraria Israel da servidão a Roma e estabeleceria o Reino de Deus na terra. Na última segunda-feira antes da sua morte, quando Jesus entrou em Jerusalém para levar o Evangelho à capital, “toda a multidão dos seus discípulos” saudou-o com as palavras: “Bendito seja o rei que vem em nome do Senhor!” (Lucas 19:37). Alguns fariseus pediram que Jesus reprovasse essa saudação; ele respondeu: “Se eles se calarem, as pedras gritarão”. O Evangelho de João relata que a multidão saudou Jesus como “Rei de Israel”. Aparentemente, os seguidores consideravam-no um Messias político que derrubaria o poder romano e libertaria a Judeia.
Talvez essas aclamações, por equívoco, tenham condenado Cristo à morte como revolucionário.

 

MORTE E TRANSFIGURAÇÃO
Aproximava-se a festa da Páscoa judaica, e um grande número de judeus se reunia em Jerusalém para oferecer sacrifícios no Templo. O pátio externo do santuário estava cheio de barulhentos vendilhões, vendendo pombos e outros animais para o sacrifício, além de cambistas oferecendo dinheiro local em troca de moedas de povos idólatras, como os romanos.
Ao visitar o Templo no dia da sua entrada em Jerusalém, Jesus ficou chocado com o alarido e com o mercantilismo nas barracas; num acesso de indignação que produziu inimigos influentes, Jesus e seus seguidores derrubaram as bancas dos cambistas e dos mercadores de pombos, espalharam as moedas pelo chão e com “um açoite de vara” expulsaram do pátio os negociantes.
Por vários dias, daí em diante, Jesus ensinou livremente no Templo; mas, à noite, saía de Jerusalém e ficava no monte das Oliveiras, temendo ser preso ou assassinado. Os agentes do governo – civis e eclesiásticos, romanos e judaicos – há muito o observavam. O fracasso de Jesus em conseguir um grande séquito fizera com que esses agentes o ignorassem; porém, a entusiástica recepção em Jerusalém fez os líderes judeus duvidarem se essa excitação, visível nas multidões emotivas e patrióticas na Páscoa, poderia se transformar numa revolta inútil e intempestiva contra o poder romano e resultar na anulação de todo o governo autônomo e de toda a liberdade religiosa da Judeia. O sumo sacerdote Caifás convocou uma reunião do Sinédrio e expressou a opinião de que “aquele homem deve morrer pelo povo, em vez de toda a nação ser destruída” (João 15:15). A maioria concordou, e o conselho ordenou a prisão de Jesus.
Alguma notícia dessa decisão parece ter chegado até Jesus. No 14o dia do mês judaico de Nisan (para nós, 3 de abril), provavelmente no ano 30, Jesus e seus discípulos comeram a Ceia, ou o Jantar da Páscoa, em casa de um amigo em Jerusalém. Confiavam que o Mestre se libertasse por algum poder miraculoso; ao contrário, ele aceitou o destino. De acordo com o ritual judaico, abençoou (em grego, no Novo Testamento, eucharistisae) o vinho, deu-o para os apóstolos beberem, e juntos cantaram a canção ritual judaica “Haliel”. Jesus disse-lhes, segundo o Evangelho de João, que estaria com eles “apenas um pouco mais [...] Eu vos dou um novo mandamento: amai-vos uns aos outros [...] Não deixeis vossos corações se perturbarem. Acreditai em Deus e acreditai em mim. Na casa do meu Pai há muitas moradas [...] Eu vou preparar-vos um lugar”.
Naquela noite, dizem que o pequeno grupo se escondeu no Jardim do Getsêmani, fora de Jerusalém. Ali um destacamento da polícia do templo encontrou-os e prendeu Jesus, levando-o primeiro à casa de Anás, um antigo sumo sacerdote, depois à do sumo sacerdote Caifás, onde se reuniu um “Conselho” – provavelmente um comitê do Sinédrio. Várias pessoas testemunharam contra Jesus, especialmente lembrando a ameaça que ele fizera de destruir o Templo. Quando Caifás perguntou-lhe se ele era “o Messias, o Filho de Deus”, conta-se que Jesus respondeu: “Eu sou!” (Marcos 14:61; Mateus 26:63). Na manhã seguinte, o Sinédrio se reuniu, declarou Jesus culpado de blasfêmia (à época um crime capital) e decidiu levá-lo à presença do procurador romano.
Pôncio Pilatos não imaginou que aquele pregador de modos suaves fosse um verdadeiro perigo para o Estado. “Tu és o Rei dos Judeus?”, perguntou. Segundo o Evangelho de Mateus, Jesus respondeu: “Su eipas” – “Tu o disseste”. O quarto Evangelho menciona que Jesus acrescentou: “Pois para isso eu nasci... para dar testemunho da verdade”. “E qual é a verdade?”, indagou o procurador – pergunta que revela o abismo entre a cultura sofisticada e cínica do romano e o idealismo confiante do judeu. Com relutância, Pilatos sentenciou Jesus à morte.
A crucificação era uma forma de punição romana, não judaica. Em geral, era precedida de flagelos aplicados com força. Deixavam o corpo numa sangrenta massa de carne inchada. Os soldados romanos coroaram Jesus com uma coroa de espinhos, caçoando da sua realeza como “Rei dos Judeus”, e colocaram sobre a sua cruz uma inscrição em aramaico, grego e latim: Iesus Nazarathaeus Rex Ioudaeorum.
Se Cristo foi ou não um revolucionário, obviamente Roma condenou-o como tal; foi assim que Tácito entendeu o assunto (Anais, 15.44). Uma pequena multidão, do tamanho que poderia se reunir no pátio da casa de Pilatos, pedira a execução de Cristo; agora, no entanto, à medida que ele subia a colina do Gólgota, “foi seguido por uma grande multidão”, diz Lucas, e por mulheres que batiam no peito se lamentando. É claro que a condenação não teve a aprovação do povo judeu.
Diz-se que a cruz foi erguida na “terceira hora”, ou seja, às nove da manhã. Marcos relata que dois ladrões foram crucificados ao lado de Jesus e “o insultavam”; Lucas diz que um dos dois pediu ajuda a Jesus. De todos os Apóstolos, só João estava presente. Com ele, as três Marias – a mãe de Jesus, a irmã desta e Maria Madalena; havia também algumas mulheres observando à distância. Segundo o costume romano, os soldados repartiram entre si as roupas dos moribundos; como Cristo só tivesse uma roupa, eles a sortearam. Possivelmente, neste ponto, existe uma lembrança inserida no Salmo 22:18: “Repartam entre si as minhas vestes, sorteiem entre si a minha túnica”. O mesmo salmo começa com as seguintes palavras: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” – esta é a enunciação desesperada e humana que Marcos e Mateus atribuem ao Cristo moribundo. Será que naquele momento cruel a grande fé que o sustentara diante de Pilatos cedera lugar a uma dúvida pungente?
Um soldado, com pena da sede de Cristo, ergueu até a sua boca uma esponja embebida em vinagre. Jesus bebeu e, segundo relatos, disse: “Tudo está consumado”. Na “hora nona”, ou seja, às três da tarde, ele deu um grito e o último suspiro. O Evangelho de Lucas acrescenta: “Toda a multidão que tinha vindo ver o espetáculo [...] voltava para a cidade, batendo no peito”. Dois judeus bondosos e influentes, tendo conseguido a permissão de Pilatos, desceram da cruz o corpo e o colocaram num túmulo.
Os dois ladrões crucificados com Jesus ainda viviam; algumas vítimas padeciam três dias antes de morrer. Para encerrar a agonia, os soldados quebraram as pernas dos companheiros de sofrimento de Cristo, para que o peso do corpo arriasse sobre as mãos e assim o coração parasse. Pilatos manifestou surpresa pelo fato de um homem demorar apenas seis horas para morrer, depois de crucificado; só deu o consentimento para que Cristo fosse removido da cruz quando o centurião de plantão garantiu-lhe que Cristo estava morto.
Dois dias depois do sepultamento, Maria Madalena visitou o túmulo com “Maria, mãe de Tiago” (um dos Apóstolos). Encontraram-no vazio. “Assustadas porém alegres”, correram para dar a notícia aos discípulos. No caminho encontraram um homem que pensaram ser Jesus; inclinaram-se diante dele e abraçaram-lhe os pés. Dizem que, no mesmo dia, Cristo apareceu a dois discípulos na estrada para Emaús, conversou e comeu com eles; por muito tempo “eles evitaram reconhecê-lo”; mas quando “ele tomou o pão e o abençoou, [...] os olhos deles se abriram e eles o reconheceram, mas ele desapareceu” (Lucas 14:13-32).
Os discípulos voltaram à Galileia logo depois, “viram-no e curvaram-se diante dele, embora alguns tivessem dúvidas”. Quarenta dias após o aparecimento para Maria Madalena, o início dos Atos dos Apóstolos diz que Cristo ascendeu fisicamente ao céu. A ideia de um santo sendo fisicamente “transportado” para o céu, e vivo, era familiar aos judeus; referiam isso em relação a Moisés, Enoque, Elias e Isaías. O Mestre foi-se tão misticamente como viera, mas a maioria dos discípulos parece ter ficado sinceramente convencida de que, depois da crucificação, Jesus estivera fisicamente entre eles.
“Voltaram cheios de alegria a Jerusalém e permaneceram continuamente no Templo, bendizendo a Deus” (Lucas 24:52).

(Will Durant - Heróis da História, uma breve História da civilização da Antiguidade ao alvorecer da Era Moderna)

publicado às 10:37


Ide a Tiago, o Justo

por Thynus, em 16.02.15
A expectativa diante da morte violenta do líder de um movimento é de caos, confusão e subseqüente desintegração. Josefo mencionou pelo menos uma dúzia de outros aspirantes messiânicos e líderes de rebelião executados pelos romanos ao longo do primeiro século d.C. Em todos os casos, os movimentos iniciados por eles foram esmagados ou desapareceram. Foi nitidamente diferente com o movimento de Jesus. Afinal, seus membros tinham perdido os dois líderes, primeiro João e depois Jesus — os dois Messias em quem depositavam tanta esperança. No entanto, o movimento não se extinguiu; na verdade, começou a crescer e a se espalhar.
A visão tradicional é a de que Jesus apareceu ressuscitado em glória no domingo seguinte à sexta-feira de sua crucificação, transformando sua morte em celebração e triunfo. É isso que os cristãos celebram por ocasião da Páscoa. Mas se Jesus realmente morreu, foi enterrado, e sua família e seguidores já não o tinham fisicamente presente — o que os levou a atravessar um período de terrível luto e perda, conforme sugere uma leitura mais histórica das provas —, como se explica que o movimento tenha sobrevivido? Vimos que no evangelho segundo São João, bem no último capítulo, como se tivesse sido acrescentada, foi preservada a tradição de que Pedro e vários dos Doze retornaram às suas redes de pescar, na Galileia, tendo reassumido uma vida normal. O Evangelho de Pedro também reconhece essa tradição, mais de acordo com o que se poderia esperar. A que atribuir, então, a transformação do desespero em esperança e renovação da fé?
Eu atribuiria a sobrevivência e a renovação do movimento de Jesus a três fatores: em primeiro lugar, ao próprio Tiago, assim como à mãe e aos irmãos de Jesus. Este se fora, mas Tiago, como veremos, tornou-se uma imponente figura de força e fé para os seguidores de Jesus. Ter o irmão de Jesus com eles, alguém de sua própria carne e sangue, e que também pertencia à real linhagem de Davi, deve ter sido um poderoso reforço. Provavelmente foi o que aconteceu com a família de Jesus como um todo, que se tornou a âncora do movimento. Maria foi reverenciada por seu papel como "Mãe de Deus", durante séculos, mas historicamente falando, seu papel como mãe muito humana dessa extraordinária família de seis filhos e duas filhas parece ter-se perdido. Infelizmente, não dispomos de muitos detalhes de como Tiago conseguiu fazer o que fez enquanto líder do movimento, pois, como veremos, sua participação foi quase totalmente marginalizada nos registros de nosso Novo Testamento; os resultados, porém, são evidentes. Era muito moço quando assumiu esse papel e deve ter-se desenvolvido com o tempo, à medida que foi amadurecendo até se tornar o homem que mereceu o respeito de seus contemporâneos. O segundo fator foi a mensagem que tanto João quanto Jesus pregaram, as "boas novas do Reino de Deus" e tudo que isso implicava. Por mais reverenciados que tenham sido os mensageiros, o que eles advogavam e proclamavam subsistiu, sem ter sido, de modo algum, destruído ou perdido com suas mortes. Clamaram contra a injustiça e a opressão, incitaram ao arrependimento e proclamaram o perdão dos pecados e encarnaram a esperança e a fé messiânicas enraizadas nos Profetas hebreus. A causa dos Dois Messias permaneceu e sobreviveu. Finalmente, tanto Jesus quanto João tinham proclamado que o "fim dos tempos" se aproximava. A perspectiva apocalíptica por eles incorporada foi reforçada, como veremos, pelos acontecimentos sociais e políticos da época. Era como se tudo que os Profetas hebreus tinham previsto estivesse em vias de se realizar diante de seus olhos. A instabilidade de Roma, a ameaça de guerras e rebeliões, e até a oposição das autoridades por eles enfrentada, tudo era visto como sinais de que o "tempo indicado" estava ficando muito curto — assim como proclamado por Jesus. Eles constituíam uma comunidade intensamente apocalíptica que esperava ver a manifestação do Reino de Deus em sua plenitude. Afinal, Jesus esperara a chegada do "Filho do Homem" antes mesmo de sua morte. Ao enviar os Doze, dissera-lhes que não "chegariam a percorrer todas as cidades de Israel antes da vinda do Filho do Homem". No sonho de Daniel, a "vinda do Filho do Homem nas nuvens do céu" era um símbolo para o tempo em que ao povo de Deus seria dado o governo de todas as nações (Daniel 7:13-14, 27). Jesus declarara que sua expulsão dos demônios era um sinal certo de que o "reino de Deus tinha chegado"; comparou esse trabalho ao ataque violento à fortaleza de um "homem forte", a saber, Satã, para subjugá-lo (Lucas 11:20-22). A morte de Jesus foi certamente um terrível choque para todos que o amavam e seguiam, mas eles continuaram a crer fervorosamente na mensagem central que tanto Jesus quanto João Batista, antes dele, proclamaram: "Arrependei-vos, porque o Reino de Deus está próximo".
O corpo principal do núcleo dos seguidores de Jesus, incluindo os que participavam do movimento messiânico desde o início da obra de João Batista, reuniu-se em Jerusalém no final da primavera, quase no começo do verão. O festival de Pentecostes ou Shavuot, naquele ano, caiu na última semana de maio. Não restavam muitos, apenas pouco mais de cem, que permaneceram fiéis ao longo dos dias sombrios e penosos da Páscoa dos hebreus (Atos 1:15). Agruparam-se na área da baixa Jerusalém, na cidade de Davi. A hospedaria com a "Sala do Andar Superior" (Cenáculo), onde Jesus fizera a última refeição, virou seu centro de operações. A escolha do local pode representar mais do que uma questão de conveniência, pois Jesus deliberadamente escolhera aquela área da cidade para sua reunião final com os Doze. O rei Davi tinha escrito um Salmo em que Deus declarava "Estabelecerei meu rei em Sião, meu monte sagrado", referindo-se ao "Monte Sião", na cidade de Davi (Salmos 2:6). Já que muitos provinham da Galileia e outras regiões do país, a comunidade juntou seus recursos e passou a viver uma vida comunitária livre, partilhando as refeições, os de fora da cidade ficando nas casas dos que moravam em Jerusalém (Atos 2:46). Deve ter havido alguma sensação de perigo, mas também de nervosa expectativa — já que certamente Deus não permitiria que a morte de seus Justos, Jesus e João, ficasse impune. Pouco depois do dia de Pentecostes, o grupo se reuniu para deliberar sobre sua situação. Precisavam de um novo líder e tinham de substituir Judas Iscariotes, que cometera suicídio, no Conselho dos Doze.
O que aconteceu depois disso é uma das maiores histórias "não contadas" dos dois últimos milênios. A tradição mais lembrada pela maioria das pessoas é a de que o apóstolo Pedro assumiu a liderança do movimento como chefe dos Doze. Não muito depois, o apóstolo Paulo, recém-convertido ao cristianismo, deixara o judaísmo para unir-se a Pedro. Juntos, os apóstolos Pedro e Paulo se tornaram os "pilares" gêmeos da emergente fé cristã, pregando o evangelho em todo o mundo romano e vindo a morrer gloriosamente, como mártires, em Roma — por designação divina, a nova sede da Igreja. Essa visão das coisas vem sendo entronizada na arte cristã ao longo dos tempos, tendo sido popularizada em livros e filmes. Na verdade, a primazia de Pedro como primeiro papa tornou-se mesmo a pedra angular do ensino dogmático do catolicismo romano. Hoje sabemos que as coisas não se passaram dessa maneira.
Pedro tornou-se figura de proa no grupo dos Doze, como veremos, mas Tiago, o irmão de Jesus, quem se tornou o sucessor de Jesus e o líder inconteste movimento cristão. Jesus, o regente que descendia de Davi, tinha sido levado deconvívio. Tiago era o próximo nessa linhagem real. A morte de Jesus não significou o fim do movimento, nem política, nem espiritualmente. A dinastia de Jesus continuaria por mais de um século após sua morte. Mas, se é assim, como é que Tiago, o herdeiro dessa dinastia, tem sido quase inteiramente deixado de fora da história das origens cristãs — e, mais importante, — por quê? Tiago mal aparece na arte e iconografia cristãs. É como se sua própria existência tivesse sido completamente esquecida. No entanto, ele surge em uma história oculta, história surpreendente e inspiradora essa, com importantes implicações para o entendimento de Jesus e da causa pela qual ele viveu e morreu.
Devemos começar nossa procura de Tiago por um exame das fontes do Novo Testamento — já que foi a partir daí que sua memória foi extensamente apagada. Temos apenas um relato substancial da história dos primórdios do movimento cristão que se seguiu à morte de Jesus — o livro do Novo Testamento conhecido como Atos dos Apóstolos. O mesmo autor do evangelho de Lucas escreveu os Atos como um segundo volume de seu trabalho literário. O livro dos Atos é amplamente responsável pelo retrato oficial dos primórdios do cristianismo, em que Pedro e Paulo assumem papel tão destacado, e Tiago é amplamente deixado de fora. A apresentação dos Atos tornou-se a história, embora a versão de Lucas seja, é lamentável, unilateral e historicamente questionável. Lucas com certeza sabia, mas não estava disposto a afirmar que Tiago assumira a liderança do movimento após a morte de Jesus. Em seus capítulos iniciais, nunca sequer menciona o nome de Tiago e escala Pedro como o líder inconteste dos seguidores de Jesus. Mas seu maior objetivo no livro como um todo é promover a centralidade da missão e mensagem do apóstolo Paulo. Embora os Atos tenham 24 capítulos, uma vez introduzido o nome de Paulo no nono capítulo, o resto do relato de Lucas é inteiramente sobre ele — até Pedro começa a sair de cena. Mais do que Atos dos Apóstolos, o livro deveria se chamar A Missão e Carreira de Paulo.
Isso não quer dizer que falte aos Atos valor histórico. Sem eles, teríamos uma compreensão bem inferior do desenvolvimento inicial do movimento cristão. Além disso, ironicamente, Lucas deixou de forma involuntária no livro dos Atos pistas que nos permitem verificar o que sabemos por meio de outras fontes — que Tiago, e não Pedro, tornou-se o legítimo sucessor de Jesus e líder do movimento. Precisamos aprender a ler o livro dos Atos cuidadosamente, conscientes durante todo o tempo do mal velado "viés" dado por Lucas à história.
Lucas, mais do qualquer um dos outros evangelistas, marginaliza a família de Jesus. Lembrem-se, é de Lucas o evangelho que deliberadamente evitou até mesmo mencionar os irmãos de Jesus, muito menos dar nome a eles, embora sua fonte, Marcos, os tenha relacionado naturalmente como Tiago, José, Judas e Simão (Marcos 6:3). Só em Lucas, quando uma mulher na multidão que seguia Jesus gritou "Abençoado é o ventre que o carregou e os seios que o amamentaram", Jesus replica "Não, abençoados antes os que ouvem a palavra de Deus e a guardam" (Lucas 11:27-28). Até na cruz, quando Marcos diz simplesmente que "Maria, a mãe de Tiago e José assim como Salomé, a irmã de Jesus, estavam presentes, Lucas muda isso para "as mulheres (não nomeadas) que o seguiram desde a Galileia" (Lucas 23:49). Na cena do enterro fez a mesma coisa. Em vez de nomear "Maria Madalena e Maria, a mãe de Tiago", como tendo ido à sepultura, conforme fizera Marcos, sua fonte, mudou o relato para "as mulheres (novamente não nomeadas) que vieram com ele da Galileia foram atrás e viram a sepultura" (Lucas 23: 55). Na maior parte das vezes, Lucas seguiu Marcos bem de perto, como sua fonte, muito mais do que Mateus, que constantemente acrescentou suas próprias revisões editoriais. No entanto, Lucas se afastou de Marcos quando se tratava da mãe e dos irmãos de Jesus. Acho que ele fez isso para evitar que fossem suscitadas questões sobre a liderança de Pedro sobre os Doze ou a superioridade da missão de Paulo junto aos gentios. Uma edição tão ousada não poderia ser acidental; há algo muito importante em jogo aqui. Faz parte da intenção de Lucas reconfigurar a história do início do movimento de forma a dar a Paulo a primazia sobre outros rivais, incluindo Tiago. Mas que rivalidade era essa?
Lucas era um gentio. Na realidade, era o único autor não judeu em todo o Novo Testamento. Ele enfatiza a versão gentia do cristianismo esposada por Paulo. Não pode negar que Jesus era judeu, ou que todos os seguidores originais de Jesus eram judeus, ou que o movimento cristão inicial, como um todo, era um movimento apocalíptico dentro do judaísmo, mas escreveu em uma época, duas décadas após a rebelião judaico-romana, quando essas origens judaicas do movimento estavam ficando marginalizadas e sem ênfase, e a iminente esperança apocalíptica enfraquecera.
Acrescenta, então, cuidadosamente, uma definidora frase fatídica que serviu para marginalizar a família de Jesus por dois mil anos:
 "Todos esses [os 11] devotavam-se constantemente à oração, junto com certas mulheres, incluindo Maria, a mãe de Jesus, assim como seus irmãos." (Atos 1:13-14) 
Ao separar os 11 de "Maria, mãe de Jesus, bem como de seus irmãos", Lucas conseguiu efetivamente recolocar as coisas de forma que Tiago e os outros irmãos de Jesus não desempenhassem um papel de liderança nessa conjuntura crucial do movimento. São mencionados apenas de passagem, como que dizendo "Ah sim, por falar nisso, eles estavam presentes, mas na verdade não eram significativos".
Mas é claro que Lucas se sentiu obrigado a registrar suas presenças. Ele não ousou bani-los completamente do relato sabendo, como sabia, do papel absolutamente crucial desempenhado por eles. É mais do que irônico que, ao listar os 11, ele mencione os nomes de Tiago, Simão, e até mesmo observe que Judas é o irmão de Tiago. Como veremos, o livro dos Atos foi escrito em torno de um inegável fato básico — Tiago assumira a liderança do movimento, e Simão, seu irmão, o substituiu após a morte de Tiago em 62 d.C. Lucas escreveu os Atos nos anos 90 d.C., pelo menos trinta anos depois da morte de Tiago, e sabia, seguramente, que Simão, também de linhagem real, tinha sucedido Tiago, e era chefe da igreja de Jerusalém, no momento mesmo em que Lucas escrevia. Lucas termina propositalmente seu relato no livro dos Atos com a prisão de Paulo em Roma, por volta de 60 d.C. Para ele, a história acaba aí — Paulo em Roma, pregando seu evangelho ao mundo gentio. Ao escolher essa data de corte, isenta-se da obrigação de registrar tanto a morte de Tiago quanto a sucessão de Simão, irmão de Jesus. A história de Lucas, nos Atos, tornou-se a história do cristianismo primitivo para as gerações subseqüentes. O que ele escolheu não contar ficou esquecido.
Não deixa de ser irônico que a primeira prova referente ao papel de liderança exercido por Tiago e os irmãos de Jesus, após sua morte, nos chegue diretamente de Paulo. Jesus foi crucificado no ano 30 d.C., e as cartas de Paulo datam dos anos 50 d.C. Não dispomos de registro para essa lacuna de vinte anos. Estes são os anos de silêncio na história do cristianismo primitivo. O que podemos saber precisa ser lido de trás para diante, a partir dos registros que sobreviveram. Felizmente, na carta de Paulo aos gálatas, escrita por volta de 50 d.C., ele retrocede há pelo menos 14 anos, ao recontar sua biografia. (Aceito aqui a chamada teoria "Gálata do Sul", que data a carta de Paulo aos Gálatas de aproximadamente 50 d.C. Sua experiência de conversão teria sido, dessa forma, por volta do ano 36 d.C. (os "14 anos" mencionados anteriormente em Gálatas 2:1), que bate com os indícios que temos dos Ascents of James, que data a conversão de Paulo cerca de sete anos após a crucificação de Jesus.) Isso nos fornece uma fonte pessoal primária original, a mais valiosa ferramenta com que um historiador pode trabalhar, cujo alcance chega à década de 30 d.C.
Na carta aos gálatas, Paulo relata que, três anos após se juntar ao movimento, ele fez sua primeira viagem à Jerusalém, onde viu Pedro, por ele chamado de Cefas, seu apelido aramaico. Paulo ficou com ele durante 15 dias. Nessa ocasião, escreveu: "mas não vi nenhum dos outros apóstolos, com exceção de Tiago, irmão do Senhor" (Gálatas1:19). Não só chamou Tiago de apóstolo, como claramente o identificou como o irmão de Jesus. Os nazarenos, de forma compreensível, desconfiavam de Paulo, já que este, há tão pouco tempo, estivera à frente daqueles que os perseguiam, aliado dos próprios líderes que mandaram matar Jesus. Paulo viu Pedro, mas sabia que era essencial encontrar-se com Tiago, que estava no comando. Que Paulo tenha mencionado isso de passagem é ainda mais significativo, pois não precisa explicar a quem quer que seja as razões pelas quais teria se encontrado com Tiago. Paulo, a seguir, contou que 14 anos após essa conversa, muito perto dos anos 50 d.C., viajou de volta a Jerusalém para obter autorização para sua missão junto aos gentios daqueles que designou como os três "pilares" do movimento — a saber, Tiago, Pedro e João, o pescador (Gálatas 2:9). A simples menção do nome de Tiago é significativa, mas que Paulo o tenha nomeado primeiro, antes de Pedro e João, é absolutamente crítico para nossa compreensão. A ordem dos nomes indica uma ordem estabelecida de autoridade. O Conselho dos Doze, com Tiago à frente, governa os nazarenos, mas dos Doze, três exercem a liderança principal — Tiago, Pedro e João. Tiago, o irmão de Jesus, partilhando a linhagem real de Davi, ocupa a posição central, mas um à direita, e outro à esquerda, o flanqueiam como "pilares".
A Jesus, que anteriormente ocupara a posição central, os Doze perguntaram quem entre eles teria o privilégio de "se sentar à sua direita e à sua esquerda" quando o Reino chegasse (Marcos 10:37). Jesus morreu sem ter designado qualquer um deles para essas duas posições. Agora, com Tiago ao centro, Pedro e João preencheram esses papéis como parte do corpo de governo messiânico inaugurado por Jesus. Conhecemos esse padrão pela comunidade de Qumrã, nos Manuscritos do Mar Morto. A Regra Comunitária estipulara: "No conselho da Comunidade deve haver 12 homens e três sacerdotes, perfeitamente versados em tudo que é revelado da Torá". (Manuscritos do Mar Morto, Regra Comunitária Col. 8)
Ainda que Lucas nada tenha revelado nos Atos sobre o fato de Tiago ser um dos apóstolos, muito menos que tivesse sucedido Jesus como líder do grupo, ao relatar esse encontro de Paulo com os apóstolos de Jerusalém em 50 d.C., nos Atos 15, ele também se sentiu obrigado a contar que Tiago era o encarregado dos procedimentos. Nos capítulos iniciais dos Atos, Lucas mencionara Pedro e João repetidas vezes, como um par, indicando que ambos ocupavam posições de liderança no movimento nazareno. (Consulte Atos 3:1-11; 4:13-19; 8:14) Situara esses dois em primeiro lugar da lista dos Doze — indicando que tinham sido escolhidos para as posições "à direita e à esquerda" (Atos 1:13). Isso foi uma mudança em relação à primeira lista dos Doze de seu evangelho, em que os quatro primeiros apareciam em ordem diferente: Pedro, André, Tiago e João (Lucas 6:14). Que ele tenha trocado a ordem nos Atos, pondo Pedro e João em primeiro e segundo lugares, combina com o que sabemos por Paulo sobre os "pilares" da igreja, a saber, Tiago, Pedro e João. Antes desse encontro com o Conselho de Jerusalém em 50 d.C., Lucas só identifica Tiago, o irmão de Jesus, pelo nome quando Pedro é solto da prisão e orienta um grupo de seguidores de Jesus reunido em uma casa particular para "dizer a Tiago e irmãos" que ele fora posto em liberdade (Atos 12:17). Temos aqui uma deixa de que Pedro tende a relatar as coisas a Tiago e aos irmãos de Jesus, mas nada mais é dito e nenhuma explicação maior é dada. Essa informação parece provir do nada.
Assim, no relato de Lucas nos Atos, quando Tiago repentinamente aparece, não se sabe de onde, como líder do movimento nazareno no Conselho de Jerusalém, podemos ver que Lucas está bem ciente da posição de Tiago. Nessa conjuntura crítica, ele não ousou excluir Tiago da história. Ligando isso às referências, feitas de passagem, de Paulo em Gálatas com relação a Tiago como o "pilar" central do movimento, podemos começar a juntar nossas provas. Não foram poucos os leitoresdos Atos que ficaram intrigados com essa anomalia. Quem é esse misterioso"Tiago", que surge no Capítulo 15 sem explicação, mas com tanto poder e autoridade?
O Conselho de Jerusalém foi convocado para tratar de uma questão crítica e controvertida que ameaçara dividir o movimento messiânico. Em que bases os gentios podiam ser aceitos no grupo? Tanto João Batista quanto Jesus tinham proclamado a chegada iminente do Reino de Deus. Segundo os Profetas, o julgamento de Deus recairia não apenas sobre Israel, mas sobre toda a humanidade. Em conformidade com isso, judeus e não judeus foram conclamados a se arrepender dos pecados e voltar-se para Deus, a fim de ser salvos da "ira vindoura". Jeová era o Criador, o único "Deus vivo e verdadeiro," e a adoração de qualquer outra divindade era chamada de idolatria. Mas o que se esperava desses não judeus que responderam a essa proclamação — a "boa nova" da iminente chegada do Reino de Deus? Uma ala conservadora do movimento nazareno sustentava que esses gentios deveriam começar a viver plenamente como judeus — o que incluiria a circuncisão dos homens e a observância de todas as leis da Torá. Paulo resistiu firmemente a essa decisão, e nisso teve o apoio de Pedro que, depois de Tiago, era o mais influente dos líderes nazarenos. Após muita discussão e disputa, Lucas registrou que foi Tiago, o irmão de Jesus, que se ergueu e deu sua decisão: Portanto, formulei o juízo de que não devemos perturbar esses gentios que estão se voltando para Deus, mas que devemos escrever-lhes para que se abstenham da poluição de ídolos e da fornicação, e de tudo que é estrangulado, e do sangue, pois em cada cidade, ao longo das gerações passadas, Moisés aceitou os que o proclamavam, e ele era lido em voz alta todos os sabás nas sinagogas. (Atos 15:19-21)
Aqui Lucas se vê compelido a dar a Tiago o lugar que lhe é de direito, com total autoridade — embora sem oferecer qualquer explicação sobre como isso chegou a acontecer. A decisão fundamental decretada por Tiago era a de manutenção da prática usual dos grupos judeus em todo o mundo romano. Se não judeus eram atraídos à sinagoga, eram recebidos como "tementes a Deus", ou "gentios íntegros", e deles não se esperava que se circuncidassem ou guardassem toda a Torá, como se exigia dos judeus. Deviam, no entanto, seguir a ética da Torá, que se aplicava a todos os seres humanos. A idolatria, bem como as diversas formas de imoralidade sexual, amplamente toleradas na sociedade romana, eram estritamente condenadas. A ingestão de carne que ainda contivesse o sangue de animais abatidos fora universalmente proibida para todos os seres humanos desde os tempos de Noé (Gênesis 9:4) Além dessas áreas mais específicas de conduta que separavam os judeus dos não judeus, esperava-se que levassem uma vida de justiça e retidão. A decisão de Tiago estava em harmonia com a abordagem judaica usual em relação aos gentios, conhecida a partir de outras fontes.' Não é, porém, tanto a decisão em si quanto a indubitável autoridade de Tiago sobre o movimento nazareno que torna esse relato nos Atos tão significativo. Tomando isso como ponto de partida, as provas acumuladas fora do Novo Testamento de que Tiago tomou o manto de Jesus e ocupou seu "assento" ou "trono" são absolutamente notáveis. Algumas dessas provas estão enterradas em textos antigos de que dispomos há séculos, enquanto outras surgiram apenas há algumas décadas.

Tiago, o Justo
Como já expliquei, o Evangelho de Tomé foi descoberto no alto Egito, em 1945, nas cercanias da cidadezinha de Nag Hammadi. Embora o texto em si date do terceiro século, estudiosos demonstraram que ele preserva, a despeito de acréscimos teológicos posteriores, um documento original em aramaico que remonta aos primeiros dias da igreja de Jerusalém. (Consulte a obra inovadora e inspirada de April D. DeConick em Thomasine Traditions in Antiquity: The Social and Cultural World of the Gospel ofThomas, editada por April D. DeConick, Jon Asgeirsson, e Risto Uro, Nag Hammadi e Manichaean Studies Series (Leiden: E. J. Brill, 2005); Recovering the Original Gospel of Thomas: A History of the Gospel and lts Growth, Suplementos ao Joumal of the Study of the New Testament 286 (Londres: T. &T. Clark, 2005); e The Original Gospel of Thomas in Translation: A Commentary and New English Translation of the Complete Gospel, Suplementos ao Joumal of the Study of the New Testament (Londres:T. &T. Clark, 2006)) Graças a ele, podemos ter um raro vislumbre do que os estudiosos chamaram de "cristianismo judaico", isto é, os primeiros seguidores de Jesus conduzidos por Tiago. Como vocês vão se recordar, o Evangelho de Tomé não é uma narrativa da vida de Jesus, mas antes uma lista de 114 de seus "ditos" ou ensinamentos. O de número 12 diz o seguinte:
Os discípulos disseram a Jesus "Sabemos que vai nos deixar. Quem, então, será nosso líder?" Jesus lhes disse "Onde quer que fordes, deveis ir a Tiago, o Justo, por quem o céu e a Terra passaram a existir."

(James Tabor - A dinastia de Jesus)

publicado às 16:31


Problemas em Nazaré

por Thynus, em 15.02.15
“Ora o nascimento de Jesus Cristo foi deste modo: Estando Maria, sua mãe, desposada com José, achou-se ter concebido [por obra]do Espírito Santo, antes de coabitarem. E José, seu esposo, sendo justo, e não a querendo difamar, resolveu deixá-la secretamente. Ora, andando ele com isto no pensamento, eis que um anjo do Senhor lhe apareceu em sonhos, dizendo: José, filho de David, não temas receber em tua casa Maria, tua esposa, porque o que nela foi concebido é [obra]do Espírito Santo. E dará à luz um filho, ao qual porás o nome de Jesus, porque Ele salvará o seu povo dos seus pecados” (MT 1, 16-21). (1)
 
Pode-se imaginar a confusão que a gravidez de Maria deve ter causado em uma aldeia do tamanho de Nazaré. Dizer que as más línguas se agitaram ficaria aquém da realidade. As duas famílias eram bastante conhecidas (Quando Jesus voltou para o lar de Nazaré, como adulto, ele foi convidado a falar na sinagoga, e sua família era conhecida pelo nome: Lucas 4:16; Mateus 13:55). Suas casas eram próximas, os filhos casados viviam com freqüência em extensões da casa principal de seus pais e partilhavam um pátio comum. A vida da aldeia era bastante interdependente do ponto de vista econômico e social — coisa de que me dei conta em minha primeira visita à "aldeia de Nazaré", uma versão autêntica de uma aldeia judaica do século I, reconstruída por arqueólogos no local da moderna cidade de Nazaré, onde se pode entrar nos pequenos cômodos das casas, caminhar nos pátios comuns e nas estreitas ruas e sentir o inevitável entrelaçamento de cada aspecto da vida cotidiana. Não havia lugar para muitos segredos em Nazaré.
José tinha um sério problema, que nenhum noivo gostaria de ter que enfrentar. Ele estava comprometido com Maria, suas famílias tinham concordado com ocasamento, e, de repente, "descobriu-se" que sua noiva "carregava um filho" antes do casamento (Mateus 1:18). Segundo o Evangelho de Mateus, foi José quem descobriu a gravidez, decidindo romper os planos de casamento sem, no entanto, fazer um escândalo, de modo a não a cobrir de vergonha. É possível que planejasse ajudá-la a deixar a cidade e dar à luz secretamente, não temos como sabê-lo. Mas uma coisa ele sabia com certeza: não era o pai daquela criança em gestação. Com seu auxílio ou não, Maria efetivamente deixou a cidade às pressas e, segundo a tradição, dirigiu-se para o sul, para a pequena cidade de Ein Kerem, a seis quilômetros e meio a oeste de Jerusalém, na região montanhosa da Judeia, onde permaneceu por três meses, hospedada na casa de parentes próximos, um casal mais velho, Isabel e Zacarias (Lucas 1:39). Isabel estava também grávida nessa época, de seis meses, e o filho que ela então carregava seria conhecido como João Batista ou, literalmente, João, o Batizador. Não sabemos o grau de parentesco entre Maria e Isabel, talvez fossem primas ou talvez tia e sobrinha. Mas, dadas as circunstâncias, as duas famílias deveriam ser muito íntimas, o que significa que Jesus e João Batista eram também parentes.
Segundo Lucas, a criança nasceu em Belém devido a um censo fiscal romano. A cidade de Belém fica próxima a Jerusalém, na Judeia, no sul do país, enquanto Nazaré se situa no norte da Galileia, a três dias de distância. Lucas relata que, ao encontrar a cidade cheia de gente, com as hospedarias repletas, o casal se refugiou em um estábulo, onde Jesus nasceu. Naquela época, era comum as casas terem a seu lado estruturas parecidas com grutas, cavadas na rocha, usadas para abrigar animais domésticos. Segundo Lucas, José e sua noiva ainda não eram casados; não sabemos quando eles efetivamente se casaram, mas teria que ser após o nascimento da criança (Lucas 2:5). Mais tarde, Lucas se refere a Jesus como "o filho de José", mas é claro que ele não acredita que José possa mesmo ser seu pai. Essas palavras indicam antes que os dois se casaram e que, assim, José se tornou o pai adotivo legal de Jesus (Lucas 4:22). Mateus diz que José "tomou sua mulher", mas não diz quando, e acrescenta um detalhe fascinante — o casal só teve relações sexuais depois do nascimento da criança (Mateus 1:25)." Isso concorda com a dedução de Lucas de que o casamento aconteceu depois do nascimento, já que, na cultura judaica, o casamento só era considerado consumado depois do ato de "conhecer" sexualmente a mulher."
Esse é o esboço apresentado nos primeiros capítulos dos Evangelhos de Mateus e Lucas." Os outros dois Evangelhos, Marcos e João, começam quando Jesus já era adulto e não dizem nada sobre seu nascimento. (18) Mateus e Lucas estão de acordo sobre a origem da gravidez de Maria. No relato de Mateus, logo após descobrir a gravidez de Maria, José tem um sonho no qual um anjo lhe diz que ela teria "concebido de um espírito santo", que ele deveria casar-se com ela apesar de tudo, (19) e que seu filho deveria chamar-se Jesus. Ao casar-se com uma mulher grávida de um filho que não era seu, e ao dar-lhe um nome, ele estava na verdade "adotando" legalmente Jesus como seu filho. A frase "concebido por um espírito santo" implica que a gravidez se fez pela ação do espírito de Deus sem, no entanto, dizer claramente que Deus era o pai de Jesus — no sentido em que, digamos, Zeus era pai de Hércules quando seduziu sua mãe, Alcmena. Nesse sentido, o relato difere das histórias de nascimentos miraculosos comuns à antiga mitologia greco-romana.
 
Mateus faz também referência a um antigo adágio do profeta hebreu Isaías: "eis que uma virgem conceberá, e dará à luz um filho, e será o seu nome Emanuel" — como se dissesse que a gravidez de Maria era a realização dessa profecia (Isaías 7:14)." Mas Isaías faz referência a uma criança que deveria nascer na sua própria época, no século VIII a.C., cujo nascimento seria um sinal para o rei Ahaz, que então governava. A palavra hebraica (almah) que Mateus traduz por "virgem", em sua versão grega, significa "jovem mulher" ou "donzela", sem introduzir qualquer implicação miraculosa.(A tradução grega da Bíblia hebraica, conhecida como Septuaginta ou LXX, usou a palavra parthenos em Isaías 7:14. Significa 'virgem", porém o sentido evidente do contexto não é o de uma mulher que engravida sem nenhum homem, mas de uma menina virgem que nunca fez sexo ficando grávida. Este bebê singular não nasceria de uma mulher que já teve filhos, mas de uma que era virgem quando ficou grávida. Como Mateus escreveu em grego e está citando Isaías, ele também usa a palavra parthenos. Quando a Versão Revisada do Antigo Testamento foi publicada, em 1952, os tradutores empregaram corretamente o termolovem", em vez do tradicionarvirgem", em Isaías 7:14. A tradução foi denunciada por muitos cristãos fundamentalistas como uma tentativa comunista diabólica de solapar a fé no "nascimento virgem de Cristo") A criança receberia o nome pouco comum de Emanuel, que significa "Deus conosco", e Isaías garante ao rei Ahaz que, antes que essa criança tenha idade suficiente para distinguir "o bem do mal", os assírios que ameaçavam Jerusalém e a Judeia seriam removidos da face da terra. Ahaz não teria que esperar muito tempo. Mateus infere que a profecia de Isaías foi "realizada" pelo miraculoso nascimento virgem de Jesus — o que claramente não é o sentido do texto original.
No relato de Lucas, quem tem o sonho é Maria. O anjo Gabriel lhe diz que ela ficaria grávida, teria um filho e lhe daria o nome de Jesus. O nome Jesus, em hebraico, é o mesmo que Josué, bastante comum entre os judeus naquela época. Esse filho "será grande e será chamado filho do Altíssimo; e o Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai", para que ele reine para sempre sobre a nação de Israel. Maria respondeu: "Como pode ser isso possível, se não conheço nenhum homem?" Essa expressão bíblica significa, sem deixar lugar a dúvidas, ter relações sexuais com alguém. O anjo replicou: "Descerá sobre ti o Espírito Santo e a virtude do Altíssimo te cobrirá com sua sombra; pelo que também o Santo que de ti há de nascer será chamado filho de Deus" (Lucas 1:35).
Os credos cristãos primitivos afirmam, com base nesses textos, que Jesus foi "concebido do Espírito Santo, nasceu de Maria virgem"." É fácil confundir a "imaculada conceição" com o "nascimento virgem". Segundo os ensinamentos da Igreja Católica Romana, a Imaculada Conceição se refere à concepção de Maria por sua mãe Ana, não à concepção de Jesus. Esse ensinamento garante que Maria nasceu sem o "pecado original" herdado por todo ser humano desde Adão, o que lhe permitiu dar à luz Jesus em um estado especial de pureza moral. O "nascimento virgem" é um ensinamento diferente. Ao dizer que Maria, sem conhecer homem, ficou grávida pela intervenção do Espírito Santo, ele se refere mais à origem da gravidez do que ao próprio "nascimento".(Alguns cristãos primitivos discutiam se Maria permaneceu virgem (virginitas in partu), com o hímen ainda intacto, mesmo tendo concebido um bebê. O Proto-evangelho de Tiago (capítulo 20) é nossa fonte mais antiga desta ideia. O texto conta como uma parteira, ao examinar Maria após o nascimento de Jesus, descobriu que ela permanecera fisicamente intacta através do poder miraculoso de Deus. Esta ideia nunca se tornou dogma oficial, e a opinião da maior parte dos antigos teólogos cristãos era que Maria era"virgem em termos de homem, não virgem em termos de concepção" (Tertul ia no, De carne Christi 23) em The Ante-Nicene Fathers, vol. 3, ed. Alexander Roberts e James Donaldson (Grand Rapids:Wm. B. Eerdmans, 1986), 536) Podemos também nos referir a essa ideia como a "concepção virginal", uma vez que é a causa de sua gravidez que está em questão.
Outro dogma católico afirma que Maria permaneceu virgem durante toda a sua vida (semper virgine, "sempre virgem")" — percepção partilhada até mesmo por inúmeros líderes protestantes, como Lutero, Calvino, Zwingli e John Wesley, embora seja pouco corrente hoje em dia entre os protestantes." Maria foi idealizada em todos os tempos como a divina e santa "Mãe de Deus". Ela estava tão afastada de sua cultura e de sua época, que a mera ideia de que poderia ter tido relações sexuais, gerado outros filhos e vivido a vida normal de uma mulher judia casada foi impensável durante séculos. Ela foi "levada até os céus" de maneira bastante literal, e sua verdadeira humanidade se perdeu, assim como se perdeu a importância de seus ancestrais.

(James Tabor - A dinastia de Jesus)

publicado às 22:56


Filhos de outro pai

por Thynus, em 15.02.15
 
Marcos, nosso primeiro registro evangélico, informa que Jesus tinha quatro irmãos e, pelo menos, duas irmãs. Ele dá o nome dos irmãos com muita naturalidade: Tiago, José, Judas e Simão. Marcos não fornece os nomes das irmãs, mas a tradição cristã primitiva diz que eram duas — Maria e Salomé (Marcos 6:3).' Mateus, cuja fonte é Marcos, inclui a mesma lista, embora, em vez de José, ele escreva "Joses", um apelido semelhante a "Josy", em inglês, que corresponde a "José" na versão integral. Ele também coloca Simão antes de Judas (Mateus 13:55). Lucas, ao contrário, desenrola inteiramente a lista de nomes. Como declarado defensor do apóstolo Paulo, ele inaugura um longo processo de relegação dos irmãos de Jesus à obscuridade na qual hoje se encontram. Com muita freqüência, quando falo ou ensino sobre os irmãos de Jesus, sobre a posição importante ocupada por Tiago, o mais velho deles, a quem Jesus confiou o encargo de seus discípulos, uma mão se levanta na sala, e o comentário é sempre o mesmo: "Nunca soube que Jesus tivesse tido algum irmão”.
Há um certo número de fatores por trás dessa falha em nosso conhecimento sobre o cristianismo primitivo. O centro dessa questão é o posterior dogma cristão de que Maria foi uma virgem perpétua, que nunca teve outros filhos além de Jesus e jamais teve relações sexuais com qualquer homem. Na Igreja primitiva, ninguém poderia nem sequer imaginar isso, pois a família de Jesus exercia um papel muito central e visível em sua vida e na dos primeiros discípulos. Tudo isso tem a ver com o fato de Maria ter sido totalmente isolada da cultura e do contexto judaicos do século I, em função do interesse de uma visão emergente na época de que a sexualidade humana era, na pior das hipóteses, degradante e perversa, e, na melhor delas, um mal necessário que tinha de alguma forma que ser combatido. O mundo material e tudo o que se relacionasse com o corpo eram vistos como baixos e de menor valor do que o mundo celeste e espiritual.
 Os eruditos se referem a essa visão, bastante comum na cultura greco-romana, como dualismo ascético. Os seres humanos estavam presos entre dois mundos —material e o espiritual —, com duas maneiras de ser — a do corpo e a da alma (dualismo). Os que recusavam o corpo e viviam uma vida de celibato, enfatizando as coisas espirituais mais elevadas,"superiores", eram vistos como santos e livres da contaminação do mundo material inferior (ascetismo). De maneira geral, esse ponto de vista não encontrou abrigo favorável no judaísmo devido à ênfase da Bíblia no valor positivo dado à criação material de Deus (Gênesis I). Mas há exceções. Filo de Alexandria, o filósofo judeu do século I a.C., considera Platão, o grande advogado do dualismo ascético, quase no mesmo nível que Moisés. A influência de Filo, para não falar na de Platão, era enorme entre os pensadores,tanto judeus quanto cristãos. Como veremos, o apóstolo Paulo construiu sua teologia em torno dessa visão essencialmente dualista do cosmo, na qual o terrestre era denegrido em favor c as coisas celestes. Ele pregava o celibato como sendo uma via espiritual superior, embora não proibisse de maneira alguma as relações sexuais. Segundo Paulo, o casamento era um antídoto para os espiritualmente débeis, que poderiam ser tentados a cair na imoralidade sexual. (Consulte suas instruções em 1 Coríntios 7) É fácil ver como essas tendências de igualar a vida espiritual à vida sem sexo foram transferidas para Maria e sua família.
Já que se insiste em que "a abençoada Virgem Maria" foi "sempre virgem", sem nunca ter tido qualquer experiência sexual, os irmãos e irmãs de Jesus precisam ser explicados. Digo isso sem qualquer desrespeito para com os que sustentam tais percepções de Maria. No entanto, é importante compreender quando, como e por que tais ideias foram desenvolvidas. A história bem feita não precisa ser contrária à fé consagrada. O conflito aparece quando formas posteriores de piedade ascética e afirmações sobre a "santidade" são impostas a uma cultura por razões dogmáticas ou políticas. O que se perde então é a realidade histórica de quem foi Maria de verdade, enquanto mulher judia, casada, de seu tempo. O que se perde é a própria Maria! O ensinamento sobre a "virgindade perpétua" simplesmente não é encontrado no Novo Testamento e não faz parte dos primeiros credos cristãos. A primeira menção oficial a essa ideia só vem a partir de 374 d.C., com o teólogo cristão Epifânio.(A ideia da virgindade perpétua de Maria foi afirmada no 2º. Concílio de Constantinopla, em 553 d.C., e no Concílio de Latrão, em 649. Embora seja uma parte do dogma católico solidamente estabelecida, nunca foi, no entanto, objeto de uma declaração de infalibilidade pela Igreja Católica Romana) A maior parte dos escritos cristãos primitivos anteriores ao século IV d.C. aceita naturalmente que os irmãos e as irmãs de Jesus sejam filhos nascidos de José e Maria. (Essa é a chamada visão elvídica, em homenagem a Elvídio, um escritor cristão do século IV, que Jerônimo procura refutar. Eusébio, o historiador da igreja do século IV, cita regularmente fontes antigas e refere-se a irmãos de Jesus "segundo a carne", certamente concebendo-os como filhos de Maria e José. Consulte Eusébio, Church History 2.23; 3.19) 
Por volta do fim do século IV d.C., a igreja começa a lidar com o problema da vida sexual de Maria, oferecendo duas explicações alternativas. Uma delas diz que irmãos não significa literalmente "irmãos" — nascidos da mesma mãe —, mas é um termo geral que se refere a "primos". Essa explicação, defendida pelos católicos romanos,' tornou-se a mais comum no Ocidente. No Oriente, os cristãos que conheciam o grego preferiram adotar um ponto de vista diferente — os irmãos eram filhos de um casamento anterior de José, sem laços de sangue com Jesus ou sua mãe.' Para os teólogos ocidentais, a visão oriental era claramente conflitante com a tendência emergente no Ocidente, proveniente do ascetismo, que queria transformar também José em um eterno virgem. Dessa maneira, a Sagrada Família, incluindo Jesus, podia ser integral e convenientemente "santa". Com a passagem dos séculos, ficou cada vez mais difícil para os cristãos, especialmente para os do Ocidente,poder imaginar Maria e José como seres humanos sexuados, ou mesmo vivendo uma forma qualquer de vida "corporal". Já que tinham se tornado "santos" no céu, ficou problemático evocar esse passado terrestre potencialmente degradante.
Se buscarmos restaurar o nome judeu de Maria — Miriam ou Maria, o nome feminino judeu mais comum naqueles tempos — e a inserirmos de volta na aldeia judaica do século I, chamada Nazaré, como uma mulher judia normalmente casada, as preocupações teologicamente levantadas parecem se esvanecer. Ficamos livres para recuperar uma história credível, muito mais fascinante e rica do que qualquer dogma teológico. Os textos dos registros do Novo Testamento começam a se tornar vivos para nós. Um dos professores de minha universidade tinha o hábito de dizer, sobre a pesquisa histórica: "Quando nos aproximamos da verdade, tudo começa a se encaixar".
 Então, quem eram os irmãos e as irmãs de Jesus? A resposta mais óbvia é que eram filhos e filhas de Maria e José, nascidos depois que se casaram. Maria engravidou quando estava noiva, de pai desconhecido; José casou-se com ela de qualquer maneira, adotou Jesus como seu próprio filho; e o casal empreendeu uma vida normal de pessoas casadas, produzindo quatro filhos e duas filhas. As coisas bem podem ter-se passado assim, mas há um problema que não devemos esquecer. Mais uma vez, ele está relacionado com a compreensão do contexto cultural e religioso judaico daquela época, que se perdeu.
Há boas razões para se supor que José morreu cedo, seja porque era muito mais velho do que Maria ou por outra causa qualquer desconhecida. Depois dos relatos sobre o nascimento, ele parece desaparecer: Jesus é chamado "filho de José", ou as pessoas se referem às vezes a ele como "o filho do carpinteiro", mas o próprio José não mais aparece nas narrativas, nada mais se conta sobre ele. Jesus fez "sua mãe e seus irmãos" se mudarem para Cafarnaum em certo momento — mas não há qualquer menção a José (João 2:12). Em outro relato, sua "mãe e irmãos" vieram procurá-lo — e de novo não há a menor menção a José (Marcos 3:31). Mesmo na hora da crucifixão de Jesus, menciona-se Maria e provavelmente uma de suas irmãs, mas José está de novo estranhamente ausente. Depois da morte de Jesus, seus discípulos se reúnem em Jerusalém, e "Maria, a mãe de Jesus, com seus irmãos" faziam parte do grupo — mas não José (Atos dos Apóstolos 1:14). O silêncio parece indicar que alguma coisa acontecera a José.
Se José morreu cedo e Jesus e seus irmãos e irmãs cresceram "sem pai", certa mente isso deve ter tido uma repercussão psicológica e sociológica importante na família. Mas se José morreu sem ter tido filhos, as conseqüências para os tradicionais dogmas teológicos sobre Maria são outras. Segundo a Torá, ou Lei de Moisés, o mais velho dos irmãos sobreviventes era obrigado a se casar com a viúva do seu falecido irmão, de forma a que o "nome" ou a linhagem do irmão morto não se extinguisse. Isto é chamado um "levirato" ou yibbum, em hebraico, e é uma exigência da Torá (Deuteronômio 25:5-10),' um dos mandamentos que Deus deu a Israel e que os judeus praticantes levam muito a sério. Em um dos Evangelhos, o levirato é discutido quando perguntam a Jesus qual era sua opinião em um caso em que uma mulher, viúva sete vezes, se casou sucessivamente a cada vez com um dos irmãos de seu primeiro marido (Marcos 12:19-22).
De repente, a questão de quem era o pai de Jesus toma uma dimensão inteiramente nova. Se José não era o pai de Jesus e morreu sem descendência, Maria, a viúva, não estaria obrigada a se casar com o irmão de José? E o que se sabe do irmão de José? Curiosamente, sim, sabemos alguma coisa. Ele é mencionado no Novo Testamento, embora raramente reconhecido.
Queremos seguir as provas lá onde elas nos conduzem, mas as implicações de que Maria fosse mãe de sete filhos com três homens diferentes parecem soar indecentes hoje em dia. Mas, e se essa prática fosse não apenas normal, mas na verdade exigida e honrosa dentro da cultura judaica daquela época? Era esse, certamente, o caso. Honrar assim um homem que tinha morrido sem herdeiros, assegurando sua posteridade, era uma das coisas mais sagradas e honrosas que uma família podia fazer.  Lembram-se das quatro mulheres que Mateus menciona em sua genealogia? Duas elas, Tatuar e Rute, eram viúvas envolvidas em leviratos. Talvez Mateus saiba mais do que explicita. Seria um erro julgar qualquer fato referente a Maria e aos pais de seus filhos segundo nossos padrões teológicos e culturais. O que devemos fazer é buscar as provas — nesse caso, um conjunto de pistas escritas, complexas, mas reveladoras, deixadas, de maneira não deliberada, dentro do próprio Novo Testamento.

(James Tabor - A dinastia de Jesus)
Jesus teve irmãos carnais
 

publicado às 13:05


SEXUALIDADE ASFIXIANTE

por Thynus, em 14.02.15
Como a espécie humana vive dramaticamente só devido à solidão paradoxal da consciência virtual, procuramos ter relações sexuais não apenas motivados pelo nosso instinto, mas também pela necessidade vital de fundir os mundos, que estão próximos, porém infinitamente distantes. O sexo na nossa espécie não tem o objetivo apenas de reproduzir e perpetuar a espécie, mas de interagir emoções, mesclar mentes, cruzar histórias. Enfim, de alcançar o inalcançável: a essência intrínseca do parceiro conscientizado.
Superamos de maneira saudável, embora nunca plenamente, a solidão da consciência virtual quando sobrevivemos primeiramente à solidão social interagindo, trocando, dialogando, reconhecendo erros, exaltando a importância de quem amamos. Em segundo lugar sobrevivemos à solidão intrapsíquica autodialogando, nos interiorizando, refletindo, questionando, corrigindo rotas.
 
As relações sexuais, quando saudáveis, são uma das formas de sobreviver a esses dois tipos de solidão, a social e no ato sexual, mas horas ou dias antes, pelo entrelaçamento do afeto, pela divisão de sonhos, pela admiração mútua, pela troca serena de experiências.
Mas muitos casais pensam que são os minutos do ato sexual que definirão o prazer. Esses casais são rígidos, instintivos e superficiais. Para eles o sexo se constrói quando estão nus. Reagem como duas paredes se sobrepondo, dois órgãos sexuais trocando fluidos e não duas histórias se amando. O Homo sapiens exige muito mais do que o instinto para financiar o prazer estável e profundo nas relações sexuais. Exige, antes e durante o ato, segredar sentimentos e elogios ao parceiro ou parceira.  Vivemos em tempos de liberdade sexual. Mas precisamos reconhecer que o tipo de liberdade sexual que prevalece nos dias de hoje não é a liberdade sexual emocional, mas sim a instintiva, que valoriza a exposição do corpo e na qual há troca de ideias, que valoriza o coito e não a interação interpessoal. A repressão sexual é um problema, mas o excesso de exposição no sexo também é, pois provoca nos solos do inconsciente a síndrome CIFE-P, ou seja, fecha-se o circuito da memória, o que contrai o encanto e a sustentabilidade do prazer sexual, incluindo o orgasmo.
A sexualidade torna-se banalizada, sem prelúdio, sem notoriedade, sem mistérios. As consequências são graves. Há pouco tempo um proprietário de uma grande cadeia de farmácias me disse preocupadíssimo que há muitos jovens tomando Viagra sem controle, sem orientação médica, o que pode comprometer sua saúde. Eles mal estão começando a vida e já têm dificuldade de ereção e prazer sexual. Não poucos têm ejaculação precoce.
Um capítulo à parte da sexualidade trata da sociopatia sexual. Como o pensamento é virtual, um ato sexual violento ou inapropriado não significa apenas uma agressão ao corpo, mas uma violação dramática do psiquismo. Os sociopatas sexuais, motivados por janelas killer duplo P, fecham o circuito da sua memória e aprisionam as suas vítimas em suas loucuras. Um abuso sexual ou estupro torna-se, portanto, um estupro do território da emoção, produzindo janelas altamente traumáticas e inapegáveis. Claro que é sempre possível conquistar saúde psíquica, em destaque quando se reeditam as janelas killer duplo P ou as plataformas de janelas light ao redor do núcleo traumático, como abordo no livro A fascinante construção do eu.
A educação sexual e emocional e o gerenciamento da mente humana são fundamentais para que os casais não tenham uma vida intima frustrada. Muitos são sexualmente frustrados porque não aquietam seus pensamentos, não desaceleram suas preocupações e não se entregam ao parceiro ou parceira. Eles iniciam o ato sexual preocupados em falhar, em não ter prazer, em não ter prazer, em não satisfazer seu parceiro ou parceira. Os fantasmas da sua emoção assombram a espontaneidade tão fundamental para o sucesso nas relações sexuais. Por isso, é vital gerenciar a mente e domesticar esses fantasmas psíquicos.
Portanto, reitero, a sexualidade é uma história e não um ato. É um reflexo, do amor e não somente do instinto. Antes e durante o ato sexual saudável devem-se promover elogios, segredar afetos, exaltar o valor, a troca, estimular a admiração mútua. O orgasmo emocional vem antes do orgasmo biológico. O texto e as vírgulas vêm antes do ponto final.

  (AUGUSTO CURY - AS REGRAS DE OURO DOS CASAIS SAUDÁVEIS)

Os segredos evolutivos do orgasmo feminino

publicado às 11:42


Cárceres psíquicos

por Thynus, em 14.02.15
Uma pessoa inteligente não deve tentar arrombar o cérebro dos outros, sejam eles filhos, alunos, cônjuge ou outras pessoas. Além de ser uma violação, isso não funciona. A estratégia fenomenal é primeiro abrir as janelas light e depois tratar das killer. Primeiro conquistar o território da emoção e depois o da razão. Enfim, primeiro valorizar a pessoa que erra para depois tocar em seu erro, falha, incoerência, “loucura”.
(AUGUSTO CURY)
 
 
Você nunca ficou impressionado ao constatar que os seres humanos, apesar de saberem que são mortais e detestarem a morte, sempre a abraçaram, sempre fizeram guerras? Para um mortal, nada é tão estúpido quanto as guerras, mas a nossa espécie sempre flertou com elas, seja por motivos religiosos, políticos, territoriais ou para conquistar recursos naturais. Todavia, nenhum desses motivos explica completamente essa tendência se não entendermos que o acesso à liberdade e à memória pode ser truncado, bloqueado e encarcerado pela síndrome CIFE-K (síndrome do circuito fechado da memória Killer), que também pode ser chamada de CIFE-T ou tensional.
O infra-consciente não pode ser encerrado no cárcere
 
Pessoas que têm ataques de pânico, sofrimento por antecipação, culpa, ideias obsessivas, timidez, fobias são exemplos claros de que o direito de ser livre tem de ser uma conquista diária. Reafirmo que não nascemos livres. Conquistamos nossa liberdade por meio do processo educacional, ainda que não formal, capaz de nos equipar para gerenciarmos a nossa mente e sermos autônomos e autodeterminantes.  A quase totalidade das pessoas das sociedades modernas pensa equivocadamente que é livre, mas não é. Psiquiatras, psicólogos, juristas, filósofos, religiosos, executivos sonham com a liberdade, mas poucos a conhecem, principalmente nos focos de tensão. Alguns ficam irreconhecíveis quando entram em janelas traumáticas, perdendo completamente a serenidade. Milhões de pessoas são encarceradas por raiva, complexo de inferioridade, ciúmes, inveja, autopunição, pensamentos perturbadores, necessidade neurótica de poder, de estar sempre certo, de ser reconhecido.
Uma pessoa que tem fobia social, medo de falar em público, tem em tese liberdade de expressar seus pensamentos. Mas bem antes de iniciar uma conferência ou no instante da sua fala, detonam os fenômenos inconscientes. O gatilho abre na pessoa uma janela traumática killer que contém medo de falhar, não fluir o pensamento, não agradar, ser criticada. Essa janela produz um volume de tensão ou ansiedade que gera um terremoto no processo de leitura da memória. Esse é o primeiro ato da construção de pensamentos. O volume de tensão bloqueia ou “assassina” o acesso do Eu a milhares de outras janelas com milhões de dados, na síndrome CIFE-K.
Tive o privilégio de descobrir essa síndrome, mas nem por isso deixei de ser vitima dela. Quando o circuito da memória se fecha, não encontramos informações para dar respostas inteligentes nas situações estressantes. A partir desse momento a racionalidade humana se compromete e abre-se o caminho para produzir de guerras a discriminação, de homicídios a suicídio, do sentimento de culpa à autopunição, do medo de um inseto ao medo de falar em público, de uma reação de intolerância à intimidação. Tudo vai depender da maturidade do Eu, do grau de gerenciamento do estresse, da quantidade e qualidade das janelas fechadas.
No caso de quem tem fobia social, a síndrome CIFE-K, por ser acionada quando entramos numa janela traumática ou killer (assassina), fecha o acesso aos dados da memória, asfixia a capacidade de pensar do Homo sapiens e exacerba os mecanismos instintivos que produzem sintomas psicossomáticos (taquicardia, aumento de frequência respiratória, rubor, suor) para a pessoa fugir do estímulo estressante ou lutar contra ele. Somente segundos depois de iniciado o primeiro ato do teatro psíquico é que o Eu entra ou deveria entrar em cena para organizar o caos emocional e o fechamento do circuito da memória gerados pela janela killer.
Se for feliz em gerenciar sua mente, poderá encontrar seu ponto de equilíbrio e fluirá o pensamento com inteligência. Caso contrário, ele será vítima do terremoto gerado pela fobia social, bloqueará seu raciocínio, comprometerá sua eloquência.
Mas em que escola sua universidade ou alunos são ensinados a gerenciar sua mente nos focos de tensão? Onde eles aprendem a desenvolver um Eu consciente de seus papéis, capaz de conquistar sua liberdade diariamente? Desenvolvemos nossa personalidade em meio a múltiplas armadilhas que fecham o circuito da memória. Aprendemos da pré-escola à universidade a resolver inúmeros problemas matemáticos, mas não aprendemos a resolver as equações existenciais. Que escola é essa que não ensina a inteligência socioemocional? Estamos preparando, em nossas universidades, lideres maduros ou meninos que não sabem ser contrariados, desfiados, incapazes de atravessar os vales das perdas? Temos de nos questionar. Para onde caminha a educação será para onde caminha a humanidade. Todos os casais deveriam saber que quando se casam ou se ajuntam não levam apenas as flores para a relação, mas também uma série de emboscadas mentais. Se não aprenderem a abrir o circuito da memória nos focos de tensão poderão ferir drasticamente quem amam. Mas onde estão os casais que conhecem os fantasmas da sua mente? Onde aprendem a desarmar as suas emboscadas e a do parceiro ou parceira que sabotam sua felicidade?
 
Nos 30 segundos de tensão cometemos os maiores erros
Com que frequência vivemos a síndrome CIFE-K e fechamos o circuito da memória? Todos os dias. Se não aprender a se educar, equipar, treinar, a abrir esse circuito, a dar um choque de lucidez na desordem psíquica, a relação entre casais, entre pais e filhos, professores e alunos, colegas de trabalho poderá ser um tormento. Sinceramente, estamos completamente despreparados para construir relações saudáveis conhecemos presídios, mas não as masmorras mentais.
Nos primeiros 30 segundos de tensão, sob a égide de críticas, ofensas, contrariedades, dispara-se o gatilho e abre-se uma janela traumática. Se essa janela tiver um alto volume de ansiedade, o circuito da memória se fechará, levando-nos a reagir como animais, com algumas doses de irracionalidade. A síndrome CIFE-K, por fechar o circuito da memória, leva o Homo sapiens a reagir orientado pelo insano fenômeno da ação-reação, do bateu-levou. Palavras que jamais deveríamos dizer a quem amamos são ditas nesses cálidos momentos. Qual é a sua atitude quando alguém o decepciona? O seu Eu é gerente do seu estresse?
Os casais se ferem e esfacelam seus romances não quando atravessam um mar calmo, mas quando estão nos focos de tensão. Muitos casais extremamente grudentos em momentos calmos se atarracam quando contrariados. Não sabem minimamente fazer a oração dos sábios, o silêncio proativo, quando se calam por fora e gritam por dentro contra sua irritabilidade, explosão, intolerância. Atitudes, reações, pressões, ameaças que nunca deveriam ser produzidas são construídas quando o circuito da memória se fecha. Nosso Eu se torna refém frequentemente dessa síndrome.
Reitero: somos livres?
Se a famosíssima palavra “liberdade”, que permeia todos os povos e culturas, se materializasse plenamente no psiquismo humano a maioria das pessoas não teria timidez, como mostram as estatísticas. Do mesmo modo, 1 bilhão e 400 milhões de pessoas (20% da população) não atravessaria os vales sórdidos de uma depressão se tivéssemos a plena liberdade de administrar a emoção. Acordaríamos cantarolando e não daríamos bulhufas para as frustrações da vida.

  (AUGUSTO CURY - AS REGRAS DE OURO DOS CASAIS SAUDÁVEIS)
 

publicado às 03:40



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