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Teórico da linguística americano que estabeleceu a gramática gerativa e se tornou uma voz dominante da dissidência intelectual de esquerda nos Estados Unidos.

 

É justo que Noam Chomsky seja hoje a mais
importante figura intelectual da luta pela
democracia e contra o neoliberalismo em todo
o mundo. Na década de 1960, nos Estados
Unidos, Chomsky foi um notável crítico da
guerra do Vietnã, vindo a se tornar, quem
sabe, o mais incisivo analista dos métodos
utilizados pela política externa norte-americana
para solapar a democracia, sufocar os
direitos humanos e promover os interesses
da minoria rica.
(Robert W. McChesney in Inrodução a O Lucro ou as Pessoas?, Noam Chomsky)
 
"UMA SOCIEDADE DEMOCRÁTICA decente deveria ser baseada no princípio do consentimento‬ dos governados. Essa idéia ganhou aceitação geral, mas pode ser contestada tanto por ser muito forte quanto por ser muito fraca. Muito forte, porque sugere que as pessoas devem ser governadas e controladas. Muito fraca, porque mesmo os governadores mais brutais precisam, em certa medida, do consentimento dos governados, e geralmente o obtêm não apenas à força."
(Noam Chomsky)

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Noam Chomsky é um pensador com duas carreiras. Na primeira, ele é um teórico da linguística que criou a gramática transformacional (que depois se tornou gramática gerativa) e fez importantes contribuições para a filosofia analítica. Na segunda, ele é um dissidente político anarcossindicalista, cuja crítica à política externa dos Estados Unidos de 1968 até o presente faz dele a voz de esquerda mais proeminente na esfera pública americana. As raízes dessas duas paixões gêmeas de Chomsky podem ser encontradas em sua juventude na Filadélfia. Ele é filho de judeus imigrantes que eram socialistas. Em casa, ele ouvia hebraico e iídiche, que, combinados com o inglês, fizeram com que se sentisse confortável com os sons e diferenças de linguagem – e também curioso a respeito deles. A inclinação política de esquerda dos seus pais e tios foi uma influência óbvia, mas também o foi sua própria experiência com insultos e perseguições antissemitas em uma vizinhança predominantemente católica.

Da gramática transformacional à gerativa
A contribuição inicial de Chomsky para a linguística foi desafiar a primazia da linguística estrutural desenvolvida por Ferdinand de Saussure – a noção de que a linguagem é um sistema no qual o sentido é composto de um significado e um significante, além de outras dualidades. Em Estruturas sintáticas (1957), Chomsky apresentou o conceito de gramática transformacional. Essa abordagem ressoava a tradição de Gottlob Frege, Bertrand Russell e Ludwig Wittgenstein, uma vez que buscava desvelar estruturas lógicas que governassem a linguagem.
Ao identificar estruturas superficiais e estruturas profundas da gramática, Chomsky mostrou como relações do tipo entre sujeito e objeto não são absolutas, mas sim relativas aos níveis da estrutura gramatical. Estrutura superficial descreve uma sentença do modo como ela é falada e ouvida. Estrutura profunda se refere a uma representação abstrata de uma sentença, e, segundo Chomsky, contém propriedades que são comuns a todas as línguas. A gramática transformacional entende que enunciados têm uma sintaxe, e essa sintaxe é “uma gramática livre de contexto estendida com regras transformacionais”. Por meio da criação de um modelo de linguagem usando gramática transformacional, Chomsky pôde demonstrar como, iniciando com um conjunto finito de termos e regras da gramática, um falante tem a possibilidade de falar e compreender um número infinito de enunciados.
A gramática transformacional de Chomsky foi desenvolvida e se transformou na gramática gerativa, que é como ele explica a facilidade de uma criança para a linguagem. Crianças começam com uma gramática universal inata, e elas só precisam adquirir um conhecimento de características gramaticais específicas para sua língua nativa. Em trabalhos posteriores, Chomsky identifica o que ele chama de categoria vazia, um elemento da gramática implícito e não fonético. Chomsky o define assim: “Se algum elemento é ‘entendido’ em uma proposição particular, então ele está lá em representação sintática, seja como uma categoria aberta que é realizada foneticamente ou como uma categoria vazia à qual nenhuma forma fonética está atribuída” (O conhecimento da língua, 1986).
Chomsky afirmava que categorias vazias são parte essencial da estrutura da mente humana. Em Language and Problems of Knowledge [Linguagem e problemas de conhecimento] (1988), ele faz a ampla alegação de que “a descoberta de categorias vazias e dos princípios que as governam e que determinam a natureza da representação mental e computações em geral pode ser comparada à descoberta nas ciências físicas de ondas, partículas, genes, valência e assim por diante, assim como dos princípios que os sustentam”. Chomsky afirma que, ao explorar os subsistemas da gramática, “começamos a enxergar o interior da natureza mais profunda e escondida da mente e a compreender, pela primeira vez na história, como ela funciona”. Para ele, o estudo da linguística não é simplesmente uma tentativa de mapear como a linguagem funciona. Ele considera a linguagem a evidência por meio da qual alcançamos um entendimento da mente e do cérebro. Em Linguagem e problemas de conhecimento, ele escreve: “Estamos abordando uma situação que pode ser comparada às ciências físicas no século XVII, quando teve lugar a grande revolução científica que lançou as bases para as realizações extraordinárias dos anos que se seguiram e que determinaram grande parte do curso tomado pela civilização desde então”.

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A postura política de Chomsky
A postura política de Chomsky é singular na vida pública americana. Seu anarcossindicalismo tem origem no seu contato juvenil com a política de esquerda dos pais – seu pai, William Chomsky, era um estudioso de hebraico e um integrante do Industrial Workers of the World (IWW) [Trabalhadores industriais do mundo]. Conhecidos popularmente como “os Wobblies”, a IWW é uma organização sindical internacional que une trabalhadores independentemente de sua área de atuação ou representação sindical local e defende o fim do sistema de salários. Em uma entrevista de 1976, Chomsky descreveu sua visão do anarquismo “como um tipo de socialismo voluntário, ou seja, como socialista libertário, ou anarcossindicalista ou anarquista comunista, na tradição de, digamos, [Mikhail] Bakunin [1814-76] e [Peter] Kropotkin [1842-1921]”. Com isso, Chomsky se refere a um tipo de organização social e comunitária de unidades orgânicas representado por delegados que cuidam dos interesses da comunidade em um contexto nacional e internacional mais amplo.
A principal crítica de Chomsky a democracias representativas como as da Grã- Bretanha e dos Estados Unidos é que, embora os eleitores tenham voz na esfera política, eles não a têm no gerenciamento da esfera econômica. Para Chomsky, “o controle democrático da vida produtiva pessoal está no centro de qualquer libertação humana séria... Enquanto indivíduos forem compelidos a oferecerem a si mesmos em aluguel no mercado para aqueles interessados em alugá-los, enquanto seu papel na produção for simplesmente o de ferramentas auxiliares, haverá fortes elementos de coerção e opressão que farão da conversa sobre democracia algo muito limitado”.
A crítica franca de Chomsky à política externa dos Estados Unidos começou com a Guerra do Vietnã (1964-70) e continua inabalável na segunda década do século XXI. Ele é um crítico feroz do imperialismo não declarado dos Estados Unidos – seu exercício de poder por meio de forças econômicas e militares –, segundo evidenciado sobretudo por suas guerras no Iraque (2003-11) e Afeganistão (2001-). Para Chomsky, “a potência hegemônica do mundo [os Estados Unidos] concede-se o direito de iniciar guerras segundo sua vontade, sob uma doutrina de ‘autodefesa antecipatória’ de limites desconhecidos. Direito internacional, tratados e regras de ordem mundial são severamente impostos a outros com postura hipócrita, mas descartadas como irrelevantes para os Estados Unidos”. 

Q. É possível vencer a chamada guerra ao terrorismo da nação?

Chomsky: Se quisermos considerar seriamente essa questão, devemos reconhecer que, na maior parte do mundo, os EUA são considerados um dos principais países terroristas, e com boas razões. Podemos ter em mente, por exemplo, que em 1986 os Estados Unidos foram condenados pela Corte Internacional por “uso ilegal de força” (terrorismo internacional) e depois vetaram uma resolução do Conselho de Segurança que convocava os países (ou seja, os EUA) a aderir ao direito internacional. Este é apenas um de incontáveis exemplos.

Noam Chomsky, 11 de Setembro: havia uma alternativa? [Chomsky] persegue implacavelmente aquilo que enxerga. Ninguém até hoje expôs com mais vigor as crenças hipócritas em que se baseia o papel imperial dos EUA ou delineou com mais eficácia as terríveis ações que o mantêm. Ninguém focou mais convincentemente a violência do nosso mundo ou denunciou mais diretamente a responsabilidade dos Estados Unidos por grande parte dela. Poucos analisaram tão minuciosamente o modo como as aclamadas liberdades dos Estados Unidos mascaram seu poder irresponsável e seu privilégio injustificado. (James Peck, da Introdução a The Chomsky Reader [O leitor de Chomsky] (1987)

(Trombley, Stephen - 50 pensadores que formaram o mundo moderno)

 

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Não ler (Chomsky) é cortejar profunda ignorância

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publicado às 23:56

Filósofo, dramaturgo e romancista francês que popularizou o existencialismo. Ele definiu o papel do intelectual público do século XX. 
 
Talvez o mais conhecido filósofo dos tempos modernos, Jean-Paul Sartre definiu o papel do intelectual público engajado politicamente de um modo singularmente francês. Em uma cultura que atribui grande valor às suas instituições educacionais e suas qualificações, Sartre nunca se tornou professor universitário. Embora tenha ficado em primeiro lugar no teste para a agrégation de filosofia da École Normale Supérieure, em 1927, sua carreira acadêmica, depois disso, distribuiu-se entre diversos liceus, onde ele deu aulas por vários anos. Sua posição como pensador teve como base apenas seus trabalhos publicados – dos quais o mais importante foi O ser e o nada (1943) –, e a força dos seus argumentos públicos presentes em peças, romances, ensaios e trabalhos filosóficos era tão grande que toda uma nação lhe tinha respeito. O tamanho da consideração que se tinha por Sartre na França – apesar de sua simpatia impopular pelos regimes soviético e maoísta, muito tempo depois de os horrores desses regimes totalitários terem se tornado públicos – pode ser medido pelo fato de que o seu cortejo fúnebre atraiu uma multidão de 50 mil pessoas. Ao perdoar Sartre depois de sua prisão durante os eventos de Maio de 1968, o então presidente francês Charles de Gaulle afirmou: “Não se prende Voltaire”.
Em 1936, Sartre apareceu em cena com dois livros: A imaginação, uma pesquisa sobre teorias filosóficas da imaginação préhusserlianas e A transcendência do ego, que apresenta argumentos contrários à visão de Husserl do ego transcendental, definindo-o como um construto criado por outros. Sartre, em seguida, rejeitou a visão de Freud do inconsciente em Esboço para uma teoria das emoções (1939). Mas foi seu romance A náusea (1939) que trouxe para Sartre o início da sua fama e, para o mundo, uma primeira prova do seu existencialismo. O principal personagem do romance, Roquentin, sente-se literalmente nauseado pelo fato de sua existência no mundo; pela sua percepção da “coisidade” dos objetos e da falta de significado a ser encontrado no mundo exterior a si mesmo. O conceito de Sartre de facticidade se refere à situação em que o sujeito encontra a si mesmo: seu gênero, filiação, nacionalidade, habilidades etc. É no contexto dessa situação que o sujeito confronta sua liberdade, que é limitada pela facticidade. Para Sartre, o homem está condenado a ser livre. Essa situação deu origem ao conceito do “absurdo”.

Albert Camus e o absurdo
Uma das expressões mais coerentes do absurdo pode ser encontrada nos romances e ensaios do amigo e rival de Sartre, Albert Camus (1913-60). Camus era um pied noir (colono de língua francesa) da Argélia que foi criado na pobreza e ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1957. Seu romance O estrangeiro (1942) conta a história de um assassinato cometido, ao que tudo indica, sem motivo pelo protagonista, Meursault, que é aparentemente indiferente em relação às suas ações e seu destino. No universo ateísta de Camus, todo comportamento humano é permitido. Mas as consequências dessa liberdade sem limites também precisam ser aceitas; Meursault precisa aceitar sua punição por um assassinato sem sentido: ele é condenado à morte. Em seu ensaio O Mito de Sísifo (1942), Camus utiliza uma história da mitologia grega sobre um rei condenado a rolar uma grande pedra até o topo de uma montanha somente para vê-la rolar para baixo novamente, assim que a tarefa é cumprida – ação que ele é condenado a repetir eternamente – para examinar o dilema do homem moderno em um mundo sem Deus. A tarefa é inútil; mas, ao assumi-la, o homem define a si mesmo.

Fortunas de guerra contrastantes
Camus era comunista. Excluído do serviço no exército francês porque sofria de tuberculose, ele editou o jornal de resistência Combat durante a ocupação nazista na França, muitas vezes correndo grande risco pessoal. A guerra de Sartre foi diferente. Ele serviu no corpo meteorológico do exército francês e foi capturado durante a queda da França, em maio de 1940, sendo enviado para um campo alemão de prisioneiros de guerra chamado Stalag XIID, próximo a Trier, onde ficou por quase um ano. Durante esse tempo, continuou a estudar o livro Ser e tempo (1927), de Heidegger, que ele havia começado a ler em Berlim em 1933. Sartre passava o tempo ensinando a fenomenologia de Husserl aos padres que eram prisioneiros junto com ele e, no Natal de 1940, escreveu e produziu uma peça de teatro para os companheiros de cela. Bariona ou O filho do trovão era, segundo ele assegurou em uma carta à sua amante Simone de Beauvoir (1908-86), uma peça de Natal que não se apoiava na crença cristã para ser apreciada. Enquanto era prisioneiro, Sartre iniciou também sua mais importante obra filosófica: O ser e o nada. Com o auxílio de um padre, ele obteve documentos médicos falsos e foi libertado da prisão alemã em 1941. Sartre voltou a Paris para viver com Beauvoir e seu círculo de amigos e amantes, e passou a dar aulas nos liceus Pasteur e Condorcet enquanto terminava O ser e o nada.
Durante a ocupação, Sartre ainda escreveu e produziu duas peças bem-sucedidas que foram autorizadas pelos censores nazistas. As moscas (1943) trata-se de uma leitura existencialista da histórica de Electra, da mitologia grega, enquanto Entre quatro paredes (1944) apresentava quatro personagens em um quarto sem portas ou janelas e era concluída pela famosa fala “O inferno são os outros”.
 

 

A natureza do existencialismo sartreano
O existencialismo é uma refutação do essencialismo, a doutrina que sustenta que coisas ou pessoas possuem essências intrínsecas. O famoso ditado de Sartre é que “a existência precede a essência”. Para ele, a existência tem dois modos: ser e nada. O ser tem duas categorias: “em-si” e “parasi”. O em-si é o ser como um objeto desprovido de consciência. O para-si é o ser consciente, mas não é um objeto: é uma não-coisa. O em-si e o para-si são distintos e não podem se combinar. Combiná-los constituiria uma “totalidade não realizável”. Este ideal, afirma Sartre, constituiria Deus.
Outras pessoas são problemáticas, na visão de Sartre, porque elas dão origem a uma confrontação na qual uma subjetividade reduz outras subjetividades ao que Beauvoir chamou de “o Outro”. Tomando emprestado de Hegel, Sartre vê as relações com os outros em termos de uma dialética mestre/escravo. Em resumo, nós alienamos uns aos outros. O componente ético da ontologia de Sartre consiste no que ele chama de “má fé”. Má fé significa, em essência, mentir para si mesmo. Ele dá três exemplos famosos: o garçom que exagera os gestos do serviço, enquanto diz a si mesmo que está somente “encenando” o papel de um garçom; a mulher que estende a mão para um homem, negando a provocação sexual que está implícita no gesto e o de um pederasta que nega ser “em essência” ou “por natureza” um pederasta, dizendo a si mesmo que é simplesmente alguém que faz sexo com garotos.

Sartre e Merleau-Ponty
Em 1945, Sartre e Beauvoir convidaram seu amigo Maurice Merleau-Ponty (1908-61) para lançar a revista filosófica e literária Les temps modernes. A obra de Merleau-Ponty também era influenciada por Husserl e Heidegger, mas, enquanto Sartre se concentrava em problemas de ontologia, Merleau-Ponty estava preocupado com a percepção: como o sujeito apreende o mundo? Seu livro Fenomenologia da percepção (1945) é uma das obras centrais no que poderia ser frouxamente denominado “existencialismo francês”. Merleau-Ponty trata do papel da personificação humana e do seu papel em compreender como os homens percebem. Para Merleau-Ponty, é o sujeito personificado que encontra o mundo, engajando-se nele ativamente e nele criando significado. Como Gabriel Marcel, Merleau-Ponty rejeita o dualismo cartesiano. Ele vai além da redução fenomenológica de Husserl para estabelecer a categoria-chave da sua filosofia: estar-no-mundo. Estar-nomundo precede a “objetividade” e a “subjetividade”, e é o que dá significado a ambas. Um entendimento do tempo como algo constituído subjetivamente completa a fenomenologia da percepção de Merleau- Ponty.
Em 1945, Sartre e Merleau-Ponty concordavam amplamente no que dizia respeito às suas visões políticas de esquerda. Em Humanismo e terror (1947), Merleau- Ponty examinou o experimento marxista da Revolução de Outubro até o fim da Segunda Guerra Mundial e fez a seguinte pergunta: o terror de Stálin era justificado?
Ele respondeu com um “não”. Mas ele também defendeu que era preciso dar tempo à União Soviética, que o marxismo precisava trabalhar, porque seu fracasso seria o fracasso da raça humana. No que diz respeito ao seu pensamento sobre a União Soviética, Merleau-Ponty já foi comparado a Kant e sua avaliação da Revolução Francesa. Embora Kant não pudesse perdoar o regicídio, a ideia de um governo baseado nos princípios da razão lhe parecia atraente. No entanto, Merleau-Ponty discordou de Sartre a respeito da Guerra da Coreia (1950-53), que ele considerou um exercício do poder imperialista soviético. Os dois amigos romperam por conta dessa questão, e, em 1948, Merleau-Ponty renunciou ao cargo de editor da Les Temps Modernes.

Crítica da razão dialética
Sartre começou a revisar sua filosofia existencialista para dar conta do marxismo em Questão de método (1957), que mais tarde foi incorporado em uma longa e não terminada obra, Crítica da razão dialética (vol. 1, 1960; vol. 2, 1985). Sartre pertence à lista daqueles filósofos cujos textos são excepcionalmente desafiadores para o leitor. O Ser e o nada é um livro mais comprado do que lido e mais lido do que entendido, pode-se suspeitar. Isso, em parte, acontece por conta da dificuldade inerente do pensamento de Sartre (ele gostava de provocar Camus, a quem não considerava inteligente o suficiente para entender suas ideias) e em parte porque sua terminologia tem origem na ainda mais complexa linguagem técnica alemã empregada por Husserl e Heidegger. A Crítica de Sartre é ainda mais difícil de ser lida do que O Ser e o nada, e não seria impiedoso atribuir isso em parte ao seu vício de toda uma vida em anfetaminas e álcool. Ele escrevia durante longos períodos, milhares de palavras por dia, com mais ênfase na quantidade do que na qualidade. Ainda assim, o esforço de Sartre para reconciliar a liberdade do existencialismo com o determinismo do marxismo constitui um feito notável de análise filosófica. Enquanto trabalhava na Crítica (do período pós-guerra até o fim da vida), Sartre trabalhou também em outro projeto enorme e inacabado: a biografia em cinco volumes do romancista Gustave Flaubert (1821-1880), intitulada O idiota da família (1971-2).

O existencialismo dá lugar ao estruturalismo
Sartre continua sendo uma figura imponente na filosofia do pós-guerra, mas a influência do existencialismo começou a diminuir com a ascensão do estruturalismo, praticado por Claude Lévi-Strauss e depois por Roland Barthes. O movimento pós-estruturalista terminou o trabalho que o estruturalismo havia iniciado, com seu foco nos textos, e não nos autores (o “Eu descentrado”). O fato de que um trabalho de volume tão poderoso como o de Sartre foi suplantado tão rapidamente é uma medida da enorme velocidade do desenvolvimento e das mudanças incessantes no cenário da filosofia continental. Nos Estados Unidos, o interesse por Sartre diminuiu com o declínio da filosofia marxista, na esteira de uma guinada geral para a direita por parte da opinião pública após o colapso da União Soviética em 1991. Filósofos, como roupas e carros, não estão imunes aos caprichos das mudanças de gosto e de moda. Não há dúvida, no entanto, de que a obra de Sartre será lida e reavaliada por futuras gerações de estudiosos interessados nos usos que ele deu ao método fenomenológico de Husserl e às análises existenciais de Heidegger.

O existencialismo dá lugar ao estruturalismo
Sartre continua sendo uma figura imponente na filosofia do pós-guerra, mas a influência do existencialismo começou a diminuir com a ascensão do estruturalismo, praticado por Claude Lévi-Strauss e depois por Roland Barthes. O movimento pós-estruturalista terminou o trabalho que o estruturalismo havia iniciado, com seu foco nos textos, e não nos autores (o “Eu descentrado”). O fato de que um trabalho de volume tão poderoso como o de Sartre foi suplantado tão rapidamente é uma medida da enorme velocidade do desenvolvimento e das mudanças incessantes no cenário da filosofia continental. Nos Estados Unidos, o interesse por Sartre diminuiu com o declínio da filosofia marxista, na esteira de uma guinada geral para a direita por parte da opinião pública após o colapso da União Soviética em 1991. Filósofos, como roupas e carros, não estão imunes aos caprichos das mudanças de gosto e de moda. Não há dúvida, no entanto, de que a obra de Sartre será lida e reavaliada por futuras gerações de estudiosos interessados nos usos que ele deu ao método fenomenológico de Husserl e às análises existenciais de Heidegger.
O homem está todo o tempo fora de si mesmo: é ao se projetar e se perder além de si mesmo que ele dá existência ao homem; e, por outro lado, é ao perseguir objetivos transcendentais que ele próprio se torna capaz de existir. Uma vez, então, que o homem é autossuperante, e pode alcançar objetos somente em relação com sua autossuperação, é ele próprio o coração e o centro da sua transcendência. (Jean-Paul Sartre, O existencialismo é um humanismo, 1946)
Estou no parque. Eu me jogo em um banco entre grandes troncos pretos de árvore, entre as mãos pretas e cheias de nós estendidas na direção do céu. Uma árvore raspa a terra sob meus pés com uma unha negra. Eu gostaria tanto de me deixar ir, me esquecer, dormir. Mas não posso, estou sufocando: a existência penetra-me em todos os lugares, pelos olhos, pelo nariz, pela boca... (Jean-Paul Sartre, A náusea, 1938)
Central em todas as atividades de Sartre foi sua tentativa de descrever as principais características da existência humana: liberdade, responsabilidade, as emoções, relações com os outros, trabalho, personificação, percepção, imaginação, morte e assim por diante. Deste modo, ele tentou trazer clareza e rigor ao reino sombrio do subjetivo, sem limitar seu foco nem ao lado puramente intelectual da vida (o mundo do raciocínio, ou, mais amplamente, do pensamento) nem àquelas características objetivas da vida humana que permitem o estudo a partir de “fora”. Assim, sua obra se dirigiu, de maneira fundamental, e primordialmente, a partir de “dentro” (onde as habilidades de Sartre como romancista e dramaturgo lhe serviram bem) à questão de como um indivíduo se relaciona a tudo que compreende sua situação: o mundo físico, outros indivíduos, coletivos sociais complexos e o mundo cultural de artefatos e instituições. (David Detmer, Sartre Explained: From Bad Faith to Authenticity [Sartre explicado: da má fé à autenticidade] (2008)
(Trombley, Stephen - 50 pensadores que formaram o mundo moderno) 

publicado às 12:03

Teórico crítico alemão defensor da racionalidade comunicativa na esfera pública. 
 
Contrário aos paradigmas do pós-modernismo e pós-estruturalismo do século XXI, o pensamento de Jürgen Habermas está voltado principalmente para a continuação explícita do que ele chama de “projeto iluminista”. Seu objetivo é basear a filosofia, a política e o direito em princípios racionais do século XVIII defendidos por Immanuel Kant e depois por Friedrich Hegel e Karl Marx. Em Mudança estrutural da esfera pública (1962), Habermas definiu a esfera pública como um lugar onde pode acontecer o diálogo racional. Diálogo racional é concebido como racionalidade comunicativa, um conceito que ele elabora em A teoria da ação comunicativa (1981). Habermas colocou sua própria teoria em prática, tendo mantido diálogos famosos com defensores de posições ostensivamente opostas às dele. Inseriu nessas conversas Michel Foucault e Jacques Derrida, a quem acusava de um perigoso relativismo com consequências negativas para a ética; e, em 2007, Habermas discutiu a questão da religião com o então cardeal Joseph Ratzinger (1927-), o papa Bento XVI, partindo de sua posição de “ateísta metodológico” confesso.

O problema de Heidegger
Como a maior parte dos adolescentes alemães que cresceu durante a Segunda Guerra Mundial, Habermas foi integrante da Juventude Hitlerista. Aos quinze anos de idade, viu-se implantado na frente ocidental da Alemanha durante os meses finais de guerra. A suástica era pouco adequada a Habermas, uma vez que suas tendências de esquerda e sua deformidade física (lábio leporino) faziam dele o tipo de pessoa que os nazistas gostariam de exterminar.
O Julgamento de Nuremberg (1945-6) – a corte internacional que julgou os crimes de guerra da Alemanha – forneceu a Habermas uma epifania que resultou em sua campanha para ressuscitar os valores do Iluminismo. Filmagens de documentários revelando as atrocidades dos campos de morte nazistas revoltaram Habermas a tal ponto que ele se tornou especialmente alerta a qualquer traço de totalitarismo que pudesse resistir na cultura alemã. Enquanto estudava na Universidade de Bonn para obter doutorado, entre 1951 e 1954, Habermas encontrou um traço como esse na republicação de 1953 do livro de Martin Heidegger O que é metafísica? (1935). Nele, Heidegger escreveu: “As obras que estão sendo distribuídas hoje em dia como a filosofia do nacional socialismo nada têm a ver com a verdade interior e a grandeza desse movimento (ou seja, o encontro entre tecnologia global e homem moderno), mas foram todas escritas por homens pescando nas águas conturbadas dos ‘valores’ e ‘totalidades’”. Para Habermas (e incontáveis outros), aqui estava o fato perturbador da filosofia alemã: Heidegger era, para muitos, o maior filósofo do século – mas era também um nazista (assim como metade dos professores de filosofia da Alemanha). Lidar com Heidegger tornou-se elemento essencial do projeto de Habermas à medida que ele examinava as ruínas do pensamento alemão. A única esperança para a filosofia alemã, do seu ponto de vista, era promover a democracia liberal baseada no princípio do diálogo. Em seu ensaio, Work and Weltanschauung: The Heidegger Controversy from a German Perspective [Trabalho e Weltanschauung: a controvérsia Heidegger de uma perspectiva alemã] (1989), ele observa que a visão de Heidegger da Segunda Guerra Mundial era:
Os vitoriosos eram os Estados Unidos e a Rússia, semelhantes em sua essência, que agora dividiam a hegemonia mundial. Portanto, a Segunda Guerra Mundial, na visão de Heidegger, não havia decidido nada de essencial. Este é o motivo pelo qual o filósofo se preparou, após a guerra, para perseverar como um quietista nas sombras de um destino ainda não conquistado. Em 1945, restava para ele somente retirar-se da decepcionante história do mundo.
A centralidade do diálogo
Habermas defendeu sua tese The Absolute and History: On the Schism in Schelling’s Thought [O absoluto e a história: sobre a cisma no pensamento de Schelling] em 1954. Em 1956, tornou-se assistente de Theodor Adorno (1903-69), uma das estrelas mais brilhantes da Escola de Frankfurt, e deu seu programa de teoria crítica de inclinação marxista. Em 1962, Habermas se tornou “professor extraordinário” (ou seja, um professor sem uma cátedra específica) de filosofia na Universidade de Heidelberg e, em 1964, assumiu a cátedra de filosofia e sociologia em Frankfurt, antes ocupada por Max Horkheimer. Em 1971, tornou-se diretor do Instituto Max Planck, em Starnberg, e trabalhou lá até 1983, quando retornou ao seu cargo em Frankfurt e foi nomeado diretor do Instituto de Pesquisa Social. Ele é ainda professor visitante permanente da Universidade de Northwestern, nos Estados Unidos, e Professor Theodor Heuss na The New School, em Nova York. E, no topo de suas realizações acadêmicas, Habermas também é um conhecido intelectual público.
O pensamento de Habermas pode ser descrito como amplamente marxista, embora ele talvez seja melhor entendido como um seguidor de Sócrates (469-399 a.C.). Isso porque, para Habermas, o diálogo é tudo, e, como Sócrates, ele é um defensor do diálogo público. Tendo declarado sua oposição inicial ao revisionismo do Holocausto, ele adentrou a Historikerstreit (disputa de historiadores) de 1986, na qual historiadores de direita argumentavam que o Holocausto não era excepcional – apenas mais um em uma longa lista de massacres europeus. Nesse debate público, travado na imprensa, Habermas desafiou ferozmente tal visão.
A carreira de Habermas foi devotada a traçar estratégias de diálogo, descobrindo as precondições que criam a espécie de esfera pública na qual pode ocorrer o diálogo e dando a esses temas consideração teórica e prática em estudos de sociologia, direito, política e filosofia. Poucos pensadores vivos podem igualar sua fluência e domínio de tantas disciplinas. Richard Rorty, ele próprio o principal filósofo americano do período, chamava Habermas de “o principal filósofo sistemático do nosso tempo”. A extensão visualizada por Habermas do projeto iluminista no século XXI significou encarar as ideias de Hegel como se ele fosse um contemporâneo. Onde críticos como Karl Popper veem em Hegel uma tendência historicista com orientação para o totalitarismo (como em Platão e Marx, na visão de Popper), Habermas, sempre sensível ao veneno da tirania, vê em Hegel o último em uma linha de pensadores iluministas que começou com Kant, e ele insere a si mesmo nessa tradição, tirando de Hegel (como fez com Heidegger) aquilo que lhe parece útil a suas pesquisas. Habermas nunca recorre à ideologia; no entanto, não é avesso a usar ferramentas de análise marxista para dar sentido à situação na qual nos encontramos desde o fim da Guerra Fria e o colapso da União Soviética.

Ação comunicativa
Habermas toma emprestadas teorias de intersubjetividade da metafísica e uma compreensão da linguística e das teorias dos atos da fala de J. L. Austin, P. F. Strawson, Stephen Toulmin, John Searle e Ludwig Wittgenstein, de modo a tentar explicar como a comunicação pode acontecer na esfera pública. Ação comunicativa é a receita de Habermas para a identificação de objetivos que podem ser alcançados satisfatoriamente pelos indivíduos e pelos grupos dos quais eles são membros. Ação estratégica se refere a atos nos quais os agentes buscam atingir unicamente objetivos individuais. Em oposição, a ação comunicativa envolve falantes que buscam definir objetivos que podem ser sujeitos a uma compreensão compartilhada. Esse entendimento baseia-se na inerente razoabilidade do objetivo. Aqui vemos o projeto iluminista em ação de maneira prática: não apenas a razão “pura” das alturas kantianas, mas uma racionalidade prática que é a base para a construção do consenso e, em última análise, para a criação de uma sociedade pacífica. A ação comunicativa possui cinco características essenciais: (1) ela é consensual, (2) coordenada socialmente, (3) racional, (4) baseada em linguagem comum e (5) tem a concordância como objetivo.
Uma vez que isso tenha sido estabelecido, as bases para a racionalidade comunicativa terão sido lançadas: “Essa explicação do ponto de vista moral privilegia o discurso prático como a forma de comunicação que assegura a imparcialidade do julgamento moral e ao mesmo tempo o intercâmbio universal das perspectivas participantes” (Justification and Application: Remarks on Discourse Ethics [Justificação e aplicação: observações sobre ética do discurso], 1991.

O discurso filosófico da modernidade: confrontando Derrida
A confrontação de Habermas com Heidegger e sua contínua desconfiança de tendências niilistas no pensamento moderno levaram-no a criticar o pós-modernismo e o pós-estruturalismo como movimentos que haviam abandonado o projeto iluminista baseado na razão e na ciência, em favor de uma série de posições relativistas de valor ético questionável. Em O discurso filosófico da modernidade (1985), Habermas confronta Foucault e Derrida. Esperando provocar um diálogo, ele faz uma avaliação esmagadora da continuação empreendida por Derrida da filosofia final de Heidegger: “O ser humano como ser dirigido à morte sempre viveu em relação com seu fim natural. Mas agora é uma questão do fim de sua autocompreensão humanista: no desabrigo do niilismo, não é o ser humano, mas a essência do ser humano que vagueia cegamente.” Na visão de Habermas, a filosofia de Derrida é não somente niilista, mas também destrutiva em última análise: “Heidegger prepara a conclusão de uma época que talvez nunca termine, em um sentido histórico-ôntico. A melodia familiar da autossuperação da metafísica também dita o tom para a empreitada de Derrida; destruição ganha um novo nome: desconstrução.” Derrida respondeu em Is There a Philosophical Language? [Existe uma linguagem filosófica?] (1992) que Habermas havia “visível e cuidadosamente evitado ler-me”.
 

Religião e razão reexaminadas
Em janeiro de 2004, quinze meses antes de se tornar papa, o cardeal Joseph Ratzinger iniciou um diálogo escrito com Habermas a respeito do papel da religião na sociedade. Esse diálogo foi publicado em Dialética da secularização: sobre razão e religião (2005). Habermas sempre seguiu a insistência de Hegel sobre o direito da filosofia ao “ateísmo metodológico”, o pressuposto de nada no caminho da crença religiosa. Ele também descreve a si mesmo como aluno de Max Weber, no sentido de que ele é um “surdo tonal na esfera religiosa”. No entanto, o onze de setembro levou Habermas a observar que a sociedade secular precisava de um novo entendimento da convicção religiosa. (Anteriormente, como acontecia provavelmente com a maioria dos filósofos, ele havia considerado a religião um assunto a ser estudado no que dizia respeito a estágios do desenvolvimento humano.)
Em Dialética da secularização, Habermas defende que o Estado secular está fundado na razão prática. Ratzinger, por sua vez, defende que há um fundamento moral pré-político que justifica o Estado. Ele conclui que razão e fé precisam uma da outra: a fé informa a razão para ajudar a raça humana a evitar o tipo de arrogância que leva à criação de armas nucleares ou à visão de pessoas como produtos. Habermas conclui que a existência dos que creem e dos que não creem continuará, e cada um deles deve aceitar este fato sobre o outro. O que ambos os grupos precisam confrontar é a destruição de velhas certezas éticas pela ciência e a existência de um novo tipo de terrorismo que exige um diálogo global.
Ao fim, Habermas nos leva de volta ao mesmo lugar onde começamos. Dois milênios e meio depois que os pré-socráticos buscaram a razão, procurando respostas diferentes daquelas oferecidas pela mitologia, razão e religião continuam em vigor; mas na racionalidade comunicativa de Habermas, e no pensamento filosoficamente sofisticado do ex-papa Bento XVI, elas podem ser vistas menos como polos opostos e mais como complementares entre si.
Todas as tentativas de descoberta de fundamentos derradeiros, nas quais persistiam as intenções da Primeira Filosofia, romperam-se. Nesta situação, um caminho está se abrindo em direção a uma nova constelação na relação entre filosofia e ciências. Como pode ser visto no caso da história e da filosofia da ciência, explicações formais das condições da racionalidade e análises empíricas da incorporação e desenvolvimento histórico das estruturas de racionalidade se entrelaçam de maneira peculiar. Teorias de ciência empírica moderna, seja na tradição do empirismo lógico, seja na do racionalismo crítico, seja na do construtivismo, fazem uma reivindicação normativa e ao mesmo tempo universalista que não mais se encontra coberta por suposições fundamentais de natureza ontológica ou filosófico-transcendental. (Jürgen Habermas, A teoria da ação comunicativa, Volume 1 (1981)
 Acredito que certa forma de comunicação irrestrita traz à tona a mais profunda força da razão, que nos permite superar perspectivas egocêntricas ou etnocêntricas e alcançar uma visão expandida. Jürgen Habermas, entrevista para Mitchell Stephens (1994)
Se imaginarmos a discussão filosófica do período moderno reconstruída como uma audiência judicial, ela estaria decidindo uma única questão: como o conhecimento confiável (Erkenntnis) é possível? Jürgen Habermas, Conhecimento e interesse (1968)

(Trombley, Stephen - 50 pensadores que formaram o mundo moderno)

publicado às 12:28

Se os que se dizem amigos e representantes de Cristo na terra soubessem do mundo em toda a sua crueza, não dariam a mão à jovem que, desesperada, abortou? Se fizessem ideia de que o ser humano é um ser histórico e que há amores que morrem e que ninguém pode ser obrigado a viver num inferno, fechariam as portas ao homem ou à mulher que,depois de um divórcio, quiseram retomar na dignidade a vida com outro alguém? Se fosse preciso negar a mesa dos sacramentos de Jesus, então que fosse aos exploradores dos pobres e aos fabricantes de guerras, mas não aos que sufocam na solidão. Se soubessem das pulsões que palpitam num corpo jovem, haveria a compreensão que cura, e o seu discurso não se enrolaria em preservativos, mas dialogaria sobre a dignidade de corpos conscientes e livres e incentivaria a educação aberta para a sexualidade. Se soubessem do deserto que atravessa a existência de tantos, haviam de colocar no centro das preocupações da Igreja as reais aspirações da humanidade pelo sentido da vida e pela procura do Deus vivo e não as fórmulas dogmáticas ou o direito canónico, o anúncio do Deus que liberta e não do Deus que ridiculariza e oprime, a reconsideração do celibato, que, enquanto lei, é contra o Evangelho, bem como da confissão, que, em vez de ser o espaço do perdão misericordioso de Deus, tem sido, tantas vezes, na sua prática concreta, o lugar da violência inquisitorial do mais íntimo das pessoas, com o risco de violação dos direitos humanos... Se soubessem de beleza, as liturgias haviam de explodir em alegria e festa.

Então, até Nietzsche havia de vir, pois foi ele que escreveu que "só acreditaria num deus que soubesse dançar". E António Nobre havia de ver resposta para a sua dor: "O que há-de ser de mim?"

(Padre Anselmo Borges - Janelas do InVisível)

 
Filólogo e filósofo alemão que declarou
a morte de Deus e mostrou
como o homem deve reavaliar
valores vigentes.
 
Friedrich Nietzsche estudou filologia e, por isso, é às vezes renegado por aqueles que acreditam que um filósofo deve ter um diploma em filosofia. Ele é, no entanto, o mais popular e influente filósofo alemão do final do século XIX, em parte porque seu estilo de escrita aforística tornou-o (enganosamente) acessível a um público geral. Ele é famoso sobretudo por haver declarado a morte de Deus – um reconhecimento de que o homem precisa se responsabilizar pela própria vida por meio de esforço e vontade. Os temas principais da filosofia de Nietzsche prosperaram fora da academia e, como os de Karl Marx e Sigmund Freud, conquistaram um lugar na consciência pública.
Em O nascimento da tragédia (1872), Nietzsche estabeleceu uma oposição entre o que ele chamou de impulsos apolíneos e dionisíacos na Grécia Antiga. “Dionisíaco”, para ele, significava o aspecto irracional, caótico e criativo da existência do homem, enquanto, por oposição, “apolíneo” se referia à distância crítica da razão, que afasta o homem da sua experiência vital do dionisíaco. Trabalhando em ideias primeiramente elaboradas por Arthur Schopenhauer, Nietzsche formulou o conceito de vontade de poder, uma força vital que ao mesmo tempo precede a existência humana e lhe serve de impulso. A morte de Deus necessitava do que Nietzsche chamava de reavaliação de todos os valores. Ele defendia que a natureza da percepção e do entendimento era relativa e questionava a noção de “verdade” objetiva ou absoluta. Seu conceito de eterno retorno é baseado na ideia de que cada momento deveria ser vivido como se fosse acontecer novamente para sempre, em um círculo infinito. Seu conceito de “superhomem” (Übermensch) – talvez o mais conhecido deles – se referia à visão de Nietzsche do homem como um ser vivendo entre o reino animal e um novo e mais elevado estado do ser, que poderia ser alcançado pelo exercício da vontade de poder.

A morte de Deus
Nietzsche deparou com O mundo como vontade e representação (1818), de Arthur Schopenhauer, por acaso, em uma livraria. Ele o teria lido inteiro de uma única vez. Neste livro, encontrou confirmação para ideias que vinham sendo fermentadas dentro de sua mente: que o mundo não é racional e que moralidade e significado histórico são relativos. Tudo isso, concluiu Nietzsche, advém do fato de que Deus está morto. O que ele quer dizer com isso? Em A gaia ciência (1882), Nietzsche pergunta: “Não ouvimos o barulho dos coveiros que estão enterrando Deus? Não sentimos o cheiro da divina putrefação? – porque até mesmo deuses sofrem putrefação! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! Como nos consolar, a nós, os mais assassinos entre todos os assassinos?” A resposta seria a “consolação” da filosofia, do pensamento. O homem agora precisava raciocinar por conta própria em vez de acreditar cegamente nas “verdades” da Igreja (ou da universidade).
Nietzsche é frequentemente classificado como um niilista, mas ele é mais bem entendido como um crítico do niilismo europeu de meados do século XIX, à medida que a ascensão do nacionalismo enfatizava o secular em detrimento do divino e que a ciência começava a superar a metafísica e a religião. Nietzsche não matou Deus; ele foi somente o mensageiro. A morte de Deus teve início com Copérnico (1473-1543). “O que fizemos quando desatamos esta Terra de seu sol?”, pergunta Nietzsche em A gaia ciência (1882). “Para onde ela se move agora? Para onde nós nos movemos? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para a frente, em todas as direções? Existe ainda ‘em cima’ e ‘embaixo’? Não vagamos como que através de um nada infinito? Não sentimos sobre nós a respiração do espaço vazio? Não ficou mais frio?”
Mas o criticismo de Nietzsche foi além da ciência ou da política; ele culpava o cristianismo por desvalorizar a vida ao sustentar a ideia de uma vida após a morte. A própria ideia de paraíso teria feito a vida na terra não valer a pena ser vivida. Neste sentido, o cristianismo corrompeu a vontade do homem e degradou todos os valores.
É a partir desta posição que o homem deve se tornar responsável por si próprio. É uma tarefa, ainda, que deve ser empreendida a despeito de determinadas probabilidades. Embora fosse crítico em relação a Darwin – que ele provavelmente não leu –, Nietzsche enxergava o homem como um ser vivendo em um drama evolutivo, no meio do caminho entre macacos e anjos.

O Übermensch
O homem que tenta deixar para trás sua posição atual, por esforço da sua vontade, é o Übermensch, ou “super-homem”. O super homem precisa também ser o criador de seus próprios valores. Os valores já prontos do cristianismo e da moralidade burguesa eram anátemas para Nietzsche – bestificantes, destruidores de vidas. Em Além do bem e do mal (1886) e em Genealogia da moral (1887), ele explorou a história da moralidade a partir de uma perspectiva que enriqueceu muito o estudo da ética. Mais tarde, esse trabalho foi assumido e ampliado por Michel Foucault, que, dos filósofos do século XX, foi talvez o mais influenciado por Nietzsche. Embora eles não tenham influenciado diretamente um ao outro, existem ainda correspondências entre os trabalhos de Nietzsche e Henri Bergson (1859-1941); ambos se preocuparam com o que foi chamado de Lebensphilophie, a consideração da vida vivida como um todo.

Eterno retorno
No centro da ética de Nietzsche, está o tema do eterno retorno. É um ensinamento que está mais insinuado do que abertamente declarado no livro Assim falou Zaratustra (1883-5). (O Zaratustra de Nietzsche é baseado na antiga divindade persa conhecida em inglês como “Zoroaster” [e, em português, como “Zoroastro”], que vai para o topo de uma montanha para meditar e depois desce para ensinar suas “crianças”.) Nietzsche encantou-se e depois rejeitou a música de Richard Wagner (1813-83), o compositor do ciclo de quatro óperas O Anel do Nibelungo, com quem ele teve uma longa e tempestuosa amizade. Nietzsche faz Zaratustra lamentar: “Ó, como eu poderia não almejar a eternidade e o nupcial anel dos anéis – o anel do retorno? Nunca encontrei, até agora, a mulher com a qual eu deveria desejar ter filhos, a não ser esta mulher que eu amo. Pois eu te amo, ó Eternidade!” Este refrão é repetido diversas vezes, e tem como resposta: “O prazer, no entanto, não deseja herdeiros nem filhos. O prazer quer a si mesmo, quer eternidade, quer retorno, quer que tudo seja eternamente igual a si mesmo.”
O que Nietzsche invoca com a doutrina do eterno retorno – que afirma que tudo no universo está em constante movimento, constante mudança – é uma espécie de imperativo categórico pós-teísta. Se Kant defendia que as pessoas deveriam agir somente de acordo com a máxima segundo a qual um ato deveria se tornar uma lei universal, então Nietzsche defendia que elas agissem como se aquele ato fosse se repetir eternamente. Este é o grande propósito que cabe ao homem seriamente após Deus. É o antídoto de Nietzsche para o niilismo de sua época, e é uma luz com a qual ele vislumbrou os novos territórios da experiência e da compreensão humana que viriam a ser explorados por fenomenologistas e existencialistas. Nietzsche lança as bases para a ontologia de Sartre e para os temas que ele explora em suas obras literárias. O desafio constante de Nietzsche é nos mostrar o abismo; a cada esquina, ele nos pergunta: E agora?

Mania, sífilis e morte
A vida de Nietzsche foi caótica. Sua saúde era frágil, e ele gastou muita energia para ofender a sensibilidade da sociedade cultural e intelectualmente dominante de sua época; por sua devoção ao pensamento, ele destruiu sua carreira como professor. Após dez anos ensinando na universidade, entregou-se totalmente à tarefa de escrever, enquanto vagava pela Europa. Ele se envolveu em um infeliz triângulo amoroso com Lou Andreas-Salomé (1861-1937) – uma femme fatale nascida na Rússia que mais tarde se associou a Freud e acabou se tornando psicanalista – e um de seus amigos, o filósofo alemão Paul Rée (1849-1901). Ele teve também uma relação tempestuosa com sua irmã, Elisabeth Förster-Nietzsche, uma antissemita radical que viajou ao Paraguai em 1886 para ajudar a fundar uma colônia ariana pura. Durante seus últimos dez anos de vida, Nietzsche vagou entre casas de repouso e montanhas, sempre escrevendo. Em 3 de janeiro de 1889, durante uma estadia em Turim, ele viu um homem chicoteando um cavalo. Nietzsche enlaçou o pescoço do animal com os braços, na tentativa de protegê-lo, e então teve um colapso. Sua mãe o levou para a Basileia e depois para uma clínica em Jena. Após a morte dela, Nietzsche passou a viver com a irmã em Weimar. Ele sofria terrivelmente com os efeitos de uma sífilis terciária, e uma série de derrames o levou à morte em 1900.

A difamação de Friedrich Nietzsche
Elisabeth Förster-Nietzsche passou a ter o controle sobre a publicação da obra de seu irmão e estabeleceu um arquivo de seus textos. Ela os editou de modo a dar-lhes uma abordagem que fizesse referência aos nazistas. Adolf Hitler (1889-1945) fez com que tirassem uma foto sua ao lado de um busto de Nietzsche. Mas a verdade é que Nietzsche detestava o nacionalismo alemão e o antissemitismo. Sua “política” – se é que ele tinha alguma – era a de um esteta, um esnobe. Ele venerava a arte. Uma de suas principais ferramentas era a ironia, e, em certa medida, Nietzsche foi um grande humorista. Ele gritava e ria dos que estavam no topo, às vezes com sua própria voz, outras vezes com a voz de um de seus “personagens”. Neste e em outros aspectos, Nietzsche se assemelhava ao seu predecessor no desenvolvimento do existencialismo, o dinamarquês Søren Kierkegaard (1813-55).
O estilo aforístico de Nietzsche, que dava à sua filosofia um caráter pungente e mordaz, é facilmente citado fora de contexto. A pior falha de interpretação de Nietzsche é a que o considera um antissemita, quando, na verdade, ele foi o oposto: um antiantissemita. O biógrafo de Nietzsche, Rüdiger Safranski, faz uma citação reveladora do filósofo nazista Ernst Krieck: “No fim das contas, Nietzsche foi um opositor do socialismo, um opositor do nacionalismo e um opositor do pensamento racial. Sem levar em conta essas três inclinações do seu pensamento, ele poderia ter sido um nazista extraordinário.”
A grande contribuição de Nietzsche foi nos mostrar como pensar. Ele examinou problemas de diversas perspectivas e os modificou com a intenção de verificar se novos ângulos trariam novas soluções. Música e dança estão presentes em toda a sua filosofia, guiando o leitor em uma busca dionisíaca pelo conhecimento. Apartado da sociedade em seus anos derradeiros, Nietzsche foi certa vez observado por sua senhoria através do buraco da fechadura de sua porta – ele estava dançando nu. Em Assim falou Zaratustra, ele escreveu: “Eu somente poderia acreditar em um Deus que soubesse dançar”.
 
Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! Como nos consolar, a nós, os mais assassinos entre todos os assassinos? (Friedrich Nietzsche, A gaia ciência (1882)
Todos os filósofos compartilham este mesmo erro: partem do homem contemporâneo e, pela análise que dele tecem, acreditam poder atingir seus objetivos. Eles pensam automaticamente no “homem” como uma verdade eterna, como algo imutável no interior de um redemoinho, como uma medida incontestável de coisas. Tudo que o filósofo diz sobre o homem, no entanto, é, no fundo, não mais do que um testemunho a respeito do homem de um período extremamente limitado. Falta de senso histórico é o erro original de todos os filósofos. (Friedrich Nietzsche, Humano, demasiado humano 1878) 
  (Trombley, Stephen - 50 pensadores que formaram o mundo moderno)

publicado às 09:57


Niilismo

por Thynus, em 23.02.15

 


 
O grande escritor russo Fiodor Dostoievski retratou em Os demônios a essência do niilismo como força motora de alguns revolucionários. Escrito em 1872, o livro foi inspirado em um episódio verídico: o assassinato de um estudante por um grupo niilista liderado por Nietcháiev, em 1869. Muitos esquerdistas acabam atraídos por ideologias que, no fundo, representam apenas um profundo desejo de destruição ou autodestruição.
Nietcháiev era o resultado prático das teorias de Bakunin, um dos mais famosos anarquistas. Excêntrico, rebelde ao extremo, esse aristocrata desafiava todas as convenções burguesas. Como tantos outros anarquistas e socialistas, Bakunin era, por nascimento, um senhor rural, que teve educação refinada. Estudou em Paris e obteve seu grau de doutor em Pádua. Sua mulher também era de importante família.
Em suma, Bakunin veio da elite, e resolveu combater tudo o que ela representava, o que lhe permitiu chegar onde chegou. Ele tinha na família tradicional uma grande inimiga, objetivando destruir os laços de transferência de valores de geração para geração. Em tom de fanatismo religioso, exalta o futuro promissor:
Haverá uma transformação qualitativa, uma nova maneira de viver, uma revelação que será como dádiva de vida, um novo paraíso e uma nova Terra, um mundo jovem e poderoso no qual todas as nossas atuais dissonâncias serão resolvidas, transformando-se num todo harmonioso.
Que glorioso futuro! Um mundo sem conflitos, sem dissonâncias, onde cada um forma um todo perfeito. Mas, para criar tal “paraíso”, naturalmente seria necessário destruir o mundo que temos hoje, implodir os pilares dessa sociedade carcomida, em estado de putrefação. E foi assim que Bakunin, como alguns antes e muitos depois, apresentou a receita do sucesso:
Confiemos no eterno espírito que destrói e aniquila apenas porque é a inexplorada e eternamente criativa origem de toda a vida. A ânsia de destruir é também uma ânsia criativa.
Não sei quanto ao leitor, mas, quando leio essas passagens, não posso evitar o pensamento de que seria muito melhor para o mundo se gente com tamanho descontentamento com a vida e tanta sede por destruição simplesmente procurasse um bom psicanalista, ou quem sabe pegasse um pedaço de pau e destruísse o seu quartinho confortável arrumado pela empregada. Mas que deixasse os outros em paz! Theodore Dalrymple, falando sobre Bakunin, reconhece que o ato de destruir é, em si, divertido para muitos. Quando encontram uma suposta causa que justifica a destruição, aí é uma festa! Essa combinação atrai muita gente para a esquerda caviar raivosa, que alimenta um constante desejo de destruição. Fernando Pessoa foi outro que percebeu o teor destrutivo do comunismo. Ele escreveu: O comunismo não é um sistema: é um dogmatismo sem sistema — o dogmatismo informe da brutalidade e da dissolução. Se o que há de lixo moral e mental em todos os cérebros pudesse ser varrido e reunido, e com ele se formar uma figura gigantesca, tal seria a figura do comunismo, inimigo supremo da liberdade e da humanidade, como o é tudo quanto dorme nos baixos instintos que se escondem em cada um de nós. O comunismo não é uma doutrina porque é uma antidoutrina, ou uma contradoutrina. Tudo quanto o homem tem conquistado, até hoje, de espiritualidade moral e mental — isto é de civilização e de cultura —, tudo isso ele inverte para formar a doutrina que não tem.
Em United in Hate, Jamie Glazov tenta explicar a paixão dos intelectuais de esquerda por tiranos. O assunto é bastante pessoal para ele, que foi ainda criança levado, pelos pais, da União Soviética para os Estados Unidos, fugindo de uma tirania. Qual não foi a surpresa da família ao descobrir que muitos intelectuais americanos defendiam justamente aquele regime totalitário, e ainda tentavam silenciar as verdades que eles, tendo sofrido na própria pele, revelavam!
Para Glazov, esse crente esquerdista começa sua jornada totalitária com um agudo senso de alienação em sua própria sociedade — alienação que ele é totalmente cego para enxergar. Em negação com suas próprias falhas, que o impedem de criar um elo com seu povo, o crente se convence de que há algo profundamente errado com sua sociedade. Sem conseguir se encaixar direito nela, deseja ardentemente colocar um fim nessa angústia — e na sua própria sociedade.
Em uma linha parecida foi Eric Hoffer, em seu clássico The True Believer, escrito em 1951. Para Hoffer, um dos principais motivos de adesão a tais seitas revolucionárias é a angústia que a autonomia traz para o indivíduo. Temos uma tendência de culpar forças exógenas pelos nossos fracassos, e as pessoas frustradas com suas vidas acabam desenvolvendo um fervor por mudanças radicais.
Os movimentos de massa oferecem a sensação de um poder irresistível do grupo monolítico. As angústias individuais poderão ser diluídas nos atos conjuntos, isentos de responsabilidade. A psicologia das massas, como sabia Gustave Le Bon, atua para dar vazão ao ódio e ao desejo de destruição de cada membro do grupo. Ele escreve em seu famoso livro The Crowd: A Study of the Popular Mind:
Uma massa é como um selvagem; não está preparada para admitir que algo possa ficar entre seu desejo e a realização deste desejo. Ela forma um único ser e fica sujeita à lei de unidade mental das massas. Como tudo pertence ao campo dos sentimentos, o mais eminente dos homens dificilmente supera o padrão dos indivíduos mais ordinários. Eles não podem nunca realizar atos que demandem elevado grau de inteligência. Em massas, é a estupidez, não a inteligência que é acumulada. O sentimento de responsabilidade que sempre controla os indivíduos desaparece completamente. Todo sentimento e ato são contagiosos. O homem desce diversos degraus na escada da civilização. Isoladamente, ele pode ser um indivíduo; na massa, ele é um bárbaro, isto é, uma criatura agindo por instinto.
Os indivíduos, fazendo parte de um grupo com certas características coletivistas, adquirem um sentimento de invencibilidade que os permite seguir instintos os quais seriam barrados caso estivessem sozinhos. Um caso típico é o linchamento público, ou a agressividade das torcidas organizadas. Ann Coulter, em seu livro Demonic: How the Liberal Mob Is Endangering America, usa Le Bon para mostrar como a esquerda atual é um movimento de massas. Ela descreve o fenômeno:
A multidão é um organismo infantil, irracional, muitas vezes violento, que deriva sua energia do grupo. Intoxicado por objetivos messiânicos, a promessa de gratificação instantânea, e exortações que injetam adrenalina, as multidões criam desordem, caos e destruição, deixando uma pilha de destroços fumegantes para seus líderes subirem ao poder.
Movidas por paixão, demonizando seus oponentes, idolatrando seus ícones, contando com frases prontas e simples, além de imagens em vez de argumentos, as multidões são levadas a atos violentos, intimidadores, agressivos. A repetição incessante desses mesmos slogans cria o efeito de contágio, em que a lógica dos argumentos não tem mais vez. Líderes populistas abusam disso, como sabia Karl Kraus: “O segredo do agitador consiste em parecer tão idiota quanto seus ouvintes, de modo que eles acreditem ser tão inteligentes quanto ele.”
O grau de idolatria que Obama despertou mostra claramente isso. Coulter especula que, talvez pelo fato de os esquerdistas modernos não acreditarem em Deus, eles precisem de deuses de carne e osso. Pode ser. Mas o fato é que é constrangedor ver tanta reverência a um líder, beirando o fanatismo religioso. Não há nada análogo do lado dos liberais e conservadores, que costumam apontar, eles próprios, as várias falhas de seus líderes.
Essa realidade não é exclusividade americana. Quando Obama foi discursar em Berlim, na Alemanha, o repórter Brian Williams, da NBC, comentou que foi espantoso o fervor da multidão que atraiu. Pessoas subiam umas nas outras para tentar chegar mais perto dele. Era difícil imaginar algum outro líder político capaz de mobilizar tanta gente assim, como se fosse um popstar. Qual foi mesmo o último que conseguiu tal façanha em Berlim?
A pessoa pode ser rica, inteligente e bem articulada, mas ainda assim sofrer desse sentimento anti-indivíduo, buscando refúgio em algum ente coletivo. Precisa de uma válvula de escape coletivista, de algum grupo com o qual se identifique, podendo assim anular suas falhas como indivíduo. A destruição do “eu” é o objetivo final. Por trás dessa fuga, muitas vezes está um grande complexo de inferioridade.
O sentimento de angústia por falta de contato verdadeiro com sua sociedade, uma espécie de ódio a si próprio, isso pode levar o intelectual e o artista à defesa de ideologias e regimes coletivistas totalitários que pregam a destruição de sua própria sociedade. O coletivismo serve como escudo para suas inseguranças individuais.
Se ele se dissolver nessa massa amorfa, sua dor poderá ser dissipada, sua culpa por viver melhor poderá ser reduzida, caso se identifique com as vítimas do “sistema”. Uma pulsão de morte alimenta seu niilismo e, quanto mais violento for o líder, melhor. Ele roga por destruição, que colocará fim em suas angústias insuportáveis.
Essa visão escatológica sempre seduziu muita gente. O apocalipse, as profecias de Nostradamus, as projeções de Malthus, o alarmismo com a vingança de Gaia, o Dia do Juízo Final, em que todos enfrentarão a ira “divina”, e eles, aqueles que parecem tão mais felizes e em sintonia com a vida, serão destruídos, enquanto nós, os escolhidos, seremos finalmente recompensados pelo sacrifício. A ideia do fim do mundo, ou ao menos desse mundo, sempre foi fácil de ser vendida para uma legião de insatisfeitos.
Os niilistas usam tais ideologias para dar vazão à sua revolta, ao seu desejo de destruir. Che Guevara, curiosamente retratado por alguns como um pacifista, deixou registrado em seu diário sua euforia com o odor de sangue, explicitando sua vontade de matar. Veremos em mais detalhes o perfil desse facínora depois, que curiosamente é tido por muitos como um idealista romântico que buscava a justiça social.
Seu discípulo brasileiro mais fiel, o guerrilheiro Carlos Marighella, que já foi até homenageado em música de Caetano Veloso, também tinha clara inclinação à violência. O historiador Marco Antonio Villa, analisando a recente biografia sobre o comunista em um artigo na Folha, resumiu bem: “O que não se vê é qualquer ato de busca de apoio popular, de organização, de traçar algum objetivo no campo democrático. Tudo se resume à ação terrorista, à violência.”
A guerrilheira holandesa Tanja Nijmeijer, das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), afirmou que não imagina a sua vida fora do grupo terrorista, ao qual aderiu há uma década: “Não posso voltar atrás nem quero voltar atrás.” Filóloga de 34 anos, disse isso em entrevista exclusiva à AFP na Praça da Revolução, em Havana, diante da imagem do guerrilheiro Che Guevara, a quem “todos os membros das Farc adoram”.
“Sinto-me realizada como guerrilheira das Farc e não sei o que teria sido de mim. De repente seria dona de casa, teria três filhos, estaria divorciada, mas isso não teria me realizado da forma que me realiza ser guerrilheira”, acrescentou. A imagem de esposa e mãe lhe dá calafrios, e sua “realização” só é possível pela violência, pela luta armada, pela revolução.
Um niilista se torna uma máquina de matar mais eficiente quando encontra uma desculpa ideológica para tanto. E acaba virando ídolo da esquerda caviar, que simpatiza com seus fins, mas raramente tem coragem para adotar os mesmos meios. A esquerda caviar acaba, então, aplaudindo o guerrilheiro do conforto de seu ar-condicionado, eventualmente financiando os instrumentos de sua violência, como a compra de armas, ou enaltecendo seus atos em filmes e livros. Como resumiu David Horowitz em um debate recente, os liberais e conservadores são construtores, enquanto boa parte da esquerda é formada por destruidores.
O melhor exemplo desse niilismo foi o suicídio coletivo liderado por Jim Jones em “Jonestown” (quão egocêntrico!), na Guiana. Marxista fanático, fã de Mao Tsé-Tung e de Fidel Castro, Jones queria criar sua comunidade utópica a todo custo. Até no Brasil veio parar em busca de um local para seu “templo” comunista, de onde ninguém podia sair.
Sua empedernida luta pela “justiça social” acabaria com a morte de novecentas pessoas, incluindo dezenas de crianças que tomaram cianeto. Comunismo é veneno. Jim Jones deixou uma mensagem gravada, onde diz que seu grupo não cometeu suicídio, e sim um ato de “suicídio revolucionário” para protestar contra o mundo desumano. Desumano, como fica claro, é o niilismo que alimenta maluquices coletivistas e ideologias assassinas.

(Constantino, Rodrigo - Esquerda caviar: a hipocrisia dos artistas e intelectuais progressistas no Brasil e no mundo)
 

publicado às 12:16


Niilismo

por Thynus, em 23.02.15

 


 
O grande escritor russo Fiodor Dostoievski retratou em Os demônios a essência do niilismo como força motora de alguns revolucionários. Escrito em 1872, o livro foi inspirado em um episódio verídico: o assassinato de um estudante por um grupo niilista liderado por Nietcháiev, em 1869. Muitos esquerdistas acabam atraídos por ideologias que, no fundo, representam apenas um profundo desejo de destruição ou autodestruição.
Nietcháiev era o resultado prático das teorias de Bakunin, um dos mais famosos anarquistas. Excêntrico, rebelde ao extremo, esse aristocrata desafiava todas as convenções burguesas. Como tantos outros anarquistas e socialistas, Bakunin era, por nascimento, um senhor rural, que teve educação refinada. Estudou em Paris e obteve seu grau de doutor em Pádua. Sua mulher também era de importante família.
Em suma, Bakunin veio da elite, e resolveu combater tudo o que ela representava, o que lhe permitiu chegar onde chegou. Ele tinha na família tradicional uma grande inimiga, objetivando destruir os laços de transferência de valores de geração para geração. Em tom de fanatismo religioso, exalta o futuro promissor:
Haverá uma transformação qualitativa, uma nova maneira de viver, uma revelação que será como dádiva de vida, um novo paraíso e uma nova Terra, um mundo jovem e poderoso no qual todas as nossas atuais dissonâncias serão resolvidas, transformando-se num todo harmonioso.
Que glorioso futuro! Um mundo sem conflitos, sem dissonâncias, onde cada um forma um todo perfeito. Mas, para criar tal “paraíso”, naturalmente seria necessário destruir o mundo que temos hoje, implodir os pilares dessa sociedade carcomida, em estado de putrefação. E foi assim que Bakunin, como alguns antes e muitos depois, apresentou a receita do sucesso:
Confiemos no eterno espírito que destrói e aniquila apenas porque é a inexplorada e eternamente criativa origem de toda a vida. A ânsia de destruir é também uma ânsia criativa.
Não sei quanto ao leitor, mas, quando leio essas passagens, não posso evitar o pensamento de que seria muito melhor para o mundo se gente com tamanho descontentamento com a vida e tanta sede por destruição simplesmente procurasse um bom psicanalista, ou quem sabe pegasse um pedaço de pau e destruísse o seu quartinho confortável arrumado pela empregada. Mas que deixasse os outros em paz! Theodore Dalrymple, falando sobre Bakunin, reconhece que o ato de destruir é, em si, divertido para muitos. Quando encontram uma suposta causa que justifica a destruição, aí é uma festa! Essa combinação atrai muita gente para a esquerda caviar raivosa, que alimenta um constante desejo de destruição. Fernando Pessoa foi outro que percebeu o teor destrutivo do comunismo. Ele escreveu: O comunismo não é um sistema: é um dogmatismo sem sistema — o dogmatismo informe da brutalidade e da dissolução. Se o que há de lixo moral e mental em todos os cérebros pudesse ser varrido e reunido, e com ele se formar uma figura gigantesca, tal seria a figura do comunismo, inimigo supremo da liberdade e da humanidade, como o é tudo quanto dorme nos baixos instintos que se escondem em cada um de nós. O comunismo não é uma doutrina porque é uma antidoutrina, ou uma contradoutrina. Tudo quanto o homem tem conquistado, até hoje, de espiritualidade moral e mental — isto é de civilização e de cultura —, tudo isso ele inverte para formar a doutrina que não tem.
Em United in Hate, Jamie Glazov tenta explicar a paixão dos intelectuais de esquerda por tiranos. O assunto é bastante pessoal para ele, que foi ainda criança levado, pelos pais, da União Soviética para os Estados Unidos, fugindo de uma tirania. Qual não foi a surpresa da família ao descobrir que muitos intelectuais americanos defendiam justamente aquele regime totalitário, e ainda tentavam silenciar as verdades que eles, tendo sofrido na própria pele, revelavam!
Para Glazov, esse crente esquerdista começa sua jornada totalitária com um agudo senso de alienação em sua própria sociedade — alienação que ele é totalmente cego para enxergar. Em negação com suas próprias falhas, que o impedem de criar um elo com seu povo, o crente se convence de que há algo profundamente errado com sua sociedade. Sem conseguir se encaixar direito nela, deseja ardentemente colocar um fim nessa angústia — e na sua própria sociedade.
Em uma linha parecida foi Eric Hoffer, em seu clássico The True Believer, escrito em 1951. Para Hoffer, um dos principais motivos de adesão a tais seitas revolucionárias é a angústia que a autonomia traz para o indivíduo. Temos uma tendência de culpar forças exógenas pelos nossos fracassos, e as pessoas frustradas com suas vidas acabam desenvolvendo um fervor por mudanças radicais.
Os movimentos de massa oferecem a sensação de um poder irresistível do grupo monolítico. As angústias individuais poderão ser diluídas nos atos conjuntos, isentos de responsabilidade. A psicologia das massas, como sabia Gustave Le Bon, atua para dar vazão ao ódio e ao desejo de destruição de cada membro do grupo. Ele escreve em seu famoso livro The Crowd: A Study of the Popular Mind:
Uma massa é como um selvagem; não está preparada para admitir que algo possa ficar entre seu desejo e a realização deste desejo. Ela forma um único ser e fica sujeita à lei de unidade mental das massas. Como tudo pertence ao campo dos sentimentos, o mais eminente dos homens dificilmente supera o padrão dos indivíduos mais ordinários. Eles não podem nunca realizar atos que demandem elevado grau de inteligência. Em massas, é a estupidez, não a inteligência que é acumulada. O sentimento de responsabilidade que sempre controla os indivíduos desaparece completamente. Todo sentimento e ato são contagiosos. O homem desce diversos degraus na escada da civilização. Isoladamente, ele pode ser um indivíduo; na massa, ele é um bárbaro, isto é, uma criatura agindo por instinto.
Os indivíduos, fazendo parte de um grupo com certas características coletivistas, adquirem um sentimento de invencibilidade que os permite seguir instintos os quais seriam barrados caso estivessem sozinhos. Um caso típico é o linchamento público, ou a agressividade das torcidas organizadas. Ann Coulter, em seu livro Demonic: How the Liberal Mob Is Endangering America, usa Le Bon para mostrar como a esquerda atual é um movimento de massas. Ela descreve o fenômeno:
A multidão é um organismo infantil, irracional, muitas vezes violento, que deriva sua energia do grupo. Intoxicado por objetivos messiânicos, a promessa de gratificação instantânea, e exortações que injetam adrenalina, as multidões criam desordem, caos e destruição, deixando uma pilha de destroços fumegantes para seus líderes subirem ao poder.
Movidas por paixão, demonizando seus oponentes, idolatrando seus ícones, contando com frases prontas e simples, além de imagens em vez de argumentos, as multidões são levadas a atos violentos, intimidadores, agressivos. A repetição incessante desses mesmos slogans cria o efeito de contágio, em que a lógica dos argumentos não tem mais vez. Líderes populistas abusam disso, como sabia Karl Kraus: “O segredo do agitador consiste em parecer tão idiota quanto seus ouvintes, de modo que eles acreditem ser tão inteligentes quanto ele.”
O grau de idolatria que Obama despertou mostra claramente isso. Coulter especula que, talvez pelo fato de os esquerdistas modernos não acreditarem em Deus, eles precisem de deuses de carne e osso. Pode ser. Mas o fato é que é constrangedor ver tanta reverência a um líder, beirando o fanatismo religioso. Não há nada análogo do lado dos liberais e conservadores, que costumam apontar, eles próprios, as várias falhas de seus líderes.
Essa realidade não é exclusividade americana. Quando Obama foi discursar em Berlim, na Alemanha, o repórter Brian Williams, da NBC, comentou que foi espantoso o fervor da multidão que atraiu. Pessoas subiam umas nas outras para tentar chegar mais perto dele. Era difícil imaginar algum outro líder político capaz de mobilizar tanta gente assim, como se fosse um popstar. Qual foi mesmo o último que conseguiu tal façanha em Berlim?
A pessoa pode ser rica, inteligente e bem articulada, mas ainda assim sofrer desse sentimento anti-indivíduo, buscando refúgio em algum ente coletivo. Precisa de uma válvula de escape coletivista, de algum grupo com o qual se identifique, podendo assim anular suas falhas como indivíduo. A destruição do “eu” é o objetivo final. Por trás dessa fuga, muitas vezes está um grande complexo de inferioridade.
O sentimento de angústia por falta de contato verdadeiro com sua sociedade, uma espécie de ódio a si próprio, isso pode levar o intelectual e o artista à defesa de ideologias e regimes coletivistas totalitários que pregam a destruição de sua própria sociedade. O coletivismo serve como escudo para suas inseguranças individuais.
Se ele se dissolver nessa massa amorfa, sua dor poderá ser dissipada, sua culpa por viver melhor poderá ser reduzida, caso se identifique com as vítimas do “sistema”. Uma pulsão de morte alimenta seu niilismo e, quanto mais violento for o líder, melhor. Ele roga por destruição, que colocará fim em suas angústias insuportáveis.
Essa visão escatológica sempre seduziu muita gente. O apocalipse, as profecias de Nostradamus, as projeções de Malthus, o alarmismo com a vingança de Gaia, o Dia do Juízo Final, em que todos enfrentarão a ira “divina”, e eles, aqueles que parecem tão mais felizes e em sintonia com a vida, serão destruídos, enquanto nós, os escolhidos, seremos finalmente recompensados pelo sacrifício. A ideia do fim do mundo, ou ao menos desse mundo, sempre foi fácil de ser vendida para uma legião de insatisfeitos.
Os niilistas usam tais ideologias para dar vazão à sua revolta, ao seu desejo de destruir. Che Guevara, curiosamente retratado por alguns como um pacifista, deixou registrado em seu diário sua euforia com o odor de sangue, explicitando sua vontade de matar. Veremos em mais detalhes o perfil desse facínora depois, que curiosamente é tido por muitos como um idealista romântico que buscava a justiça social.
Seu discípulo brasileiro mais fiel, o guerrilheiro Carlos Marighella, que já foi até homenageado em música de Caetano Veloso, também tinha clara inclinação à violência. O historiador Marco Antonio Villa, analisando a recente biografia sobre o comunista em um artigo na Folha, resumiu bem: “O que não se vê é qualquer ato de busca de apoio popular, de organização, de traçar algum objetivo no campo democrático. Tudo se resume à ação terrorista, à violência.”
A guerrilheira holandesa Tanja Nijmeijer, das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), afirmou que não imagina a sua vida fora do grupo terrorista, ao qual aderiu há uma década: “Não posso voltar atrás nem quero voltar atrás.” Filóloga de 34 anos, disse isso em entrevista exclusiva à AFP na Praça da Revolução, em Havana, diante da imagem do guerrilheiro Che Guevara, a quem “todos os membros das Farc adoram”.
“Sinto-me realizada como guerrilheira das Farc e não sei o que teria sido de mim. De repente seria dona de casa, teria três filhos, estaria divorciada, mas isso não teria me realizado da forma que me realiza ser guerrilheira”, acrescentou. A imagem de esposa e mãe lhe dá calafrios, e sua “realização” só é possível pela violência, pela luta armada, pela revolução.
Um niilista se torna uma máquina de matar mais eficiente quando encontra uma desculpa ideológica para tanto. E acaba virando ídolo da esquerda caviar, que simpatiza com seus fins, mas raramente tem coragem para adotar os mesmos meios. A esquerda caviar acaba, então, aplaudindo o guerrilheiro do conforto de seu ar-condicionado, eventualmente financiando os instrumentos de sua violência, como a compra de armas, ou enaltecendo seus atos em filmes e livros. Como resumiu David Horowitz em um debate recente, os liberais e conservadores são construtores, enquanto boa parte da esquerda é formada por destruidores.
O melhor exemplo desse niilismo foi o suicídio coletivo liderado por Jim Jones em “Jonestown” (quão egocêntrico!), na Guiana. Marxista fanático, fã de Mao Tsé-Tung e de Fidel Castro, Jones queria criar sua comunidade utópica a todo custo. Até no Brasil veio parar em busca de um local para seu “templo” comunista, de onde ninguém podia sair.
Sua empedernida luta pela “justiça social” acabaria com a morte de novecentas pessoas, incluindo dezenas de crianças que tomaram cianeto. Comunismo é veneno. Jim Jones deixou uma mensagem gravada, onde diz que seu grupo não cometeu suicídio, e sim um ato de “suicídio revolucionário” para protestar contra o mundo desumano. Desumano, como fica claro, é o niilismo que alimenta maluquices coletivistas e ideologias assassinas.

(Constantino, Rodrigo - Esquerda caviar: a hipocrisia dos artistas e intelectuais progressistas no Brasil e no mundo)

publicado às 12:10


A NEGATIVA DE PROCRIAR

por Thynus, em 22.02.15

 
Aquele que, havendo gasto seus apetites, aproxima-se de uma forma limite de desapego, já não quer perpetuar-se; detesta sobreviver em outro, ao qual de resto não teria mais nada a transmitir; a espécie o apavora; é um monstro e os monstros não engendram. O “amor” o cativa ainda: aberração entre seus pensamentos. Busca um pretexto para retomar a condição comum; mas o filho lhe parece inconcebível, como a família, a hereditariedade, as leis da natureza. Sem profissão nem progenitura, cumpre – última hipóstase – seu próprio acabamento. Mas por afastado que esteja da fecundidade, um monstro mais audacioso o supera: o santo, exemplar ao mesmo tempo fascinante e repulsivo, em relação ao qual sempre se está a meio caminho e em uma posição falsa; a sua, pelo menos, é clara: já não há jogo possível, nem diletantismo. Alçado aos cumes dourados de suas repugnâncias, às antípodas da Criação, faz de seu nada uma auréola. A natureza jamais conheceu tamanha calamidade: do ponto de vista da perpetuação, marca um fim absoluto, um desenlace radical. Entristecer-se, como Léon Bloy, porque não somos santos é desejar o desaparecimento da humanidade... em nome da fé! Como parece positivo, ao contrário, o diabo, já que, obrigando-nos a fixar-nos em nossas imperfeições, trabalha involuntariamente, e traindo sua essência – para conservar-nos! Destrua os pecados: a vida murcha bruscamente. As loucuras da procriação desaparecerão um dia, mais por cansaço do que por santidade. O homem se esgotará menos por haver buscado a perfeição do que por haver-se dissipado; parecerá então um santo vazio e estará tão distante da fecundidade da natureza como o está esse modelo de acabamento e de esterilidade.
O homem só engendra se permanece fiel ao destino geral. Se se aproxima da essência do demônio ou do anjo, torna-se estéril ou procria abortos. Para Raskolnikov, para Ivan Karamazov ou Stavroguin, o amor é apenas um pretexto para acelerar sua perdição; e mesmo tal pretexto desvanece-se para Kirilov: já não se mede com os homens, mas com Deus. Quanto ao Idiota ou a Aliocha, o fato de que um imite Jesus e o outro os anjos coloca-os de saída entre os impotentes...
Mas, arrancar-se da cadeia dos seres e recusar a ideia de ascendência ou de posteridade não é, contudo, rivalizar com o santo, cujo orgulho excede toda dimensão terrestre. Na realidade, sob a decisão pela qual se renuncia a tudo, sob a incomensurável façanha desta humildade, oculta-se uma efervescência demoníaca: o ponto inicial, o botão de partida da santidade toma a forma de um desafio lançado ao gênero humano; depois, o santo sobe a escada da perfeição, começa a falar de amor, de Deus, volta-se para os humildes, intriga as massas – e nos irrita. Mas não deixa de nos haver lançado um desafio...
O ódio à “espécie” e a seu “gênio” os aparenta aos assassinos, aos dementes, às divindades, e a todos os grandes estéreis. A partir de um certo grau de solidão, seria preciso deixar de amar e de cometer a fascinante desonra da cópula. Quem quer perpetuar-se a todo custo mal se distingue do cão: ainda é natureza; não compreenderá jamais que se possa sofrer o império dos instintos e rebelar-se contra eles, gozar das vantagens da espécie e desprezá-las: um fim de raça – com apetites. Este é o conflito de quem adora e abomina a mulher, extremamente indeciso entre a atração e o nojo que ela inspira. Por isso – não conseguindo renegar totalmente a espécie – resolve esse conflito sonhando, sobre os seios, com o deserto e mesclando um perfume claustral ao odor de suores demasiado concretos. As insinceridades da carne o aproximam dos santos...
Solidão do ódio... Sensação de um deus voltado para a destruição, pisoteando as esferas, babando sobre o céu e sobre as constelações.... de um deus frenético, sujo e malsão; um demiurgo ejaculando, através do espaço, paraísos e latrinas: cosmogonia de delirium tremens; apoteose convulsiva em que o fel coroa os elementos... As criaturas se lançam na direção de um arquétipo de fealdade e suspiram por um ideal de deformidade... Universo da careta, júbilo da toupeira, da hiena e do piolho... Nenhum horizonte mais, salvo para os monstros e para os vermes. Tudo se encaminha para o repulsivo e para o gangrenoso: este globo que supura enquanto que os viventes mostram suas feridas sob os raios do cancro luminoso.

 (CIORAN - BREVIÁRIO DE DECOMPOSIÇÃO)
 

publicado às 15:31


AS VANTAGENS DA DEBILIDADE

por Thynus, em 22.02.15

 
O indivíduo que não ultrapassa sua qualidade de belo exemplar, de modelo acabado, e cuja existência confunde-se com seu destino vital, coloca-se fora do espírito. A masculinidade ideal – obstáculo à percepção das nuanças – comporta uma insensibilidade em relação ao sobrenatural cotidiano, de onde a arte extrai sua substância. Quanto mais natureza se é, menos se é artista. O vigor homogêneo, não diferenciado, opaco, foi idolatrado pelo mundo das lendas, pelas fantasias da mitologia. Quando os gregos entregaram-se à especulação, o culto ao efebo anêmico substituiu o dos gigantes; e os próprios heróis, tolos sublimes nos tempos de Homero, tornaram-se, graças à tragédia, portadores de tormentos e de dúvidas incompatíveis com sua rude natureza.
A riqueza interior resulta dos conflitos que se tem consigo mesmo; mas a vitalidade que dispõe plenamente de si mesma só conhece o combate exterior, a animosidade com o objeto. No macho, a quem uma dose de feminilidade debilita, afrontam-se duas tendências: por sua faceta passiva, capta todo um mundo de abandonos; por sua faceta imperiosa, converte sua vontade em lei. Enquanto seus instintos permanecem inalterados, só interessa à espécie; quando uma insatisfação secreta insinua-se neles, transforma-se em um conquistador. O espírito o justifica, o explica e o desculpa e, situando-o na categoria dos tolos superiores, abandona-o à curiosidade da História – investigação da estupidez em marcha...
Aquele para quem a existência não constitui um mal ao mesmo tempo vigoroso e vago, jamais saberá instalar-se no âmago dos problemas nem conhecer seus perigos. A condição propícia à busca da verdade acha- se a meio caminho entre o homem e a mulher: as lacunas da “virilidade” são a sede do espírito... Se a fêmea pura, da qual não se poderia suspeitar nenhuma anomalia sexual ou psíquica, está mais vazia interiormente do que um animal, o macho intacto esgota a definição do “cretino”. Considere qualquer pessoa que tenha prendido sua atenção ou excitado seu fervor: em seu mecanismo algo se desarranjou em seu proveito. Desprezamos, com razão, os que não aproveitaram seus defeitos, os que não exploraram suas carências, e não se enriqueceram com suas perdas, como desprezamos todo homem que não sofra por ser homem ou simplesmente por ser. Não se poderia infligir a alguém ofensa mais grave do que chamá-lo de “feliz”, nem lisonjeá-lo mais do que atribuindo-lhe um “fundo de tristeza”... É que a alegria não está ligada a nenhum ato importante e que, salvo os loucos, ninguém ri quando está só.
A “vida interior” é patrimônio dos delicados, desses abortos trêmulos, submetidos a uma epilepsia sem quedas nem baba. O ser biologicamente íntegro desconfia da “profundidade”, é incapaz dela, a vê como uma dimensão suspeita que prejudica a espontaneidade de seus atos. Não se engana: com a concentração sobre si mesmo, começa o drama do indivíduo – sua glória e seu declínio; isolando-se do fluxo anônimo, do transcorrer utilitário da vida, emancipa-se dos fins objetivos. Uma civilização está “afetada” quando os delicados lhe dão o tom; mas, graças a eles, triunfou definitivamente sobre a natureza e desmorona. Um exemplar extremo de refinamento reúne em si o exaltado e o sofista: não adere mais a seus impulsos, cultiva-os sem crer neles; é a debilidade onisciente das épocas crepusculares, prefiguração de eclipse do homem. Os delicados nos deixam entrever o momento em que as porteiras serão perturbadas por escrúpulos de estetas; em que os camponeses, sobrecarregados pelas dúvidas, não terão mais vigor para empunhar o arado; em que todos os seres, corroídos pela clarividência e vazios de instintos, se extinguirão sem forças para ter saudades da noite próspera de suas ilusões....

(CIORAN - BREVIÁRIO DE DECOMPOSIÇÃO)

publicado às 15:30

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Mário Soares está feliz com a vitória do Syriza e com a ascensão do Podemos em Espanha. Os socialistas não estão a responderà crise, afirma

 

Aos 92 anos, depois de ter passado por uma doença grave que o deixou em coma, Mário Soares continua com uma agenda preenchida, muito activo na fundação com o seu nome e na intervenção política. O seu coração está bem melhor do que o do seu jovem cardiologista (palavra de médico). Nesta entrevista falámos de política, mas também da infância, da relação com Deus e com a história, dos amigos e da família. E também da sua amizade pessoal com Passos Coelho, que há poucos dias encontrou num restaurante de Lisboa.
 
Ficou muito feliz com a vitória do Syriza na Grécia, que acredita que vai mudar a Europa. Conhece muito bem Alexis Tsipras…
A vitória do Syriza foi a melhor coisa que aconteceu à Europa. Foi uma grande alegria. Gosto muito de Alexis Tsipras, que muito admiro e de quem sou amigo. Foi muito interessante a maneira como o conheci. Ele tinha vindo a Portugal e quis conhecer-me. Mas eu estava no Porto. E foi no Porto que nos encontrámos e conversámos. Tivemos uma conversa muito interessante. Quis que tirássemos uma fotografia a dois que depois usou na campanha eleitoral. Às vezes usava-a na lapela! A Europa está num momento de mudança: aquilo a que estamos a assistir em Espanha com a ascensão do Podemos é um fenómeno surpreendente. Fiquei muito satisfeito com a vitória impressionante do Syriza nas eleições e enviei uma mensagem a Alexis Tsipras a felicitá-lo. 
 
O Pasok foi totalmente derrotado nestas eleições. Os partidos socialistas europeus não estão com dificuldade em responder à crise?
Estão com grandes dificuldades, sim. Fui muito amigo de Andreas Papandreou, pai do antigo primeiro-ministro Georges Papandreou. Mas os partidos socialistas europeus, assim como os democratas cristãos que fundaram a Europa, não estão hoje a conseguir responder à crise. E é por isso que em Espanha está a acontecer o fenómeno Podemos…
 
Se fosse espanhol não votava PSOE? Preferia votar Podemos?
O Podemos veio trazer uma mudança radical. Em conjunto com o Syriza pode transformar a Europa, acabando com a política de austeridade. Que mata, como diz o Papa Francisco. Veja-se como o Podemos mobilizou em Espanha milhares de pessoas para apoiarem a Grécia!
 
O Dr. Mário Soares viajou praticamente por todo o mundo…
Viajei por quase todo o mundo, mas nunca fui a Timor-Leste. Faltou-me essa viagem. Consegui ir às ilhas Galápagos. Tinha sido enviado à América Latina pela Internacional Socialista. Estava ali, perto, nem sabia o que eram as Galápagos. Estava num hotel e de manhã lia os jornais – sempre tive esse hábito, de ler os jornais de manhã. E vi nos jornais que tinham chegado à cidade, vindos das Galápagos, uns príncipes em lua-de-mel. E pensei: como serão as ilhas Galápagos? Decidi saber como é que lá poderia ir. Fui à recepção e perguntei à recepcionista se se ocupava das Galápagos. “Ocupo, sim senhor.” “É porque eu gostaria de as visitar”, disse-lhe. Respondeu-me às gargalhadas. E eu perguntei: “Mas porque é que a senhora se está a rir?” Ela respondeu: “Estou a rir porque não vai às Galápagos quem quer.” “Ai não? Mas eu sei que vão lá pessoas.” “Pois, mas esses são cientistas”, disse ela. E eu afirmei: “Pois, lá cientista não sou.” “De que terra é o senhor?”, perguntou-me. Disse-lhe que era português. “Ai é português? Então o que é que anda por aqui a fazer? Mas o senhor não sabe que isto de ir às Galápagos é uma coisa muito séria? Quem lá vai pode levar anos a conseguir a viagem. E o senhor chega aqui e diz simplesmente que quer ir hoje! Como é isso possível?” Respondi-lhe: “Minha senhora, em breve vou embora, posso não voltar cá. Como é que terei outra oportunidade de visitar as Galápagos?” Olhou para mim e disse: “O senhor tem cada uma! O senhor é engraçado!” Repeti: “Pois a verdade é que gostava muito de ir às Galápagos!” Voltou a dizer--me que há pessoas que estão um ano ou mais a preparar-se para essa viagem. Insisti: “Ó minha senhora, já lhe disse que volto para Portugal e nunca mais poderei ver as Galápagos!” [Risos.] Consultou uns papéis e comentou: “O senhor é um homem de muita sorte.” “Não me queixo”, respondi-lhe. E perguntou-me: “Mas o senhor era capaz de ir em primeira classe?” Respondi: “Não sei quanto custa, mas diga-me lá quanto é.” E ela continuou: “Há um cancelamento de última hora de um casal alemão. O senhor quer ir? É a melhor cabine!” “Pois claro que quero!” E fui. Entre os passageiros iam duas americanas jovens, impecáveis, que sabiam tudo sobre as Galápagos e que faziam exposições diárias. Todos sabiam tudo sobre as Galápagos! Havia toda a espécie de bichos, nem faz ideia. Levavam máquinas fotográficas e passavam horas a ver quando é que os animais mudavam de posição! E eu ia tomando banhos. A água era óptima! Andava a nadar e as jovens americanas comentaram: “O senhor não se interessa nada por isto?” Respondi: “Estou aqui porque queria saber como eram as ilhas Galápagos. E vou aprendendo convosco!” Então arranjaram-me um sarilho que nunca mais posso esquecer. “O senhor que é tão desembaraçado podia mergulhar neste fundão para ver o que há. Claro que para dar este mergulho é preciso ter uma certa valentia.” Dei o mergulho e nem queiram saber! Elas só se riam às gargalhadas. Vim ao de cima e só dizia aos berros “tirem-me daqui!” Aquilo estava cheio de golfinhos que me roçavam por toda a parte, uma situação horrorosa! [Risos.] Essa foi uma das boas que me aconteceram.
Havia uma anedota em relação às suas viagens. Sabem qual é a diferença entre Deus e o Dr. Mário Soares? Deus está em toda a parte e o Dr.  Mário Soares já esteve!
[Risos.] Isso era uma malandragem dos que diziam que eu viajava de mais. 
 
Se pudesse convidar hoje qualquer pessoa, de qualquer parte do mundo, para ir jantar a sua casa, quem é que convidava?
Quase todos os dias convido gente para jantar em minha casa. 
 
Papa Francisco, Barack Obama, Tsipras?
Não conheço Barack Obama, mas tenho por ele uma admiração profundíssima. Depois de ser eleito escrevi-lhe uma carta a dizer que o admirava muito. Levei a carta ao embaixador. Ele nunca me respondeu. Há um novo embaixador americano em Lisboa. Quis visitá-lo, mas ele insistiu em vir à fundação. É um democrata, muito simpático. Gostei imenso dele. Informei-o de que tinha escrito ao presidente Obama e que ele nunca me respondeu. Perguntou como tinha enviado a carta, se o tinha feito directamente. Disse-lhe que a tinha enviado através do embaixador seu antecessor. Riu-se e disse: “Pudera! Ele é republicano! Provavelmente não a enviou!” [Risos.] 
 
Agora tem de mandar outra carta…
Pois. Talvez...
 
E das pessoas que já partiram, se pudesse ter tido um último jantar com uma pessoa que já tenha partido e de quem tenha particulares saudades, quem convidaria?
É difícil dizer. Há umas dez ou 15 pessoas que convidava. Tive a sorte de ter sido sempre bem visto por muitas pessoas. Gente de todas as condições. Andei sempre à vontade pela rua, como sabe, mesmo quando era Presidente da República. Convido muita gente para ir a minha casa. A minha mulher gosta de receber. Até costuma perguntar-me: “E hoje, quem é que vem?” [Risos.] Normalmente não almoço em casa, só janto.
 
Dr. Mário Soares, neste momento pode dizer-se que para a história é um homem imortal?
Eu? Não! Eu sou um pobre homem que teve a sorte de ter tomado posições e de ter acertado, e de ter sido auxiliado por muita gente. Tive a sorte de ser amigo de António Sérgio, de Jaime Cortesão, que ainda agora homenageámos. Estamos a homenagear muitas personalidades. Já o fizemos a todas as grandes figuras do PS já desaparecidas – foram 26. Mesmo aqueles que diziam mal de mim. [Risos.]
 
Mas dentro de 100 anos…
Cem anos? Já ninguém se lembra.
 
Está a dizer que dentro de 100 anos já ninguém se lembra de Mário Soares?
Estou! Claro!
 
Não é verdade.
Veja: tenho uma grande admiração pelo Eça. Quem é que hoje ainda se lembra do Eça? Poucos.
 
Isso preocupa-o? 
Não me preocupa nada! Nunca me achei especial, essa é que é a verdade. Sempre me achei uma figura normal. Hoje quando ando na rua e as pessoas me chamam Presidente peço-lhes: “Por favor, não me chamem Presidente. Chamem-me Mário Soares.
 
Se fosse nos Estados Unidos seria presidente a vida toda.
Não sou, não quero ser, nunca serei. Sou o Mário Soares.
Há quem diga que o que define os grandes líderes, as pessoas que marcam o seu tempo, não é a quantidade de erros que cometem, porque todos os cometem, mas o número de decisões certas nos momentos decisivos. E o Dr. Mário Soares pode ao longo da vida ter errado muitas vezes mas acertou sempre nos momentos decisivos.
Não faço história. Conheço a história, mais ou menos, mas não acho que tenha sido especial. Não sou nada de especial. Ser Presidente da República é igual a ser outra coisa qualquer.
 
Mas quando o senhor doutor chega a Portugal no dia 28 de Abril de 1974 já sabia o que queria para o país…
Evidentemente que sabia. Tinha acabado, um ano antes, de organizar um partido – graças a Willy Brandt e aos seus amigos. Todos os que foram de Portugal, inclusivamente a minha mulher, votaram contra a formação do PS na Alemanha. Zenha e outros estavam convencidos de que não ia haver uma mudança de regime, mas eu estava convencido do contrário. E houve. 
 
E se não se divorciou da Dr.a Maria Barroso aí é porque era mesmo para a vida toda, não era?
[Risos.] É verdade. Fazemos este mês 66 anos de casados, no dia 22. Mas ela casou com um amigo meu, porque eu estava preso. [Risos.] Temos a mesma idade. A minha mulher faz 90 anos no dia 2 de Maio. 
 
Já disse que não é crente, de maneira nenhuma. Mas nunca o ouvi dizer que era ateu.
Não sou religioso. Ser ateu também tem o significado de ser contra. Eu não sou contra nem a favor, não acredito em Deus. E o meu pai era padre! Foi padre mas casou com a minha mãe pela Igreja, o que é extraordinário! Conseguiu isso! O meu pai foi padre porque era de uma família muito modesta. Eram muitas irmãs, excepto o meu pai, que foi o último a nascer. E as irmãs, todas muito católicas, quiseram que ele fosse padre. Ordenou-se em Coimbra, estudou Teologia. Mas apesar disso foi muito mulherengo. Teve um filho antes de mim, que perfilhou, de uma senhora ilustre, sendo padre! Depois casou com a minha mãe, pela Igreja, tendo pedido ao Vaticano autorização, por minha causa, porque não queria que eu fosse filho ilegítimo! Foi só por isso! O meu pai tinha por mim uma veneração… e a minha mãe também. O que me dá mais alegria na vida foi ter os pais que tive.
 
Mas não foi por ter sido protegido que deixou de se fazer à vida…
Fui sempre muito protegido. O meu pai era um padre democrata que, no tempo do D. Carlos, por ser republicano e andar  a conspirar, foi perseguido. Depois, na República, foi governador civil. Um belo dia encontrou a minha mãe, que era de Pernes, Santarém, e possuía uma pensão – ganhou algum dinheiro na lotaria e abriu uma pensão na Rua Ivens. Era uma pensão boa e o meu pai decidiu ir viver para lá. A minha mãe era casada e tinha um filho – esse meu irmão era mais novo do que o outro, um ano. Um era 18 anos mais velho do que eu, o outro 17. O meu pai gostou dela, foram viver juntos e o marido dela não ficou nada satisfeito, claro. Depois tiveram um filho, que fui eu. Nasci na Rua Gomes Freire de Andrade, que considero uma personagem altamente simpática. Gomes Freire de Andrade foi amigo de Napoleão e que D. Maria mandou matar. A minha casa ficava colada ao Rilhafoles. Os meus pais foram sempre fabulosos para mim. O meu pai esteve preso, deportado, fugido, esteve na guerra de Espanha, esteve em todo o lado.
 
Lembra-se da última conversa que teve com ele?
Não faço ideia. O meu pai morreu quando eu estava exilado em Itália, numa casa que me emprestou Mário Ruivo. Numa terra pequena que se chama Terni, a norte de Roma. Foi aí que escrevi o “Portugal Amordaçado”.
 
Lembra-se de como soube que o seu pai tinha morrido?
Os meus filhos e o meu sobrinho vinham de carro de Portugal passar as férias comigo. Souberam, por telefone, pela minha mulher, que o avô tinha morrido. Foram eles que me deram a notícia. Nesse mesmo dia meti-me no avião e vim para Portugal, sabendo que podia ser preso. Mas não fui. Julguei mesmo que seria preso. Quando cheguei ao aeroporto disseram-me: “O doutor entra e ninguém lhe vai tocar, mas não diga nada.” “Eu digo o que quero, sempre.” “É melhor não dizer”, aconselharam. “Seja o que for”, respondi. Fui ver o meu pai. No dia seguinte fui ao enterro nas Cortes, por decisão dele, de onde era e onde tinha uma casa. Transformei essa casa na Casa-Museu João Soares. A rua onde vivo é chamada João Soares, que é também o nome do meu filho.
 
Estou a lembrar-me de uma coisa: eu nunca o vi em nenhuma imagem chorar. Não conheço nenhuma imagem em que o Dr. Mário Soares esteja a chorar.
Não sou dado a chorar. Às vezes caem-me lágrimas, mas é só por ter qualquer coisa nos olhos. [Risos.] 
 
Mas não é muito de chorar?
Não sou nada de chorar.
 
Nem nos momentos mais difíceis, mais dramáticos?
Não. Nem em miúdo. 
 
François Mitterrand dois ou três dias antes de morrer telefonou-lhe. Esperamos que falte muito tempo, mas, se um dia achasse que tinha dois ou três dias, telefonava a alguém como Mitterrand lhe telefonou a si?
Acho que não. Não sei.
 
Quando ficou doente não telefonou a ninguém?
Eu estava em coma! 
 
Mas quando melhorou…
Não neguei que estive a morrer. Durante muitos dias estive em coma. De repente acordei e perguntei “onde estou? Quem é que me meteu aqui?”. Percebi então que tinha estado em coma, muito doente, mas superei, ainda que com dificuldade. O meu cardiologista costuma dizer--me: “Tomara eu ter um coração como o seu.” E é muito mais jovem que eu. Agora não tenho dores, mas tenho dificuldades nas pernas.
 
Nos momentos mais difíceis não teve a tentação de se aproximar de Deus? A uma ideia de transcendência?
Isso nunca me veio à cabeça! Já agora, vou contar-lhes uma história que se passou com o meu filho João. O João é uma pessoa óptima, recentemente divergimos, porque ele era apoiante de António José Seguro. Mas nunca falámos sobre isso.
 
Era tabu?
Nem ele nem eu quisemos fazê-lo porque sabíamos que poderíamos discutir. Mas, voltando à história, quando o João esteve a morrer na África do Sul, o médico, que era protestante, apercebeu-se de que ele estava a mexer um dedo, a tentar fazer sinal de que queria escrever. O médico pediu uma caneta para que o João o pudesse fazer. E o João escreveu: “Agradeço ao senhor doutor ter-me salvo a vida.” E o médico respondeu-lhe: “Agradeça a Deus, porque foi Deus que o salvou.” O médico era muito religioso, foi ele que contribuiu para a conversão da minha mulher (risos). O meu filho fez de novo sinal e voltou a escrever: “Agradeço-lhe a si porque não acredito em Deus.” 
 
E os seus netos?
Tenho três netos do primeiro casamento do meu filho, que são já adultos. A Inês, a mais velha, arquitecta, a Mafalda que é médica e o terceiro, o Mário, que está em França. Licenciou-se em História e está a trabalhar. Eu gostaria que ele fizesse o doutoramento. Do segundo casamento há o Jonas e a Lilah. O Jonas é muito engraçado. Já lhe disse: “Tu vais ser político.” Respondeu-me: “Qual político! Eu sou é do Benfica!” 
 
Gostava que o Jonas fosse político?
Acho que ele vai ser político! Ele tem uma forma de apreciar as coisas, de falar, que é de alguém que gosta de política. Quanto à Lilah, é muito bonita, muito amorosa. E muito simpática! Ela vai lá a casa todas as quartas-feiras. Há uns dias a minha mulher disse-lhe: “Sabes, Lilah, qualquer dia a tua avó desaparece.” E ela respondeu: “Mas fica sempre no meu coração.” Com sete anos, é interessante!
 
Gostava de fazer as pazes com alguém?
Não há ninguém com quem esteja zangado agora. Mas vou contar-lhe uma situação engraçada. Há dias estava a almoçar num restaurante e senti alguém tocar-me nas costas. Olhei para trás e era Passos Coelho, que me disse: “Venha de lá esse abraço, querido amigo!” Ao que respondi: “Amigo, com certeza. Mas sabe que todos os dias digo mal de si nos jornais e em todo o lado. Todos os dias sem excepção!” Respondeu-me: “E que importância é que tem isso? O importante é a amizade! Venha de lá o abraço!” De facto, mantive relações de amizade com Passos Coelho até ele ir para o governo. Pessoalmente gosto dele. Mas tem feito, a meu ver, muitos disparates e eu não posso deixar de escrever isso! 
 
Nunca chegou a fazer as pazes com Salgado Zenha…
Fui uma espécie de irmão de Salgado Zenha. Mas tivemos uma questão quando se candidatou à Presidência e eu também era candidato. E aconteceu uma coisa que para mim foi um choque. Num debate na televisão, falava com ele como sempre o fazia e às tantas disse-lhe: “Nós que somos da mesma família…” Eu sempre o considerei meu irmão! Ele respondeu com ar frio: “Eu não sou da tua família.” Recebi a resposta como um soco no estômago. Fiquei quase gago. Fizemos-lhe há pouco tempo uma homenagem aqui na fundação. Pedi ao antigo Presidente da República Jorge Sampaio que falasse sobre ele. Fez um discurso, que foi fabuloso. Mas apesar de Salgado Zenha me ter respondido daquela maneira, que não era da minha família, nunca lhe tive rancor.
 
 
Salgado Zenha morreu muito cedo. Tem pena de não ter feito as pazes antes de ele morrer?
Tenho, com certeza. Sempre o considerei como um irmão. Existem outras pessoas de quem me sinto irmão. Por exemplo, o António Campos, que é meu amigo íntimo. É como se fosse meu irmão! 
 
Com Manuel Alegre fez as pazes…
Fizemos as pazes e temos as melhores relações. Enquanto estive doente, todos os dias telefonava para saber da minha saúde. Quando soube disso, resolvi telefonar-lhe. Na altura pedi ao António José Seguro que ligasse ao Manuel Alegre. Assim aconteceu e falámos da maneira mais natural do mundo. “Olhe, a nossa amizade recomeçou!”
Recentemente foi muito criticado pelos magistrados e pelos juízes por ter escrito “o juiz Carlos Alexandre que se cuide”. Disseram que era uma ameaça ao sistema judicial.
Só faltava agora quererem prender-me! O que eu quis dizer foi apenas que se o juiz tiver prendido José Sócrates sem ter capacidade de produzir prova de acusação passará a ser muito mal visto pela opinião pública. 
 
Acredita na inocência de Sócrates?
Acredito é que um ex-primeiro-ministro não pode estar preso há três meses sem ter ido a tribunal. É nisso que acredito.
 
Mas acha que este processo é político?

Parece ser.

(Ana Sá Lopes e Luís Osório)

publicado às 08:37


A PREOCUPAÇÃO COM A DECÊNCIA

por Thynus, em 22.02.15
 
Sob o aguilhão da dor, a carne desperta; matéria lúcida e lírica, canta sua dissolução. Enquanto era indiscernível da natureza, repousava no esquecimento dos elementos: o eu ainda não havia se apoderado dela. A matéria que sofre emancipa-se da gravitação, não é mais solidária do resto do universo, isola-se do conjunto adormecido; pois a dor, agente de separação, princípio ativo de individuação, nega as delícias de um destino estatístico.
O ser verdadeiramente solitário não é o que foi abandonado pelos homens, mas o que sofre no meio deles, o que arrasta seu deserto nas feiras e exige seus talentos de leproso sorridente, de comediante do irreparável. Os grandes solitários de outrora eram felizes, não conheciam a duplicidade, não tinham nada que ocultar: só se relacionavam com sua própria solidão.
Entre todos os laços que nos unem às coisas, não há um só que não afrouxe e não pereça sob a influência do sofrimento, que nos liberta de tudo, salvo da obsessão de nós mesmos e da sensação de ser irrevogavelmente indivíduo. É a solidão hipostasiada em essência. Sendo assim, por que meios comunicar-se com os outros senão pela prestidigitação da mentira? Pois se não fôssemos saltimbancos, se não houvéssemos aprendido os artifícios de um charlatanismo sábio, se enfim fôssemos sinceros até o despudor ou a tragédia –, nossos mundos subterrâneos vomitariam oceanos de fel, onde desaparecer seria nosso ponto de honra: fugiríamos assim da inconveniência de tanto grotesco e sublime. Em um certo grau de desgraça, toda franqueza torna-se indecente. Jó se deteve a tempo: um passo adiante e nem Deus nem seus amigos lhe teriam mais respondido.
(Somos “civilizados” na medida em que não proclamamos nossa lepra, em que damos prova de respeito pela elegante falsidade forjada pelos séculos. Ninguém tem o direito de curvar-se sob o peso de suas horas... Todo homem esconde em si uma possibilidade de apocalipse, mas todo homem sujeita-se a nivelar seus próprios abismos. Se cada um desse livre curso à sua solidão, Deus deveria recriar este mundo, cuja existência depende inteiramente de nossa educação e deste medo que temos de nós mesmos... – O caos? – É rejeitar tudo o que se aprendeu, é ser você mesmo...)

(CIORAN - BREVIÁRIO DE DECOMPOSIÇÃO)
Sou tudo e não sou nada, sou alguém e ninguém

publicado às 02:11

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